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Quinta-Feira Negra

Em Flint, após passar a noite rolando na cama sem conseguir dormir, às seis e meia da manhã de quinta-feira Frank Montague, vice-presidente do Union Industrial Bank e cavalheiro da Liga, decidiu se levantar. O dia ainda não nascera. Abrindo um pouco a cortina da janela do quarto, ele viu refletidas na neve as luzes dos postes da rua.

Na véspera, antes de se deitar, Montague conversara ao telefone com o colega vice-presidente John de Camp e com os tesoureiros Ivan Christensen e Elton Graham, os únicos de seus comparsas nas fraudes contra o Union que possuíam telefone em casa. Nenhum deles apresentou qualquer solução imaginativa, mesmo que absolutamente desonesta, para o problema que teriam de enfrentar assim que chegassem ao banco: como cobrir as chamadas de margens relativas às perdas da quarta-feira.

A noite em claro serviu para Frank Montague tomar uma decisão: raspar todo o dinheiro das contas-correntes e poupanças pouco movimentadas dos clientes do Union Industrial e jogar no mercado, alavancando o máximo possível, e, ao mesmo tempo, inventar alguma desculpa para protelar o pagamento dos reforços de margens aos corretores. Esperava que seus “sócios” concordassem com a medida extrema, cujas chances de êxito eram quase nulas, a não ser que a Bolsa subisse muito ao longo de todo o dia, coisa que, àquela altura dos acontecimentos, nem o mais otimista dos touros acreditava.

Se Montague estava tão aflito, o estado de espírito do também vice-presidente do banco Milton Pollock, outro que já se levantara, era do mais profundo desespero. Pollock temia que sua mulher, Elizabeth, muito doente, pudesse ter seu estado agravado e até morrer de desgosto quando os desfalques do marido, dos quais ela não tinha o menor conhecimento, fossem descobertos e ele, preso.

Os ventos gelados que açoitavam os poucos pedestres que se expunham nas ruas de Flint não impediram que o carteiro Homer Dowdy iniciasse sua primeira ronda de entregas no horário de sempre: sete da manhã. Sua sacola postal estava mais pesada do que o costume, carregada de envelopes pardos enviados pelas sociedades corretoras da Bolsa aos seus clientes.

Se ao longo da maior parte do ano de 1929 os envelopes costumavam conter os cheques correspondentes aos lucros dos especuladores, eles agora, nas últimas semanas, levavam cada vez mais cartas de cobranças de margens. Dowdy percebia isso só pelo rosto tenso e amedrontado dos destinatários que abriam suas portas ao primeiro toque das campainhas. E sem-cerimônia batiam as mesmas portas na cara do carteiro tão logo assinavam o protocolo de recebimento.

Havia algum tempo a linguagem usada nos textos das mensagens das corretoras evoluíra de “educada” para “educada e categórica” e, nos últimos dias, para “categórica e ameaçadora”.

“O senhor tem até o meio-dia de hoje, quinta-feira, dia 24 de outubro de 1929, para depositar (por exemplo) 655 dólares. Caso contrário, suas ações serão imediatamente vendidas a mercado. Se o valor de venda não for suficiente para cobrir seu débito, a diferença terá de ser depositada até o fim do expediente bancário.

O que o carteiro Homer Dowdy não sabia, nem tinha como saber, era que sua suada poupança no Union Industrial Bank, acumulada dólar a dólar para atender às despesas do tratamento médico de sua mulher e a educação de seus filhos, estava no mesmo barco que, descendo correnteza abaixo em direção ao abismo, continha o dinheiro dos especuladores da cidade, inclusive o de um grupo de diretores e funcionários desonestos do próprio banco.

Enquanto caminhava pelas ruas, Dowdy ponderou pela primeira vez a hipótese de sacar seu dinheiro e guardá-lo em casa sob o colchão. “Quem sabe, essas pessoas que jogam na Bolsa não vão ter condições de pagar suas dívidas e alguns bancos não poderão arcar com o prejuízo.”

Tendo deixado seu escritório à uma e meia da madrugada de quarta para quinta-feira, seis horas mais tarde, Hutton-Miller, da W. E. Hutton and Company, estava de volta ao Distrito Financeiro. Caminhando por Wall Street, ele notou que as filas do lado de fora das corretoras e dos bancos eram maiores do que em qualquer ocasião da qual ele podia se lembrar. Dizia-se que no pânico de 1907 também fora assim, mas em 1907 Hut Miller era apenas um garotinho de 3 anos.

