Stella

Hoje de manhã o Henrik cozeu pão e a cozinha tem um cheiro maravilhoso. É sábado e tomamos o pequeno-almoço juntos. Ainda não falei com o Henrik, mas, por causa do Milo, fazemos de conta que está tudo bem. Apesar de não ter fome, como uma fatia de pão e elogio o sabor. Depois, questiono o Milo sobre o jogo de basquetebol de hoje. É quanto basta para o pôr a falar, e assim eu e o Henrik podemos continuar a evitar-nos mutuamente.

Eu não vou assistir ao jogo. O Henrik parece aliviado por eu ficar em casa. Digo que preciso de descansar. Vou só deitar-me no sofá e relaxar. Vou até à porta e aceno-lhes enquanto se afastam, e lembro-me de que, há duas semanas, disse exatamente a mesma coisa. É claro que não falei ao meu marido sobre a viagem ao Strandgården. Nem sobre a minha ida a casa da Kerstin em Dalarna. Nem sobre os telefonemas à Isabelle e ao Sven Nilsson, pois sou uma pessoa desleal e dissimulada.

Ele deve pensar isso. Não posso criticá-lo por ter dificuldade em acreditar em mim. Porém, não me sinto culpada.

Alguém que nunca perdeu um filho não pode compreender. Se eu lhe dissesse tudo o que sinto e aquilo que vou fazer, o Henrik tentaria dissuadir-me. Ficaria contra mim. Não tenho tempo para as suas dúvidas ou para a sua desconfiança. Todas as suas boas intenções não passam de uma expressão dos seus receios.

O Henrik receia que eu e me meta em sarilhos. A única coisa que ele quer proteger é a si mesmo. É assim a natureza humana. Somos todos assim. E é por isso que não lhe disse nada sobre com quem vou encontrar-me hoje.

Saio da autoestrada E18. Segundo o GPS, já não falta muito. Ontem, não pude deixar de visitar o perfil dele no Facebook. No entanto, só consegui ver a sua fotografia de perfil, os locais que visitou e a música de que gosta. O resto era privado: só para amigos.

Inicialmente não planeei ir lá, mas no fim achei que tinha de o fazer. Só quero vê-lo. Ver como a vida lhe corre.

Não há mais ninguém com quem possa falar. Mais ninguém compreende.

Ele é o pai dela e tem o direito de saber que a Alice está viva, que eu estive com ela e que sei onde ela está.

O Daniel mora numa encantadora casa branca em Bro, a trinta quilómetros de Estocolmo. A casa tem um enorme jardim com sebes frondosas e bem podadas. Há uma garagem ao lado da habitação e, lá dentro, está um homem debruçado sobre o capô aberto de um carro. Na parede, um letreiro com os dizeres «Oficina Sundkvist». Verifico o meu aspeto no retrovisor. Componho a blusa branca. Pintei as unhas de vermelho. De manhã, fui à cabeleireira e o cabelo cai-me aos cachos sobre os ombros. Sorrio ao ver o meu reflexo no espelho. O reflexo retribui-me o sorriso, mas parece ansioso e inseguro.

Estaciono à porta da oficina. O Daniel protege os olhos do sol com a mão e olha para mim. Respiro fundo e saio do carro.

– Stella? – O Daniel sorri e aproxima-se. – Bem me queria parecer que eras tu – diz.

Limpa as mãos a um pano. Depois, levanta-me do chão com os braços, aperta-me com força e roda-me no ar. Exatamente como fazia antes. Escondo a cara no pescoço dele, sinto o seu cheiro. Esquecera o efeito que exerce sobre mim. Não estava de todo preparada para o desejo que o seu toque desperta em mim. Ou será que estava? Não ansiara por voltar a sentir isto?

– O que andas a fazer? – pergunta, pousando-me. – Tão longe, em Bro?

– Estava aqui perto.

– Pois, claro. – Sorri, mas fico com a sensação de que está de sobreaviso. Examinamo-nos mutuamente. O Daniel está igual, mas ao mesmo tempo diferente. Deixou de ser escanzelado. É provável que pratique exercício, tem os ombros sólidos, o peito e os braços musculosos. Tem o cabelo mais comprido do que nunca, amarrado num rabo de cavalo. Continua preto como o carvão, mas começa a ficar grisalho de lado. Tem mais tatuagens nos braços do que há 12 anos. As calças de ganga estão puídas e são caídas na cintura. Traz vestida uma camisa de flanela vermelha e uma camisola de manga cava preta por baixo. Tem um ar perigoso. Sexy.

