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Banqueiros, especuladores e visionários
Encerrado o expediente de 31 de dezembro no banco Morgan, repetia-se do lado de fora do prédio do número 23 de Wall Street, esquina de Broad Street, sede da instituição, a rotina de todos os dias úteis do ano. Uma longa fileira de limusines pretas, com para-choques e frisos cromados e seus choferes uniformizados ao volante, aguardava os sócios da casa. Era uma fila cuidadosamente organizada. O primeiro carro destinava-se a Jack Morgan, presidente do banco. Logo atrás ficava a limusine de Thomas Lamont, segundo em hierarquia na firma. O terceiro carro servia ao terceiro homem e assim por diante. Para que pudessem se alinhar desse modo preciso, a chegada das limusines ao local era uma operação logística minuciosa e cronometrada.
Antes de sair para pegar seu carro, Jack Morgan examinara planilhas com detalhamento do lucro do ano que se encerrava. Do total, Jack ficaria com 50%, sendo o restante dividido entre os demais sócios, levando em conta o desempenho, a posição hierárquica e o tempo de casa de cada um deles.
O processo de seleção dos sócios do Morgan, concebido pelo patriarca da família, Junius Spencer Morgan (1813-1890), e ligeiramente alterado por seu filho e pai de Jack, John Pierpont Morgan (1837-1913), não admitia o ingresso de judeus nem de homens divorciados na sociedade, por mais brilhantes que fossem. A casa escolhia seus próprios clientes, convidava-os a abrir uma conta e dificilmente uma pessoa ou empresa recusava a oferta, considerada uma distinção.
No rosto de Jack Morgan, agora com 62 anos, o bigode prateado contrastava com as sobrancelhas negras. No vestir ele imitava seu grande amigo, Edward, o príncipe de Gales, a quem convidava todos os anos para uma temporada na cabana de caça que Jack possuía na Escócia, ocasião em que os dois caçavam galos e gansos silvestres nos campos e colinas de Gannochy. Não raro toda a família real britânica participava desses eventos esportivos.
A fortuna pessoal de Jack Morgan era calculada em 500 milhões de dólares. Mas isso era apenas um palpite. Jack, que detestava qualquer tipo de publicidade, jamais divulgaria o valor de seus bens.
Quinhentos milhões ou não, o certo é que nesta noite de fim de ano, com a distribuição dos lucros do banco, o número teria um aumento considerável.
Após ter concluído que os cálculos das planilhas de resultados estavam corretos, Jack Morgan levantou-se de sua mesa tendo em mãos diversos envelopes. Cada um deles continha um cheque correspondendo aos bônus dos sócios. Morgan fez questão de distribuí-los pessoalmente aos parceiros, indo de escrivaninha em escrivaninha. Só então desceu para pegar sua limusine. Sempre em ordem hierárquica de cima para baixo, os sócios desceram em seguida. Quando chegavam à calçada, o carro de cada um acabara de parar em frente ao prédio, no qual não havia nenhum letreiro indicando ser ali o banco. Apenas uma placa com a inscrição “1914”, ano em que o edifício fora inaugurado.
Na outra extremidade do continente, na Costa Oeste, o dia ainda estava claro por causa da diferença de três horas de fuso horário. Com luzes e sirenes ligadas, o Rolls-Royce de Amadeo Peter Giannini, dirigido por Joe Garcia, percorria em alta velocidade uma estrada de terra, erguendo em sua cola uma nuvem de pó. No banco traseiro, sem se perturbar com os sacolejos causados pelos buracos do caminho, Giannini estudava relatórios de seus bancos.
Jack Morgan era o banqueiro mais importante do mundo
Década de 1920
Latinstock/© corbis/Corbis (DC)
Giannini e Garcia haviam passado o dia todo percorrendo bairros de São Francisco, além de subúrbios da cidade e vilarejos próximos, tendo engolido sanduíches às pressas na hora do almoço. Em cada um dos lugares visitados, A. P. Giannini inspecionara agências da Transamerica. Agora, com o pôr do sol avermelhando o horizonte, o chofer lembrou ao patrão que este teria de presidir o jantar de fim de ano da família.
