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Os novos alquimistas

A ticker-tape agora alcançava o país inteiro, embora quase sempre se atrasasse nos dias e nas horas de maior movimento na Bolsa. É verdade que as pessoas podiam pegar cotações atualizadas através de telefonemas para as corretoras. Mas não raro essas linhas também ficavam congestionadas nos horários de pico.

Além do Berengaria, outros dois transatlânticos, o Leviathan, da United States Lines, e o francês Île de France também disponibilizaram corretoras flutuantes para seus passageiros. Uma das primeiras pessoas a usar os serviços de corretagem do Île de France foi o compositor Irving Berlin, que vendeu mil ações da Paramount-Famous-Lasky por 72 dólares cada uma.

Quem entrou para valer na alavancagem foi o banco Goldman Sachs, que, após lançar a Shenandoah, emitiu 7,25 milhões de ações da Blue Ridge Corporation. Desse total, a própria Shenandoah adquiriu 6,25 milhões de títulos a preço superior ao de lançamento, garantindo o sucesso — e o lucro — imediato da Blue Ridge. Da Shenandoah os papéis foram oferecidos ao público, e integralmente subscritos, por preço ainda maior. Sem correr nenhum risco, e apenas se aproveitando da demanda insaciável por papéis, as duas empresas ligadas ao Goldman contabilizaram uma fortuna.

O curioso da Shenandoah e da Blue Ridge era que nenhuma das duas empresas fabricava nem comercializava nada, a não ser papéis. Tratava-se de um sistema de alavancagem infinita, que faria os alquimistas da Idade Média se roerem de inveja em suas covas. Nos Roaring Twenties, em Nova York, pessoas ardilosas aprendiam a fórmula mágica de extrair ouro praticamente do nada.

Instituições eram criadas a todo momento apenas para enfiar papéis na goela faminta dos investidores incautos, quase todas com nomes pomposos que insinuavam solidez e austeridade: American Insuran­stocks Corporation, Gude Winmill Utility Investments, International Carriers Ltd., Transcontinental Allied Corporation, National Republic Investment Trust, Insull Utility Investments, Solvay American Investment Corporations, Cosmopolitan Fiscal Corporation, Financial Counselor e inúmeras outras.

Além dos bancos e das sociedades corretoras ditos sérios — que pelo menos executavam as ordens dos clientes —, não parava de crescer o número de bucket shops, os bookmakers de Wall Street que aceitavam ordens de investidores mas não as cumpriam no pregão da Bolsa, ao qual não tinham acesso, extraindo seu lucro cobrando corretagens exorbitantes, simulando as compras dos títulos acima do preço de mercado e as vendas abaixo da cotação praticada no momento. O atraso constante da ticker-tape favorecia as bucket shops, pois seus investidores não tinham como verificar se o preço que lhes passavam era justo ou não.

Às vezes a Bolsa subia tanto que uma dessas bucket shops, mesmo com toda a bandalha, era obrigada a fechar as portas, deixando seus clientes com uma mão na frente e outra atrás. Mas logo o incidente era esquecido e o mercado de corretoras ilegais voltava a florescer.

Em Londres, Clarence Hatry chegou à sede do Banco da Inglaterra. Entrou por uma porta lateral que lhe havia sido designada. Hatry vestia um terno cinza-escuro, camisa branca com colarinho engomado e gravata da mesma cor do terno, só que um pouco mais clara. Ele tinha encontro marcado com o governor do banco, Montagu Norman, a única pessoa capaz de salvar Hatry da enrascada em que se metera ao tentar adquirir o controle da United Steel.

Pontualmente às dez horas, Clarence Hatry foi conduzido ao gabinete do governor. Este o cumprimentou afavelmente e apontou para duas poltronas próximas à janela, onde os dois se sentaram. Como Hatry não adiantara nada sobre o que o levava até ali, Norman estava curioso.

Durante dez minutos Hatry explicou a Norman a situação da United Steel. Mas nada falou a respeito da emissão de ações sem lastro. Disse apenas que lorde Bearsted, do Montagu Samuel, lhe prometera financiar a compra do controle acionário da United, mas que na última hora, por conta da vitória trabalhista nas eleições, roeu a corda.