– Tens a tua própria oficina – aponto para o letreiro. – Sempre conseguiste.

– É uma sensação ótima – diz, olhando do letreiro para mim. – E tu? Ainda és psicóloga?

Aproximo-me do carro em que ele está a trabalhar.

– Que beleza – digo, passando a mão pela lateral.

– É, não é?

O Daniel passa por trás de mim e roça acidentalmente no meu traseiro. Põe-se ao meu lado. Perto. Cheira a óleo de motor e a aftershave. Ouço a sua respiração.

– Ainda me lembro daquela coisa vermelha e reluzente em que nos levavas a passear – digo, olhando-o.

– Coisa reluzente? – Finge estar desiludido. – Era um Chevy Impala de 1974.

– Tenho excelentes recordações desse carro.

O Daniel sorri. Ele também se lembra e não sente pejo em pensar no que fizemos naquele banco traseiro. Consigo perceber no que ele está a pensar. Sinto-o com borboletas na barriga. Ele avança mais para o interior da oficina.

– Queres uma cerveja ou alguma coisa? – pergunta, por cima do ombro.

– Água mineral, se tiveres.

– Ainda não aprendeste a beber cerveja? – Volta para ao pé de mim e atira-me uma água gaseificada. Eu apanho-a e rio-me.

– Não, sou um caso perdido.

Pergunta-me pela minha mãe, Gudrun. Constou-lhe que eu e o Henrik lhe comprámos um apartamento há alguns anos. Diz-me que tem saudades das almôndegas dela e manda-lhe cumprimentos. Eu pergunto-lhe pela mãe, Maud. Reformou-se no início do verão e agora passa os dias a fumar cigarros por debaixo do exaustor da cozinha.

Nada do que dizemos tem importância. Não passa de conversa de circunstância para que não esqueçamos quem somos. Aquilo que eu sinto por todo o corpo neste momento. Consigo percebê-lo no olhar do Daniel, como desliza pelo meu corpo: ele sente o mesmo. E é ridiculamente lisonjeiro saber que ele ainda me deseja.

– Tens aqui um belo refúgio masculino – digo, olhando em redor. – Frigorífico com cerveja, uma jukebox. Não falta nada.

– É fixe, não é? – responde.

Sento-me no sofá ao lado do frigorífico.

– Não te posso garantir que as tuas roupas chiques saiam daqui no mesmo estado se te sentares aí. – Aponta com a cerveja para o sofá.

– Vem sentar-te aqui – digo e dou uma palmadinha convidativa na almofada ao meu lado. Ele aproxima-se e senta-se. Passa um braço pelas minhas costas e eu chego-me para ele. Não consigo deixar de imaginar como teria sido a nossa vida se tivéssemos ficado juntos. Viveríamos assim tão longe da cidade? Teríamos tido mais filhos?

Sinto-me devastada por tudo o que nos aconteceu. Tudo o que perdemos. Tenho saudades dele. Tenho saudades do afeto que nutríamos pelo outro. Tenho saudades da paixão e quero senti-la outra vez.

– Não é uma tragédia quando uma pessoa que significava tanto para nós, que representava uma importante parte da nossa vida deixa de fazer parte dela? – digo. – Não achas?

O Daniel aperta-me o ombro.

– Sempre passaste mais tempo do que eu a matutar nessas coisas. – Fica em silêncio durante algum tempo. – Ainda tens um diário? – pergunta.

– Agora não.

– És feliz? – O Daniel fita-me nos olhos e eu desvio o olhar.

– Temos uma vida boa – digo, deixando claro que prefiro não falar sobre isso.

– O Henrik é engenheiro civil ou algo do género?

– Algo do género.

– Tu estás bem na vida – diz ele. – Tens um Audi. Caro e cheio de estilo. Que é feito daquela rapariga que tinha medo de aprender a conduzir?

– A rapariga é a mesma. – Não vim aqui para falar sobre a minha vida atual. Não quero ouvir mais nada sobre isso. Quero apenas viver o aqui e agora com o Daniel.

– Ele parece ser bom para ti – diz. – Nós os dois éramos muito impetuosos.

