17
A toca do urso

O índice de preços das ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York medido pelo The New York Times subira 207% entre janeiro de 1924 e janeiro de 1929, saindo de 110 para 338 pontos. Graças à alavancagem praticada à larga, que potenciava os lucros, novos milionários surgiam a cada dia. Um assento na Bolsa, cujo volume de negócios não parava de subir, valia agora meio milhão de dólares.

Apesar da grande euforia que se apossara dos traders, Charles Merrill continuava pessimista. Em um memorando enviado ao seu sócio, Edmund Lynch, Charles insistiu que os dois precisavam manter a corretora Merrill, Lynch & Co. com bastante liquidez, pois considerava inevitável um colapso da Bolsa.

“É apenas uma questão de tempo”, proclamava convicto.

Charles Merrill não era o único que enxergava nuvens cinzentas no horizonte. A Sociedade de Economia da Universidade de Harvard pressentia uma recessão nos próximos meses. “A atividade econômica está se contraindo nos Estados Unidos”, concluiu um dos relatórios semanais da instituição.

Outro que continuava achando que o mercado de ações seria abalado por um crash era o banqueiro Amadeo Peter Giannini, que agora passava parte de seu tempo na sede nova-iorquina do Bank of America. Quase sempre se fazia acompanhar da filha Claire, que aos poucos ia se tornando o braço direito do pai.

Para a maior parte da imprensa e dos analistas de mercado, esses palpites bearish (relativos aos ursos) eram típicos de gente perdedora, agourenta e impatriótica. O especulador Will Payne, por exemplo, escreveu um artigo na revista World’s Work, publicado em janeiro de 1929, no qual reduzia o cenário da Bolsa a uma fórmula tão simplista quanto simplória.

“Alguém compra uma ação a cem dólares e vende por 150. O segundo comprador passa o papel adiante por duzentos. E o terceiro, por 250. É só o mercado continuar nesse ritmo que todo mundo ganha”, argumentou ele.

Em janeiro, as médias industriais do Times haviam subido trinta pontos e o total de empréstimos bancários levantados pelas corretoras se elevara a 260 milhões de dólares. A partir do Ano-Novo passou a ser normal o volume diário da Bolsa de Nova York ultrapassar a marca de 5 milhões de ações. Raros eram os dias em que não surgiam pelo menos dois ou três novos consórcios de investimento.

Nesse mesmo mês, janeiro, a J. P. Morgan and Company lançou ações de um consórcio, a United Corporation, e vendeu os papéis para uma série de amigos e sócios da Casa Morgan pelo valor unitário de 75 dólares. Uma semana depois a United foi lançada na Bolsa, abrindo a 92 dólares, garantindo aos bem-aventurados compradores iniciais um lucro de 22%. Era a América rica e feliz, a América que Will Payne vaticinava em suas colunas.

Um dos contemplados com as ações da United, comprando-as diretamente da Morgan, foi John Jakob Raskob, que continuava dividindo seu tempo entre especulações e sua ideia fixa de construir o Empire State Building. Assim que a United chegou à Bolsa, Raskob tratou de realizar o lucro, pois sabia que os bens do novo consórcio (cotas de outros consórcios) valiam muito menos do que o valor que o mercado estava atribuindo às suas ações.

Fevereiro de 1929 não foi um mês tão bom quanto janeiro. Tudo porque o Banco da Inglaterra elevou sua taxa de juros de 4,5% para 5,5%, numa tentativa de reduzir o fluxo de dinheiro da City de Londres para Wall Street. Em 7 de fevereiro, por exemplo, outro dia em que foram negociadas 5 milhões de ações na Bolsa, as médias industriais do Times caíram onze pontos. Novas quedas, embora menores, aconteceram nas sessões que se seguiram.

“Apenas uma saudável realização de lucros.” Os otimistas repetiram sua argumentação preferida.

O boom econômico em alguns setores parecia dar razão aos touros. A United Airlines, por exemplo, acabara de lançar a primeira linha de passageiros costa a costa usando um trimotor que levava apenas 28 horas para ir de Nova York a Los Angeles, incluindo nesse tempo várias escalas para abastecimento de combustível e um pernoite no meio do caminho. Os voos de malas postais estavam em seu quinto ano. No chão, as ferrovias competiam com as empresas de caminhões na busca pelas melhores fatias do lucrativo transporte transcontinental de cargas.

