Encontrei Lupe dois dias depois, pouco antes de a aula começar. Vinha pelo corredor com seus colares e suas pulseiras, toda de preto em contraste com a pele muito branca. Olhei para ela com calma e atenção: os cabelos de um negro profundo, provavelmente tingidos, longos e um pouco ondulados, uma franja espessa e curta e lisa, que lhe dava um ar de menina e realçava seus olhos maquiados com delineador. Os cílios pareciam postiços de tão longos, e davam à sua expressão uma umidade inesperada. Eu nunca me interessara muito pelas pessoas, quase não tinha amigos, fora os colegas de colégio, que eram apenas isso, colegas de colégio, apenas um conhecido ou outro com quem mantinha esporádicas conversas eletrônicas e raríssimos encontros, e, ao contrário do que minha mãe imaginava, não porque eu ansiasse e não conseguisse, mas porque eu não queria, simples assim. Para minha mãe, e não só para ela, não querer se relacionar com outras pessoas era de uma estranheza inaceitável, prenúncio de um destino assombroso, mas para mim era apenas o resultado da conclusão a que eu sempre chegava: não se relacionar dava sem dúvidas menos trabalho do que fazê-lo. Apesar disso, e contrariando todos os prognósticos, quando vi Lupe me aproximei:
— Desculpa o outro dia.
— Desculpa por quê?
— Eu meio que saí correndo. Sem me despedir.
— Sabe que eu nem tinha percebido?
Lupe me observava divertida. Voltei a sentir um estranhamento, como da outra vez, algo nela, em seu olhar, fazia com que eu me sentisse inquieta, como alguém que descobre, de um momento para outro, que saiu de casa sem trocar o pijama, ou enrolado no lençol.
— Eu acho lindo o idioma.
— Que idioma?
— O português.
— Eu também, gosto muito — e, sem pensar no que estava falando, disse —, a sonoridade, por algum motivo, me parece familiar.
Lupe sorriu.
— Também tenho essa impressão, mas deve ser por causa da música. Meu pai costumava ouvir muita música brasileira. Ele trabalhou um ano no Brasil, mas isso foi antes de eu nascer.
— Seu pai é brasileiro?
— Não, mexicano.
— Ah, você é mexicana?
— Sou.
— Não parece — falei sem pensar. Na realidade eu não tinha a menor ideia de como deveria se parecer uma mexicana.
— E você é alemã?
— Sou, claro.
— Não parece — Lupe sorriu irônica.
Aquilo me incomodou, como sempre me incomodava quando faziam esse comentário, você não parece alemã, ou me perguntavam de onde eu era, definitivamente a pele morena era um elemento incompatível com a Alemanha. Eu me limitava a responder, sou daqui mesmo, de Berlim.
— Estou brincando — ela tinha percebido minha irritação —, é que estou cansada de ouvir isso, que eu não pareço mexicana.
— Desculpa.
— Tudo bem.
Tentei mudar de assunto.
— Mexicana… então você não fala português?
— Não, claro que não, se falasse não estaria nesse curso para iniciantes.
— É verdade…
Lupe devia achar que eu não era de muitas luzes. Tentei dizer algo inteligente, para compensar as bobagens anteriores, mas não consegui pensar em nada. Fui salva pela professora, que chegou já falando qualquer coisa sobre as regras do presente do indicativo: comecemos conjugando o verbo ser, mas, antes disso, começamos com a diferenciação entre os verbos ser e estar. A professora passou grande parte da aula explicando o inexplicável, que em português havia dois verbos para designar a existência. A efêmera e a constante. Pareceu-me difícil ao extremo ter que tomar uma decisão dessas a cada frase, o que fica e o que desaparece. Pensei, após muitos anos, em Max e o segredo do seu paradeiro. Pensei em Lupe, ao meu lado, digitando furiosamente alguma coisa num pequeno notebook. Olhei para as suas mãos, o dorso e os dedos estavam cobertos de tatuagens, e notei que um dos anéis era uma caveira de prata com duas pedras azuis, a caveira me encarava. De algum modo a caveira estabelecia entre nós uma conexão. Num gesto inesperado, peguei a caneta e escrevi no meu caderno: Vamos tomar um café? Lupe escreveu de volta, na realidade um desenho, era o desenho de algum símbolo maia ou asteca, eu sorri, sem entender se aquilo significava um sim ou um não.
Na cantina, Lupe contou da família no México, das irmãs, Lupe tinha três irmãs, falou da mãe, muito carinhosa a minha mãe, mas coitada, largou tudo pela gente, todos os sonhos para ir atrás do meu pai e depois ter um monte de filhos, mas ela ainda é muito bonita, elegante, é uma mulher inteligentíssima, e, apesar de não ter estudado, ela sempre gostou de ler. E tem também a minha avó, que mora com a gente. Uma casa cheia, comentei, sim, cheia de mulheres, ela riu. Deve ser bom, uma família grande. Nem sempre, você nunca tem espaço para você, nem segredos, tudo é exposto, compartilhado, e tudo é um falatório incessante, nós mulheres falamos muito, nem todas, respondi, é, nem todas, ela concordou, você, por exemplo, quase não fala. Sou filha única, respondi, meus avós moram longe, estou acostumada ao silêncio, meus pais sempre trabalharam muito, não sobrava ninguém para conversar. Ao menos, não em casa.
