Kerstin

Minha pobre menina. Estás doente, muito doente. A mamã vai cuidar de ti. Em breve estarás melhor. Deixarás de vomitar, de te sentires tão enjoada. Em breve acabará. Quando o veneno sair do teu corpo. Quando o mal sair do teu corpo. Pode demorar, mas ajudar-te-á. Nunca te abandonarei.

O telefone toca. Não para de tocar e a Isabelle também fica preocupada. Apesar de mal estar acordada, inquieta-se. Atendo o telefone, digo o nome e pergunto quem fala.

Responde uma voz de homem rouquenha:

– Daqui fala o Mats Hedin da polícia de Estocolmo.

Quase desligo. Não estou de todo interessada no que ele tem para dizer, mas ignoro a irritação. Como sempre. A Kerstin Karlsson faz aquilo que é preciso. A Kerstin Karlsson dá sempre o seu melhor.

– Ah sim? – digo. – Em que posso ser útil?

– Tenho algumas perguntas sobre a sua filha, Isabelle Karlsson – diz o Mats Hedin.

Ouço o que ele tem para dizer. Só não compreendo o que pretende de mim.

– Está lá? – diz. – Ainda está aí?

– Perguntas? Sobre o quê? – pergunto.

– Esteve com ela recentemente?

Onde quer chegar? O que é que pretende? Eu já disse tudo o que tinha a dizer sobre a Stella Widstrand.

– Se eu estive com a Isabelle? – digo. – Porque pergunta? É claro que estive com ela. Acabei de chegar de Estocolmo.

– Há uma participação do desaparecimento da sua filha – diz o Mats Hedin. – A amiga dela, a Johanna, viu-a pela última vez na manhã de sexta-feira. Antes de a Isabelle ir para Dalarna consigo. Segundo ela, era suposto a Isabelle regressar no domingo, há quatro dias. Só que nunca chegou. Não deu notícias e está incontactável. A Johanna diz que tentou entrar em contacto consigo, mas não conseguiu.

– Participação de desaparecimento? – brado.

– Considerando a queixa apresentada por si de ameaça e assédio, levamos o caso muito a sério. Mas temos de saber se ela está consigo.

– Não, não – digo. – Houve um mal-entendido. Ela não está aqui. Ela só me levou ao comboio em Estocolmo, mais nada. Não sei onde a Johanna foi buscar essa ideia.

– Deveras? Nesse caso, quando foi a última vez que teve notícias dela?

– Quando nos despedimos na estação central. Como disse, ela acompanhou-me até lá. Acha que lhe aconteceu alguma coisa?

O Mats Hedin fica em silêncio por instantes.

– Ainda não sabemos.

– Aquela mulher. A Stella Widstrand. Eu sei que é ela. Se aconteceu alguma coisa à Isabelle, se a minha filha…

– Pronto, pronto, ninguém está a dizer que aconteceu alguma coisa.

– Ela apareceu em Vällingby. Mesmo antes de eu vir embora. Apareceu na rua onde a minha filha mora. Eu vi tudo da janela, com os meus próprios olhos. Ela estava tresloucada. Atirou-se à minha filha, pregou-lhe um susto de morte. Felizmente, a Isabelle conseguiu libertar-se e fugiu dela. Quando chegou ao apartamento, estava inconsolável. Chorou convulsivamente.

– Porque não apresentou queixa?

– Quantas vezes tenho de apresentar queixa contra uma pessoa para vocês agirem? Eu já disse que ela é perigosa. Está convencida de que a Isabelle é filha dela. Está a tentar roubar-me a filha.

– Também não teve notícias da Isabelle desde sexta-feira?

– Não.

– E não tentou telefonar-lhe? Nem uma vez? – O Mats Hedin parece estar a criticar-me. Insolente.

– Eu faço um esforço para não estar sempre a telefonar à Isabelle. Ela não gosta disso. Tem uma vida independente em Estocolmo e eu respeito isso. Pensei que pudesse estar com o namorado e não quis incomodá-la.