“Lamento, senhor Hatry. Mas o senhor teria de ter assinado um contrato com o banco. Além disso, se me permite a franqueza, acho que pagou caro demais pelas ações. Não há nada que eu possa fazer.” Montagu Norman parecia feliz com a situação.

Clarence ainda argumentou que se não fosse auxiliado pelo Banco da Inglaterra seu império poderia desmoronar. Mas o modo frio e insensível como o governor reagiu a essas palavras fez com que o magnata percebesse que estava perdendo seu tempo.

“Sinto muito, senhor Hatry”, acrescentou Norman, fazendo menção de erguer-se da poltrona de modo a indicar que a reunião estava encerrada.

Clarence Hatry ainda fez uma última tentativa, se odiando pela humilhação.

“Quer dizer então que não irá me ajudar?”, procurou disfarçar seus sentimentos.

“Não, senhor Hatry, não irei.”

Seis mil e quinhentos quilômetros a oeste de Londres, no Union Industrial Bank, em Flint, Michigan, o vice-presidente Frank Montague, um dos homens da Liga de Cavalheiros, sentia as mesmas aflições. Eram nove horas da manhã de uma segunda-feira quando ele viu o chairman em pessoa, Charles Stewart Mott, entrar no banco. Meses haviam se passado desde que Mott fizera isso pela última vez. O primeiro pensamento de Montague foi pessimista.

“Ele está sabendo de tudo.”

Clarence Hatry Sitting at His Desk

Em 1929, o magnata dos vidros inglês Clarence Hatry tentou se salvar da falência através de operações fraudulentas no mercado financeiro

Londres, Inglaterra, 1929

Latinstock/© Bettmann/corbis/Corbis (DC)

A notícia se espalhou pelos diretores e funcionários envolvidos nas trapaças.

“Logo agora que as coisas estão perto de serem solucionadas...”, gemeu um deles. Boa parte dos fundos desviados havia sido reposta em suas devidas contas.

No domingo, Montague, seu colega vice-presidente Milton Pollock e Robert Brown haviam se encontrado na saída da igreja e concluído que dentro de uma semana todos os desfalques estariam cobertos. Robert tinha esperanças de que seu pai, Grant Brown, presidente do banco, jamais soubesse do que acontecera.

Após uma série de operações tão alavancadas quanto bem-sucedidas, tudo estava se resolvendo a contento, com grandes chances de os trapaceiros saírem limpos. Só faltava essa agora: Charles Mott, chairman e maior acionista do banco, aparecer por lá.

Mott foi até Grant Brown e chamou-o para uma conversa na sala do Conselho. A certeza de que o chairman sabia de tudo tomou conta dos cavalheiros da Liga, que trocavam murmúrios pessimistas nos corredores.

“Ele sabe”; “Ele descobriu”; “Ele está aqui para desmascarar a gente”, só mudavam as palavras.

Na verdade, Charles Mott passara o fim de semana em sua mansão de Applewood, lá mesmo em Flint, onde não ia havia muitos meses. E, na segunda-feira, chamou seu amigo S. S. Stewart, conselheiro, diretor e acionista do Industrial Bank, que desconhecia os desfalques que estavam acontecendo na instituição, para tomar café da manhã em sua casa.

Durante o café, Stewart disse a Mott que achava estranho Ivan Christensen, tesoureiro assistente do banco, cujo salário era modesto, estar construindo uma casa de 75 mil dólares.

Já na sala do Conselho, quando Mott perguntou a Grant Brown a respeito da casa de Christensen, Grant lhe disse que tivera a mesma desconfiança. Mas, após algumas investigações, descobrira, através de seu filho Robert, que o tesoureiro acertara uma grande tacada no mercado de ações, o que lhe permitira construir a casa.

Brown se satisfizera com a explicação. E o mesmo aconteceu com Mott. O chairman deixou o banco, pegou a estrada e dirigiu de volta a Detroit.

