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Jolan vai ao banco

No dia 15 de outubro, Charles Mitchell, presidente do National City Bank, que viajara para Londres a negócios, declarou à imprensa local que os preços das ações em Wall Street estavam convidativos. Nessa mesma ocasião, o professor Irving Fisher, da Universidade de Yale, reforçou a opinião de Mitchell dizendo que esperava ver nos próximos meses cotações bem mais elevadas do que as do momento. Fisher aproveitou para debochar do economista Roger Babson, que seguia alertando sobre a possibilidade de um crash da Bolsa.

Outro que se atinha ao seu pessimismo era Alexander Noyes, do The New York Times. “É a calmaria que precede a tempestade”, foi como o editor de finanças descreveu a interrupção na queda das cotações. Noyes fundamentou sua opinião no declínio da produção industrial nos Estados Unidos. Falando a repórteres, Amadeo Peter Giannini, que se transmudara em touro, rebateu o Times dizendo que as estatísticas da indústria logo voltariam a melhorar.

Apesar da guinada em sua concepção sobre os fundamentos da economia, Giannini permanecia preocupado com os fundos de investimentos, que se multiplicavam como ervas daninhas. Eram agora várias centenas deles, totalizando um capital de 3 bilhões de dólares, sendo poucos administrados de modo honesto e competente. A maioria se tratava de arapucas criadas apenas para tomar dinheiro dos pequenos investidores, acumulando em seus portfólios, se é que suas “carteiras” mereciam esse nome, títulos que só poderiam ser classificados como lixo (junk securities).

Bastou o novo alento nas hostes dos touros para que os jornais voltassem a se encher de histórias de pessoas que haviam ficado ricas da noite para o dia. O espírito de ganância reapareceu. Homens e mulheres das mais diversas classes sociais especulavam de modo desenfreado — e haviam tornado a ganhar —, sem o menor conhecimento da natureza das ações nas quais haviam investido.

Quando tudo indicava que a sociedade dos “todos ricos” era novamente uma possibilidade real, na quarta-feira, 16 de outubro, o Comitê da Associação de Banqueiros de Investimento (Investment Bankers Association), em Nova York, anunciou que a especulação alcançara um ponto perigoso e que muitas ações estavam sendo negociadas a preços muito acima do razoável. Foi o que bastou para derrubar o mercado: a General Electric caiu dez pontos; a Westinghouse, mais de onze; a United States Steel, quase dez.

Mais uma vez os touros descreveram a quebra como uma “saudável realização de lucros”, e no dia seguinte, 17, os preços se recuperaram.

Flint, Michigan, sexta-feira, 18 de outubro, véspera do casamento de Jolan Slezsak com Steve Vargo. Como o pai da jovem, pouco antes de morrer, lhe deixara no Union Industrial Bank uma poupança de quatrocentos dólares dos quais ela só poderia se apossar quando completasse 18 anos ou se casasse, Jolan, uma vez que seria cumprida uma das cláusulas condicionantes da herança, resolveu dar uma conferida em seu saldo na sede do banco, onde chegou pouco antes do fechamento do expediente.

Tendo trabalhado o dia todo na destilaria, o corpo e as roupas de Jolan rescendiam a bebida alcoólica que a família fabricara em grande quantidade para a festança do dia seguinte, festança essa que começaria com um café da manhã regado a cerveja, gim e uísque literalmente caseiros. Por isso a garota olhava desconfiada para todas as pessoas que se aproximavam dela, temendo esbarrar com um agente de fiscalização da Lei Seca.

Mesmo a morte por atropelamento, três meses antes, do garotinho Frank, de 7 anos, irmão de Jolan, não fora considerada empecilho para as celebrações do casório. Era um hábito dos húngaros comemorar essas ocasiões com festas que duravam o dia todo e se prolongavam até tarde da noite.

Uma vez no interior do saguão do Union Industrial, Jolan Slezsak sentiu uma agradável sensação de aconchego por causa do sistema de aquecimento do prédio. Lá fora, na rua, a temperatura estava abaixo de zero, mesmo faltando dois meses para o início do inverno. Por outro lado, o calor e o ambiente fechado fizeram com que os aromas etílicos emanados por ela aumentassem de intensidade.

Temendo que seu cheiro e suas roupas remendadas chamassem a atenção dos clientes, funcionários e guardas de segurança do banco, Jolan decidiu se apressar e parou junto à primeira gaiola de caixa que viu. Naquele fim de tarde, aquele posto era ocupado pelo tesoureiro sênior Russell Runyon, da Liga de Cavalheiros, justamente o encarregado de camuflar as fraudes cometidas pelo grupo. Jolan remeteu um sorriso cativante para o atendente.

“Eu gostaria de ver o saldo de minha conta.”

Você é cliente daqui?” A voz e o olhar de desprezo de Runyon mostravam claramente sua perplexidade com o fato de a mocinha andrajosa e com cheiro de aguardente alegar ter conta no Union.

