Isabelle
– Não é bonito? – A Johanna espreguiça-se como um gato no cobertor ao meu lado.
Fecho os olhos para os proteger da luz do sol.
– É lindo.
– Foi o que eu disse, Drácula.
É sábado e estamos num piquenique da nossa turma no parque Tantolund. Ainda bem que a Johanna me convenceu a vir, a parar de andar obcecada, a esquecer tudo aquilo durante algum tempo. Decidi voltar a ter a vida social mínima que tinha antes de o papá morrer.
Abro os olhos quando ela me diz que o Axel chegou. Acena ao namorado, levanta-se e vai ter com ele. Abraçam-se e beijam-se.
A minha vida podia ser um filme. Um filme bem-disposto sobre a vida na universidade, com risinhos e noitadas de raparigas. Se ao menos eu conseguisse relaxar; se ao menos eu conseguisse entregar-me a isso. Se ao menos houvesse mais romance. A Johanna, a Susie e a Maryam partilham todos os pormenores do que fizeram, do que viram e ouviram. E isso faz-me perceber como sou irremediavelmente inexperiente. Já curti com alguns tipos, mas nunca fui mais longe. Chegou a hora de fazer alguma coisa em relação a isso. Na receção aos caloiros, esteve quase para acontecer. Nessa noite, bebi mais vinho do que na vida inteira até então. Levei um vestido preto e justo. Convenceram-me a vestir-me assim. Apesar de ter passado a noite a puxá-lo para baixo, o vinho ajudou-me a esquecê-lo. Mas não me escapou um único olhar que ele me valeu. E, devo confessar, quanto mais vinho bebia, mais interessantes os olhares se tornavam.
Sempre que penso nessa noite, sinto um formigueiro no corpo todo. Agora, não é exceção. O Fredrik arrastou-me para a pista de dança. Pousou as mãos na minha cintura, as mãos nas minhas ancas, as mãos nas minhas nádegas. Eu encostei-me a ele e consegui senti-lo a ficar rijo. Ele pegou-me pela mão e arrastou-me até um corredor deserto. Mordiscou-me o pescoço, a orelha – a que é pontiaguda e que às vezes me deixa um pouco complexada – fez-me cócegas no corpo enquanto nos beijámos. Se a mamã soubesse.
Estava a meter os dedos por debaixo do meu vestido quando um dos seus amigos o chamou. Pediu-me para esperar e foi embora. O meu erro foi começar a pensar. Só de pensar na mamã, estraguei tudo. Por isso, fui para casa.
Sento-me no cobertor e reparo que chegou mais gente da nossa turma. Alguns estão a jogar softbol, outros apenas a confraternizar. Um gajo está a dedilhar uma guitarra.
O Fredrik também está aqui. Está sentado a alguns metros com uma cerveja na mão. Quando se afasta do grupo com o qual está a conversar, encho-me de coragem e aceno.
– Olá.
Ele olha para mim e sorri.
– Ciao, Bella.
– Como estás? – digo.
– Bem, e tu?
Deixa-se cair ao meu lado e abre outra cerveja.
– Não pensei encontrar-te aqui – diz ele. – És servida?
Bebo um trago e tento não fazer uma careta. Devolvo-lhe a garrafa. O Fredrik pega nela e deita-se. Passado um pouco, imito-o.
– O teu verão correu bem? – Consigo perceber que pareço a mamã: seca e controladora.
– Trabalhei imenso para o meu pai – diz ele. – Breve visita a Berlim, depois a Saint-Tropez. E tu?
– Eu trabalhei o verão inteiro – respondo. Que rapariga interessante. Com franqueza.
– Em Dalarna?
– Não, numa mercearia em Vällingby.
– Não te vi em nenhum dos churrascos.
Encolho os ombros.
– Não pude ir.
– É uma pena.
Oferece-me a garrafa outra vez. Não me apetece beber, mas está-me a saber tão bem estarmos os dois assim deitados… a partilhar uma garrafa de cerveja e a fingir que eu sou importante para ele.
– Tens saudades de Borlänge?
Reflito sobre a pergunta dele.
– Não – respondo. – Ou melhor, às vezes. Sim e não. Principalmente no verão, acho. Estocolmo também é maravilhoso, mas a minha terra é mais acolhedora.
