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Liga de Cavalheiros

O National City Bank, de Charles Mitchell, com sede em Nova York, tornara-se o maior do país. Já vendera ao público americano 15 bilhões de dólares em títulos. Só em 1928 os salários de Mitchell, somados às suas participações nos lucros do banco, haviam atingido a soma fantástica de 1.316.634,14 de dólares. E ele achava que 1929 seria um ano ainda melhor.

Em questões de política monetária, Mitchell se julgava tão importante quanto os conselheiros da Reserva Federal, não escondendo de ninguém, muito menos da imprensa, a avaliação que fazia de si próprio. Agora, em fevereiro de 1929, o banqueiro estava revoltado com a decisão da Reserva de recomendar aos bancos diminuir os empréstimos às sociedades corretoras das bolsas, para desinflar um pouco a bolha no mercado de ações. Com efeito, a recomendação provocara uma queda de 21 pontos no índice da Bolsa de Valores de Nova York.

Tendo descoberto que Billy Durant estava em Flint, e sabendo que ele e o presidente eleito Herbert Hoover eram amigos pessoais, Mitchell telefonou para o especulador e pediu-lhe que alertasse Hoover de que o FED estava tentando matar a galinha dos ovos de ouro. Durant prometeu ajudá-lo. Afinal de contas, boa parte de suas operações especulativas com ações passava pelo National City.

Da janela de sua suíte no Hotel Durant, um dos diversos estabelecimentos da cidade que levavam seu nome, Billy via o Union Industrial Bank do outro lado da rua. Era um prédio em estilo clássico, com quinze andares, arcos no térreo e duas torres de aço no terraço sustentando antenas de rádio. Certa vez, Charles Mott, da General Motors e chairman do Industrial, o convidara a investir no banco. Mas Durant declinou do convite. Já ouvira dizer que Mott pouco se interessava pela instituição, raramente indo lá e deixando para outras pessoas a condução dos negócios.

Na segunda-feira, 4 de março de 1929, Herbert Hoover tomou posse em Washington, tornando-se o 31o presidente dos Estados Unidos. Em seu discurso inaugural enfatizou a imposição da lei. Era um tema bem apropriado. As cidades da América estavam se tornando cada vez mais violentas.

Em Chicago, Nova York, São Francisco e Detroit grupos rivais de gângsteres guerreavam pelo controle do comércio ilegal de bebidas alcoólicas. A luta pelo cumprimento da Lei Seca estava sendo perdida em todas as frentes; o governo federal acabara de anunciar a demissão de 706 agentes por aceitarem subornos dos proprietários de speakeasies. Estimava-se que Al Capone, o bandido número um de Chicago, em cuja folha de pagamento constavam policiais, juízes e políticos, tivera uma renda líquida de 25 milhões de dólares em 1928.

Uma das primeiras ordens do presidente Hoover foi a de quebrar o domínio de Capone naquela cidade. Isso seria feito por agentes do Tesouro, que os próprios bandidos e a opinião pública apelidariam de Os Intocáveis.

Burlar a Lei Seca não era a atividade mais danosa ao país. Nesse quesito, os gângsteres perdiam feio para os magos de Wall Street. Os banqueiros especulavam na Bolsa com o dinheiro de seus depositantes, como fazia a National City Company, de Charles Mitchell. Havia também os pools, puxadas organizadas pelos grandes mestres da manipulação de cotações.

Em cada fusão e aquisição de empresas os insiders (detentores de informações privilegiadas) ganhavam uma fortuna. Assim como ganhavam fortunas aqueles que emitiam papéis artificiais de holding companies, cuja única função era possuir outras holding companies sem que nenhum dos imprudentes gananciosos que compravam as ações dessas empresas soubessem o fim que a elas se destinava. Sabiam apenas que seus preços subiriam, o que de fato já vinha acontecendo. Portanto, estavam todos felizes: gângsteres, banqueiros, corretores e operadores de ações e especuladores. Quase ninguém perdia dinheiro.

A bolha inflava, mas ainda tinha muita resiliência.