Se havia uma coisa que Jolan Slezsak sabia fazer bem era lidar com pessoas presunçosas. Ela rebateu desprezo com ironia.

“Esse é o Union Industrial Bank, não?”, perguntou. “Ou será que entrei no lugar errado?”

Russell Runyon não teve alternativa senão a de concordar.

“Sim, somos nós”, o tesoureiro disse-o como se fosse sócio da instituição e não o integrante de um bando de ladrões que apenas trabalhava lá.

Jolan abandonou o tom de deboche e falou sério. Explicou a respeito da poupança que seu pai abrira em seu nome antes de morrer. Falou também dos requisitos testamentais para saque e disse que iria se casar no dia seguinte. Naquele momento só queria saber o saldo.

O caixa pediu licença e foi até o setor de poupança, do outro lado do saguão. Examinou algumas fichas e retornou para sua gaiola.

“Como se trata de uma conta inativa há muito tempo, precisaremos de alguns dias para ver o saldo e organizar o saque.”

Russell Runyon acabara de ver que a poupança de Jolan Slezsak estava zerada, pois o dinheiro da garota se juntara ao bolo desviado pela Liga para as especulações na Bolsa. A conta teria de ser refeita e isso levava realmente algum tempo, pois seria necessário fazer cálculos de juros e pesquisar os lançamentos feitos no livro secreto do caixa dois dos trambiqueiros.

Jolan não gostou nem um pouco da explicação.

“É melhor que você tenha o meu dinheiro pronto na próxima semana, quando virei buscá-lo. Caso contrário, enviarei o senhor Gold- berger aqui.”

“Você conhece o senhor Goldberger?”, Runyon tomou um susto.

Aquela afirmação mudava tudo de figura. Ele sabia que o advogado Ephraim Goldberger cuidava dos assuntos, inclusive financeiros, da colônia húngara de Flint, que incluía diversos correntistas do Union Industrial. Pior: Goldberger era um dos acionistas do banco. Russell Runyon não haveria de pôr o golpe da Liga em risco por causa de algumas centenas de dólares de uma garota praticamente maltrapilha e fedendo a bebida.

“Quando a senhorita voltar munida da certidão de casamento e de uma cópia do testamento de seu pai”, o tom do tesoureiro agora era de subserviência, “seu dinheiro estará à disposição”. Runyon arreganhou um sorriso forçado.

Jolan saiu do banco pisando duro. Lá fora caíam os primeiros flocos de neve do inverno de 1929/1930. Ela apressou o passo e foi para casa. Ao chegar, viu que os preparativos para a festa estavam a pleno vapor. Não havia folga para ninguém, nem mesmo para a noiva. Ela se juntou aos trabalhos, totalmente despreocupada com o dinheiro.

Os homens da família, inclusive o noivo, Steve Vargo, levavam do porão para a parte de cima jarros e mais jarros de bebida recentemente fermentada ou destilada. Calculava-se que cada adulto do sexo masculino consumiria em média meio litro. E muitas mulheres também bebiam, algumas tanto quanto seus maridos.

As mães de Jolan e de Steve, auxiliadas por senhoras da vizinhança, preparavam uma série de iguarias húngaras que se juntariam a outras tantas que seriam trazidas por convidados. A festa aconteceria no porão da igreja católica de Saint Joseph, próxima dali, onde mesas haviam sido montadas sobre cavaletes e cobertas com lençóis brancos cedidos pelos vizinhos. Louças e talheres, boa parte emprestados, estavam dispostos sobre os lençóis.

John Bokr, o merceeiro do bairro, que alguns consideravam uma pessoa mais influente do que o advogado Goldberger, dera sua palavra a Andrew Arway, padrasto de Jolan, que não haveria nenhum problema com os rapazes da Lei Seca (prohibition boys).

Bokr tomara as devidas providências junto às autoridades da prefeitura de Flint para que, durante a recepção que se seguiria ao casamento, as eventuais abordagens na igreja fossem feitas pelo Departamento de Polícia local com instruções específicas para afastar dali qualquer agente da Prohibition.

Usando o velho e bem testado método de camuflagem da garotinha Margaret sentada em seu carrinho, à noite Jolan e Steve fizeram diversas viagens entre a “destilaria” e a sacristia da igreja transportando as jarras de bebida, que foram escondidas atrás das garrafas de vinho da comunhão e das caixas de hóstias.

À meia-noite Jolan Slezsak, que no dia seguinte se tornaria a senhora Jolan Vargo, foi se deitar. Excitada demais para dormir, ela limitou-se a fechar os olhos enquanto imaginava como seria ter um homem ao seu lado na cama. Jolan não tinha a menor ideia de como os casais agiam nessas horas. Só sabia que tinha algo a ver com a chegada de bebês. Pensou em algumas cenas que presenciara com vira-latas de rua e não conseguiu evitar um sentimento de repugnância.