Naquele 31 de dezembro de 1928, o patrimônio de Giannini valia 250 milhões de dólares. Suas companhias tinham 75 mil acionistas. Isso não o impedia de continuar morando com sua mulher, Clorinda, quatro anos mais velha que o marido — 62 e 58 — e dois dos cinco filhos do casal, na mesma casa modesta de dois pavimentos de San Mateo, onde viviam havia anos. Dentre os filhos se destacava Claire, a caçula, agora com 23, por causa de sua forte personalidade e de sua vocação para os negócios.
Entre as celebridades que confiavam a Giannini suas aplicações financeiras estavam os atores Charlie Chaplin, Douglas Fairbanks e Mary Pickford.
Amadeo não gostava de retirar dinheiro de suas empresas para uso próprio. Resistia tenazmente às sugestões de Claire de que deveria se vestir como os outros banqueiros bem-sucedidos. Recusou-se a fazer um terno sob medida mesmo quando visitou o papa, o presidente eleito Hoover e o ditador italiano Benito Mussolini. Por outro lado, era pródigo em doações. Naquele final de 1928, por exemplo, dera 1,5 milhão de dólares — o que significava boa parte de seus recursos pessoais — para programas de pesquisa de agricultura da Universidade da Califórnia.
Claire estava preocupada naquela noite, e não era por causa dos negócios da família. Ela adquirira uma baixela de prata para ser usada no jantar comemorativo da passagem do ano, em substituição às travessas arranhadas e manchadas usadas na mesa desde a época em que era criança, e temia que o pai a repreendesse pelo que poderia achar um desperdício. Mas nada aconteceu, pois ao chegar em casa ele não reparou na prataria nova.
Desde pequena, quando seu pai percebeu sua inclinação para os negócios, Claire fora educada para assumir algumas das funções dele. Mais tarde, já adolescente, enquanto suas amigas se interessavam por festas, namorados e roupas, ela passava boa parte do tempo estudando balanços e estatutos de empresas.
O mobiliário da casa, comprado em 1905, ano em que Claire nasceu, apresentava sinais crescentes de desgaste. O mesmo acontecia com as cortinas e tapetes. Certa ocasião Claire sugeriu reformar a sala de jantar usando um argumento óbvio:
“Mas, papai, você ganha tanto dinheiro.”
“Para os outros, querida. Para os outros.” A. P. Giannini pôs um ponto final na questão. “O dinheiro é dos correntistas e dos acionistas dos bancos.”
O jantar chegava ao fim, quando Amadeo notou a prataria.
“Muito bonita”, ele disse para Claire. “Mas vai precisar de polimento constante. Esse trabalho será seu.”
Um repórter telefonou, querendo saber de Giannini qual eram suas previsões para 1929.
“Vai ser um ano difícil”, o banqueiro respondeu. “Se essa jogatina descontrolada com ações continuar, teremos sérios problemas.”
Se para Amadeo Peter Giannini o mercado de ações era uma jogatina descontrolada, para Michael Meehan, o especialista da Radio no pregão da Bolsa de Nova York, era meio de vida e de enriquecimento fácil. A sociedade corretora de Meehan tinha oito assentos na Bolsa, quatrocentos empregados e uma folha de pagamentos de 600 mil dólares.
Naquela passagem de ano, Michael Meehan também fez uma declaração aos jornais: “O dinheiro existe para ser gasto.”
Mas não na aparência pessoal, poderia se afirmar.
Baixinho, com uma barriga protuberante e arredondada, consequência do pecado da gula, Meehan usava pesados óculos de aço. O especulador parecia mais velho do que os seus 38 anos. Era displicente no vestir, usando ternos, camisas e gravatas baratos. O colarinho, sempre frouxo, destacava seu saliente pomo de adão.
Durante o ano que se encerrava, Michael Meehan ganhara 25 milhões de dólares com as ações da Radio. Mas isso era passado. Ele agora estava preocupado com a organização de um pool, uma puxada nas ações da Anaconda Copper, que pretendia executar em 1929. Para tanto esperava contar, entre outros, com gigantes como Percy Rockefeller, os irmãos Fisher e John Jakob Raskob, que ainda não sabiam de nada. Seria o pool mais audacioso da história, com um investimento inicial de 300 milhões de dólares.
