Stella
Ainda está escuro. Meto-me na cama ao lado do Henrik, encosto a cabeça ao ombro dele. Ele abre os braços, cobre-nos com o cobertor.
Dormi mal a noite inteira. Não conseguia deixar de pensar no que eu e o Henrik dissemos um ao outro. E no que não dissemos. Fico preocupada por o Henrik estar preocupado. Temo que esteja zangado comigo, que o meu passado destrua a vida que construímos juntos. Murmuro que não quero discutir mais. Falo-lhe sobre o diário. Digo-lhe que reli tudo o que escrevi quando estava grávida da Alice, quando ela era um bebé. E no dia do seu desaparecimento e depois.
A luz da manhã incide sobre o tapete do quarto. O mundo parou. Estamos além do tempo e do espaço, no nosso próprio e estranho universo paralelo. Assemelha-se àquele em que vivíamos há quatro semanas, mas não é o mesmo. A minha voz soa distante e parece que estou a contar uma história. O Henrik está em silêncio, a ouvir.
Quero que ele perceba como é doloroso reviver o passado. Todas aquelas recordações, toda aquela repulsa que senti por mim mesma. Pesar e agonia. Mas não lhe falo sobre os ataques de pânico, nem sobre as idas a casa da Kerstin e do Daniel.
O Henrik diz que eu deveria ter dito alguma coisa antes. Deveria saber que ele compreenderia. Que ele gosta de mim.
Eu digo que tive medo. Pavor.
Ele não quer que eu adoeça outra vez.
Eu sei.
Pede-me que jure que nunca mais me encontrarei com a Isabelle.
Acaricia-me a cara, limpando as lágrimas que não consigo evitar. E depois fazemos amor devagar, com brandura. Eu deito-me de lado e ele penetra-me por trás. Fecho os olhos no seu abraço e tenho prazer com este ritual familiar. O seu corpo rígido por detrás de mim, os seus movimentos delicados tornando-se cada vez mais vigorosos. Quando atinjo o orgasmo, ele murmura que me ama. Penetra-me fundo. Eu digo-lhe que adoro a maneira como ele faz amor comigo. Ele geme ao atingir o orgasmo, com as mãos a agarrar-me as ancas com força.
Adormecemos nos braços um do outro.
Mais tarde, estamos a vaguear pelos corredores do Coop Forum. É uma tarde de domingo vulgar. Pergunto ao Henrik se quer sumo de maçã ou de laranja. Esqueço o pão e volto para trás. Enchemos o carrinho de compras. Estamos de mãos dadas na fila para pagar. Eu pago, o Henrik mete as compras nos sacos. É normal, entediante, maravilhosamente doméstico. Por fim, posso deixar de pensar, é mais fácil reprimir a culpa que me corrói. Vamos para o Range Rover, carregamo-lo juntos. O Henrik vai pôr o carrinho de compras no sítio. Eu ligo o carro. Voltamos para casa.
Está um cão na nossa entrada. É o cachorrinho do Johan Lindberg. Tem a coleira e a trela, mas nem sinal do nosso vizinho. Paro o carro, o Henrik olha-me, divertido. Não é a primeira vez que isto acontece e eu duvido que seja a última. Ele sai do carro e caminha devagar para o cãozinho, que recua e desata no seu latido agudo e persistente. Após outra tentativa, o Henrik vira-se para mim. Ri e encolhe os ombros. Eu saio do carro e sondo a rua à procura do dono do cão.
O Johan Lindberg vem na nossa direção a correr e a arfar com um fato de treino amarelo-néon, que lhe fica demasiado justo no seu corpo redondo. Chega ao pé de nós e põe as mãos nos joelhos. Tem ranho a escorrer do nariz, pigarreia e lança uma bola de cuspo para a rua.
– A Therese quer que eu perca peso – resmunga. – Diz que estou demasiado gordo para foder.
Aponto com o queixo para o seu cinto de hidratação e sorrio.
– Estás a pensar correr a maratona?
– Maratona? Alguns quilómetros não bastam? Não estou para sacrificar a vida por um pouco de sexo.
