Stella
O Milo e o Hampus, o filho da Pernilla, vão sentados no banco de trás com as cabeças encostadas, a olhar para os telemóveis.
– Dá para acreditar que vocês os dois se conhecem desde sempre? – Vejo-os entreolharem-se pelo retrovisor. – São os dois tão giros.
– Mamã! – exclama o Milo.
– És tão constrangedora como a minha mãe – diz o Hampus a rir.
– Constrangedora? Como é possível? – digo, e estaciono à porta do Konradsbergs Hall, que fica em frente à torre DN. – Eu deixo o teu saco com a Pernilla, Milo.
– Obrigado, mamã.
Quando eu me despeço, eles já estão fora do carro. O Milo levanta a mão em resposta enquanto se afasta. Mais uma vez, fico espantada com as semelhanças entre ele e o Henrik. Alto e magricela, com aquele encanto pueril.
Fico a vê-los afastarem-se com os sacos de desporto e bolas de basquete. Quando passam pelas portas envidraçadas, ligo o motor e dirijo-me para o apartamento da Pernilla, perto da Kungsholms Strand.
Eu e a Pernilla crescemos no mesmo quarteirão, frequentámos a mesma escola entre o primeiro e o nono anos. Ela é como uma irmã, mais íntima do que a Helena. Teve o Hampus no mesmo ano em que o Milo nasceu, e os miúdos também confraternizam bastante sem ser no basquetebol.
Ela foi uma das poucas pessoas que continuou a ser minha amiga depois do nascimento da Alice. Outros amigos desapareceram. Foram para a secundária, divertiram-se, viveram as suas vidas. E depois do desaparecimento da Alice, a Pernilla foi a única com quem mantive contacto. Ou melhor, ela é que manteve contacto comigo.
Mais ninguém percebeu como aquilo me afetou. Nem a mamã e, muito menos, a Helena. Apenas a Pernilla.
Tornei-me maníaca. Fiz os possíveis para suprimir a culpa, para esquecer a minha dor. Continuei a lutar. Comecei a beber. Refugiei-me numa bruma de festas, bebedeiras, drogas. Fui para a cama com rapazes e homens desconhecidos. Depois, não me lembrava de nenhum deles, nem dos seus nomes, nem das suas caras. Quem me visse, pensaria que eu estava a recuperar os anos de adolescência perdidos, mas na realidade era outra coisa. Eu estava a caminho de uma profunda depressão.
Estou ansiosa por passar um serão com a Pernilla. Conversar com ela, dizer-lhe tudo o que está a acontecer. Encontro um lugar de estacionamento na Igeldammsgatan e vou a pé até à Kungholms Strand, onde ela mora.
– Queres um copo de vinho ou vais conduzir? – diz a Pernilla quando eu me sento no sofá.
– Saca a rolha. Venho buscar o carro amanhã – digo. – Fico muito feliz por o Milo poder passar cá a noite.
– É divertido para nós.
Olho pelas enormes janelas e perscruto o canal e o castelo Karlberg. A Pernilla põe música e serve-me um copo de vinho. Eu folheio os jornais que estão na mesinha de apoio.
– Health & Fitness, iForm, Feel Good, Fitness Mag – leio em voz alta. – Estás a levar muito a sério este teu novo passatempo.
– Não me gozes – diz a Pernilla. Senta-se no sofá ao meu lado. – Não é um passatempo. É um estilo de vida.
– Esse estilo de vida inclui vinho numa noite de quinta-feira?
– Acredito no equilíbrio. – A Pernilla levanta o copo, fazendo um brinde. – Nunca é demasiado tarde, Stella. Tu és elegante, mas até tu podias praticar um pouco de exercício. Em forma depois dos quarenta, vê o hashtag no Instagram.
– Não tenho Instagram – digo.
– És jurássica – riposta. – E vais acabar cheia de rugas e flácida se não começares a mexer-te. Vem comigo ao ginásio e queima a merda que tens no corpo, é bestial.
– Eu pratico exercício. Às vezes jogo ténis.
– Posso arranjar-te um bando de personal trainers todos musculosos para descansares as vistas – diz ela, com um riso dissimulado. – Não tens nada disso no ténis.
