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A pitonisa do Carnegie Hall
Após acertar a fusão de seus negócios bancários na Costa Leste com a Blair and Company, Amadeo Peter Giannini, acompanhado de sua mulher Clorinda e de sua filha Claire, retornava à Califórnia de trem. Em cada parada, as últimas edições dos jornais locais eram levadas à cabine privativa de Giannini. Assim, ele pôde acompanhar o que acontecia de importante nos Estados Unidos e no mundo. As matérias que faziam referências à família eram recortadas e guardadas numa pasta por Clorinda.
Claire Giannini estava imersa em outros pensamentos. Alguma coisa em Elisha Walker a incomodava. Walker, responsável pela direção da Blair, agora seria o presidente da Bancamerica-Blair Company e chairman do comitê executivo do novo banco. Esses cargos fariam dele o segundo homem em importância do conglomerado, atrás apenas de seu pai.
Nas reuniões de Amadeo e Claire com Elisha em Nova York, ela o achara encantador e polido. Encantador demais, polido demais, subserviente, enfim, um bajulador que concordava com tudo o que A. P. dizia. Isso, na opinião de Claire Giannini, poderia estar encobrindo uma dissimulação. Mas ela não quis falar sobre o assunto durante a viagem. Deixaria para mais tarde, em casa. Não desconsiderava também a possibilidade de estar enganada a respeito de Elisha Walker.
Evangeline Adams era a mais famosa vidente da América. Em seu consultório no prédio do Carnegie Hall, em Nova York, ela se valia do estudo dos astros, de bolas de cristal, cartas de tarô e leitura de mãos. Ficara rica prevendo o futuro, principalmente o futuro do mercado de ações, cujas altas e baixas vinha acertando desde 1927.
A pitonisa de Wall Street se limitava a prever como o índice industrial Dow Jones, da Bolsa de Valores de Nova York, iria se comportar. Como o Dow praticamente não fazia outra coisa exceto subir, e era isso que ela quase sempre vaticinava, o percentual de acerto da vidente era enorme.
Na segunda-feira, 25 de março de 1929, o urso Jesse Livermore, tocaiado em seu retiro na Quinta Avenida, resolveu bater no mercado. Os integrantes do Conselho da Reserva Federal, em Washington, encontravam-se reunidos havia vários dias. A demora, ao modo de ver de Livermore, só podia significar que seus membros estavam em desacordo. Como desacordo gera incerteza, e incerteza derruba as bolsas, Jesse deu início a uma sequência de vendas a descoberto.
Quando, às dez horas, o superintendente William Crawford bateu o gongo e deu início à sessão do dia, Livermore disparou pelo telefone para diversas sociedades corretoras uma saraivada de ordens de compra e de venda de papéis, de modo que ninguém podia saber a origem dessas ordens e mesmo se o especulador que as passava era um touro ou um urso. Sendo um ás em seu métier, Jesse Livermore, que sempre conseguia camuflar suas intenções, conseguiu vender na surdina, a descoberto, grandes lotes de ações, pois suas vendas superaram por larga margem as compras.
Como qualquer urso que se preze, Livermore foi dormir vendido. Se dormiu tranquilo ou se passou a noite insone, a história não registrou. O fato é que não poderia ter tomado decisão mais acertada.
No dia seguinte, terça-feira, persistindo a indecisão dos conselheiros do FED, as taxas de juros do call money (empréstimos dos bancos às corretoras para financiar os especuladores) haviam subido para 20% ao ano, o maior nível desde 1920. Quando o painel elétrico do recinto de negociações anunciou o novo patamar das taxas, as cotações desmoronaram. Em meio ao pânico, 8.246.746 ações mudaram de dono, de longe o maior volume da história da Bolsa até então.
Jesse Livermore recomprou os papéis que vendera na véspera, realizando um lucro de 200 mil dólares. O urso estava em plena forma.
Charles Mitchell, presidente do National City Bank, não gostou nem um pouco da baixa. Convocou uma coletiva de imprensa e criticou severamente a junta da Reserva na capital federal, embora ele mesmo fosse um dos diretores seniores do Federal Reserve Bank de Nova York.
“A partir de agora o FED de Nova York ignorará as instruções vindas do Conselho em Washington”, anunciou Mitchell.