Enquanto bebericava um uísque, Meehan não tinha outro pensamento a não ser a Anaconda.
O corpulento e pescoçudo Richard Whitney, vice-presidente da Bolsa de Nova York, talvez fosse o homem mais impopular que já exercera o cargo. Ninguém o suportava. Como se não bastasse, Whitney era incompetente em suas funções e desastrado em seus negócios particulares, além de ser um esnobe intragável. Só conseguia se manter no cargo graças à influência de seu irmão, George, um dos sócios da Casa Morgan. Sem contar que a Morgan executava grande parte de suas ordens na Bolsa através da sociedade corretora de Whitney, a Richard Whitney & Co.
Quando o mercado de ações se comportava em zigue-zague, Whitney caminhava em “zague-zigue”. Se o reinado pertencia aos touros, ele vestia a pele do urso e vice-versa. Suas perdas eram invariavelmente cobertas por empréstimos que seu irmão George lhe concedia. No ano que se encerrava, Richard Whitney acumulara 590 mil dólares de prejuízos em suas especulações.
A despeito de seus fracassos, a grande ambição de Whitney era assumir o lugar de Edward Henry Harriman Simmons na presidência da Bolsa.
Ninguém em Wall Street, e talvez em todo o país, tinha um plano tão ambicioso para 1929 quanto John Jakob Raskob. Além de suas atividades no mercado de ações, Raskob pretendia iniciar o projeto e a construção do maior arranha-céu do mundo, com 102 andares e 443 metros de altura. Para tanto, ele tinha a intenção de comprar o hotel Waldorf-Astoria, na esquina da Quinta Avenida com a rua 34 Oeste, e demoli-lo.
Até aquela noite de 31 de dezembro, Raskob guardara seu plano em segredo. Mas agora iria revelá-lo para William Lamb, um dos arquitetos mais reputados da cidade, a quem Raskob pretendia encarregar do projeto. Lamb era o queridinho dos especuladores. Construíra o novo escritório de Jesse Livermore e mobiliara o apartamento de Billy Durant.
John Raskob, homem dos mais excêntricos, detestava fumar, apesar de seu pai ter sido um bem-sucedido fabricante de charutos na Alsácia. Raskob recusava-se a dirigir automóveis, além de não gostar de andar neles, mesmo sendo proprietário de dois Cadillacs. Tinha o hábito de percorrer a pé as ruas de Manhattan. Nessas ocasiões um motorista, ao volante de um dos Cadillacs, seguia ao lado do patrão, perturbando o tráfego com sua vagareza.
O convite a William Lamb ocorreu na suíte do Carlton Hotel, onde John morava a maior parte do tempo, embora Helena, sua mulher, vivesse em Wilmington, Delaware, com os onze filhos do casal, na luxuosa Archemere, a mansão dos Raskob situada no centro de um enorme e magnífico terreno às margens do rio Delaware. A família tinha também um haras em Pioneer Point, Maryland.
Por mais que Lamb soubesse das excentricidades de Raskob, jamais poderia imaginar que o milionário lhe convidaria para planejar um edifício de 104 andares. John Jakob fez com que William Lamb fosse caminhando com ele — seguidos por um dos Cadillacs — até a esquina onde o prédio seria erguido.
“O hotel vai ser derrubado. Você vai providenciar isso. E no lugar vai construir o arranha-céu mais alto do mundo”, Raskob disse, sem mencionar custos e sem perguntar ao outro se aceitava ou não a empreitada, pois em nenhum momento lhe ocorreu duvidar disso.
Os dois entraram no hotel, cujos salões e restaurantes estavam engalanados para abrigar diversos eventos, inclusive bailes à fantasia que iriam acontecer ali naquela noite de réveillon, sem contar algumas orgias em suítes exclusivas dos andares mais altos.
Desde 1893, quando ficou pronto, o Waldorf tornara-se o ponto mais chique da cidade de Nova York. E agora John Jakob Raskob pretendia derrubá-lo, pois sabia de fontes confiáveis que os donos do estabelecimento tinham a intenção de vendê-lo para fazer um projeto novo mais ao norte de Manhattan.
John J. Raskob já tinha até escolhido um nome para o arranha-céu: Empire State Building.