Desato uma gargalhada. A Pernilla não muda. Estou feliz por ter vindo.
– Há muito tempo que não fazíamos isto – digo, sentando-me em cima dos pés.
– Encharcar-nos num dia de semana?
– É esse o plano?
– Estou aberta a sugestões – diz a Pernilla e passa-me um tabuleiro com queijo e bolachas.
– Estive com a minha mãe no fim de semana.
– Que tal correu?
– Correu bem.
Pego numa bolacha e provo-a. O telemóvel da Pernilla emite um aviso sonoro. Pega nele, lê a mensagem e guarda-o.
Encho-me de coragem e pergunto:
– Tens tido notícias da Maria?
– Da Maria Sundkvist?
– Ou do Daniel? Soubeste alguma coisa dele?
Faço um esforço para a pergunta parecer inocente.
– Nos últimos anos, não. Somos amigos no Facebook. A Maria mora em Arvidsjaur, o Daniel em Bro. – Olha para mim de soslaio. – Porquê? Porque perguntas?
Encolho os ombros.
– Vi alguém que me fez lembrar a Maria.
A Pernilla parece aceitar a explicação. Olha outra vez para o telemóvel e ri do que vê.
– Ultimamente, tenho pensado imenso na Alice – digo.
A Pernilla enruga a testa e, por fim, levanta a cabeça.
– Então, foi por isso que perguntaste. Porque tens pensado nela?
– Porquê? – digo eu. – Que raio de pergunta é essa?
– Desculpa, Stella, não era isso que queria dizer. – Arrasta-se para mim no sofá e passa um braço pelos meus ombros.
– Quando vi o Milo e o Hampus juntos, lembrei-me dela. Pus-me a pensar que aspeto ela teria, como é que seria agora.
– Não penses assim, querida. Não fiques a matutar numa coisa que não leva a lado algum.
– E se ela estiver viva?
A Pernilla agarra a minha mão e olha-me nos olhos.
– Não podes fazer isto. Lembras-te da última vez, como te sentiste mal? Esquece, Stella. Tu tens o Henrik e o Milo. A Alice já era.
– Como é que sabes? E se eu souber que ela está viva e que…
– Stella, para com isso. Eu estive no funeral dela. – A Pernilla abana a cabeça impacientemente. O telemóvel emite outro aviso e ela não resiste a ver a mensagem. – Não estarás sob stress? Nos últimos tempos, o trabalho tem sido complicado, não tem?
Penso na nota de falecimento. No homem de gabardina de aspeto ameaçador, de pé na rua, observando-me pela janela. Quero falar-lhe sobre isso, mas a Pernilla não está a ouvir.
– Tudo bem, vamos esquecer o assunto – digo, pegando no vinho.
– Está tudo bem entre ti e o Henrik?
– Não tem nada que ver com isso.
– Vocês precisam de um fim de semana escaldante a dois – diz a Pernilla, e pisca-me o olho. – O Milo pode ficar aqui. Vão dar um passeio e divirtam-se juntos.
Não adianta. Pensei que poderia falar com ela, que ela pudesse compreender.
– Com quem estás tão interessada em conversar? – pergunto, apontando para o telemóvel.
– Com o meu personal trainer – responde a Pernilla, a sorrir. – Obrigada por teres sido simpática com ele quando se conheceram.
É fácil mudar o tema da conversa. Ao que parece, vamos passar o resto do serão com conversas da treta. Já estou arrependida de ter vindo.
– Sim, ele foi simpático – respondo. – O Henrik gostou dele.
– A sério? – A Pernilla parece aliviada. – O Hampus também gosta dele. Eu sei que é um pouco jovem, mas é um doce. E divertido. Faz-me sentir especial.
A Pernilla desata num demorado solilóquio. O Sebastian é tão simpático, tão maravilhoso, mais maduro do que qualquer outro com quem tenha andado, é encantador, atencioso, bondoso, e é bom na cama, bem-parecido, está em boa forma, é jovem e forte, e um pão, e ela nunca sentiu nada assim por outra pessoa.
Deixo-a tagarelar. Bebo o meu vinho. Sinto-me uma lástima.
