Kerstin

Devo ter passado meia hora a organizar as prateleiras nos arrumos do lar de terceira idade. A desorganização dá comigo em doida. Se toda a gente ajudasse a manter as coisas arrumadas, só um pouco, eu não teria de fazer isto.

Mas gosto de rotinas. Sempre as considerei importantes. Ir para o trabalho, fazer as mesmas tarefas todos os dias… tranquiliza-me. Deixa-me a sensação de que há uma finalidade.

A Anna-Lena enfia a cabeça pela porta.

– Kerstin, tens um minuto?

– Quando acabar isto – respondo.

O que quer ela agora? Consulto o relógio e constato que hoje ela chegou quarenta minutos mais cedo. Fá-lo amiúde. E não lhe importa que alguém repare. A eficiente e responsável Anna-Lena. Tem apenas 35 anos, mas pensa que é melhor que as outras. Contudo, nunca a vi a limpar os arrumos. Isso nunca acontecerá. Ela é demasiado importante para se preocupar com essas coisas.

Organizo os sprays de limpeza na prateleira, deixando-os bem alinhados. Não tenho pressa. Tranco a porta dos arrumos e caminho vagarosamente pelo corredor. Não quero stressar.

– Precisas de alguma coisa? – pergunto quando chego ao escritório dela.

– Senta-te. – A Anna-Lena indica-me a cadeira do outro lado da secretária. Termina o que está a fazer e depois vira-se para mim. – Chegou-me aos ouvidos que, nos últimos tempos, as coisas não têm corrido muito bem.

– Eu acho que as coisas têm estado muito calmas. Quem disse o contrário?

– Não interessa quem. – Um olhar inquiridor, um sorriso compassivo. – Tens sido impaciente e ríspida com os residentes.

– Então é por minha causa? O problema sou eu? – A Anna-Lena não consegue fitar-me nos olhos e remexe nuns papéis. – Lamento ouvir isso – continuo. – Concretamente, o que foi que essa pessoa diz ter visto?

– Bem, ela não disse nada específico, mas…

– Então é difícil falar sobre o assunto – interrompo. – Não é? Se ela não me viu a fazer nada de errado…

– Bem, ela tem essa sensação. E a Greta apresentou uma queixa.

– A Greta? – solto uma gargalhada para demonstrar o que penso dela. – Sobre o que é que ela não se queixa? Aquela mulher acha que tudo está mal. Nunca está satisfeita. Se trabalhasses no terreno, saberias disso.

A Anna-Lena suspira, como se eu tivesse dito alguma coisa invulgarmente estúpida.

O drama no local de trabalho exaspera-me. Principalmente questiúnculas deste tipo. Juntam-se todas contra mim, queixam-se de que eu troco os turnos, que não dou as horas todas, que saio mais cedo. Inventam qualquer coisa para me fazerem sentir mal, mas não há qualquer razão para isso.

Não sou a pessoa mais sociável e conversadora da equipa, bem sei. Deve ser por isso. Porém, sou a mais antiga. Eu e a Ritva, 16 anos antes. Não saberiam o que fazer sem mim. As novas estrelas cadentes como a Anna-Lena raramente se aguentam por muito tempo. Para suportar este cargo, é preciso mais do que apenas vontade de brincar aos chefes. Não é como parece no papel. A teoria é uma coisa, a prática é outra. Algumas pessoas estão completamente desfasadas da realidade, isso sei eu.

– Sim, bem, apenas quis esclarecer isso contigo – diz a Anna-Lena, e faz um ar arrogante.

– Não há nada de errado com a maneira como faço o meu trabalho.

– Por favor, Kerstin, porque é que ficas sempre tão defensiva? É preciso conversar sobre isto. Foi apresentada outra queixa contra ti. Eu sei que, ultimamente, a tua vida não tem sido fácil, por causa do teu marido e tudo, mas não podemos permitir que isso afete o teu trabalho.

Ela não compreende. Ela não percebe nada. Não percebe patavina.

Sem proferir palavra, levanto-me e vou à minha vida. A Anna-Lena segue-me até ao corredor e chama-me. Finjo não ouvir.

Dizer que gosto de trabalhar aqui seria um exagero. Há sempre mexericos, divergências de opiniões em relação às rotinas e a como as tarefas devem ser executadas. As coisas simples acabam por se tornar complicadas e por resultar na duplicação do trabalho. Acaba por sobrar sempre para mim. E estes jovens que são pagos à hora… Uma ética profissional não deveria ser um requisito básico? Eles ignoram os idosos e fazem o mínimo absoluto. Estão constantemente a criar problemas, a meter baixa em cima da hora, sempre às sextas-feiras à noite ou às segundas de manhã. Eu substituo-os, ajudo-os sempre que posso. Mas no fim quem se lixa sou eu. O mundo é um lugar injusto.