Daí em diante, uma séria divergência se estabeleceu entre as autoridades monetárias de Nova York e de Washington, que iria pesar nos trágicos acontecimentos do quarto trimestre de 1929.
Mitchell deixou bem claro para a imprensa, e, portanto, para o público, que o FED de Nova York e seu próprio banco, o National City Bank, disponibilizariam o dinheiro necessário para que os tomadores de empréstimo o usassem a seu bel-prazer, seja para comprar uma casa ou um carro novo, seja para jogar na Bolsa.
Embora a prática fosse proibida por lei, o National City especulava com suas próprias ações ou financiava terceiros para que o fizessem. Entre janeiro de 1928 e o final de março de 1929, as ações do banco haviam subido 150%, saindo de 785 dólares para quase 2 mil dólares, uma rentabilidade excepcional para os que não operaram alavancados e estratosférica para aqueles que o fizeram, usando dinheiro emprestado pelo próprio National.
A vidente Evangeline Adams continuava a fazer grande sucesso. Muitos investidores, inclusive corretores e operadores profissionais, a procuravam. Entre seus clientes estava Charles Schwab, magnata do aço, ex-presidente da United States Steel, de onde se transferira para a liderança da Bethlehem Steel. Antes de comprar ou vender qualquer título na Bolsa, Schwab consultava Evangeline. O mesmo fazia a rainha do cinema, Mary Pickford.
Para a arraia-miúda, que não tinha condições financeiras de consultá-la pessoalmente, Evangeline Adams editava um boletim mensal explicando como a mudança da posição dos planetas afetava o preço das ações. Cada um dos 100 mil exemplares do boletim era vendido por cinquenta centavos.
Os palpites de Evangeline não eram as únicas orientações desprovidas de lógica seguidas pelos investidores e especuladores americanos. Outros serviços, sistemas e doutrinas os mais estapafúrdios eram obedecidos à risca. Uma dessas doutrinas se baseava na crença de que nenhum bull-market poderia entrar em colapso em um mês que não tivesse um “R” no nome. Outra estabelecia que o comportamento das ações dependia da posição do sol. Havia também a Teoria da Ostra, que demonstrava por A + B que o mercado sempre atingia seu pico na estação das ostras.
A astróloga Evangeline Adams em seu consultório no Carnegie Hall
Nova York, década de 1920
Latinstock/© Bettmann/corbis/Corbis (DC)
Nenhum desses métodos se equiparava em número de adeptos aos conselhos de Evangeline Adams. Dizia-se que o próprio John Pierpont Morgan pai, falecido em 1913, não fazia negócios sem consultá-la.
Certa vez, ainda segundo rumores jamais investigados, o venerando financista fizera um investimento de 100 milhões de dólares simplesmente porque a astróloga lhe dissera que Áries estava em posição favorável em relação ao sol. De acordo com os adeptos da vidente, J. P. obtivera um lucro tão grande com a aplicação dos 100 milhões que levara Evangeline em seu iate para um extenso cruzeiro particular, no qual o magnata se esmerou em descobrir “os métodos científicos” usados por ela. Se encontrou uma resposta para seus questionamentos, Morgan a guardou para si.
Alguns integrantes da realeza europeia também consultavam Evangeline regularmente. Quanto mais ela cobrava, mais sua fama crescia. E acabou se tornando uma autora de profecias autorrealizáveis.
“Vai subir”, a astróloga do Carnegie vaticinava. Todos compravam e o mercado subia mesmo. O mesmo acontecia na baixa.
As paredes da antessala de Evangeline Adams eram decoradas com retratos autografados de alguns de seus clientes mais célebres, entre eles o tenor Enrico Caruso (Peixes), John Pierpont Morgan pai e Mary Pickford (ambos Áries) e Charles Schwab (Aquário), cuja foto ampliada ocupava uma parede inteira.
Evangeline Adams previa sua própria morte para 1932. Em meados do primeiro trimestre de 1929, ela estava pesadamente comprada em ações e pretendia continuar assim por um bom tempo, tal como recomendava aos seus consulentes. Aqueles que entravam em sua sala como ursos saíam metamorfoseados em touros.
“As taxas dos call loans vão subir em breve. O mercado vai cair e isso será uma ótima oportunidade de compra. Não perca.” Ela concluía sua sessão erguendo-se da cadeira para indicar ao cliente que a consulta estava encerrada.
