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Anna DeMille não gostava de se lembrar que tinha começado a beber a água da tigela para lavar as mãos antes de ter visto Ted Cavanaugh mergulhar os dedos na dele. Tinha quase a certeza de que ninguém se apercebera, mas essa possibilidade continuava a incomodá-la. Era por isso que optara por ir à palestra sobre etiqueta. Talvez aprenda algumas dicas, pensou, não tem mal nenhum. E já vi que há muita gente chique neste navio.
Havia sempre a possibilidade de Devon Michaelson estar lá.
Esperou até ao último minuto antes de a conferência ter início para se sentar, para, no caso de ele aparecer, poderem sentar-se juntos.
Tal não aconteceu. Mas reparou que Ted Cavanaugh, o professor Longworth e os Meehan se tinham sentado lá à frente.
Eu percebo porque os Meehan estão aqui, pensou. Mas porque haviam o Cavanaugh e o Longworth de aparecer?, interrogou-se.
Sentou-se ao lado de um senhor de idade que parecia estar sozinho. Estava prestes a apresentar-se e a contar-lhe a história de Cecil B. DeMille quando a oradora subiu ao pódio.
Julia Whiterspoon era uma mulher de ar austero com cerca de setenta anos. Depois de se ter apresentado, explicou que habitualmente só falava de etiqueta à mesa do jantar. Mas naquela viagem parecera-lhe apropriado revisitar o bom gosto extraordinário de há um século.
Quando Whiterspoon começou a falar, ela não tinha como saber que Ted Cavanaugh era um dos seus ouvintes mais interessados. Desde rapazinho, desenvolvera o gosto por antiguidades egípcias. Da mesma maneira, interessavam-lhe as boas maneiras de tempos antigos. Sabia que ouvir falar dos meandros da sociedade de há cem anos seria uma distração e ele precisava dessa distração.
— Uma vez que aquilo que era considerado etiqueta há um século falha tristemente nos nossos dias, é possível que estejam interessados em ouvir falar dos bonitos costumes que dominavam o final do século dezanove e início do século vinte. Comecemos pela etiqueta dos casamentos. Quando um jovem dá à sua pretendida um anel de noivado, está a seguir uma tradição que começou há mais de oitenta anos. O anel de noivado adequado é um diamante solitário porque representa, e cito, «a unicidade e a resistência do amor singular que o noivo sente pela sua futura esposa». No primeiro jantar em família após o noivado, o pai da rapariga erguia o seu copo e dirigia-se à audiência dizendo: «Proponho que brindemos à saúde da minha filha Mary e à do jovem que ela decidiu acrescentar em permanência à nossa família, James Manlington.» O jovem devia responder dizendo: «Eu, hum… nós agradecemos a todos os vossos melhores votos. Julgo que não tenho de vos dizer que a minha intenção é provar, se assim o conseguir, que a Mary não cometeu o maior erro da sua vida ao escolher-me e espero que não demore muito até vos vermos a todos novamente, à nossa mesa, com a Mary à cabeceira e eu, no meu lugar, na outra ponta.»
Whiterspoon suspirou.
— Que pena que a vida atual seja tão rude — disse e aclarou a garganta. — E agora passamos ao casamento. O vestido da noiva devia ser branco. Cetim e/ou renda eram os materiais mais apropriados. Em relação às damas de honor, Emily Post diz o seguinte: perguntou-se a um distinto tio: «Não acha que o casamento foi bonito demais? As damas de honor não estavam lindíssimas?» Ao que ele respondeu: «Não achei nada bonito. As damas de honor estavam todas tão maquilhadas que não se via uma cara bonita. Posso ver um desfile como o delas todas as noites numa casa de comédia.»
Whiterspoon continuou a falar da decoração apropriada da casa de uma noiva, incluindo o número adequado de criados, mordomo, dois lacaios, um cozinheiro e dois ajudantes, uma governanta e duas criadas. De seguida, prosseguiu com a descrição de como devia revestir-se uma casa em situação de luto.
Quando a palestra terminou, não houve ninguém que não se sentisse culpado por de alguma maneira já ter cometido várias gafes ao longo dos anos.
Enquanto Whiterspoon falava, Ted Cavanaugh deu por si apenas meio atento e a sua mente viajou novamente para o desafio que tinha à sua frente. Lady Haywood dissera finalmente a verdade, que tinha o colar de Cleópatra que o marido lhe oferecera. Quer ela goste, quer não goste, além de serem exploradores famosos, o Sir Richard e o pai eram saqueadores de túmulos, pensou Ted. Aquele colar devia ter estado todos estes anos em exposição no Museu do Cairo. Ela não tem o direito de o dar ao Smithsonian. Se o fizer, provavelmente isso vai implicar um processo moroso até conseguir recuperá-lo. Eu podia fazer muito dinheiro ao processar o Smithsonian, mas não quero que isso aconteça.
Vou sublinhar que se ela não quiser que o marido e o pai dele fiquem conhecidos como saqueadores de túmulos, ela deve concordar em devolver o colar ao Museu do Cairo. Talvez consiga convencê-la, teve esperança. Certamente que vou esforçar-me ao máximo.
Ted Cavanaugh não era a única pessoa na audiência que não estava a dar toda a sua atenção a Whiterspoon. O professor Henry Longworth tinha o hábito de assistir à palestra que antecedia a sua. Isso dava-lhe a oportunidade de avaliar a reação da audiência e perceber a que tipo de material o público reagia mais.
Longworth não queria admitir que estava ansioso por assistir à palestra de Whiterspoon. Nunca conseguira perder a amargura das memórias dos anos em que vivera em grande pobreza em Liverpool. Mas, mais do que isso, fora marcado pelo menosprezo de que tinha sido alvo quando chegara a Cambridge. No primeiro jantar da universidade, servira o chá num pires, que levara aos lábios, sorvendo o líquido. De seguida, tinha-se dado conta dos risos dissimulados e dos olhares dos outros alunos que se encontravam à mesma mesa comprida. Os risos dissimulados haviam dado lugar a gargalhadas quando o aluno ao lado dele servira chá no seu pires e o sorvera também. A seguir, todos os alunos da sua longa mesa lhe seguiram o exemplo.
Henry ainda tinha presente o som das gargalhadas a martelarem-lhe nos ouvidos. Fora por isso que estudara etiqueta como passatempo. E tinha-o ajudado bastante. Ele sabia que as suas atitudes meio alheadas, a par das suas palestras cativantes, contribuíam para o ar misterioso que tinha criado em torno de si mesmo.
Aquilo que as outras pessoas não sabiam era que ele era proprietário de uma casa em Mayfair, que havia comprado há muito, quando os preços eram acessíveis. Tinha analisado cuidadosamente revistas de casas de alta sociedade e, aos poucos, transformara a sua residência num paradigma de bom gosto. Ano após ano. Decorara-a com os belos objetos que recolhia quando viajava para dar palestras. Apenas a sua mulher a dias sabia da existência da casa. Até o correio era enviado para uma caixa postal. A casa e o recheio eram seus. Sentava-se na biblioteca, com o casaco de smoking vestido, e os seus olhos viajavam pela divisão, apreciando um a um todos os quadros e todas as esculturas. Naquela divisão, tornava-se verdadeiramente ele mesmo, «Lord» Henry Longworth. Aquele mundo de fantasia tinha-se tornado a sua realidade. E, depois de uma viagem, ficava sempre feliz por voltar ali.
Ouviu Anthony Breidenbach, o diretor de entretenimento, anunciar que a sua palestra sobre Shakespeare teria início após um intervalo de quinze minutos. Às três e meia seria a hora de Celia Kilbride se apresentar.