Trabalhar noutro sítio é uma ideia interessante, mas não tarda faço cinquenta. Estou velha, já ninguém me quer, o mercado de trabalho está fechado. Mantenho as minhas rotinas aqui no lar Hällsjö, por muito desagradáveis que sejam os meus colegas ou muito incompetente que seja a direção.

Entro para a sala do pessoal.

– Já falta pouco para ir para casa – diz a Ritva com a pronúncia que é uma mistura entre finlandês e sueco.

– Sim – respondo. – Finalmente.

– Eu e o velhote vamos ao Ikea. Já lá foste?

– Não. Não preciso de mais móveis do que os que já tenho.

– O velhote está todo contente por terem aberto uma loja aqui em Borlänge – diz a Ritva e ri. – Assim não tem de ir sempre de carro até Gävle.

– Olá – diz a Cecília, entrando energicamente para a cozinha.

Viro-lhe costas. Não a suporto. Tem o quê, 23 anos? Vinte e quatro? Uma estudante de enfermagem com a mania de que sabe tudo. Ainda bem que não trabalha cá todos os dias. Gosta de dar palpites. Crianças que pensam que sabem tudo, haverá alguma coisa mais irritante? Fedelhos que se dão ares de importantes assim que arranjam o primeiro emprego.

A Hattie chega logo atrás dela. Tem cerca de quarenta anos e é do Irão, se não me engano. Raramente fala, mas é simpática e modesta, de algum modo humilde. Não é agressiva nem tem a mania de que é importante como alguns dos outros colaboradores.

– Queres um café, Kerstin? – pergunta a Ritva, entregando-me uma chávena. Sento-me na cadeira mais próxima e junto três cubos de açúcar. Hoje, mereço-os.

A Ritva serve um café para a Hattie, que o aceita e sorri, agradecida.

– Eu não quero, obrigada – diz a Cecília, embora ninguém lhe tenha oferecido. – Não percebo como é que vocês conseguem beber tanto café todos os dias. – Faz um estardalhaço para preparar um chá de ervas. – Este trabalho é uma merda. Como é que conseguem aguentar isto ano após ano?

– Sorte a tua se não tens de aguentar – diz a Ritva e senta-se ao meu lado. – Sempre trabalhaste em lares de terceira idade, não foi Kerstin?

– Mais ou menos – respondo. – Mas é desgastante.

– Há muita coisa para fazer – diz a Cecília, pousando os pés em cima da cadeira ao lado. – E pouco tempo.

– É preciso levar as coisas com calma – diz a Hattie. Eu sorrio-lhe, incentivando-a. O sueco dela está cada vez melhor. Quem dera que todos fossem assim ambiciosos e focados.

– Alguém tem de fazer o trabalho – diz a Ritva e enruga a testa. É ríspida e não dá graxa a ninguém. Faz o que tem de fazer e vai embora. Tal como eu, não está para tangas.

– Como está a Isabelle? Ainda gosta de Estocolmo? – pergunta a Ritva.

– Parece que sim. – Não quero dizer-lhe como estou preocupada com a minha filha. Dentro de poucos minutos, farei o relatório à equipa da noite, trocarei de roupa e irei para casa. Para o silêncio de casa. Porém, continuo:

– Mas seria melhor se voltasse para casa.

– Porquê? – pergunta a Ritva. – Melhor para quem?

Fico sobressaltada com esta pergunta direta, mas a Ritva é mesmo assim, eu sei. Escondo a irritação.

– Acho que seria melhor para ela. Tem passado um mau bocado desde a morte do Hans. Anda em sessões de terapia.

– Até parece que isso é mau – diz a Cecília.

– Eu não disse isso.

– Se ela tem passado um mau bocado, parece-me que pode ser uma coisa boa ter com quem falar.

– Talvez – respondo. – Mas ela pode falar comigo. Não sei se concordo com a partilha de assuntos privados com desconhecidos.

A minha colher tilinta na chávena de café. Sinto-me enrubescer quando todas olham para mim. Não deveria ter dito aquilo.

– Eu conheço a minha filha – continuo. – Ela está muito vulnerável.

– Não tens motivos para preocupação – diz a Ritva. – A Isabelle é uma boa menina.

– Acho que, às vezes, faz bem falar com um desconhecido – diz a Cecília. – De vez em quando, toda a gente deveria ir a uma sessão de terapia, acho eu.

Claro que achas. E, como achas, é automaticamente uma verdade absoluta, não é? Tens metade da minha idade, mas é claro que sabes mais. Não fazes ideia das saudades que sinto da minha menina, de como ando preocupada.