O Henrik concorda solidariamente. Cinge-me pela cintura. Não me atrevo a olhar para ele: se o fizer, não conseguiremos conter o riso. Desejamos boa sorte ao nosso vizinho, eu meto o carro na entrada e levamos as compras para dentro.
O Henrik tira as coisas dos sacos enquanto eu guardo a comida na despensa, no frigorífico e no congelador. O Milo está à mesa da cozinha a rir enquanto nós gozamos com o investidor e o seu cão. Quando o telemóvel do Henrik toca, peço-lhe para não atender.
– Porquê? – pergunta, como é óbvio.
– Porque sim – respondo. Não quero que nos incomodem. E nos últimos tempos há sempre qualquer coisa a incomodar. Há sempre alguém a querer a atenção dele. Neste instante, quero o meu marido para mim.
– Pode ser importante – continua.
– É domingo – queixo-me. – Não pode esperar?
– Não reconheço o número.
– Vive no perigo, papá – diz o Milo.
Eu tento agarrar no telefone. O Henrik ri, finge lutar comigo durante uns segundos e depois atende. Eu viro-lhe costas e continuo a guardar as compras.
– Daqui fala o Henrik. Oh, olá, há quanto tempo. – Quase imediatamente parece ficar à defesa. Olho para ele por cima do ombro. O Milo diz que tem de ligar a um amigo e vai para o quarto dele.
– Sim, está tudo bem, obrigado. Como tens passado?
O Henrik está a usar o seu tom educado. Não pode ser alguém que conheça bem. Afasta-se um pouco de mim. Remexe na correspondência. Ouve a outra pessoa.
– Ela mudou de número. – Olha para mim. O que será que se passa?
– Queres falar com ela? Ela está mesmo aqui ao lado.
Formo com a boca a frase «Quem é?». O Henrik não responde, escutando o interlocutor. Está tranquilo, vai para a sala de estar. Depois regressa, com o telefone ainda encostado ao ouvido. Eu sabia. Ele não deveria ter atendido. Não é coisa boa.
O Henrik debruça-se sobre o balcão da cozinha e solta uma gargalhada, mas não é o seu riso normal, alegre e caloroso.
– Obrigado pelo telefonema. – Os seus olhos são imperscrutáveis. – Está bem, eu digo.
Passo um pano pelo balcão, limpando manchas imaginárias.
Ele desliga.
Eu espero.
Ele não diz nada.
– Quem era? – pergunto, finalmente, tentando parecer despreocupada.
– Era o Daniel – diz. – Queria saber se chegaste bem a casa ontem.
O arrependimento é uma perda de tempo e energia. Não é algo que eu geralmente sinta. Pelo contrário, é suposto aprendermos com os próprios erros, tentarmos ser melhores no futuro. É o que eu aconselho aos meus doentes, mas não consigo fazer o mesmo.
Sinto-me mais arrependida do que nunca. Arrependo-me de ter ido visitar o Daniel. Arrependo-me de tudo. Deveria ter contado ao Henrik. Deveria ter sido franca e honesta. Nunca pensei que o Daniel fosse telefonar.
O Henrik inclina-se sobre a bancada, olhando para o quarto do Milo, provavelmente a ver se ele estará a ouvir.
– O Daniel estava preocupado contigo – diz. – Estavas perturbada quando saíste de ao pé dele ontem. – Olha para mim como se não me conhecesse. – E disse que se quiseres podes ligar-lhe.
Eu sei no que o Henrik está a pensar. Percebo-o na sua expressão hostil. E ele percebe que eu me sinto culpada pelos sentimentos que despontaram dentro de mim quando me encontrei com o Daniel. Mas não é boa ideia tentar explicar. O que quer que eu diga agora só contribuirá para que pareça ainda mais culpada.
– Não é o que tu pensas – digo, simplesmente.
– Dizes que vais ficar em casa a descansar, mas quando chegamos a casa, saíste. Depois apareces de repente, completamente fora de ti. Arrancas as roupas e temos relações.
– Eu sei o que estás a pensar, mas estás equivocado.
– O que é que achas? O que achas que eu estou a pensar? Parece-me que achas mais fácil dizer-me o que eu estou a pensar do que o que tu andas a fazer.
– Não sei o que dizer.
– Pois não, já reparei – diz ele. – Porque estavas tão zangada comigo quando regressaste? Podes começar por aí.
