Joel Neto — jornalista e escritor

 

 

Porto de Leixões, 27 de Agosto de 2002

 

Apaixonei-me pelo espaço, pai, quando vi Fátima, a ruiva, conhecida nalguns bares do Porto pelo nome mais sugestivo de Sheila-do-Iraque. É mentira: nunca soube a sua origem nem o seu destino — mas no momento em que ouvi Alfredo dizer: «Esta é a Fátima, minha namorada, e é bailarina», rematando-o com aquele sorriso de velho baboso que então ainda me divertia, percebi logo de que tipo de Fátima se tratava e em que género de bailado ela investia. Enfim, eu era apenas um jovem em comissão de serviço num transitário e com aspirações a pouco mais do que nada, que ainda por cima definia os restaurantes pela designação genérica de «espaço», e encontrar aquela casa com um sacristão mulherengo transformado em proprietário e uma stripper a fazer de garçonette e umas enguias mal amanhadas fingindo de evasão alentejana era viver num só dia muito mais vida do que toda a minha e a dos meus. Eles eram como que saltimbancos — eles e o homem do carvão e a filha do homem do carvão —, e naquela altura eu não queria mais do que embalar a trouxa e partir na comitiva. Com alguém teria Sheila de dividir a roulotte, e de certeza não seria com aquele femeeiro barato que a si próprio se intitulava proprietário e namorado.

Comi lá durante seis meses, cinco dias por semana, duas vezes por dia — sem uma hesitação, sem um atraso, sem uma ausência. Gostava de me imaginar como Pessoa, pai, como um poeta de génio negligenciado em vida e reconhecido postumamente — e ir sempre ao mesmo sítio e encontrar sempre as mesmas vidas e ser capaz de, ainda assim, fundi-las a todas em milhares de combinações diferentes era, na altura, aquilo a que podia chamar-se o meu projecto literário. Alfredo provavelmente não me levava a sério, mas ao segundo dia começou a tratar-me como um velho cliente, cheio de cumplicidade e deferência. Desde então, nunca mais faltei. Ao almoço chegava pontualmente ao meio-dia e meia, punha-me ao canto da mesa maior, e depois ia recebendo um a um os meus colegas de repasto, o padre Carlos e o padre Fernando e o padre Pinto e o Zé Manel, que não era padre mas era psicólogo de vocação mística e inimigo de Freud — «Esse homem matou Deus! Esse homem matou Deus!», irrompia, sempre que um de nós aflorava o nome do anticristo. Ao jantar sentava-me na mesma mesa, mas então a sala parecia diferente, e em vez de conferirmos os últimos números da eterna guerra entre o Bem e o Mal falávamos de futebol e de vinhos e dos toiros da Póvoa — e como companhia eu não tinha padres mas padres bêbedos, o pessoal da casa roubado a um filme do Kusturica e aquele mesmo psicólogo místico em cujos braços Deus continuava a morrer duas vezes ao dia.

Alfredo, de cabelo grisalho e esgrouviado, com um pijama encardido espreitando obsceno entre os colarinhos, aparecia e desaparecia com facilidade — e as mais das vezes era o homem do carvão quem vinha aquilatar do grau de satisfação dos clientes, um cigarro no canto da boca e a tenaz em riste, como uma adaga combalida. Vinha muito esguio, pai, com as calças e o casaco sumindo-se quatro números abaixo do adequado, e ao lado trazia invariavelmente a filha Abrilete, uma adolescente de olhar profundo e surpreendido, como se para ela tudo aquilo se fundisse num universo estranho, hostil — como se os padres e o psicólogo e a bailarina ruiva e eu próprio lhe houvéssemos posto o pé em cima da cauda e a impedíssemos de correr pelos prados.

Parecia ter uns dezoito anos, mas num dia de estranha intimidade confidenciou-me ter treze e explicou-me que não sabia ler. Ia para dizer-me mais qualquer coisa — tenho a certeza de que tinha mais algo de importante a dizer-me —, mas nesse exacto momento chegou Alfredo, muito cheio de compras e de sacos e de caixas, e gritou, severo: «Anda cá ajudar com isto, Abrilete!», e então a moça meteu o rabo entre as pernas, recuperou o seu olhar profundo e foi tirar as folhas murchas às alfaces. A meu lado Zé Manel pigarreou, contrariado: «Ninfetas...» — e nessa altura ergueu-se para cumprimentar os padres que chegavam, o Pinto que tinha um saco a fazer de intestino e não podia comer ensopado, o Carlos que se achava no direito de chegar a bispo, o Fernando a quem nada daquilo parecia interessar a não ser na exacta proporção da qualidade das enguias. Eu levantei o rosto para Fátima, muito ruiva na sua lycra preta de camarim de prostíbulo, e ela limitou-se a baixar os olhos. Dizia ter trinta e oito anos, mas a julgar pelas rugas que lhe espreitavam sob a máscara de stripper tê-los-ia há pelo menos quinze. Estava ali porque já não lhe restava mais nada na vida, e um sacristão mulherengo com a mania dos retiros no Douro e o vício das prostitutas de Amarante era tão boa companhia como outra qualquer.

Depois recuperei na hierarquia, retomei o lugar nos escritórios de Lisboa, e quando no mês passado voltei a Matosinhos, para uma reunião com um importador de respeito, dei por mim à frente da tasca do Alfredo à exacta hora do ensopado de enguias. Tinha os mesmo azulejos castanhos com arabescos, pai, a mesma imagem de Nossa Senhora de Fátima e, ao lado, o mesmo poster do Futebol Clube do Porto 1983-1984 — e nas cadeiras sentavam-se os mesmos padres, junto ao balcão Fátima vestia o mesmo fato de treino em lycra, na grelha o homem do carvão envergava o mesmo casaco cinzento quatro números abaixo do seu, o cigarro pingando cinza ao canto da boca e a tenaz em riste como uma adaga combalida. Abrilete viu-me através da janela e baixou os olhos. Alfredo saiu-me ao caminho, com o seu pijama seboso espreitando por detrás dos colarinhos, sorriu-me sem sentimento e apontou-me o outro lado da rua: «O Joaquim do Central está com uma posta de espadarte espectacular.» Eu estiquei-lhe a mão num cumprimento, apertei o botão de cima do fato e fui comer o meu espadarte. Fátima, em pé junto ao balcão, de mãos atrás das costas como uma verdadeira garçonette, sorriu para mim.