As emissoras de rádio, agora em seu décimo ano de transmissões, cresciam mais do que qualquer outro ramo de atividade, com exceção dos negócios do mercado de Wall Street. Nas linhas de montagem de Detroit, alguns automóveis já saíam da fábrica equipados com aparelhos de rádio.

Se havia alguém que se preparava não só para não perder, mas também para ganhar quando a Bolsa desmoronasse, esse alguém era Joe Kennedy. Nos últimos anos, além de seus negócios em Hollywood, Kennedy jogara com enorme sucesso no mercado de ações, quase sempre apostando na alta.

Agora Joe começara a liquidar seus papéis, mas isso não lhe bastava. Ele queria estar vendido a descoberto, ser um autêntico urso, quando o pânico começasse. Não era uma coisa fácil. Seria preciso estimar, com precisão, o momento de virada do mercado para poder enfrentar e abater os touros. Caso contrário, se errasse o timing, seria atropelado pela manada ignara que vendia seus bens pessoais e ainda pegava dinheiro emprestado nos bancos para comprar ações.

Antes de conceber sua estratégia, Joe Kennedy decidiu sondar a opinião de Jack Morgan a respeito da tendência do mercado. Sabia que Morgan era um homem frio e calculista, que jamais se deixava guiar por emoções.

Certa manhã de fevereiro, Kennedy dirigiu-se à Casa Morgan. Não se preocupou em telefonar antes agendando uma visita, certo de que seu nome e sua reputação seriam suficientes para que Morgan o recebesse. Mas não foi isso que aconteceu.

Joe Kennedy subiu os seis degraus de granito da entrada da Morgan, no número 23 de Wall Street, e passou pelas portas duplas de acesso ao prédio. Foi imediatamente bloqueado por um porteiro.

“Sou Joseph Patrick Kennedy e vim ver o senhor John Pierpont Morgan Jr.” Joe não se intimidou com a presença do homem e fez questão de ser seco e formal. Para sua surpresa, o outro agiu da mesma maneira.

“O senhor tem um encontro marcado?”, limitou-se a perguntar o porteiro, sem alterar o semblante. E talvez tivesse feito a mesma coisa se por ali surgisse o herói nacional Charles Lindbergh ou o prefeito de Nova York, Jimmy Walker.

“Não, não tenho. Mas estou certo de que Jack me receberá.” Joe Kennedy usou o apelido de Morgan para impressionar o serviçal que bloqueava seu caminho. “Diga a ele que é Joe Kennedy, de volta de Hollywood.”

O porteiro hesitou um pouco. Percebendo-o de pronto, Kennedy engrossou o tom.

“Seja rápido, homem. Eu não tenho o dia todo.” Ao dizer isso com acidez, Joe obteve sua primeira vitória. Após conversar com alguém através de um interfone, o homem conduziu Kennedy até uma antessala separada de um enorme saguão por paredes e portas de vidro. Lá dentro ficavam os sócios e os executivos importantes da Morgan, assim como suas secretárias.

“Por favor, senhor Kennedy. Aguarde aqui.”

Deixando Joe Kennedy de pé, o porteiro abriu a porta do salão e entrou. Joe podia ver como era lá dentro. Numa área de aproximadamente 4,5 mil metros quadrados, os dirigentes sentavam-se em escrivaninhas com tampas articuladas de correr. Apenas divisórias baixas de vidro separavam uns dos outros. O piso era de mármore cor-de-rosa. Algumas paredes laterais eram forradas de madeira; outras, de couro. Do alto das janelas pendiam cortinas pesadas. Jamais Joe vira um lugar que combinasse tão bem requinte e austeridade monástica.

Kennedy viu o porteiro alcançar a ala dos sócios, onde uma secretária já o aguardava. Os dois trocaram algumas palavras. Kennedy conhecia alguns homens que estavam lá dentro: Thomas Lamont, segundo em hierarquia na Morgan; seu filho, Thomas Stilwell Lamont; Henry Sturgis Morgan e Henry Davidson. Mais ao fundo, Jack Morgan examinava alguns papéis em sua escrivaninha.

