Isabelle
O quarto está mais escuro do que antes. Mal consigo distinguir as coisas e, apesar do blusão e do cobertor, estou a tremer de frio. O calor do forno a lenha não chega aqui, mas prefiro estar neste sítio a estar na mesma divisão que ela.
Ela chorou no funeral do papá. Como conseguiu, se foi ela que o matou? Não sei quem ela é. O que ela é. E não sei que planos tem para mim.
Se me restassem forças, resistiria. Debater-me-ia. Tentaria fugir outra vez. Mas não me restam forças.
As coisas voltarão a ser como dantes se eu disser que sou filha dela? Se eu fingir que o meu lugar é junto dela e de mais ninguém?
No escuro é fácil ouvir coisas. Pareceu-me ouvir um coro de vozes. Centenas de pessoas a murmurar e a cantar. Demorei algum tempo a perceber que devem ser as ondas.
Depois, imaginei um carro a aproximar-se. E ouvi um cão a ladrar. Pensei na Stella, em como ela nunca desiste. Pensei que talvez fosse ela a vir buscar-me. A minha verdadeira mãe. Rastejei até à parede, encostei o ouvido e escutei, mas só ouvi a minha própria respiração e o bater do coração.
Senti-me zangada comigo mesma. Desiludida. É meu costume fantasiar, refugiar-me nos sonhos, inventar coisas para me sentir um pouco melhor. A Stella não faz ideia de onde eu estou e não vai aparecer para me salvar. Ninguém virá salvar-me. Nem o Fredrik. Ele não me encontrará aqui.
Estou sozinha.
Quando penso no Fredrik, consigo imaginar como seria o resto da minha vida. Uma vida preenchida de pessoas maravilhosas. Seria engenheira civil e teria um emprego aliciante e bem remunerado. Teria casado com o amor da minha vida e sido feliz. Teríamos viajado, visto o mundo juntos. Teríamos filhos, um menino e uma menina, talvez.
Nada disso acontecerá.
Estou sozinha e ninguém sabe onde estou.
Os meus amigos estão preocupados, a polícia procura-me, mas o tempo está a esgotar-se. E eu desapareci sem deixar rasto. Talvez apareça nos noticiários durante algum tempo. Na televisão, nos jornais, na internet. Mas nunca serei encontrada.
Perdida, para sempre.
Uma luz difusa passa por debaixo da porta. Estive outra vez a dormir.
Ouço a voz dela.
Distante e ténue, mas ouço. A Stella está aqui. Veio buscar-me. Não desistiu, continuou a procurar.
Mas também ouço a voz da mamã. Gélida e desdenhosa. Noto a raiva em crescendo no seu tom.
A porta abre-se. Não me atrevo a olhar. Espero.
A Stella pergunta à mamã o que me fez. Triunfante, a mamã responde que eu lhe pertenço.
Afasto o cabelo e levanto a cabeça. A Kerstin está a agarrar o braço da Stella com força. Detesto quando ela faz isso, quando crava as suas unhas na nossa carne.
E empunha uma faca. A mesma faca que atirou contra mim. Liberta a Stella, caminha até mim e obriga-me a levantar-me.
– Estás ferida? – pergunta a Stella, parecendo consternada.
– O sangue não é meu. É…
– Estás acordada, querida? – interrompe a Kerstin. – Anda. Temos café e queques.
A Stella cerra os punhos, como se tivesse vontade de avançar e atirar-se à mamã.
Mas não: a Kerstin não é a minha mãe. Nunca foi. Nunca mais a tratarei por esse nome.
Quero alertar a Stella para não fazer alguma coisa precipitada, avisá-la de que a Kerstin é imprevisível e mais perigosa do que ela possa supor.
Não vês aquele brilho nos olhos dela?
Tento fazer com que a Stella compreenda olhando-a com a maior intensidade que consigo. E ela percebe. Acena-me ao de leve com a cabeça, o que significa que percebe o que eu quero dizer.
Enquanto transpomos o corredor, eu apoio-me na Kerstin. Olho de relance para a faca que leva na mão, mas ela está a agarrá-la com a força de um torno. Um aviso.
