Stella

Bolas, já chegaram.

Estou na cozinha a ouvir os barulhos no corredor. O bater de pés na alcatifa do corredor, o roçagar de casacos e o tilintar de cabides. Vozes estridentes de rapariguinhas, palmadinhas nas costas, risos de homem, uma voz de mulher aguda e penetrante exigindo atenção e uma resposta pronta.

De manhã, o Henrik relembrou-me do jantar e eu fingi estar ansiosa. Infelizmente, já não fui a tempo de o cancelar. Liguei para uma empresa de catering e eles chegaram com a requintada ementa de outono. Os funcionários montaram arraiais na sala de jantar, colocaram a comida em pratos e travessas, e depois puseram-nos num aquecedor de comida.

Como é que vou aguentar isto?

Depois da terapia de grupo de hoje, tudo parece insignificante.

Bebo um enorme trago de vinho, grata pelo Henrik ter conseguido chegar a casa antes deles.

Estampo um sorriso na cara e saio para o corredor para receber os nossos convidados.

– Ali está ela. – O Marcus faz um sorriso e dá-me um forte abraço.

– Stella – chilreia a Jelena e dá-me um beijo em cada bochecha. – Finalmente conhecemo-nos. Ouvi coisas extraordinárias sobre ti.

A nova namorada do Marcus é modelo. Pelo menos é o que diz. E realmente parece-se com uma. É uma dedicada bloguista que escreve sobre beleza, saúde e consciência. Ostenta os seus dentes branqueados num largo e constante sorriso. O seu corpo não tem um pingo de gordura e as suas pernas compridas e bem torneadas têm um tom dourado. Está a gostar de as mostrar num pequeno e curto vestido preto. Não pode ter mais de 25 anos e é insuportavelmente perfeita e previsível como apenas uma mulher com aquela idade consegue ser.

As filhas do Marcus, a Ebba e a Sophia, têm nove e cinco anos. São barulhentas e estão sempre a discutir. Para meu grande alívio, o Milo sai do quarto e pergunta se querem jogar jogos de vídeo. Não me posso esquecer de o gratificar bem por isso. O Henrik conduz o Marcus e a Jelena até à sala de estar em amena cavaqueira.

Eu sigo-os sem sentir que estou ali. Pelo contrário, estou a pensar na Isabelle Karlsson.

Na Alice.

Ver a covinha na tua cara. A tua orelha. O teu prudente sorriso que não deixa adivinhar nenhum dos teus pensamentos. Pensei mais em ti do que alguma vez possas calcular. Foste uma dor no meu peito desde o dia em que desapareceste.

Onde estiveste?

Porque não me queres dizer?

Acometem-me as mesmas dúvidas, uma e outra vez. Não consigo evitá-las.

Mas tento, bebendo mais vinho.

A Jelena diz que quer conhecer a casa.

Eu refugio-me na cozinha com a desculpa de que tenho de tratar da comida.

Esvazio o copo e encho-o outra vez quando a Jelena chega para partilhar comigo o seu entusiasmo.

Ela adooora os nossos enormes sofás cinzentos, o nosso tapete e os vasos de cobre e os catos enormes que lá estão dentro. Ela adooora as fotografias a preto e branco na parede perto do pátio, a enorme paisagem, os tapetes, uns tapetes tão adoráááveis, e aquelas pequenas esculturas na estante, ela adora tudo! Diz que a nossa casa podia figurar nas páginas de uma revista de design de interiores, que não há palavras para descrever a nossa casa.

O Henrik chega à cozinha e salva-me. Diz que eu sempre tive queda para o design. Ou se calhar está a salvá-la a ela: o mais certo é conseguir perceber como ela está a irritar-me.

Esvazio outro copo. Preciso de me afundar mais na bruma. Preciso de fugir da acutilante realidade que me envolve.

Durante o jantar, praticamente estou ausente.

As vozes sobem de tom e misturam-se umas com as outras, cadeiras arrastam no chão, talheres tilintam na louça, ouço mastigar e sorver, e os sons agridem-me, magoam-me os ouvidos. O Henrik está a falar-lhes sobre a empresa dele. Como vai de vento em popa. Como está a expandir-se, como as vendas estão a aumentar, com novos desafios pela frente. E nós? Estamos juntos há 15 anos, casados há… quantos, querida? Jamón Serrano, parmesão, lagostins grelhados com caril. Oh, já lá vão… Oh, meu Deus, quantos? Em breve fazemos 14 anos e o Milo faz 13, e estamos nesta casa há 12, e a cozinha deve ter sido remodelada há cinco, não foi? Querida? Tomates desidratados ao sol e legumes grelhados no forno em vinagreta de alho. E quando lá chegámos fomos direitos para o hotel e… sim, este fim de semana encontramo-nos na casa de campo dos Widstrand, nas cercanias de Nyköping, vai ser ótimo. Não, o Henrik já não vai caçar alces há imenso tempo. Queijo feta e haloumi com espargos, não é? Em Abu Dhabi, quando nós…

Todas estas palavras parecem chegar de outra sala, de outra casa, onde estão pessoas sentadas a outra mesa a conversar numa língua que eu já não domino. O Henrik põe a mão na minha coxa e aperta-a. Vá lá. Acorda.