— Eu gosto disso.
— Do quê?
— Do seu silêncio.
Lupe colocou a mão por cima da minha, eu gelei. As unhas pequenas, os dedos leves e finos. A mão se manteve imóvel, ela continuou falando naturalmente, como se a mão não estivesse lá, eu não ouvia nada, pois tudo era a mão de Lupe e a pele da mão de Lupe sobre a minha. Eu tentava sorrir, mas no máximo devo ter feito uma careta, Lupe não percebia ou fingia não perceber. O anel com a caveira me encarava.
— Eu tinha uma namorada no México, na escola ainda, uma bobagem, um dia pegaram a gente se beijando no banheiro, a diretora nos passou um sermão, poderíamos perverter outras meninas, foram as palavras dela no dia seguinte, chamaram minha mãe, era uma escola tradicional, foi um escândalo. — Lupe deu uma gargalhada.
Eu estava paralisada, me surpreendia a facilidade com que Lupe falava das coisas mais pessoais, aquela intimidade. Eu não sabia o que dizer, perguntei qualquer coisa.
— E o que aconteceu depois?
— Nada, fomos convidadas a nos retirar. Terminei o ano num colégio de merda, mas que aceitava todos aqueles que eram expelidos pelo sistema, repetentes, desajustados, vegetarianos, homossexuais…
— Deve ter sido horrível.
— Nada, foi ótimo, no colégio novo fiz grandes amigos. Pena que acabou. Mas eu queria fazer a academia de belas-artes, sempre quis, aliás, vou entregar o meu portfólio semana que vem, se tudo der certo, começo no próximo semestre — os olhos de Lupe brilhavam —, mas, então, quando terminei o colégio, meus pais aceitaram que eu viesse estudar na Alemanha, a minha irmã mais velha já estava aqui, casada com um alemão, o Matthias, ele é tranquilo, gente boa. Eles acabam de ter um bebê. Eu moro com eles.
Eu fazia um esforço imenso para manter a conversa.
— Belas-artes, que inveja.
— Inveja?
— É, invejo você já ter tão claro o que quer, do que gosta, eu não tenho ideia.
— Já já você descobre — Lupe me olhou com malícia, eu desviei o olhar. — Quero te mostrar o meu trabalho.
— São pinturas?
— É, algo entre pintura e fotografia.
Fiquei imaginando como seriam as pinturas de Lupe, mas esse pensamento foi logo atropelado por outro.
— E a sua namorada? — minha voz saiu aguda.
— Jimena? Ah, foi só um namorico, eu mudei de colégio, ela também, acabamos perdendo contato. Depois, logo que cheguei aqui conheci uma garota, no curso de alemão para estrangeiros, namoramos um tempo, mas acabou.
Lupe falava das namoradas, mas poderia ser de uma bicicleta ou de uma maçã, algo cotidiano. Eu estava gelada, aquele assunto me parecia inadequado, fora de lugar, por que ela me dizia tudo aquilo?, mas ao mesmo tempo era atraente, muito atraente. Sentia que começava a tremer, fiz menção de me desvencilhar, Lupe segurou a minha mão com força. Meu coração batia tão forte que tive medo que ela ouvisse. Na verdade, eu percebia pela primeira vez um tipo de sentimento que até então não existia, ou, se existia, eu nunca tinha percebido. Um desejo, não um desejo exato, mas algo que se alastrava, tomando não somente o corpo, mas o pensamento também, assim, ao fechar os olhos, eu, cega, me enxergava pelo avesso. Minha mão suava por baixo da mão de Lupe. Tudo em mim se liquefazia, os órgãos internos, e senti até a cicatriz nas costas, uma dor leve, porém aguda, eu era apenas uma casca mole e úmida. Não é possível que aos dezoito anos você ainda não soubesse da sua atração por mulheres, me perguntaria Lupe muitas vezes depois, foi a primeira coisa que eu percebi em você, ela ria, minha resposta era sincera, não, eu não havia percebido, e nem imagino como você, que não me conhecia, poderia saber uma coisa dessas. Estava escrito na sua cara, no seu jeito de se vestir, os seus gestos, você parecia um garoto, o cabelo curtinho, e também no seu olhar, bom, então havia algo escrito em mim sem que eu soubesse, algo que eu mesma não havia lido. Mas você nunca havia namorado ninguém?, não, nunca. Nem beijado? Só um menino quando criança. Só beijo?, só, é claro que só. Você não pensava em sexo?, não, quer dizer, de vez em quando eu pensava que chegaria a minha hora, mas os pensamentos não passavam disso. Mas você não se masturbava? Lupe tinha a inesgotável capacidade de me constranger, às vezes, e no que você pensava?, não sei, Lupe, não lembro, não pensava em nada, em nada?, como é possível?, sendo, as coisas são possíveis, mesmo que não sejam prováveis.