Sempre empurrando o carrinho de sua irmã menor, Margaret, Jolan Slezsak percorria uma das plataformas da estação ferroviária de Flint para ver a partida do expresso noturno para Nova York. Apesar de jamais ter feito a jornada do trem, ela conhecia a rota de cor: Detroit, Toledo, Youngstown, Pittsburgh, Washington, Baltimore, Filadélfia e, finalmente, o terminal da Grand Central, em Nova York. Um dia, pelo menos era o que sonhava, ela faria isso. Só tinha 15 anos e muita coisa ainda iria acontecer em sua vida.

Desta vez Jolan estava tendo de lidar com um imprevisto. Uma das garrafas de gim colocadas no fundo falso do carrinho se quebrara e o líquido pingava no chão, deixando um rastro no caminho, fora os vapores etílicos que emanavam da pequena Margaret. Como a garotinha estava muito feliz e ria à toa, Jolan suspeitava que ela tivesse se embebedado com os eflúvios da bebida.

Só faltava um agente da Lei Seca surgir por ali, sentir o cheiro do gim e fazer uma revista no carrinho. Mesmo assim, Jolan decidiu ficar na plataforma. Ela simplesmente não resistia à tentação de mais uma vez curtir o calor da caldeira da locomotiva, aspirar o aroma do carvão e da fumaça e ver o trem partir, o que aconteceria logo, pois os últimos passageiros estavam embarcando apressadamente.

Jolan Slezsak acabou reconhecendo um deles. Tratava-se de Billy Durant, cuja fotografia ela já vira várias vezes nos jornais que forravam o chão da destilaria de sua casa. Só que ele era muito mais baixo do que ela imaginara, talvez devido ao contraste com os homenzarrões que conduziam sua bagagem.

A menina se roeu de inveja ao ver que Durant dera um quarto de dólar para cada carregador. Em poucos segundos ele distribuíra mais dinheiro para aqueles homens do que o seu padrasto lucrava em uma noite inteira de trabalho destilando bebidas.

Assim que o expresso partiu, Jolan não quis dar mais chance ao azar e, em vez de completar a rota de entrega daquela noite, optou por voltar para casa. No caminho, passou pelo Union Industrial Bank. Imediatamente ela se lembrou dos quatrocentos dólares deixados por seu pai. Fechou os olhos e conseguiu ver o dinheiro na gaveta de um cofre do subsolo. Seu padrasto lhe explicara que todos os dias alguns centavos eram acrescentados à poupança. Ainda de olhos fechados, Jolan viu pennies, nickels e dimes caindo sobre as notas de dólar.

Jolan não entendia por que o banco, além de tomar conta de seu dinheiro, ainda acrescentava mais algum. “Se eles fazem isso com todo mundo”, ela pensava, “como é que conseguem ter lucro?”.

Todas as luzes da sede do Union Industrial Bank estavam acesas. Jolan se aproximou de uma das janelas do térreo. Ficou impressionada com o tamanho e a imponência do saguão e com o brilho dos boxes gradeados dos caixas. “Por que será que eles não apagam as luzes já que não há ninguém lá dentro?”, ela se perguntou. Dar dinheiro para as pessoas, desperdiçar eletricidade, “seu” banco era mesmo maluco.

Jolan Slezsak retomou o caminho de casa sem ter a menor noção de que na sala do Conselho do Union Industrial, nos fundos do andar térreo e revestida de paredes de carvalho, quinze homens se reuniam ao redor de uma mesa polida. Um enorme quadro retratando o presidente do Conselho, Charles Stewart Mott, dominava o ambiente.

Se retratos pudessem ver e ouvir, aqueles quinze homens seriam presos. Eram todos executivos, funcionários administrativos, tesoureiros e caixas do banco, supostamente pessoas de confiança da instituição. Eram também os sócios de uma operação de desfalque que subtraía dinheiro das contas dos clientes para aplicá-lo em operações alavancadas na Bolsa de Valores. Em suma, defraudadores.

Entre eles estava Frank Montague, um dos vice-presidentes do Union Bank, homem alto e magérrimo, com a pele empalidecida de um cadáver, que acompanhava atentamente as discussões. Frank não se considerava um ladrão. Segundo sua moral elástica, ele e seus sócios estavam apenas tomando dinheiro emprestado, dinheiro esse que logo seria reposto, uma vez que, segundo o juízo geral, era quase impossível perder dinheiro na Bolsa naqueles tempos de euforia.

