Urbano Tavares Rodrigues — escritor

 

 

Carta Aberta ao Deus em que não creio

 

Sabeis decerto (saberíeis, se este discurso não fosse convenção) que tempo houve em que vos invoquei convictamente e depois já com alguma dúvida e sobretudo ao Cristo da compaixão e da misericórdia, mas a meio da adolescência rejeitei dentro de mim a fraqueza desses apelos ocasionais para um sobrenatural em que eu deixara de acreditar.

Conversemos então na base desta convenção, podendo até admitir que vós sois uma suprema energia que existe na natureza e também, chamemos-lhe assim, na “alma”, essa forma superior da matéria que talvez nos sobreviva, alheia ao bem e ao mal, tais como os concebem as míseras parcelas do Universo que nós, humanos, somos.

Ora o sentido desta carta, se algum sentido ela pode ter, consiste precisamente numa imploração (absurda ou não) da vossa benevolência — que habitualmente não se manifesta — para este planeta constantemente sacudido de horrores (terramotos, tufões, inundações implacáveis) e onde a acção do homem não é por vezes menos cruel e insensata: guerras e fomes e epidemias, sobretudo em África, o continente da maior miséria; acções punitivas e de rapina como as invasões e a destruição do Afeganistão e especialmente do Iraque, que espalharam pelo mundo o flagelo de um terrorismo desesperado. E mais e mais.

 

Senhor Deus de todas as confissões religiosas, se vos decidísseis a agir em favor de um outro futuro dos homens, teríeis de ensinar-lhes a conjugar o espírito de tolerância, se tal for possível, com os valores que podem e devem torná-los mais humanos e que não poucas vezes são reivindicados por quem menos os pratica: a liberdade e a igualdade.

Está feita historicamente a prova de que é possível abolir, ou pelo menos minorar consideravelmente, as formas de servidão, de exploração do homem pelo homem, agora florescentes, sob outras roupagens, num mundo de altas tecnologias e deslumbrante avanço científico, mas onde o poder do dinheiro, valor supremo das novas sociedades neo-liberais, subverte todas as regras pelas quais teoricamente se regem as nações ditas civilizadas e as que delas dependem, a começar pelos tão falados e tão pouco respeitados direitos humanos. Coisas tão simples como ter direito ao trabalho, a uma casa, à saúde, ao ensino, que são condicionantes da própria liberdade.

 

Senhor Deus, a ganância da riqueza, que até ousa reivindicar a liberdade, está a criar novos escravos, excluídos sociais ou mesmo trabalhadores que vivem como animais de carga, até nos países europeus que se reclamam da democracia.

Eu sei, senhor Deus, que só connosco podemos contar e nem venho incomodar-vos com rogos ou com invocações de uma justiça que só serve para enfeitar a linguagem dos que governam este mundo. Aliás, todos os Deuses lavam daí as suas mãos.

De toda a maneira, ter convosco esta conversa, que não é exactamente um monólogo, nem apenas uma queixa, pode (poderia) surtir algum resultado.

Ser lúcido hoje significa, para os que dominam o processo económico ou o apoiam servilmente, reconhecer que o mundo mudou e que há que respeitar as suas duras normas.

Mas, não quero deixar de o crer, há outros caminhos, outras formas de desenvolvimento e de repartição dos bens.

Conversas como esta nossa (eu sei que não respondeis), podem mesmo assim deixar alguma semente de esperança e de revolta, ou alguma vontade de perceber melhor as coisas do mundo, que por tão mau caminho vão.