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Feira do interior

Charles Stewart Mott levou cinco meses para ter certeza de que só o divórcio cortaria pela raiz os males de seu lamentoso relacionamento com Dee Van Balkom Furey, a jovem jornalista que se casara com ele visando apenas se apropriar de parte de sua fortuna.

Dee fizera o maior esforço para que o marido chegasse à decisão de se divorciar. Nas infindáveis discussões do casal, ela deixava claro o desprezo que sentia por ele. Mas não foi só isso. Entre outras extravagâncias, Dee Furey torrou 35 mil dólares remodelando o apartamento de Detroit, comprou um piano de 2,5 mil dólares, além de joias, vestidos e casacos de pele nas lojas mais exclusivas da cidade.

A segunda lua de mel, na Europa, fora um tremendo fracasso — para ele, é claro, pois tudo correu de acordo com os planos dela — com Dee passando a maior parte do tempo passeando em companhia de seu advogado, Prewitt Semmes.

De volta aos Estados Unidos, Dee recusou-se a pôr os pés em Applewood, a mansão de Charles em Flint.

Agora, tendo optado pelo divórcio, decisão que lhe trouxe grande alívio, Charles Mott decidiu fazer uma visita de surpresa a Grant Brown, presidente do Union Industrial Bank.

Em junho e julho de 1929, as ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York haviam se valorizado mais do que durante todo o ano anterior, com uma alta de quase 25%. O grande bull-market não dava o menor sinal de fraqueza. Wall Street continuava a engolir o dinheiro do mundo. O total de empréstimos dos bancos às sociedades corretoras da Bolsa se elevara a 7 bilhões de dólares.

Após os testes da corretora flutuante de Michael Meehan a bordo do transatlântico Berengaria terem se mostrado totalmente satisfatórios, a Bolsa de Nova York concedeu permissão para o início dos negócios, agora para valer.

Ações de cem empresas foram escolhidas para serem transacionadas no navio, entre elas, é claro, a Radio Corporation of America, a RCA, de David Sarnoff, o papel de maior prestígio entre investidores e especuladores e que tinha como especialista na Bolsa o próprio Meehan.

Logo Michael Meehan teria concorrentes nas águas do Atlântico Norte. O transatlântico francês Île de France estava montando um serviço idêntico para seus passageiros, a ser operado pela sociedade corretora parisiense Saint-Phalle and Company.

Como se os planos para erigir o Empire State Building, as participações em pools de cartas marcadas e as especulações particulares não fossem suficientes para ocupar todo o tempo de John Jakob Raskob, ele ainda escrevia artigos para jornais. Num deles, publicado em agosto de 1929 e intitulado Everybody Ought to be Rich (Todo mundo deveria ser rico), Raskob defendia a tese de que se uma pessoa que economizasse quinze dólares por mês, investisse esse dinheiro em ações e reaplicasse os dividendos, em vinte anos possuiria 80 mil dólares.

A rotina do superintendente da Bolsa de Valores de Nova York, William Crawford, era praticamente a mesma todos os dias. Na manhã de segunda-feira, 5 de agosto, por exemplo, ele aproveitou a viagem de metrô de casa para o trabalho para ler o último número da American Magazine. Uma das matérias, escrita pelo articulista John T. Flynn, citava Craw- ford de maneira positiva, deixando-o radiante.

Após desembarcar do trem, às nove horas, na estação de Wall Street, o superintendente caminhou para a Bolsa prestando atenção no movimento do Distrito Financeiro. Nas calçadas, os pedestres mais apressados eram os mensageiros que entregavam nas sedes das sociedades corretoras as ações compradas pelos clientes dessas firmas no sábado e as trocavam pelos cheques correspondentes. Estes, por sua vez, seriam entregues nas sociedades vendedoras. Guardas armados seguiam os mensageiros a curta distância.

Andando mais um pouco, William Crawford deparou-se com o corpulento banqueiro Charles Mitchell, presidente do National City Bank. Mitchell acabara de percorrer, a pé, os mais de dez quilômetros que separavam sua casa, em Uptown, até o banco, coisa que fazia todos os dias, sempre seguido de perto por sua limusine, dirigida pelo chofer. O motorista estacionou o carro junto ao City e carregou a volumosa pasta do patrão para dentro do banco.

