Fernando Pinto do Amaral escritor e crítico literário

 

 

Uma pequena luz

 

Embora absurda, apeteceu-me hoje escrever-te esta carta. Chamo-lhe absurda porque, se existires, já saberás de antemão tudo o que eu possa dizer-te, adivinhando-me cada frase antes sequer de eu a escrever, antes mesmo de eu a conceber no lugar mais recôndito do que chamamos pensamento, nesse desconhecido de mim mesmo que tu naturalmente sempre conheceste.

Ainda assim, escrevo-te. Nos dias em que me sinto vítima de qualquer injustiça — mas também noutros em que agradeço a dose de felicidade que me coube —, preciso de um interlocutor como tu, em quem me habituaram a acreditar desde criança. Nessa altura era fácil crer na tua omnipotência — “Deus tudo pode” —, na tua omnisciência — “Deus tudo sabe” — e na tua omnipresença — “Deus está em toda a parte” — sobretudo nos momentos em que a vida começava a necessitar de um sentido, de uma explicação plausível e humana para todos os seus mistérios sem resolução. Durante a adolescência aprendi a investigar as causas de cada fenómeno, a desfibrar cada partícula das coisas e dos seres com o auxílio da ciência, que às vezes me parecia quase tão omnipotente como tu. O conhecimento dos homens evoluiu muito nos últimos tempos: sei que quando sinto medo, desejo, angústia, paixão, serenidade, essas emoções se devem a descargas de dopamina, serotonina, oxitocina, etc., mas imagino que toda essa bioquímica também exprima a tua presença. Se estás em toda a parte, moras no interior de cada célula, no meu ADN cujas combinações conheces de cor, nas proteínas que formam o meu corpo, mas também no ADN ou no ARN dos mais ínfimos vírus, quando lhes ordenas para se replicarem até ao infinito, com uma finalidade sem fim.

Se estás em toda a parte, vejo-te por vezes como a ordem que se opõe ao caos e organiza o real segundo uma harmonia a toda a prova, como sucede, por exemplo, na música e na matemática: no primeiro caso, tratando-se de uma arte abstracta por excelência (ou seja, uma arte que não pretende representar o real), o mais notável é o modo como os sons parecem estruturar-se em linhas de sentido que nos tornam capazes de reconhecer na sua beleza algo que é escutado pelo nosso ouvido interior como a epifania de uma verdade intuída através desses sons. Quanto à matemática, o principal ocorre também sob a forma de uma harmonia, cujo alcance parece estender-se a todas as forças que regem o universo, desde os movimentos das partículas mais ínfimas até às órbitas dos astros mais longínquos. O facto de sermos capazes de descortinar leis matemáticas para dar conta dessa mecânica continua a causar-me alguma perplexidade, e ficou célebre a frase de Einstein ao afirmar que “a mais incompreensível propriedade do universo é a de ser tão compreensível”.

Se pudesses responder-me a esta carta, talvez te perguntasse simplesmente: “para quê?” Para quê esta hipótese estranha a que chamamos vida, o enigma destes átomos de carbono que um dia se transformaram em criaturas vivas?... Escrevo-te, mas sei que a resposta está em nós, no modo como obedecemos à natureza e ao mesmo tempo a negamos enquanto intuímos as suas leis, pressentindo o supremo arquitecto que as comanda. Creio que um dos nossos grandes mistérios como seres humanos radica precisamente nessa contradição, na coexistência entre os imperativos biológicos que nos incitam a sobreviver, competindo ferozmente uns com os outros, e a consciência de que essa competição nos pode levar tantas vezes ao mal e à injustiça. “Nós somos o que nega a natureza”, escreveu o Jorge de Sena num verso que até hoje me persegue. Negamo-la, por exemplo (e ainda bem) quando olhamos para o mundo e todo o sofrimento que nele vemos nos mostra até que ponto pode tornar-se injusta a simples mecânica darwinista da selecção natural — o que faz despertar em nós um profundo sentido de justiça.

Há 2000 anos houve alguém que em teu nome nos mostrou isso muito bem, muito melhor do que quaisquer palavras que eu hoje pudesse dizer. Mostrou-no-lo, acima de tudo, com o exemplo da sua vida, mas não o quisemos ouvir e preferimos condená-lo à morte. Apesar do remorso que desde então serviu para que alguns de nós — poucos, sempre poucos — tentassem imitá-lo, estou convencido de que, se voltasse de novo a este planeta, o seu destino não seria diferente — tomá-lo-íamos por um louco ou um visionário sem o sentido das realidades. Isso faz-me verificar que aprendemos muito pouco ao longo do tempo — que o egoísmo, a inveja, a mesquinhez ou a vontade de poder continuam a ser mais fortes.

E no entanto, vê lá tu, ainda não perdi a esperança. Sei que no mais fundo de nós mesmos continuamos a identificar o bem e o mal e sei que enquanto soubermos distingui-los — embora nos enganemos tantas vezes... — nada está definitivamente perdido. Basta abrirmos os olhos e vislumbrarmos dentro de nós essa espécie de luz, uma luz a que podemos dar o teu nome absoluto, mas que pode ter todos os nomes do mundo. É dessa luz que nos fala o Jorge de Sena (ainda ele) num poema que sempre me interpelou, dessa luz em cujo brilho sempre vi um reflexo da tua presença — uma presença por vezes ausente ou difícil de detectar, mas noutras ocasiões tão evidente como um dia de sol. E é com esses versos que termino esta carta:

 

Uma pequenina luz bruxuleante

não na distância brilhando no extremo da estrada

[...]

aqui no meio de nós

entre o bafo quente da multidão

e a ventania dos cerros e a brisa dos mares

e o sopro azedo dos que a não vêem

só a adivinham e raivosamente assopram

Uma pequenina luz

que vacila exacta

que bruxuleia firme

que não ilumina apenas brilha.

[...]

Silenciosa não crepita

não consome não custa dinheiro.

Não é ela que custa dinheiro.

[...]

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.

Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.

Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.

Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.

Uma pequenina luz bruxuleante e muda

como a exactidão como a firmeza

como a justiça.

Apenas como elas.

Mas brilha.

Não na distância. Aqui

no meio de nós.

Brilha.