Alguns investidores haviam passado a noite em speakeasies e ainda estavam bêbados. Outros vestiam roupas amarrotadas, pois tinham dormido nos saguões dos hotéis lotados ou mesmo nas ruas sob as marquises dos prédios.

Rumores os mais diversos corriam pelas filas. “O presidente Hoover vai tomar providências”; “A Bolsa de Valores não irá abrir”; “John Jakob Raskob tem um ‘plano de salvação’”; “Charles Mitchell bolou um ‘esquema’”.

Uma multidão se formara em frente ao número 23 de Wall Street, sede da Casa Morgan. Corria o boato de que Jack Morgan iria intervir para salvar o mercado, tal como seu pai, o finado John Pierpont Morgan, fizera 22 anos antes.

Outro ajuntamento, este composto em grande parte por italianos, fincara pé em frente ao prédio do Bank of America. Eram correntistas do banco querendo ouvir uma palavra tranquilizadora de “papa” Amadeo Peter Giannini ou de seu sócio, Elisha Walker. Só que Giannini estava em São Francisco e Walker, a bordo do Overland Express, viajava ao encontro dele.

O mesmo tipo de coisa acontecia em frente às corretoras e bancos mais importantes, onde pessoas aflitas se agrupavam, como se a proximidade das instituições financeiras com as quais tinham negócios tivesse o poder de aliviar seus temores. Passando em meio a toda aquela gente, Hut Miller notava claramente a ansiedade no rosto de cada um.

Huge Crowd Standing on Stock Floor

Especuladores aguardam notícias na porta de uma sociedade corretora

Wall Street, Nova York, EUA, 24 de outubro de 1929

Latinstock/© Bettmann/corbis/Corbis (DC)

Quando chegou à sua instituição, Hut encontrou a entrada bloqueada por um grupo de homens e mulheres. Para superar o obstáculo, o jovem executivo precisou da ajuda dos guardas de segurança da empresa. Mas não teve como evitar vaias e insultos. Já lá dentro, Hutton-Miller viu que muitos dos seus colegas haviam passado a noite toda trabalhando, a maioria fazendo cálculos de chamadas de margens para poder despachar telegramas para os clientes.

Por volta das oito da manhã, Charles Stewart Mott, presidente do conselho diretor do Union Industrial Bank e segundo homem na hierarquia da General Motors, sentado em sua sala no quartel-general da montadora em Detroit, tinha de lidar com dois problemas simultâneos, um de ordem profissional, outro envolvendo sua vida particular.

Mott tentava fazer projeções de números para a inevitável queda nas vendas de carros provocada pela adversidade nas Bolsas e, simultaneamente, estudar os termos de um comunicado à imprensa dando conta de seu divórcio da senhora Mott — em solteira, a jornalista Dee Van Balkom Furey —, após menos de sete meses de um casamento que não tivera sequer um dia feliz. Num momento difícil para a GM e possivelmente para o banco — e Charles Mott não sabia de nada sobre o tumor maligno que já corroía as entranhas do Union Industrial —, ele não queria ser perseguido por um bando de repórteres bisbilhoteiros e de colunistas de mexericos.

A General Motors estava bem preparada para a crise em Wall Street. Desde o dia 4 de outubro, o presidente Alfred Sloan previra o fim da expansão industrial consequente da euforia de consumismo que o país experimentara nos últimos anos e decretado uma política de austeridade para a companhia.

Na ausência dos irmãos Amadeo e Doc Giannini e de Elisha Walker, E. C. Delafield respondia pelos negócios do Bank of America em Nova York. Respondia apenas em tese, pois não tomava nenhuma decisão importante sem antes consultar seus superiores. Como há uma diferença de três horas de fuso horário entre as costas Leste e Oeste, Delafield esperou até às nove da manhã para telefonar para A. P., que ainda dormia em San Mateo, Califórnia.

A campainha soou diversas vezes antes de Giannini acordar e descer até o térreo da casa para atender a chamada. Sem prolegômenos, Delafield, cuja voz não escamoteava seu deplorável estado de nervos, disse a Amadeo que o banco parecia estar sob sítio — a multidão lá fora crescera para centenas de pessoas, todas querendo se certificar de que seu dinheiro estava seguro.

Embora Giannini tenha logrado êxito em acalmar Delafield, no fundo ele preferia que pelo menos Doc e Walker estivessem naquele momento em Wall Street, e não impotentes na cabine de um trem. Como àquela altura o Overland Express devia estar se aproximando de São Francisco, Giannini decidiu tentar persuadi-los a voltar de avião para Nova York, coisa que ele, A. P., definitivamente não tinha a coragem de fazer, e muito menos se sentia no direito de obrigar outras pessoas a arriscar a vida pelo banco.