Voltamos para a cozinha. Há candeeiros de querosene aqui e além, mas a luminosidade é difusa. Lá fora, por cima do oceano, a lua cheia paira como uma moeda de prata fosca. A Stella está sentada à mesa diante de mim. A Kerstin pousa uma chávena de café à frente de cada uma de nós. Senta-se e observa todos os movimentos da Stella.
Eu não bebo o café. Demorei demasiado tempo a perceber que ela andava a drogar-me. Sempre que comia, sempre que bebia. A Stella também não deve beber. Se o fizer, nenhuma de nós sairá daqui.
Seguro a chávena nas mãos. Quando a Kerstin se levanta para ir buscar o recipiente com o açúcar, dou umas palmadinhas na chávena e faço uma careta. A Stella olha para a sua chávena e afasta-a. Forma com os lábios uma pergunta silenciosa: Estás bem?
Assinto com a cabeça, mas não consigo conter as lágrimas. Limpo a cara com um movimento desajeitado. A Stella estica o braço para me pegar na mão.
– Para com isso! – grita a Kerstin. O almofariz de mármore bate com estrondo na mesa perto da mão da Stella.
– Bebe – ordena a Kerstin. – Bebe o café. – Põe umas velas na mesa e senta-se, segurando a faca à sua frente. – Quero dar-te uma oportunidade de corrigires todo o mal feito, Stella.
– O que devo fazer? – diz ela.
– Pedir-lhe perdão – responde a Kerstin, apontando para mim com a cabeça.
– Perdão?
– Pede-lhe perdão por seres uma mãe indigna. Aproveita esta oportunidade, enquanto podes.
A Stella não responde. Em vez disso, levanta-se devagar, pega numa vela e vai até junto da parede. A Kerstin não a perde de vista por um segundo. A Stella segura a vela diante de um recorte de jornal emoldurado. Uma fotografia ocupa a metade de cima da folha: um homem sorridente com um edifício por detrás. O alpendre nas suas costas está apinhado de flores.
– É o teu pai, não é? – A Stella vira-se e volta a pousar a vela. – O Roger Lundin. Ele sabia o que fizeste e ia contar à polícia, mas morreu antes de ter tempo de o fazer.
– Era um traidor – diz a Kerstin. – Um bêbedo, tal como a minha mãe. Nunca deveria ter-me separado da minha menina. Ela não precisava de ser enterrada. E graças a Deus que voltou para mim.
Do que está a falar? Quem é essa menina e porque foi enterrada? E de que forma estou relacionada com isso?
A Stella remexe no bolso das calças de ganga. Tira de lá uma coisa e pousa-a na mesa à frente da Kerstin.
– É esta a tua filha? É esta a Isabelle?
Vejo a fotografia que encontrei no armário debaixo da secretária lá de casa. Não percebo como foi parar às mãos da Stella.
A Kerstin olha para a fotografia.
– A verdadeira Isabelle – diz a Stella, baixinho. – A tua filha.
– A minha bebé – diz a Kerstin. – A minha querida menina.
– A tua menina, Kerstin. Não a minha. Não a Alice. Esta é a verdadeira Isabelle, não é?
A Kerstin olha inquisitivamente para a Stella.
– A verdadeira Isabelle – diz, apontando para mim com a faca – está ali sentada.
– Eu não me chamo Isabelle – digo. – E deveria ter crescido com a Stella. Tu roubaste-me à minha mãe. Roubaste-me a vida.
A Kerstin vira-se para mim.
– Isso não é verdade. Agora estás a dizer mentiras – murmura.
– Tu é que estás a mentir. Mentes sempre. Nada daquilo que dizes é verdade. Nada. Toda a minha vida é uma enorme mentira. Cresci com uma psicopata. Uma assassina.
– Eu amo-te, Isabelle – suplica a Kerstin –, mas tu nunca me amaste. Oh, como eu tentei, como eu me esforcei para fazer o melhor por ti.
A Stella tira uma pedra do bolso. Atira-se à Kerstin e faz pontaria à cabeça dela. A Kerstin desvia-se e desfere um golpe com a faca no braço da Stella, que solta um grito e larga a pedra. Agarra-se ao braço e fita a Kerstin com um ar furioso.
A Kerstin põe-se nas minhas costas e encosta a faca ao meu pescoço.
O gume afiado desliza pela minha pele.