Ao passar pela porta do número 23 de Wall Street, Crawford viu os porteiros do J. P. Morgan se alinhando para saudar, ao pé da escada de entrada do prédio, os primeiros sócios da firma que chegavam ao trabalho naquele momento, sempre em ordem inversa de hierarquia. O superintendente da Bolsa sabia que o último a aparecer seria Jack Morgan.

Nos últimos dias os tabloides sensacionalistas de Nova York comentavam os últimos feitos de Jack, nenhum deles ligado ao mercado. Morgan lançara ao mar o maior iate do mundo, que superava em tamanho o de Vincent Astor e o do inglês Clarence Hatry. Adquirira também, em leilão, um Tintoretto e doara 4 milhões de dólares aos hospitais New York Hospital e Lying-in Hospital, 2 milhões para cada um. A família Morgan patrocinava aquelas instituições desde a época do velho John Pierpont Morgan. Na véspera, domingo, um jornal noticiara que Jack Morgan estava de partida para o Reino Unido, onde caçaria gansos com integrantes da família real britânica.

Ao entrar na Bolsa de Valores, o superintendente William Crawford desconectou-se do mundo exterior e mundano e passou a pensar exclusivamente na instituição, cujo funcionamento era de sua responsabilidade. O preço das ações subia num ritmo jamais alcançado. Recordes eram quebrados praticamente a cada hora. E a infraestrutura da Bolsa tinha de acompanhar esses avanços, sob pena de entrar em colapso.

Desde fevereiro, o número de operadores de pregão aumentara de 1,1 mil para 1.375. Um assento agora custava 625 mil dólares. O que estava atrapalhando os negócios era o atraso da ticker-tape. Nos dias e horas de maior movimento, os clientes das sociedades corretoras espalhadas pelo país só ficavam sabendo dos preços uma hora após as operações terem sido fechadas. Um papel que aparecia na fita negociado a 140 dólares podia estar a 145 ou mais. Ou a 135. Isso criava enorme insegurança nos corretores e investidores, muitas vezes obrigados a atuar no escuro.

Havia 3 mil terminais de ticker-tapes só no Distrito Financeiro, outros 2 mil dispersos pela cidade de Nova York e mais 4,5 mil instalados em localidades de todo o país. O que dava certo alívio a Crawford era que estava para ser implantado um novo sistema de tickers, capaz de imprimir novecentos caracteres por minuto, número suficiente para lidar com 7 milhões de ações diárias.

Após inspecionar a central de comunicações no subsolo, William Crawford subiu para o pregão onde, dentro de alguns minutos, ele mesmo faria soar o gongo, dando início aos negócios daquela segunda-feira. Ao passar pelo Posto 11, Crawford ficou sabendo que um dos corretores que operava ali, Michael Bouvier, de 82 anos, decano do recinto de negociações, acabara de ser tio-avô de uma garotinha. O superintendente deu os parabéns ao velho Michael.

A recém-nascida se chamava Jacqueline — mais tarde, ela se tornaria mulher de John Kennedy, filho de Joe Kennedy, e seria a primeira-dama mais charmosa e conhecida da história dos Estados Unidos.

Exatamente às dez horas, William Crawford, do alto do púlpito, deu início ao pregão. Pouco depois foi chamado até a galeria de visitantes, onde o presidente da Bolsa, Edward Simmons, e seu vice, Richard Whitney, recebiam o prefeito de Nova York, James Joseph Walker, que visitava o lugar em campanha por reeleição na prefeitura, disputando o cargo com o carismático Fiorello La Guardia.

Crawford, tal como os demais, foi obrigado a rir de piadas sem a menor graça ditas a todo momento pelo político para os repórteres que o acompanhavam na visita. Os trajes do prefeito eram mais apropriados a um ator de vaudeville do que ao chefe do Executivo de uma das maiores cidades do mundo. Walker vestia um paletó xadrez espalhafatoso, que em nada combinava com sua camisa e sua gravata, floridas, muito menos com seus sapatos bicolores de bico fino e comprido.