– Estás doida? O que pode ser melhor do que o sol da meia-noite no arquipélago? Todos aqueles bares e restaurantes ao ar livre? Ir ao Kungsträdgården comer um gelado, beber uma cerveja no parque, dar um passeio por Djurgården…
– Um passeio? – provoco-o. – Estás reformado?
Ele dá-me uma cotovelada de lado. Eu rio.
– Não te esqueças de teres de andar num metro apinhado de passageiros transpirados – lembro-lhe. – Geralmente com o nariz enfiado no sovaco de outra pessoa. Irra, que nojo.
– Ah, ah, que piada. Então e Borlänge o que é que tem de bom? Carros azeiteiros? Trajes tradicionais e violinos a chiar?
– Tu não percebes.
– Então, explica-me.
– A calma. O silêncio. As montanhas azúis. Noites estivais de magia no prado ao lado da casa da avó.
– Montanhas azúis e noites estivais de magia. Muito poético.
– Imagina o que é ir de bicicleta até ao lago a sentir o vento no cabelo. Deambular pelos bosques sem te cruzares com outra pessoa durante horas. Escutar apenas o cântico das aves.
– Imagina o que é perderes-te, seres comida viva pelos mosquitos e acabares a centenas de quilómetros da civilização.
– Não digas disparates. Quando te fartares dos bosques, podes ir até Leksand ou Noret e juntares-te aos turistas enfadonhos. Comer um hambúrguer em Mitti. Podes nadar na praia de areia junto à Leksand’s Sommarland. Sabes o frio que faz em Siljan? Aquilo é um gelo.
– Parece ser fantástico.
Agora dou-lhe eu uma cotovelada.
– Já foste a Tällberg? É lindíssimo. O meu pai guiava sempre muito devagar para podermos apreciar todas as casas. E a estrada é estreita e cheia de curvas. Às vezes, íamos de carro até Hjortnäs Brygga. Sempre que íamos a Vidablick, comíamos gelado e contemplávamos o lago Siljan. A vista é magnífica. Acabávamos a viagem a caminhar pelo longo molhe de Rättvik. Quando eu era pequeno, parecia-me interminável. Depois, fazíamos uma corrida até à praia.
Eu faço silêncio.
– Em que estás a pensar? – pergunta o Fredrik.
– No meu pai.
– Já me constou. Lamento imenso. É isso que se costuma dizer?
– Obrigada.
– Deverias ter dito alguma coisa.
– Dito o quê?
– Deverias ter-me dito o que aconteceu. Desapareceste sem mais nem menos. Deixaste de aparecer e não deste mais notícias.
– Eu sei.
Olha-me nos olhos. Quero ficar aqui para sempre. Com ele. Pergunta-me como me sinto agora, e eu não queria dizer nada, mas acabo por confessar que comecei a frequentar sessões de terapia. Ele não parece achar que seja estranho. Não lhe revelo tudo, é claro.
Ficamos em silêncio por instantes. Então, eu começo a contar-lhe que fui com a Johanna dar sangue ao autocarro de recolha de dádivas na primavera. É bom dar sangue e há poucos dadores. Agora, recebi a primeira convocatória como dadora de sangue.
Não paro de falar. Quero retomar o ambiente de há pouco, quero que ele fique comigo o máximo de tempo possível.
Digo que o mais certo é desmaiar e cair, abrir um enorme corte no braço e o meu sangue começar a jorrar por todo o lado e a enfermeira desatar a escorregar nele. O Fredrik solta uma gargalhada sonora. Tira o telefone do bolso e chega-se mais para mim. Segura o telefone por cima de nós e tira uma fotografia. Eu protesto e digo que não estava preparada. Ele tira outra.
– Está melhor? – Mostra-me o telefone para o meu escrutínio.
– Sim, está um pouco melhor.
– Confessa lá, estamos muito sexys, não?
Recebe uma mensagem de texto, lê-a e senta-se.
– Num momento de fraqueza, prometi à minha irmã que a levava ao Ikea – diz ele. – Tenho de ir. Infelizmente. Mas a gente vê-se.
Sento-me a sorrir como uma idiota. Até que percebo que nunca poderá haver nada entre nós. Quando ele descobrir quem eu sou, causar-lhe-ei asco. Terá medo de mim.
Eu tenho medo de mim.
Tenho medo do que há dentro de mim.