Tão logo Charles Mott se foi, os defraudadores, aliviados, fizeram seu primeiro investimento do dia: compraram 10 mil dólares em ações de ferrovias. Na quarta-feira elas seriam vendidas com lucro. Para a Liga de Cavalheiros de Flint faltava agora recuperar apenas 60 mil dólares para repor os 2,5 milhões que haviam pegado “emprestados”.

Tudo indicava que iriam se safar da embrulhada.

Às oito e meia da manhã de terça-feira, 27 de agosto, um Rolls-Royce amarelo dirigido por um chofer parara junto ao meio-fio em frente ao número 730 da Quinta Avenida. Jesse Livermore, que passara a noite na farra, descera pela porta traseira do carro e entrara no prédio Heckscher.

Seu terno cinzento, estilo jaquetão, cortado dos melhores tecidos pelos mais caros alfaiates, encontrava-se amarrotado. A camisa branca, que costumava estar imaculada, fazia parecer que ele havia dormido com ela; o lenço de tafetá, frouxo, pendia do bolso do terno como uma flor murcha.

Livermore, que usava pince-nez, tinha a aparência de seus 52 anos. Seu cabelo, agora despenteado, embora ainda predominantemente louro, já exibia os primeiros fios brancos. Uma entrada de calvície acen­tua­va seu nariz e suas orelhas grandes.

O boato que corria solto em Wall Street era que Livermore se bandeara de lado e se tornara um touro. Os mexericos tinham razão de ser. Com o mercado subindo daquela maneira, só havia uma maneira de se ganhar dinheiro: comprando.

Às dez da manhã, barbeado, de banho tomado e vestido com novas roupas — das quais mantinha farto estoque no escritório —, Livermore entrou em ação, decisivamente como touro. Tal como os integrantes da Liga de Cavalheiros de Flint, comprando ações de ferrovias. Só que enquanto eles haviam investido 10 mil dólares, Livermore sozinho comprou 250 mil dólares, com a intenção de realizar o lucro o mais rapidamente possível, uma vez que continuava com a impressão de que uma baixa sem precedentes estava a caminho.

Naquela mesma terça-feira, Winston Churchill se sentia radiante. Em carta que escreveu do Canadá para sua mulher, Clementine, que permanecera na Inglaterra, Churchill disse que ganhara 5.750 libras especulando na Bolsa.

O ex-chanceler do Erário e sua comitiva, o filho Randolph, o irmão Jack e o sobrinho Johnny, percorriam o país de trem, antes de seguir para os Estados Unidos, onde dois grandes amigos bilionários de Churchill, o magnata das comunicações William Randolph Hearst, na Costa Oeste, e o financista e especulador Bernard Baruch, na Costa Leste, os aguardavam para recepcioná-los e servir-lhes de cicerone.

Cientes da Lei Seca americana, mas não do quanto ela era desrespeitada, o grupo inglês levava em sua bagagem dois grandes cantis, um com uísque e o segundo com conhaque.

Em Nova York, o assunto do momento na mídia era o Empire State Building de John Jakob Raskob. Na quinta-feira, 29 de agosto, o The New York Times publicou uma matéria sobre o custo de construção e as dimensões da nova torre. A Associated Press informou como o projeto estava sendo financiado. Finalmente a United Press distribuiu uma entrevista com o arquiteto William Lamb, que detalhou a obra e a demolição do Waldorf-Astoria, que ressurgiria na Park Avenue.

Só em agosto de 1929, as ações haviam ganhado mais 33 pontos na Bolsa de Valores de Nova York. Nos últimos três meses o avanço fora de 110 pontos, com destaque para as ações da Westinghouse, da General Electric, da United States Steel, da American Telephone and Telegraph (AT&T), da United Founders e da Alleghany Corporation. O vigoroso bull-market se mantinha intacto.

Se a alta das cotações era impressionante, o volume de negócios não ficava atrás. De 4 a 5 milhões de ações eram negociados a cada dia. A euforia dos touros não era menor nas bolsas de Boston e de São Francisco.

E a verdadeira ação ainda estava para começar, com a chegada do Labour Day, que marcava o fim das férias escolares e da temporada de viagens (driving season).