Lupe era alguns anos mais velha, não muitos, mas parecia muito mais preparada para a vida do que eu, havia nela uma entrega e também uma capacidade de olhar para os outros e para si mesma que eu nunca tive. Essa coragem de se aproximar, de arriscar tudo, uma espécie de fé. E, ao mesmo tempo, um equilíbrio. Lupe era dessas pessoas que sempre conseguem o que querem, e, se não conseguem, têm uma capacidade incrível de regenerar seus sonhos.
— Eu quero você. — Foi o que ela me disse uma semana depois, durante uma festa da faculdade.
Num primeiro momento achei que havia entendido errado.
— O quê?
— Eu quero você — ela repetiu, enquanto bebia mais um gole da garrafa de cerveja.
E eu continuei achando que tinha ouvido mal, ninguém diz eu quero você, o correto seria eu gosto de você ou até, em casos mais extremos, eu amo você, mas eu quero você, imaginei que fosse alguma dificuldade com o alemão. Como eu continuava muda, imóvel, Lupe aproximou o corpo do meu, segurou a minha nuca com a mão que tinha livre e me beijou. Eu fechei os olhos e me deixei afundar, como um náufrago que, após horas lutando com as águas, desiste e finalmente submerge. O alívio da batalha perdida.
Sempre gostei de imaginar como seria morrer, morrer de todas as formas possíveis, o momento súbito e fugidio em que pensamos, então é isso, acabou. E, entre as várias mortes possíveis, a minha preferida é morrer afogada. Não sei onde havia lido que era uma morte feliz, provavelmente não era, era terrível como todas as outras, mas a ideia do silêncio no fundo do mar ou até de uma piscina me atraía. Uma vez, eu tinha uns doze anos, fomos passar as férias em Lanzarote, como faríamos todos os anos seguintes, era verão, e, apesar da água fria, meu pai me convenceu a entrar, faz bem para a circulação, ele dizia. Entrei e aos poucos fui me acostumando, criando coragem. Eu sabia nadar, mas uma coisa era nadar numa piscina e outra no meio do Atlântico. A piscina é previsível, já o mar, o mar é um ser vivo, envolvente, genioso. Naquele dia as águas estavam calmas, um ondular quase imperceptível, entrei no início meio desconfiada, mas logo me animei, nadamos juntos, depois meu pai voltou para a areia e eu continuei nadando, me sentindo boba por causa da resistência inicial. E foi justamente no momento em que eu me sentia melhor, à vontade, mais segura, que fui puxada para longe. Um polvo invisível estendia seus tentáculos e me agarrava. Quando vi, a praia estava tão distante que me pareceu uma ilusão de ótica, como era possível me afastar com tanta rapidez? Me desesperei, depois fiz um esforço imenso para sair daquele estado de pavor, comecei a nadar, braçadas rítmicas e fortes, pensava nas aulas de natação, o professor me elogiando, isso, Maike, muito bem, continue assim, continue assim, um, dois, três, respire, um, dois, três, respire, eu podia ouvir a voz dele. Mas logo cometi o erro de parar e olhar em direção à praia outra vez. Apesar de tudo o que havia nadado, eu estava cada vez mais longe da costa. Tive um acesso de pânico. Eu precisava me acalmar, era urgente. Comecei a boiar. Pensei que meus pais perceberiam que eu havia sumido e me encontrariam, tentei me concentrar nisso, mas a mente não deixava, a mente só pensava na distância entre meu corpo e a areia, meu corpo e a areia, pensava que talvez aqueles fossem os meus últimos pensamentos, o corpo e a areia, e a sensação de absurdo, então era esse o fim?, não era possível, a morte não podia vir assim, de forma tão idiota, tão sem sentido. Aos poucos eu ia cansando, comecei a engolir água, eu sabia que em algum momento me veria obrigada a desistir e me juntaria aos demais corpos no estranho museu subaquático, peixes e corais saindo pelas órbitas, talvez uma questão de segundos, mas, naquele instante, um segundo era qualquer coisa, um segundo era toda a história do universo. E quando esse momento finalmente chegou e eu desisti, os músculos que deixam de se contrair, e fechei os olhos e senti o mar me abraçando e a água entrando nos pulmões, nesse último instante a mão de alguém me puxou para fora, gritando num idioma incompreensível. No último instante uma pequena embarcação me viu e seu único tripulante me salvou. Alejandro, seu nome, o nome do pescador. Nunca mais soube dele, soube apenas que meus pais quiseram remunerá-lo com uma boa quantia em dinheiro, mas ele não aceitou, algo assim.
Quando Lupe me beijou pela primeira vez, eu pensei na areia que se afastava e em Alejandro e na mão que me puxava pelos cabelos para a superfície.