Tentei falar com a mamã, tentei falar com a Pernilla. Nenhuma revelou o menor sinal de compreensão. Ambas acham que eu devo esquecer o passado e concentrar-me no futuro.
Penso no Daniel. Sinto a falta dele, anseio estar com ele. Quero vê-lo, quero saber o que ele pensa. Todavia, não sei se ele quereria dar-me ouvidos. Não depois do que aconteceu da última vez.
Quando estou para ir embora, a Pernilla dá-me um demorado abraço e diz que gostaria voltássemos a encontrar-nos em breve. Se eu quiser falar. Não lhe digo que foi por isso que vim hoje. Ela está completamente absorvida por esta nova relação.
Ela quer chamar um táxi, mas eu explico que prefiro ir a pé até ao metro, apanhar ar puro. Abraçamo-nos outra vez e eu vou embora.
Está frio cá fora. Ao subir a Igeldammsgatan, protejo-me melhor com o casaco. São quase 21h30, mas a rua está deserta. A Fleminggatan também não tem muito movimento. Raramente tenho medo, mas mesmo assim estugo o passo. Arrependo-me de ter bebido e de não poder levar o carro por isso.
Viro à direita para a St. Eriksgatan, desço as escadas para o metro. Tiro o passe da bolsa, avanço pelo torniquete e dirijo-me para as escadas rolantes. Passos ecoam com estrondo neste corredor desolado. Estará alguém outra vez a seguir-me? Ou é imaginação minha? Durante o caminho desde a casa da Pernilla, tive aquela sensação estranha, como se alguém estivesse a observar-me, a vigiar-me, a seguir-me.
Caminho ainda mais depressa.
O homem do lado de fora da janela, de pé, à chuva, a observar-me. Vejo a sua gabardina disforme à minha frente. O capuz a cobrir-lhe a cara.
Paro e viro-me para trás. Ninguém. As escadas rolantes são muito lentas. Desço-as a correr com os olhos postos nos degraus. Quando chego ao fundo, paro e olho outra vez à minha volta. Avanço em frente e dou um encontrão em alguém que me agarra os braços. Grito e recuo um passo.
– Cuidado, minha senhora. – É um guarda corpulento com o cabelo cortado à escovinha. Sorri-me amistosamente.
– Desculpe – digo. – Não o vi.
Ele dá-me as boas-noites e continua o seu caminho para cima.
Durante toda a viagem de metro, vou à beira de um ataque de nervos. Em Alvik, o autocarro demora uma eternidade a chegar. Penso em chamar um táxi, ou telefonar ao Henrik e pedir-lhe que me venha buscar, mas isso parece-me disparatado. Não quero ceder ao medo. Finalmente, o autocarro chega e eu subo.
Quando me apeio na minha paragem está escuro. As luzes da rua estão fundidas e eu desato a correr. Olho por cima do ombro, mas não vejo ninguém. Subo a correr a rampa de acesso até à frente da casa. Ofegante e trémula, procuro atabalhoadamente a chave na carteira e só depois de algumas tentativas consigo metê-la na fechadura. Abro a porta, ouço um barulho nas minhas costas e rodopio sobre os calcanhares. O vento empurrou o ramo de uma árvore contra o portão. Caiu e está no chão entre os pilares do portão. Abro a porta com força e entro de rompante. Fecho-a e tranco-a.
Está escuro cá dentro. O Henrik ainda não chegou a casa. Mando-lhe uma mensagem de texto a perguntar quanto tempo ainda ficará no trabalho, mas não recebo resposta. Quero falar com ele sobre a Alice. Quero falar com ele sobre o homem da gabardina.
Sento-me no chão do hall. Tenho o coração a bater com força, o sangue numa torrente, estou com dificuldade para respirar e o meu campo de visão encolheu até um indistinto círculo de luz.
Deito-me de lado e puxo os joelhos para o queixo. Abraço os joelhos.
Inspiro. Expiro.
O ataque diminui.
Levanto-me do chão e vou até à sala de estar. Fecho as cortinas. Vou ao quarto do Milo e pego num taco de golfe. Acendo a televisão, sintonizo numa série cómica ridícula e aumento o volume. Deito-me no sofá com o telefone numa mão e o taco de golfe na outra.