Isabelle

Venho da loja e vou a caminho de casa. O céu está nublado, as nuvens carregadas de chuva. Sinto-me muito melhor, já não tenho febre. Soube-me bem sair um pouco.

A Johanna está nas aulas, mas eu não. Sinto-me stressada por ter faltado tantas vezes nos últimos tempos, mas também tem sido agradável estar em casa com a mamã. Porém, não tenciono ir com ela quando voltar para casa hoje. Preciso de algum tempo sozinha. Preciso de absorver tudo o que aconteceu. Talvez lá vá no próximo fim de semana. Ou depois dos exames.

Stella. Penso mais nela do que gostaria. O que será que a polícia quer com ela? Seria estranho se eu fosse à terapia de grupo na próxima quarta-feira? Sinto que não fui franca com ela. Por outro lado, depois do que a mamã me disse, sinto-me constrangida por ela me ter seguido. Não quero pensar nisso. Afasto da ideia a Stella Widstrand e, em vez disso, penso no Fredrik.

Estava ansiosa por lhe telefonar quando estivesse na loja. Agora estou a pensar no tom dele, nas suas palavras, e estou farta de esperar. Conto os segundos até voltar para os braços dele. É possível que já não falte muito. Sorrio e penso na roupa que devo levar. Atravesso a praça e depois a rua.

Vejo-a de pé à porta do edifício a olhar para a nossa janela.

Como da última vez.

Geralmente, está bem vestida, com a maquilhagem perfeita, os seus cabelos volumosos e encaracolados imaculados. Geralmente, tem um ar tão saudável… Mas hoje não.

Tem o cabelo apanhado num rabo de cavalo desgrenhado e está com olheiras. Tem o vestido engelhado. Parece que o usou para dormir.

O que será que quer? Porque veio aqui? Mas então lembro-me de que é provável que a polícia tenha falado com ela. Está zangada comigo, claro.

– O que estás a fazer aqui? – digo.

Ela quase gagueja, como se não estivesse preparada para me ver.

– Eu… eu tinha de te ver.

– Porquê?

Parece triste. Perturbada.

Está com ar de quem vai ter um esgotamento.

– Só queria saber o que aconteceu – diz. – Pensei que gostavas das nossas conversas. Senti que tínhamos algo em comum.

Olho para o chão. Não raspes os pés assim no chão, Isabelle! Paro. Endireito-me. Faço um esforço para olhar a Stella nos olhos.

– E gostava – digo.

– Então porque não apareceste? Nem na segunda nem na quarta-feira? Porque apresentaste queixa de mim à polícia?

Não compreendo. Não sei do que ela está a falar. Mas depois tenho um palpite. Olho de relance para o apartamento, mas não vejo a mamã por detrás dos cortinados, a espiar, de vigia. O que foi que ela fez?

Olho outra vez para a Stella. Ela aponta para um banco aqui perto.

– Queres sentar-te comigo um pouco?

Eu não quero, mas sigo-a até ao banco. Sento-me a alguma distância dela.

– Ou não sabias disso? – diz a Stella. Parece compreensiva, mas não espera pela resposta. – Não importa, eu só quero esclarecer quaisquer mal-entendidos.

– Eu não sabia – digo. – Lamento, mas não sabia.

– Tudo bem – diz e dá uma palmadinha nas minhas costas. – Pensei no que tu me disseste. Sobre a tua educação, sobre os teus pensamentos. O relacionamento entre ti e a tua mãe.

– Sim, e?

– Eu tive uma filha – diz a Stella. – Há muito tempo.

Reconheço a expressão dos seus olhos. É a mesma de quando nos falou do seu luto. Aquele tom de voz. Como se estivesse desesperada, como se fosse impelida por emoções tão fortes que perdeu o controlo das mesmas.

– Um dia, desapareceu – continua a Stella. – Nunca soube o que aconteceu. Toda a gente disse que morreu afogada. Toda a gente pensou que ela morreu. Mas eu não. Eu sabia que ela estava viva. Sabia que alguém a tinha levado.

A Stella olha-me nos olhos. Eu olho para o chão, não consigo suportar o seu olhar selvático e intenso.

– Já alguma vez te perguntaste se a Kerstin é a tua mãe biológica? A tua mãe verdadeira?

Levanto-me do banco.

– Tenho de ir.

– Por favor, Isabelle, escuta. Por favor, deixa-me acabar antes de ires.

A Stella remexe na sua bolsa e tira de lá uma fotografia. Tem a mão a tremer.

– Ora vê. Esta é a Maria. Eu não te falei dela, mas fizeste-me lembrar dela desde o instante em que te conheci. Mais do que isso, vocês parecem tiradas a papel químico.

Olho para a fotografia. Podia ser minha irmã.

– A Maria é tua tia – diz a Stella, pegando noutra fotografia. – Ora vê, esta és tu. A minha menina quando tinha dez meses. Vês o cabelo preto? A orelha? A covinha na cara?

Ela espera. Deixa-me ver e depois continua:

– Tens fotografias de quando eras bebé? Não me parece. Acho que deves ter imensas dúvidas sobre esse período.

Basta. Não quero ver nem ouvir mais nada. A Stella tira um brinquedo da carteira. Uma aranha de pano.

– Esta aranha era o teu brinquedo preferido. Adorava-la – diz, com as lágrimas nos olhos. – Estou convicta de que tu és a minha filha desaparecida. – Estende uma mão para mim.

– Estás enganada – digo, recuando um passo. – Estás enganada. Deves estar completamente maluca.

– Compreendo que isto seja um choque.

– Para – grito. – Deixa de me seguir. Ela tinha razão. Ela disse-me que tu irias dizer isto.

O zunido na minha cabeça está cada vez mais forte. Tapo os ouvidos com as mãos.

A Stella levanta-se e acerca-se de mim. Abraça-me.

– Quem é que tinha razão? A Kerstin? Sabes, quero conhecê-la. Quero saber o que ela tem a dizer em relação a tudo isto.

– Porquê? – Percebo que estou a soluçar. – Porque estás a fazer isto? Pensei que eras boa, pensei que gostavas de mim. Senti que eras a única pessoa com quem podia falar, mas, todo este tempo, tu estavas apenas a fingir. Sofres da cabeça. – Empurro-a. Ela cai para trás e fica sentada no banco.

– Isabelle, se me desses uma oportunidade – implora. – Pensa nisso. Já te questionaste porque és tão diferente, porque não sentes que ela é tua mãe?

– Já perdi o meu pai. Ela é tudo o que me resta. E neste momento as coisas entre nós estão melhores do que nunca. O que te leva a crer que me podes fazer isto? Espalhar estas mentiras? – Estou outra vez a gritar.

A Stella estende a mão.

Eu dou-lhe uma palmada.

– Vai para o inferno! És pior que a mamã quando está zangada. Ela não é perfeita, mas pelo menos é honesta. Tu és falsa. És mentirosa e manipuladora. Desaparece e deixa-nos em paz.

A Stella fita-me com súplica no olhar e uma expressão de quem implora.

– Eu sou a tua mãe – diz. – Tu chamas-te Alice. És minha filha. Eu sabia que haverias de voltar para mim. Espero-te desde o dia em que desapareceste.

Desato a correr o mais depressa que consigo. Chego à entrada, insiro o código, abro a porta abruptamente e bato-a com força. Esqueci-me das compras. Olho para o banco. Está lá sentada uma mulher encolhida. Sozinha com as suas fotografias e um brinquedo que diz ter sido meu.