A secretária foi até Morgan e lhe disse alguma coisa. Os dois conversaram por não mais do que alguns segundos. Ela então regressou para falar com o porteiro. Este, mais do que depressa, saiu do salão e informou a Joe Kennedy:

“O senhor Morgan está muito ocupado para recebê-lo.”

Kennedy ficou em silêncio. Girou sobre os calcanhares e foi embora da Casa Morgan, determinado a se vingar da desfeita tão logo surgisse uma oportunidade.

Uma das primeiras pessoas a saber da humilhação de Joe Kennedy foi Jesse Livermore, que estava na suíte de seu escritório no 18o andar do Heckscher Building, na Quinta Avenida. Rei da baixa, urso maior, Livermore gostava de alardear para seus amigos mais íntimos e para suas amantes que nada acontecia em Wall Street sem que ele tomasse conhecimento imediato. Para isso, tinha uma enorme rede de informantes.

Como sabia tirar proveito de quase todos os fatos, por mais desimportantes que parecessem no início, Livermore anotou o incidente Kennedy-Morgan em um de seus inúmeros caderninhos, acrescido do seguinte comentário:

“Quando tiver uma oportunidade, Joseph Kennedy irá retaliar contra J. P. Isso poderá afetar o mercado.”

A toca do urso Jesse era a mais bem-aparelhada de Nova York. Vinte analistas, todos discretíssimos, colhiam informações por intermédio de linhas particulares de telégrafo e dezenas de telefones cujos números não apareciam nos catálogos. Numa parede, as cotações da Bolsa eram anotadas em um quadro-negro com, no máximo, um minuto de atraso, limite de tolerância de Livermore. Estatísticos e grafistas completavam a equipe de apoio. Aproximadamente sessenta pessoas trabalhavam exclusivamente para prover o urso de Boston com os dados e notícias dos quais ele necessitava para agir antes dos demais traders, tão logo uma nova tendência começava a se delinear.

Jesse Livermore

Jesse Livermore, aos 47 anos

25 de dezembro de 1924

Latinstock/© Bettmann/corbis/Corbis (DC)

Jesse Livermore não tinha clientes. Só negociava por conta própria. E conseguia ser um dos mais bem-sucedidos operadores de ações apesar de seus enormes custos operacionais. Para alguns de seus pares, tratava-se de um gênio. Para outros, de um bruxo. Mas boa parte da Rua não gostava dele justamente pelo fato de Livermore trabalhar quase sempre vendido a descoberto, tentando forçar o mercado para baixo e estragar a festa da maioria.

Embora fosse casado, o apetite de Jesse Livermore se dividia entre a Bolsa e as mulheres. Gostava de sair à noite pelas ruas de Manhattan em seu Rolls-Royce amarelo-canarinho caçando garotas para satisfazer seu insaciável apetite sexual.

Se havia alguém que sabia conciliar trabalho e lazer, este era Livermore. Jesse possuía diversas mansões, um iate, um vagão ferroviário e um avião particular. Seus charutos eram enrolados especialmente para ele em Cuba. Para suas recepções, nas quais cortejava algumas das mulheres mais bonitas da América, ele comprava grandes quantidades de champanha francês contrabandeado e caixas e mais caixas de caviar iraniano. Mas nada o deixava mais excitado do que uma killing no mercado, principalmente se na “porrada” houvesse um lado perdedor bem identificável.

Mais do que Joe Kennedy, mais do que Amadeo Peter Giannini, mais do que Charles Merrill, mais do que os estudiosos de Harvard, Jesse Livermore tinha certeza de que um novo crash estava a caminho. Mas, tal como os outros, Livermore sabia que não bastava ser pitonisa. Era preciso acertar na mosca o timing do colapso.

Nem Kennedy, Giannini, Merrill e Livermore tinham a menor ideia da avalanche de ordens de compra de ações que, ainda naquele ano, iriam fluir de todos os recantos dos Estados Unidos da América, inclusive dos mais remotos, para Wall Street, na apoteose do maior bull-market da história.