Agora estou a chorar. Estou tão preocupada. A choramingar para o telefone.

– Apesar de ela ter sido outra vez assediada pela mesma pessoa contra quem apresentou queixa à polícia?

– Não percebo porque está a falar com esse tom acusador. O que fiz eu de errado? Faça o que fizer, é errado.

– Ninguém está a acusá-la, Kerstin – diz o Mats Hedin. – Como se chama o namorado dela?

– Fredrik. Fredrik Larsson. Acho que são da mesma turma.

Ele fica algum tempo em silêncio. Depois, pede-me que o contacte se descobrir alguma coisa. Interrogarão já a Stella Widstrand. Eu pergunto porque ainda não o fizeram. Porque ainda não a prenderam.

– Este caso é prioritário, estamos a levá-lo muito a sério – tranquiliza-me outra vez o Mats Hedin. – Mas não podemos prender uma pessoa sem provas.

Eu não digo nada. Não adianta.

Estou-me a marimbar para as provas. Nunca me ajudaram quando eu precisei. Nunca me levaram a sério. Tive de fazer justiça pelas próprias mãos. Como sempre.

O Mats Hedin diz que também contactarão o namorado e que me darão notícias mais tarde.

Eu choro, agradeço-lhe e digo outra vez que estou muito preocupada. Depois desligo. Não tenho mais tempo para isto. Tenho outros assuntos para tratar.

O namorado. Aquele Fredrik nunca será namorado da Isabelle. Li as mensagens que enviou para o telemóvel dela. Todas. Li as respostas dela. Estou a par de tudo. Todas as coisas nojentas que ele lhe quer fazer. Como ela anseia por fazer-lhe coisas nojentas. É tão asqueroso que me dá vontade de vomitar.

Eu vi as fotografias que ela enviou. Fotografias indecentes. Oferece-se como uma prostituta. Tenta excitá-lo. E é evidente que ele fica excitado. Ele não o diz, claro. Diz-lhe que ela é muito bonita, que tem saudades dela, que anseia por estar com ela. Aquilo que ele anseia sei eu. Eu vi a cama desarranjada. Sabe-se lá o que andam a fazer.

Ela não compreende as forças do mal com que está a lidar. Apesar do que eu lhe disse, apesar de todas minhas advertências, não aprendeu nada.

Os homens só querem uma coisa. Começam com falinhas mansas, promessas e sorrisos meigos. Depois, aproveitam-se daquilo que querem e preferem fazê-lo com violência.

Aproveitam-se das mulheres uma e outra vez, aproveitam-se com violência.

Depois, abandonam-nas.

Deixam-nas deitadas inconscientes em cima do próprio sangue.

A única coisa que lhes interessa é o corpo delas.

Aquilo que têm entre as pernas.

Querem desonrá-las e conspurcá-las.

Arrancar-lhes a vida.

Depois de as usarem, deitam-nas fora.

Querem fodê-las.

Violá-las.

Obrigá-las mesmo que elas não queiram.

Bater-lhes na cara, cuspir-lhes.

Chamar-lhes rameira, chamar-lhes puta.

Chamar-lhes prostituta.

E dói. Dói tanto que nós gritamos.

Até perdermos as forças.

Ficamos feridas.

Sangrando sem parar.

Pagamos o sofrimento com sangue.

Nunca compreenderei como é que uma coisa tão odiosa, vergonhosa e perversa pode gerar um bebé. Uma boneca que embalamos, que é só nossa.

A coisa mais delicada e mais bela do mundo.

Minha querida e doce Isabelle.

Se tu soubesses aquilo em que estavas a meter-te.

Mas estás desorientada e confusa.

Estás envenenada.

Estás fraca.

Pensas que é amor, pensas que é uma coisa bonita.

Deverias estar grata por eu te salvar, por eu te proteger.

Deverias estar grata por eu ser a tua mãe.