Finalmente, para satisfação do superintendente William Craw­ford, o prefeito partiu para outro compromisso eleitoral. Nesse momento, um assessor trouxe a notícia de que a ticker estava começando a se atrasar, tormento que agora acontecia quase que diariamente.

San Mateo, Califórnia, terça-feira, 6 de agosto de 1929, seis e meia da manhã. Tal como acontecia todos os dias a essa hora quando Amadeo Peter Giannini estava em casa, a campainha do telefone tocou.

No sábado, A. P. Giannini, Clorinda e Claire haviam chegado de Nova York. A jornada de quatro dias fora particularmente longa e cansativa, com o Overland Express, que fizera o trecho Chicago/São Francisco, se atrasando quase nove horas.

Embora fosse uma rotina, o telefonema acordou a casa toda. Amadeo foi molhar o rosto antes de atender a chamada no térreo, Clorinda saiu da cama e começou a se vestir. Em seu quarto, Claire também se levantou.

Quem ligava era Attilio — “Doc”, para a família —, irmão de Amadeo, falando de seu escritório no prédio do Bank of America, em Wall Street, onde já eram nove e meia. Doc iria fazer o primeiro relato do dia. Mais tarde as chamadas seriam feitas para o escritório de Giannini em São Francisco.

Após um início frio e de mútua desconfiança, o relacionamento entre Doc Giannini e Elisha Walker estava melhorando aos poucos, os dois homens fazendo um esforço honesto para encurtar suas diferenças. Mas Doc continuava sendo os olhos e os ouvidos de seu irmão Amadeo.

“As ações devem continuar subindo hoje.” Faltando meia hora para a abertura do mercado, Doc fazia a primeira previsão do dia, após ler os jornais e conversar com vários corretores e traders. “Tá todo mundo bullish”, concluiu a análise para o irmão.

O sentimento positivo não impressionou Giannini.

“Quero que o banco alerte os nossos pequenos clientes da Costa Leste sobre o perigo de comprar ações nos preços atuais, principalmente com dinheiro emprestado, garantido por margens. As pessoas estão simplesmente loucas acreditando que o mercado pode continuar subindo para sempre.” A voz de Amadeo não demonstrava o menor sinal de hesitação. Ele acreditava firmemente que um crash estava a caminho e queria que os clientes de seu banco soubessem sua opinião.

Outro medo de Amadeo Peter Giannini era que os investidores, se valendo de créditos, comprassem ações do Transamerica, que iria pagar um dividendo recorde de 150%. Apesar de toda sua solidez, A. P. sabia que mesmo o Transamerica sofreria com o colapso geral da Bolsa.

O tema “risco da Bolsa” prevaleceu na mesa de café da manhã dos Giannini, ao qual vieram se juntar os dois irmãos de Claire, Virgil e Mario. Claire achava que deveriam publicar uma matéria paga na imprensa emitindo um alerta sobre as compras baseadas em margens. Virgil e Mario tinham dúvidas a respeito disso. Clorinda não achava nada e Amadeo gostava de ver os filhos debatendo o assunto. Indagou-se sobre quantas famílias na América tinham esse privilégio.

Do lado de fora da casa, o chofer Joe Garcia aguardava ao volante do Rolls-Royce. Logo todos, com exceção de Clorinda, entraram no carro que seguiu para São Francisco com as luzes giratórias vermelhas de alerta do Corpo de Bombeiros acesas. O patrão sentava-se ao lado de Garcia e seus três filhos se espremiam no banco detrás. Com a velocidade liberada, a jornada até São Francisco duraria apenas meia hora.

Quando chegou ao escritório, A. P. Giannini tomara uma decisão que lhe angariaria muitos inimigos em Wall Street. Convocou uma coletiva de imprensa para alertar ao grande público que especular era coisa para profissionais, não para um pai de família assalariado. Um grande número de repórteres atendeu ao chamado.