Nos últimos anos, Montague contraíra inúmeras dívidas, que ultrapassavam em muito sua capacidade de pagá-las com seu salário. Mesmo assim ele fazia questão de manter o alto padrão de vida de sua mulher, Louise, e de seus filhos. Se por acaso fosse pego, preso, julgado e enviado para uma prisão, sua família passaria necessidade. Por isso, nas últimas semanas Frank Montague não conseguia dormir direito à noite, rolando na cama para lá e para cá.

“Aposto que isso é tensão por causa do trabalho”, deduzia Louise, que não fazia a menor ideia da encrenca na qual o marido poderia estar se metendo.

Já Milton Pollock, um bonitão de 39 anos, vice-presidente do banco e também envolvido nas fraudes, conseguia afastar pensamentos pessimistas. Do contrário, enlouqueceria. Homem de família, tinha sua mulher, Elizabeth, muito doente e filhos pequenos para criar. O tratamento dela consumia todo o seu salário. Foi o desejo de obter dinheiro extra para pagar os remédios que levara Pollock a participar das falcatruas.

Ivan Christensen, tesoureiro assistente do Union Industrial Bank, um homem tremendamente exibido, roubava para manter um estilo de vida que julgava compatível com sua função. Seu salário de 93,75 dólares por semana jamais lhe permitiria pagar as mensalidades dos diversos country clubs que ele e sua mulher, Betty, frequentavam.

O casal se relacionava com a nata da sociedade de Flint. Ela se vestia nas melhores lojas, comprava os sapatos e bolsas mais caros e Ivan só usava ternos e camisas finos. Ivan e Beth haviam construído uma mansão de 75 mil dólares no bairro mais exclusivo da cidade, cujas prestações Christensen pretendia pagar com os lucros da especulação que, tal como seus sócios, fazia com o dinheiro do banco.

Christensen fora o pioneiro do grupo. Desde o início do ano de 1928, ele, trabalhando sozinho, começara a desviar fundos das contas dos clientes para comprar títulos nos mercados de Nova York e de Chicago. Teve sorte de principiante e acumulou alguns lucros. Sentindo-se um profissional, decidiu trocar de lado e tornou-se um urso. Vendeu ações a descoberto e perdeu dinheiro, anulando o ganho inicial. Desde então, não parou mais. Roubar tornou-se uma necessidade para cobrir os rombos pessoais. Tornou-se também um vício.

Em meados de 1928, Ivan Christensen percebeu que outros funcionários e executivos do banco faziam a mesma coisa e o mesmo aconteceu com os colegas em relação a ele. Daí a formarem um clube de investimentos, se é que a quadrilha podia receber tal nome, foi um passo. Referiam-se a si próprios como a Liga de Cavalheiros. No primeiro trimestre de 1929, o montante desviado do Union Industrial Bank pela Liga já passara de 2 milhões de dólares.

Fora também Christensen que sugerira a reunião semanal dos conspiradores, sempre à noite, após os demais executivos e funcionários terem ido embora. Nesses encontros, eles examinavam a carteira de ações da Liga e discutiam novas oportunidades de investimentos.

A presença de John de Camp no grupo fazia os outros relaxarem um pouco. Não sem razão: De Camp era o vice-presidente sênior do banco. Tratava-se também de um aristocrata. Vestia-se com o maior apuro. Do bolso de seu colete pendia um sólido relógio de ouro. Na verdade, ele não precisava ter-se unido àquele clube pois não enfrentava dificuldades financeiras. Casado, pai de quatro filhos, John estava de mudança para uma espaçosa casa na rua mais elegante de Flint, a Circle Drive, sem depender para isso dos lucros da Liga.

John de Camp era ladrão mais por esporte. Certa ocasião, num surto de sinceridade, dissera ao colega vice-presidente, Frank Montague: “O jogo do bull-market me pegou e não sei como parar.”

Curiosamente, tanto John de Camp como Frank Montague eram acionistas do banco que roubavam.