– Talvez.

– E o teu filho, Milo? Já deve estar grande.

– Tem 13 anos.

– O tempo voa. – O Daniel bebe um trago de cerveja.

– A Alice teria 22 – digo.

O Daniel olha para mim. Recolhe o braço e endireita-se. Pondera o que dizer durante imenso tempo. Havia esquecido que ele costumava fazer isso. As suas táticas para evitar falar punham-me fora de mim. Ainda me irritam.

– Também pensas nela? – pergunto.

O Daniel rodopia a lata nas mãos.

– Às vezes – responde um pouco depois. – De vez em quando. No aniversário dela. A vida continua. – Fica outra vez em silêncio.

– Eu tenho pensado muito nela. Em nós. – Pouso a mão na coxa dele. – Nós tivemos uma coisa boa, Daniel.

– Lembro-me das discussões – diz ele. – Como nos irritávamos um ao outro naquele apartamento minúsculo em Jordbro. Nem sempre foi romântico. – Desprende o elástico e passa os dedos pelo cabelo. Eu afasto a mão da coxa dele.

– Se a Alice não tivesse desaparecido…

– Teríamos vivido felizes para sempre? – Abana lentamente a cabeça e olha para mim. – Achas mesmo? Nós eramos tão novos, Stella. E tu engravidaste tão cedo. Parece-me que temos recordações diferentes.

Ele desconsidera a nossa vida juntos. Com tanta facilidade. Despreza-a como se não tivesse qualquer significado. Levanto-me e vou até à porta da oficina. Olho para a rua. Talvez tenha sido um erro vir aqui. Viro-me para trás e olho para ele.

– Estás a querer dizer que as minhas memórias não passam de imaginação minha?

– És uma sonhadora, sempre foste. – O Daniel levanta-se do sofá, caminha até ao carro e debruça-se outra vez. Pega numa chave de bocas e continua a trabalhar. Também reconheço este comportamento. Ele está indeciso, confuso. Estou a afetá-lo? Terá receio do que possa acontecer? Sim, é isso. Está aterrorizado. Despertei algo nele. É tão forte agora como foi então. E isso aterroriza-o.

– Lembro-me de que tu nos amavas – digo. – Ficaste feliz com a Alice, radiante. A minha memória engana-me? Nós fomos apenas um obstáculo para ti? Para todos os teus planos? Confessa, eu aguento. – Acerco-me dele. Pareço uma personagem emocionalmente instável de uma telenovela.

Ele vira-se e agarra-me os braços. Inclina-se e olha-me atentamente.

– Porque estás a pensar nisso agora? Porque vieste aqui? Não foi para falar sobre recordações, isso sei eu.

Antes de reunir coragem para fitá-lo, mantenho os olhos postos no chão. Então, digo-lhe que encontrei a Alice. Ou que a Alice me encontrou a mim, mas que ainda não sabe. Conto-lhe tudo. Percebo que estou a ser incoerente, desejava estar mais calma e controlada. Mas despejo tudo. Do princípio ao fim.

Quando termino, reparo que o Daniel tem uma expressão distante. Está de pé com as pernas afastadas e as costas direitas, as mãos bem enfiadas nos bolsos.

– Ela tem o cabelo volumoso e preto? Uma orelha de duende? – Leva a mão à sua orelha.

– Tem. Foi por isso que tive a certeza. – Seguro-lhe a cara entre as mãos. Entreolhamo-nos. O tempo para.

– E é parecida com a Maria? – pergunta. – Como quando era bebé. – A voz do Daniel é suave e compreensiva. Finalmente. Eu sabia que ele acreditaria em mim.

– Ela é a cara chapada da Maria. Tens de a ver.

Ponho as mãos à volta do seu pescoço e inclino-me para ele. Foi há tanto tempo, mas parece que nunca nos separámos. O tempo não conseguiu quebrar a nossa ligação.

– E tu estiveste com ela, falaste com ela? – diz. – Tens a certeza?

– Daniel, é a nossa filha. – Apetece-me chorar: de alívio por ele acreditar, de tristeza por todos os anos que passaram, de alegria por estar com ele e por sentir a proximidade entre nós.