Assim que as matérias sobre a entrevista de Giannini foram publicadas nos jornais da Costa Oeste, houve muita revolta no país onde todos queriam — e achavam que podiam — ser ricos.

O mínimo que se disse de Amadeo Peter Giannini foi que se tratava de um traidor, um inimigo do way of life norte-americano.

“Nos Estados Unidos não existe lugar para destrutivistas como o senhor Giannini”, declarou uma empresa de assessoria de investimentos sediada em Boston.

Amadeo Peter Giannini with Wife and Daughter

Amadeo Peter Giannini ladeado pela esposa, Clorinda, e a filha, Claire, sua principal assessora

São Francisco, Califórnia, EUA, 13 de abril de 1928

Latinstock/© Bettmann/corbis/Corbis (DC)

Mais uma semana se passou. Na segunda-feira seguinte, 12 de agosto, Charlton MacVeagh chegou cedo para trabalhar no J. P. Morgan. Ele queria testemunhar com seus próprios olhos uma visão que um mês antes o mais bullish dos analistas teria considerado impossível.

Agosto sempre fora um período de férias em Wall Street. Os traders costumavam ir para Long Island, Atlantic City ou Cape Cod com suas famílias e gozar das delícias das praias até o recomeço das atividades propriamente ditas, após o feriado do Labour Day (Dia do Trabalho), na primeira segunda-feira de setembro. Mas essa pausa de descanso não estava acontecendo em 1929.

No fim de semana os jornais e os boletins das rádios informaram que muitos corretores permaneciam em seus escritórios, preparando-se para enfrentar uma ofensiva fora de estação desfechada por pequenos investidores.

Tornou-se moda a gente miúda que entrava no mercado pela primeira vez ir pessoalmente fazer seus negócios no Distrito Financeiro. Alguns iam para a galeria de visitantes da Bolsa, outros para as salas de clientes das sociedades corretoras da área de Wall Street. Eram investidores diferentes, que davam vivas quando suas ações subiam ou acolhiam as baixas com protestos indignados. Muitos ficavam espalhados pelas ruas do distrito, acompanhando o mercado através do boca a boca. Vendedores ambulantes vendiam sanduíches, refrigerantes e cachorros-quentes para o pessoal. Enfim, a Rua começava a parecer mais uma feira do interior do que o austero santuário da época de John Pierpont Morgan.

Naquela semana o mercado sofreu grandes oscilações, porque o Banco da Reserva Federal de Nova York subiu sua taxa de desconto de 5% para 6%. A notícia fez a Bolsa cair muito, mas as cotações se recuperaram antes do sábado.

No domingo, dia 18, à noite, todos os hotéis próximos ao Distrito Financeiro estavam lotados. Algumas pessoas tentaram dormir na Trinity Church, mas, como isso não foi possível, passaram a noite acampadas no cemitério anexo à igreja. Todo mundo queria estar presente quando o mercado abrisse no dia seguinte. O policiamento foi reforçado na área e os cafés e restaurantes da região de Wall Street permaneceram abertos.

Repórteres se espalhavam pela multidão em busca de histórias pitorescas. Entrevistaram investidores que haviam vindo do Meio-Oeste, do Extremo Sul, do Canadá e do México, gente que achava que ficaria rica em poucos dias aplicando algumas centenas de dólares. Houve um que viajara desde o Alasca para testemunhar a nova corrida do ouro e, é claro, tirar a sua parte no filão.

O engraxate Pat Bologna praticamente abandonara sua profissão. Embora continuasse ao lado de sua banca, no número 60 de Wall Street, ele agora se limitava a dar consultas sobre investimentos. Os forasteiros faziam fila para ouvir seus conselhos sobre as tendências do mercado e sobre os melhores papéis para aplicar o dinheiro.

Nessas sessões Bologna ganhava em uma hora o que levaria um dia para faturar engraxando e lustrando sapatos. Em meio às suas dicas, citava Joe Kennedy, Charles Mitchell e Jack Morgan como se fosse amigo íntimo deles. Os fregueses arregalavam os olhos de admiração.