– É claro que eu a apoio – digo, passado algum tempo. – Se é isso que ela quer, farei tudo o que puder para a ajudar.

Fui abandonada. O que sabem elas sobre isso? Ficam deitadas à noite na cama, preocupadas com o seu próprio sangue? Sabem qual é a sensação de ver a filha única transformar-se numa desconhecida? A Isabelle a afastar-se de mim a cada dia que passa. Elas não compreendem, nem imaginam como é. Nem sequer vale a pena tentar explicar. Bebo o resto do café e deixo o relatório para o turno seguinte.

Graças a Deus, o meu velho Nissan arranca à primeira. Antes de sair do parque de estacionamento, limpo o vidro embaciado com a manga. Desço a Hemgatan e viro para a Faluvägen. Um condutor atrás de mim buzina e dá-me com os máximos. Um jovem passa por mim e estica o dedo do meio. Sim, sim, deveria ter parado no cruzamento. É tudo excessivo, neste instante. Tenho a cabeça num turbilhão de pensamentos e especulações. Não estou em mim.

Viro para a entrada e fico no carro a pensar. Foi bom sair do trabalho, mas não quero entrar naquele vazio. Se ao menos a Isabelle se mudasse para aqui. Então, ter-nos-íamos uma à outra. Como dantes. Tudo seria como dantes.

Para meu grande espanto, ela ligou-me ontem e falou-me sobre a terapia. Até agora, o assunto fora completamente um tabu. Recusara-se a dizer-me o que fosse. Fora bastante antipática e dissera que o assunto não me dizia respeito. Agora, estava toda entusiasmada. Aquilo está a ser extremamente útil. Mas quando perguntei em que estava a ser útil, ela não me disse. Ao que parece, todos os outros elementos do grupo estão do lado dela. Perguntou-me se dá para acreditar.

Não, não dá. Não dá para acreditar.

No meu mundo, as pessoas resolvem os problemas sozinhas: é assim que se faz. Quero que a Isabelle fale comigo, não com desconhecidos na terapia de grupo. Sabe-se lá quem são, que tipo de passado têm, que tipo de conselhos estão a dar? Quero que resolvamos os problemas juntas, quero que tenhamos a possibilidade de conversar sobre as coisas como deve ser. Mas primeiro tenho de a deixar experimentar isto. Vou esperar para ver. Com o tempo, tudo se resolverá, assegurar-me-ei disso.

Tenho a bolsa no banco de trás e tenho de me torcer toda para lhe chegar. Estou tão rígida. A caminho de casa, paro e espreguiço-me. Esqueci-me do correio. Viro-me e volto para trás.

Comprei a caixa de correio que está ao lado do portão num leilão pouco tempo antes de nos mudarmos para aqui. Tem a forma de uma casa em miniatura, pintada de amarelo com adornos de madeira, uma cerca e pequenos detalhes. Não resisti a comprá-la.

Mais tarde, a Isabelle foi com a bicicleta contra a caixa de correio e deitou-a ao chão, destruindo a pequena cerca. Teria ela uns sete anos? Fiquei muito triste e um pouco zangada. A Isabelle também ficou triste. O Hans consertou-a o melhor que conseguiu e pô-la no sítio. Continua bonita, embora já não esteja como antes.

Eu falei sobre o assunto com a Isabelle, expliquei-lhe que uma pessoa pode ficar chateada e desiludida, mas que isso não é importante. Uma pessoa pode fazer as pazes mais tarde. Pus-lhe pensos nos joelhos esfolados e fiz-lhe ver que a vida continua. Expliquei-lhe que nós devemos permanecer unidas, aconteça o que acontecer.

A porta da frente da casa vizinha abre-se. A Gunilla assoma à porta e fica no cimo das escadas. Não me apetece mesmo nada aturar o seu paleio bem-intencionado. Subo o caminho sem olhar para o lado. Ela chama-me, mas eu não ligo. Procuro atabalhoadamente as chaves, destranco a porta, abro-a e entro. Fecho a porta e tranco-a. Depois, sento-me no chão do hall.

O suor escorre-me pelas costas, tenho o coração a mil e sinto-me zonza. Não sei o que se passa. Deve ser stress. Todas aquelas desilusões. Todas as preocupações e ansiedades. A dor da morte do Hans.

Estou desolada com a sua morte. Sinto pesar e alívio. Liberdade. É-nos permitido sentir isto?

A vida é estranha. Conseguiremos alguma vez dominá-la?

Fico aqui algum tempo. Depois, pego no telefone e ligo à Isabelle.

Ela também tem saudades minhas, eu sei.