– A nossa filha morreu. – O Daniel afasta-se de mim. – Nós enterrámo-la. Não te lembras? – Foi como se me desse um murro na barriga. – Que raio, Stella! Quanto mais desta história é que terei de aguentar? Quantas vezes teremos de passar por isto?

– É ela. Eu sei que é ela. Sinto-o em todo o meu ser. – Viro-lhe costas e respiro fundo antes de olhar outra vez para ele. – Falei com o Sven Nilsson. Lembras-te dele? O agente da polícia? Houve uma pista que eles nunca seguiram. Terça-feira vou encontrar-me com ele. – Pego nas mãos do Daniel e obrigo-o a levantar a cabeça. – Pensei que poderias querer vir comigo. Vamos juntos. Obteremos respostas. Desta vez sei que…

– Stella, ouve – interrompe-me o Daniel. – A Alice morreu. Tens de esquecê-la. Nós seguimos com as nossas vidas. É tudo o que precisamos de saber.

O nó na garganta cresce e as lágrimas começam a rolar. Agora estou a chorar como uma criança.

– Daniel, tens de me ajudar – digo a fungar. – Por favor, não me abandones. És tudo o que me resta. – Ele leva a mão à minha cara e eu atiro-me para os braços dele.

– Estou tão triste como tu – diz baixinho. – A sério.

– Tenho saudades dela. E tuas. – Soluço e percebo que as minhas palavras são incompreensíveis. Ele tenta acalmar-me e fala baixinho com a boca junto ao meu cabelo. Afaga-me as costas.

É maravilhoso. Sabe bem. E eu desejo-o. Agora.

É errado.

Eu sei que é errado.

Mas a sensação de estar nos braços dele é ótima e o desejo que senti voltou. Acaricio-lhe o rosto, passo os dedos pelo seu cabelo, toco-lhe na cicatriz que tem na testa. Puxo a cabeça dele para baixo e beijo-o. O Daniel afasta-me e põe-se direito.

– Isso não vai ajudar nada. Tu tens uma bela família, não te esqueças disso. O teu marido ama-te. Eu percebi isso quando o conheci há 12 anos. Ele preocupa-se contigo e cuida de ti muito melhor do que eu alguma vez cuidaria.

Olho para o chão. Não suporto a maneira como ele me olha. Estou envergonhada, muito envergonhada.

– Não quero ir contigo – diz. – Não quero passar por isto outra vez. Não posso. Não é bom para nenhum de nós. Volta para casa e para o teu filho, Stella. Volta para o teu marido. Ele deve estar preocupado contigo.

– Papá, papá – diz uma voz de menina. Recuo instintivamente quando uma criança chega e se atira para os braços do Daniel. – Vimos gatinhos, cabras, ovelhas e daqueles bezegos!

– Bezerros? – O Daniel ri. A menina deve ter uns quatro anos e tem o cabelo preto e volumoso. Chega outra menina com cerca de oito anos e uns cabelos igualmente bonitos. Ele pergunta às meninas onde está a mamã. Respondem em uníssono que ela foi lá dentro deixar a comida. O Daniel pega na mais pequena ao colo e passa o braço pelos ombros da maior, conduzindo-as para a porta. As meninas informam-no de que a mamã disse que são horas de ir para dentro. De estar com as suas raparigas preferidas.

Será que a Alice era parecida com elas nestas idades? Teria ele olhado para ela da mesma maneira, teria sido um pai assim maravilhoso?

Sim, eu sei que sim. Sinto uma dor acutilante, custa-me respirar.

Vejo um Daniel mais jovem sentado no chão a mimar a nossa menina. Está a dormir no sofá com o cabelo desgrenhado e a nossa bebé sobre o seu peito. Uma mão protetora nas costas dela. Nós somos as suas raparigas preferidas.

Ficarei paralisada para sempre? Ficarei aqui especada até alguém ter a clemência de me levar daqui?

Sou uma idiota.

Um destroço humano desequilibrado.

Teria eu pensado que ele estaria à minha espera todos estes anos, à espera para reviver aquele breve período que tivemos juntos? Ele tem duas filhas para cuidar. Um novo amor.

Uma nova vida.

– Stella, Stella. – O Daniel está à porta. Está a olhar para mim e as duas meninas fitam-me com espanto. – Tem cuidado contigo. – Leva as filhas para dentro de casa.

Está uma mulher no alpendre a olhar para mim. É bonita.

Entro para o carro e arranco.