Prevendo horas críticas pela frente, Giannini decidiu transferir o posto de comando de suas empresas para o último andar do Mark Hopkins Hotel em Nob Hill, uma das colinas de São Francisco, onde mantinha uma suíte exclusiva. De lá, ele podia telefonar para todos os lugares sem ser importunado por chamadas de fora.

O motorista Joe Garcia levou A. P. para o hotel. Pouco antes de chegarem ao destino, Giannini pediu a Garcia para desligar as luzes de viatura do Corpo de Bombeiros do Rolls-Royce, tentando passar despercebido.

Eram nove e meia da manhã em Nova York. Jesse Livermore se movia sem descanso entre as salas de seu complexo de escritórios. Emendava um charuto no outro enquanto fazia a mesma pergunta a cada um dos seus assessores:

“Tudo foi checado?”

“Sim, chefe. Sim, patrão. Sim, Jesse. Sim, senhor Livermore.” A resposta era sempre a mesma, só variando o tratamento.

Apesar de a maioria do staff de Livermore ter passado a noite estudando o comportamento do mercado na véspera, agora, enquanto o mais notável dos ursos e seu pessoal aguardavam o início do pregão, ninguém tinha coragem de garantir a ele que a queda prosseguiria. Todos esperavam que o patrão, como quase sempre ocorria, se baseasse no sentimento de suas entranhas antes de decidir como operar naquela quinta-feira.

Exatamente 22 anos antes, em outro 24 de outubro, Jesse Livermore, no auge do Grande Pânico de 1907, ganhara 250 mil dólares vendendo ações a descoberto. Só que, desta vez, suas vísceras emitiam sinais conflitantes, algumas o aconselhando a não vender a qualquer preço.

Faltando quinze minutos para a abertura da Bolsa, John Jakob Raskob, em seu escritório privativo no número 230 da Park Avenue, já mantinha os olhos fixos em sua unidade de ticker-tape. Era como se o comportamento das ações naquele dia fosse depender de uma marcação severa sobre a máquina. Raskob temia que um colapso do mercado implodisse seu projeto de construção do Empire State Building, antes mesmo que as primeiras vigas de aço do arranha-céu fossem forjadas.

John Raskob não era o único a marcar de perto sua ticker. Naquele momento, cada qual em seu canto, Joe Kennedy, Billy Durant, Arthur Cutten e Charles Mitchell faziam o mesmo.

Pat Bologna era outro que tinha plena consciência da importância daquela quinta-feira. Ao se encaminhar para sua banca de engraxate, Bologna se impressionara com o silêncio expectante da multidão, agora que o momento do soar do gongo no recinto da Bolsa se aproximava.

A chegada de alguns caminhões da polícia na Baixa Manhattan só contribuiu para aumentar o clima de ansiedade. As viaturas foram estacionadas de través no meio da rua de modo a bloquear o tráfego em Wall Street a partir da esquina com a Broadway. Seus ocupantes desceram e se espalharam pelo Distrito Financeiro.

Nove e cinquenta da manhã. O superintendente da Bolsa, William Crawford, fazia uma última inspeção no recinto de negociações, já abarrotado de operadores e auxiliares, para ver se estava tudo em ordem, quando um dos ajudantes do presidente em exercício, Richard Whitney, lhe trouxe um recado: Crawford devia estar preparado para receber um visitante ilustre, Winston Churchill, ex-chanceler do Erário britânico.

O superintendente não gostou nem um pouco da missão. Logo num dia em que era previsto um enorme volume de negócios, com chances de atraso recorde na ticker-tape, ele tinha de servir de cicerone a um figurão. A chegada de Churchill — disse o emissário de Whitney — aconteceria na parte da manhã.

Nos escritórios das sociedades corretoras o trabalho era intenso. Um número de ordens sem precedentes, a maioria de venda, chegara durante a noite. Já as ordens de compra fixavam preços bem abaixo das mínimas da quarta-feira.

Faltando dois ou três minutos para a abertura, William Crawford se dirigiu ao pódio. Subiu vagarosamente os degraus. Quando seu cronômetro marcou dez horas em ponto, ele bateu com força incomum o gongo. Ao fazê-lo, deu início à sessão de 24 de outubro de 1929, dia que a história dos mercados marcaria para sempre como Black Thursday, ou Quinta-Feira Negra.