Se havia alguém que não deveria estar ali de modo algum, mas estava, era Robert Brown, um caixa de 29 anos. Robert era simplesmente filho do presidente do banco, Grant Brown, de 56 anos, que não fazia a menor ideia do que acontecia na instituição sob seu comando. Pudera. O senhor Brown passava a maior parte do tempo fora do escritório, viajando e curtindo com sua segunda mulher — a primeira, mãe de Robert, falecera — a vida mundana da alta sociedade do estado de Michigan.

Os demais integrantes da Liga de Cavalheiros eram Elton Graham, o tesoureiro sênior do Union Industrial; Russell Runyon, perito em cálculos e contabilidade, que se encarregava de escamotear as fraudes do grupo adulterando os livros contábeis; e os caixas James Barron, Farrell Thompson, Robert McDonald, George Woodhouse, Clifford Plumb, Mark Kelly, David McGregor e Arthur Schlosser.

Apesar da alta consistente do mercado de ações, a turma da Liga não vinha se dando bem, geralmente comprando quando a Bolsa caía, vendendo quando subia. O mais desastrado de seus integrantes era Elton Graham, que não acertava um palpite sequer, o que gerava profunda irritação em seus comparsas.

Embora supostamente a Liga de Cavalheiros fosse um colegiado, cada um agia por conta própria, seja nos desfalques nas contas correntes, seja nas aplicações na Bolsa. Na reunião daquela noite, por exemplo, que a cada minuto ficava mais tensa, Ivan Christensen anunciou que a conta que abrira numa corretora estava no vermelho em 70 mil dólares. Milton Pollock revelou a mesma coisa, só que num valor menor: 50 mil.

Se um cliente do banco de repente resolvesse sacar seu dinheiro e sua conta fosse uma das adulteradas, imediatamente Runyon fazia uma mágica contábil, desviando recursos de outro correntista. A coisa poderia funcionar assim durante meses e meses a fio, a não ser que surgisse uma auditoria ou então que os prejuízos se avolumassem demais, fora a hipótese de um crash na Bolsa ou de uma corrida bancária, caso em que todos os clientes poderiam querer zerar suas contas ao mesmo tempo.

Havia também empréstimos fictícios, geralmente em nome de pessoas proeminentes, com assinaturas falsificadas em notas promissórias. Era outra fonte de recursos da Liga de Cavalheiros. O dinheiro, supostamente emprestado, era jogado na Bolsa e a promissória ficava como contrapartida nos livros contábeis. O próprio chairman do banco, Charles Mott, e celebridades como Billy Durant, Henry Ford, Joseph Kennedy e George F. Baker, presidente do First National Bank of New York, constavam dessa lista falsa de devedores notáveis.

Apesar do nervosismo natural pelo prejuízo acumulado, os cavalheiros da Liga permaneciam confiantes de que o boom da Bolsa ainda duraria muito tempo e eles não só cobririam os desfalques como sairiam ricos do episódio. Pelos menos é o que afirmavam uns para os outros naquelas “reuniões de Conselho”.

“No final vai dar tudo certo”, repetiam a todo momento, em meio a risadinhas forçadas. “O que a gente precisa é dar uma grande porrada (killing). Temos que nos concentrar nisso.”

O sempre imaginativo Christensen deu uma nova sugestão:

“Vocês sabem que muitas mulheres tendem a deixar as chaves de seus cofres alugados no próprio banco. Quando se tratar de dinheiro vivo, a gente pode usar esses recursos para jogar no mercado.”

Alguém não gostou muito da ideia: “E se uma delas aparecer de repente, querendo levar a grana?”

Christensen sorriu com condescendência.

“É simples, pedimos para a cliente esperar um pouquinho, pegamos o dinheiro de outro cofre e transferimos para o dela. Você não acha que todas vão aparecer ao mesmo tempo. Ou acha?”

“É, penso que não. Vai contra a lei das probabilidades.”

Apesar de todo esse trabalho incansável e das horas insones, os membros do Clube continuavam se mostrando inábeis para ganhar dinheiro na Bolsa. Ivan Christensen fez questão de encerrar o encontro com mais uma mensagem de otimismo.

“Nós vamos ficar ricos. Muito ricos”, ele afirmou, sem que sua voz revelasse indecisão. “O mercado vai subir como jamais subiu em tempo algum.” Vaticínio no qual estava totalmente certo.