– Vocês estão todos com medo de que eu tenha um esgotamento. Pensam que se eu compreender que estou errada e esquecer a Alice, me sentirei melhor. Mas vocês é que se sentirão melhores.
– Vocês! Referes-te a mim e ao Daniel? À Pernilla, à Gudrun? A quem te referes?
Encolho os ombros.
– Tu estavas mais à mão. Infelizmente, pagaste por todos.
– Eu aguento com as tuas merdas se isso te fizer sentir melhor, mas não tens de me esbofetear da próxima vez que quiseres foder.
Arrepende-se imediatamente do que disse. Percebo isso. Apesar de saber que deveria respirar fundo, fico outra vez zangada.
– E porque estás tão chateado? Eu quis encontrar-me com o pai da minha filha. É assim tão estranho?
– Podes encontrar-te com ele sempre que quiseres. Mas porquê escondê-lo? Podias ter-me dito. Sabes como foi embaraçoso para mim receber um telefonema do teu ex a perguntar se tu estavas bem?
O Henrik abana a cabeça e vai embora.
Sempre fui uma sonhadora e senti as coisas intensamente. Só porque sou psicoterapeuta, não quer dizer que isso tenha mudado, mas gosto de acreditar que me tornei mais madura. Um pouco. Mas se calhar estou errada também em relação a isso.
A vida é mais fácil aos 39 do que aos 19 anos. Sinto-me mais segura. Mais senhora de mim mesma. Menos preocupada com o que os outros pensam de mim. Aprendi a não ser impulsiva, a pensar antes de agir. Tento analisar as consequências das minhas escolhas e depois assumo a responsabilidade pelas minhas ações.
Agora, é como se tudo isso tivesse desaparecido.
Se o Daniel não me tivesse impedido, será que eu teria tido relações sexuais com ele naquela garagem? É provável, embora não queira acreditar nisso. Porque é o Henrik que eu quero. É ele quem eu amo, é com ele que quero partilhar a vida. A última coisa que quero é perder aquilo que temos juntos.
Vou dar com ele na garagem, a tirar os tacos de golfe do carro. Ele ignora-me. Peço perdão. Outra vez. Deveria ter-lhe dito que fui ver o Daniel. Sinto-me envergonhada, estúpida. Digo-o em voz alta e percebo que está trémula. Ele fita-me em silêncio. Depois, puxa um banco para mim.
– Senta-te – diz. – Comecemos pelo princípio. O que aconteceu?
– O Daniel também não acredita em mim. Não quer saber. Reagiu como tu. Como a Pernilla. Disse que se eu nunca mais ouvisse o nome da Alice me sentiria melhor. Pouco importa como me sinto. – Não me importa se pareço cáustica e acusadora.
– Sabes que isso não é verdade – diz o Henrik. Pousa a mão na minha.
– Estou tão desiludida – digo. – Comigo, contigo, com toda a gente. Estou farta de pedir perdão. Farta de que ninguém acredite em mim.
– Está bem. Digamos que é mesmo a Alice. O que vais fazer?
O Henrik aguarda um momento. Deixa a pergunta assentar.
– E se não for ela? Se estiveres equivocada? Qual será o desfecho para ela? E para ti?
Ele quer respostas que eu ainda não tenho. E as perguntas que está a fazer estão muito perto daquilo que eu própria mais receio.
– Agora já é demasiado tarde para pensar dessa maneira – digo. – Devo desistir só porque as outras pessoas têm medo?
– Não é isso que estou a dizer – responde o Henrik. – Mas pensa no que estás a fazer. Só peço isso. Pensa nas consequências dos teus atos. É a segunda vez que recebo uma visita ou um telefonema por tua causa em muito pouco tempo. Vai com calma. Usa a lógica, és uma mulher inteligente. Não esqueças isso.
– Não sei o que vou fazer, Henrik.
– Talvez não devesses fazer nada para já – diz. – E, por favor, conversa comigo sobre isso. Jura.
Não respondo, apenas aceno com a cabeça.
Quero jurar-lhe tudo o que ele quiser. Quero jurar-lhe que tudo irá resolver-se, mas não sei se eu própria acredito nisso.