– Não, não planeamos mudar, adoramos viver aqui, não é, querida? – Outro apertão pleno de significado. Eu aceno com a cabeça e sorrio, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida a não ser abanar a cabeça e sorrir.

– E tu és psicoterapeuta? – pergunta a Jelena, inclinando-se para mim.

Eu estou muito direita na minha cadeira.

– Sou – respondo, indistintamente.

– Como consegues passar o dia a ouvir as outras pessoas? – diz ela. – As suas preocupações e problemas insignificantes? Eu dava em maluca. Deve ser muito deprimente.

Lá se foram os escrúpulos.

Entrego o meu copo ao Henrik para que ele o encha novamente. Ele olha-me preocupado, mas eu finjo não perceber. Ele serve-me apenas um pouco.

– A psicoterapia não consiste em alongarmo-nos sobre os problemas em prol dos mesmos – digo, e percebo que estou a falar maquinalmente. – A finalidade é identificar padrões ou comportamentos que possam ser modificados. Aprender a lidar com os nossos medos. Substituir velhos hábitos por novos. Desenvolvermo-nos enquanto indivíduos. – A minha resposta predefinida, um guia simples sobre a terapia para idiotas.

– Como foi que decidiste enveredar por essa carreira?

– Conheci uma pessoa que me inspirou.

– Isso é fantástico – diz a Jelena. – Conseguires ajudar todas essas pessoas. – Olha com afeto para o Marcus e acaricia-lhe o pescoço com as pontas dos dedos. – Segundo me disse o Marcus, estás sempre feliz – continua ela. – E pareces tão equilibrada.

Equilibrada? Apetece-me levantar, atirar os pratos para o chão e, aos gritos, mandá-los a todos para o diabo que os carregue.

O Henrik passa o braço por trás das minhas costas.

– A Stella é fantástica. É forte, determinada, consegue fazer tudo aquilo a que se propõe – diz. – Foi por isso que me apaixonei por ela.

– Ela foi sempre assim calma? – diz a Jelena.

O Marcus solta uma gargalhada.

– A Stella é temperamental, acredita. Mas com o passar dos anos acalmou. Não achas, Henke?

Sim, Henke, não achas? A Stella acalmou?

Ele sorri para mim.

– Só por fora.

Idiota. Amo-te, Henrik, mas esta noite és um idiota.

No fim do jantar, o Marcus leva a Jelena a ver o piso de cima. Ela já viu todas as divisões do andar de baixo. Escondo-me outra vez na cozinha. Preparo café, ponho a mesa com a delicada porcelana Rörstrand que a avó do Henrik nos deixou, mas apetece-me atirá-la contra a parede.

– Tu hoje não estás muito faladora. – O Henrik chega à cozinha e debruça-se sobre o balcão.

– Era preciso? – Bebo um trago do meu copo de vinho. Outra vez.

– Querida. – Afasta o copo. – Agora estás a ser injusta. E estás a beber mais do que é costume.

Os saltos da Jelena fazem estalidos por cima das nossas cabeças.

Aponto para o teto e silvo:

– Ela é completamente histérica, o exemplo mais manifesto de personalidade borderline que alguma vez vi. Além do óbvio, o que é que o Marcus vê naquela bimba irascível?

– Se alguém está a ser irascível és tu – responde o Henrik e olha para mim. – Parece que queres arreliá-la, nem parece teu.

Pega na minha mão, puxa-me para ele e beija-me o cabelo. Deixo-o abraçar-me por instantes e depois liberto-me, dizendo que tenho de ir à casa de banho.

Entro, sento-me no tampo da sanita e pouso a cabeça nas mãos. Sou uma pessoa horrível. E lamento a minha cruz.

Agora, a casa está em silêncio. A empresa de catering veio buscar o aquecedor de comida, os tabuleiros, as travessas e as terrinas, limpou a mesa e lavou a louça.

Os convidados foram embora e o Milo está a dormir. O Henrik está ao meu lado na cama, acariciando-me o corpo. Já passou algum tempo desde que fizemos mais do que darmos um beijo de boa noite. Tento desfrutar do toque dele, mas não consigo relaxar, mesmo depois de todo o vinho que bebi. Estou demasiado zangada, demasiado triste.

Passado algum tempo ele desiste. Beija-me o ombro, dá-me as boas noites num murmúrio e vira-se para o outro lado.

Quando tenho a certeza de que ele está a dormir, levanto-me da cama e vou buscar a minha mala ao corredor. Vou até ao sofá e abro o diário.