Stella

A entrada em frente à casa está deserta. Não paro e sigo pela Faluvägen. Passo por algumas casas e aproximo-me de uma fábrica abandonada do outro lado da rua. Encosto à berma e paro. Depois faço inversão de marcha e percorro o caminho de volta para a casa.

Mais uma vez não paro e viro para um estreito caminho de terra à direita. Estaciono e desligo o motor. Tenho um vislumbre da casa por entre as árvores. Talvez deva chamar a polícia, afinal de contas. Mas depois do encontro da manhã, sei que é inútil. Eu sou a suspeita e estou proibida de estar aqui. Saio do carro, caminho por entre as árvores e continuo na direção da casa.

Paro atrás de um abeto frondoso e espreito pelo meio dos ramos. A casa parece deserta.

Os cortinados estão fechados e as persianas para baixo.

Atravesso o relvado, subo as escadas até à porta de entrada e toco à campainha. Não funciona. Bato com os nós dos dedos, encosto o ouvido e ponho-me à escuta. Rodo o puxador e tento abrir a porta. Está trancada. Volto a descer as escadas e olho para a janela da cozinha, onde as persianas estão apenas meio fechadas. Subo para uma velha máquina de lavar louça que está por baixo da janela, encosto-me ao vidro e espreito para dentro. Mesa e cadeiras, um tapete de plástico às riscas no chão.

Contorno a casa e chego a um pátio nas traseiras. Uns corvos esvoaçam e o seu crocitar frenético deixa-me hirta de medo. Está um saco de lixo preto ao lado da porta das traseiras. Está cheio de embalagens de ovos, latas vazias e restos. Dirijo-me para a porta de vidro e espreito pela frincha entre as compridas cortinas. Vejo a cozinha e, adjacente, uma divisão com as paredes castanhas. Uma secretária tombada.

Ela tem papéis. Na secretária. Vou ver.

Pego no telemóvel e marco o número. Consigo ouvir o telefone a tocar dentro da casa, mas ninguém atende.

Procuro alguma coisa pesada para atirar contra a porta de vidro e encontro um tijolo. Olho à minha volta e depois atiro-o para um ponto perto do puxador. O barulho do vidro a partir quebra o silêncio. Sustenho a respiração, mas não aparece nenhum vizinho antes de eu conseguir meter o braço, rodar o ferrolho e abrir a porta.

Entro na cozinha, fico imóvel e escuto. Ouço água a gotejar algures. Olho à minha volta. Vejo um balde de plástico amarelo ao canto. Há uma infiltração de água no teto.

Em cima do balcão da cozinha, estão diversas embalagens de medicamentos. Pego neles e leio: Zoloft, Omeprazole, Zopiklon, Nozinan.

Avanço até à divisão ao fundo da cozinha e acendo a luz do teto. Alguém perdeu as estribeiras aqui. Uma estante está tombada, as outras vazias, os livros espalhados pelo chão. Está uma mesa ornamental de pernas para o ar encostada à parede. Na ponta mais afastada da secretária, encontra-se um candeeiro com o quebra-luz de vidro partido. Está tombado ao lado da porta entreaberta de um armário. Agacho-me e abro a porta. O armário está vazio. Levanto-me outra vez e perscruto a divisão. No chão onde a estante estivera, veem-se cordões de pó, compridos e cinzentos, como peles de serpente depois da muda. Levanto o candeeiro e vejo um iPhone meio escondido debaixo de um livro. Pego nele e ativo-o. Surge a imagem de fundo.

A Alice.

Tem os olhos fechados e está a rir. Um tipo loiro está a beijar-lhe o pescoço. Tento desbloqueá-lo, mas preciso do código. A bateria está fraca e o telefone quase a desligar-se. Pouso-o na prateleira. Estão algumas fotografias espalhadas pelo chão. Apanho uma. No verso diz: Kerstin e Isabelle, Copenhaga, fevereiro de 1994. Antes de ter tempo para a ver, ouço uma voz nas minhas costas. Meto a fotografia no bolso do casaco e viro-me. Na soleira da porta, está uma mulher de cabelos ruivos. Passa os olhos pela barafunda e depois olha para mim muito séria.

– Posso perguntar quem é a senhora?

Avanço alguns passos para ela e estendo-lhe a mão. Ela não a aperta.

– Stella Widstrand – digo, e baixo a mão. – Procuro a Kerstin Karlsson. Dei a volta pelas traseiras e reparei que houve um arrombamento.

A mulher observa-me dos pés à cabeça. Perceberá que estou a mentir? Talvez tenha ouvido o vidro a partir.

– Viu aqui mais alguém? – pergunto.

A mulher baixa-se e apanha do chão um boneco de porcelana. Um veado sem pernas. Pousa-o na estante e olha para mim. Escuto o tique-taque de um relógio de pêndulo na parede. Estou à espera de que ela me diga que vai chamar a polícia.

– Chamo-me Gunilla, sou a vizinha da Kerstin – diz a mulher. Estende-me a mão e cumprimentamo-nos. – Não sei se foi um arrombamento. A noite passada ouvimos barulhos horríveis vindos daqui. Gritos e berros. Eu quis chamar a polícia, mas o Nils achou que não deveríamos interferir.

– A noite passada? – digo. Deve ter sido depois de eu ter telefonado à Alice.

– Vi-a toda a manhã numa correria entre a casa e o carro com aquela gabardina horrível que ela usa sempre. A meter sacos e malas lá dentro.

– Para onde ia?

– Não perguntei. A Kerstin não gosta de conversar. Acha que estamos a bisbilhotar.

– É uma pena – digo. – Queria mesmo falar com ela.

– Acho que ela não anda bem – diz a Gunilla. – Dá para perceber só de olhar para ela. Fala sozinha. Mete-se dentro de casa com as cortinas fechadas. E tem faltado ao trabalho. Tem sido assim desde que o marido, o Hans, morreu na primavera passada.

– Que pena – digo. – Onde é que ela trabalha?

– Trabalhava – diz a Gunilla e sopra o ar pela boca. – Constou-me que foi despedida do lar de terceira idade de Hallsjo. Conheço pessoas que estão lá, sabe?

– Onde é que isso fica?

– Aqui perto. – Aponta. – Segue um pouco pela Faluvägen e depois vira à direita na Hemgatan. Tem um letreiro. Não há que enganar.

– Obrigada – digo passando por ela e saindo para o pátio. Conforme atravesso o caminho, ela sai da casa e chama-me.

– Olhe! Já vai embora?

Apresso-me a ir para ao carro. A Gunilla grita que não quer que eu vá embora. Meto-me no Audi, ligo o motor e recuo para a Faluvägen. Depois, telefono ao Henrik, que atende ao primeiro toque. Pergunta-me o que está a acontecer. Digo-lhe que não cheguei a tempo e que a casa estava em pantanas. Encontrei medicamentos e temo pelo que a Kerstin fez à Alice.

O Henrik acha que eu devo telefonar já à polícia. Contactou um advogado e proíbe-me de correr mais riscos.

– Preciso só de tirar uma coisa a limpo – digo e desligo.