Numa suíte do agora condenado hotel Waldorf-Astoria, cujo prédio iria ser demolido para dar lugar ao Empire State Building de John Jakob Raskob, um grupo de mulheres de todas as idades se reunia. Sentadas em sofás e poltronas que formavam um círculo, as senhoras e senhoritas discutiam apenas um assunto: ações. Era apenas um dos milhares de clubes femininos de investimentos semelhantes que se espalhavam por todo o território dos Estados Unidos.
De quando em vez um garçom, o único personagem masculino permitido na suíte, entrava trazendo bandejas com café, drinques e delicados sanduíches de pepino e punha tudo sobre uma mesa de centro, retirando-se em seguida com a louça usada.
Fumando cigarros turcos da moda, na ponta de longas piteiras, elas discutiam lucros, dividendos, fusões, aquisições e formações de novos consórcios e pools. Uma ticker-tape num canto do aposento, com seu matraquear, trazia os últimos negócios da Bolsa. Os números eram anotados em um quadro-negro por duas moças que usavam guarda-pós azuis.
“A Radio está começando a se mexer”, observava uma das investidoras, apontando para o quadro. “Acho que é hora de comprar.”
“Vejam a Steel (United States Steel)”, dizia outra. “Vocês não acham que está barata? Meu mari… eu fiquei sabendo que eles vão dar mais uma bonificação. Já a Copper (Anaconda Copper) está cara. Será que não vale a pena vendê-la a descoberto?”
“Eu jamais faço isso”, revelou uma terceira. “Para baixo tem limite. Para cima é o infinito. Além disso, acho impatriótico.”
Um murmúrio de aprovações e desaprovações seguiu-se aos comentários. A reunião esquentou e elas gostavam disso. Fazia com que se sentissem traders profissionais.
A sociedade de consumo americana, aquela em que todos seriam ricos, se aproximava de seu auge. Na classe média, cada vez maior, as famílias se sentiam obrigadas a possuir um carro, um aparelho de rádio, uma geladeira, uma máquina de lavar roupa, banheiro com água corrente e sistema de aquecimento para enfrentar o inverno. Mais do que isso: não bastava ter o carro ou a lavadora. Era preciso que fosse o último modelo, para não despertar o falatório depreciativo dos vizinhos.
Pagar não era problema; os bancos financiavam. Prazos de hipotecas eram ampliados, linhas de crédito, aumentadas. Fazia-se tudo para a economia dos Estados Unidos crescer mais e mais.
De vez em quando surgia alguma pessoa mais sensata para mostrar a realidade que os americanos viviam. No dia 8 de março de 1929, por exemplo, o respeitado banqueiro judeu nova-iorquino Paul Warburg, do International Acceptance Bank, alertou a respeito do grande risco que os investidores estavam correndo ao aderir sem freios à orgia alavancada na Bolsa, cujas cotações subiam havia cinco anos, com apenas algumas interrupções.
“Se a Reserva Federal”, declarou Warburg, “não adotar uma política monetária enérgica que ponha um dique na especulação desenfreada, vamos ter um colapso desastroso. Os perdedores não serão apenas aqueles que investem em ações, mas o país inteiro. Poderemos ter uma depressão geral”.
O mínimo que os touros disseram de Paul Warburg era que se tratava de um homem antiquado que estava “entravando a prosperidade norte-americana”. Outros o acusaram de estar vendido a descoberto na Bolsa. Como o mercado continuava subindo, as críticas se transformaram em chacotas, entremeadas de antissemitismo.
Com a chegada da primavera, a ticker-tape da Bolsa de Valores de Nova York já não conseguia acompanhar o andamento dos negócios. Atrasos de 45 minutos tornaram-se rotina. Nas corretoras de valores de todo o país, os investidores e especuladores passaram a operar em voo cego, comprando e vendendo sem saber o preço na hora.
Só que, para a maioria deles, isso não representava um entrave. Pessoas que se orientavam por videntes, por bolas de cristal, pela temporada das ostras ou por letras nos nomes dos meses bem que podiam operar no escuro. Bastava comprar, à vista ou a termo, pois o mundo era definitivamente dos touros. A não ser, é claro, que a Reserva Federal, em Washington, fizesse prevalecer sua ideia de dificultar os financiamentos para o mercado de ações.