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Dono da América

Por volta das duas da tarde, em Flint o vice-presidente do Union Industrial Bank, Frank Montague, e seus comparsas da Liga de Cavalheiros John de Camp, Milton Pollock, Elton Graham e Ivan Christensen apuraram que o rombo escavado por eles nas contas dos clientes passava de 2 milhões de dólares.

O terminal da ticker-tape instalado no banco, que agora rodava com um atraso de duas horas, mostrava a Westinghouse cotada a 160 dólares e a General Motors, a 283.

“Nós temos de pular fora”, disse Montague, sem que nenhum dos colegas defraudadores o contestasse. Como não o contestariam se o vice-presidente dissesse que deveriam comprar mais. Àquela altura dos acontecimentos ninguém mais tinha esperança de se safar da enrascada em que haviam se metido.

Pouco depois das três da tarde, logo após o fechamento do mercado, Thomas Lamont, que respondia pelo J. P. Morgan na ausência de Jack Morgan — de férias em seu castelo na Inglaterra —, tomou uma atitude inédita na história do banco. Convocou uma coletiva de imprensa.

Portrait of Mr. Thomas Lamont

Thomas Lamont era o segundo em hierarquia na Casa Morgan

Nova York, EUA, 16 de junho de 1930

Latinstock/© Bettmann/corbis/Corbis (DC)

“Não há corretoras com problemas financeiros e todos os reforços de margem cobrados dos clientes de cada uma estão sendo cobertos de modo satisfatório”, garantiu aos jornalistas o sisudo Lamont, que, diga-se a bem da verdade, não dispunha de dados para corroborar suas afirmativas.

Quem sabe devido às declarações de Thomas Lamont, ou talvez por causa das compras feitas por Richard Whitney nos diversos postos da Bolsa em cumprimento do “suporte organizado”, o certo é que, apesar da enorme baixa do dia, os noticiários noturnos das rádios apresentaram um viés otimista para a sexta-feira, 25 de outubro.

“O pior já passou”, foi a tônica de alguns dos analistas entrevistados pelas emissoras. “O rally do final da sessão deverá ter prosseguimento amanhã”, anteviram os mais otimistas.

Só às 19h08, com quatro horas e oito minutos de atraso, a ticker-tape parou de rodar, dando números finais ao dia. Um total recorde de 12.894.650 ações, representando 974 empresas dos mais diversos ramos de atividade, trocou de dono.

O mercado caíra 11%. Três bilhões de dólares tinham sido perdidos pelos investidores, dinheiro esse que simplesmente deixou de existir. Boa parte da multidão que se concentrara em Wall Street e arredores ao longo do dia permaneceu no local, atordoada demais para voltar para suas casas. Muitos se sentavam nos meios-fios em profundo silêncio. Seus sonhos de riqueza fácil haviam esmaecido.

Temendo distúrbios e cenas de vandalismo, a chefia da polícia metropolitana enviou um pelotão para passar a noite no Distrito Financeiro.

Em certo momento alguém apontou para o alto de um arranha-céu, onde um operário fazia um reparo na fachada. Logo se espalhou que se tratava de um especulador querendo pular. Não faltaram gritos de incentivo.

O surto coletivo de trauma e medo não se limitava a Nova York. Em todo o país investidores não arredaram pé das sociedades corretoras com as quais faziam negócios, como se os preços dos papéis pudessem ser defendidos com sua simples presença.

O dia fora intenso para a astróloga de Wall Street, Evangeline Adams. Em seu estúdio no prédio do Carnegie Hall, ela se vira obrigada a cancelar as consultas individuais, trocando-as por sessões coletivas. Caso contrário não poderia dar conta da fila de consulentes que aguardavam suas previsões para o comportamento do mercado nos próximos dias.

Evangeline dissera dois dias antes que a Bolsa sofreria um crash. Mais do que isso: garantira até que as piores horas seriam na parte da manhã de quinta, com uma recuperação no período da tarde. Agora seus clientes queriam saber se o mercado atingira o fundo do poço ou não.

Usando palavrório astrológico, no qual alegava interdependência da Bolsa com o alinhamento de certos planetas, desta vez Evangeline Adams errou. E errou feio, como os dias, semanas, meses e anos seguintes iriam mostrar. Ela simplesmente vaticinou uma forte alta das cotações, alta essa que começaria na manhã seguinte.

Grupos aliviados de investidores puderam ser vistos deixando o Carnegie Hall no final da tarde e início da noite de 24 de outubro. Nenhum deles sabia que a vidente dera ao seu corretor ordens expressas de zerar sua carteira de títulos ao soar do gongo de abertura na sexta-feira. Ao prever uma alta, a astróloga quisera apenas criar um fluxo comprador para dar liquidez às suas vendas.

No entender de Jesse Livermore, as perdas mais significativas realizadas até agora haviam se concentrado na arraia-miúda, uma vez que a maior parte dos negócios do dia se compusera de lotes pequenos. Os grandes especuladores tinham mantido seu sangue-frio e permaneciam comprados.

Livermore estava extremamente aflito, pois não contara com a violência da queda. Urso atávico, não ganhara um centavo sequer nem na quarta nem na quinta. Para um profissional como ele, o fato de perder uma oportunidade ímpar como aquela já significava enorme fracasso, mesmo que boa parte de seus pares estivesse se esvaindo em sangue e ele, ileso.

A atuação do consórcio de bancos liderada pelo Morgan deixara John Jakob Raskob feliz. Após passar o dia acompanhando a Bolsa, Raskob foi para casa convicto de que os recursos para a construção do Empire State Building não corriam risco.

Na suíte do último andar do Mark Hopkins Hotel, em São Francisco, eram 16h08 quando a ticker-tape de Amadeo Peter Giannini cuspiu o último negócio do dia. A. P. respirou fundo. Embora os papéis da Transamerica tivessem enfrentado forte onda vendedora durante a sessão da Bolsa de Nova York, eles acabaram fechando com baixa de apenas um dólar.

Naquele momento o irmão e o sócio de Amadeo, respectivamente Doc e Elisha Walker, voavam de volta para Nova York a bordo de um trimotor Boeing 80 da United Airlines, que faria apenas um pernoite no meio do caminho. Se as condições meteorológicas fossem favoráveis, no sábado os dois já estariam em seus postos em Wall Street.

Encerrado o pregão, Giannini pediu ao room service do hotel uma refeição de espaguete e mandou chamar lá embaixo o motorista Joe Garcia para comer com ele. Assim que terminaram, A. P. foi tirar um cochilo. Garcia postou-se no corredor do lado de fora da suíte, de onde não deixaria nenhum intruso interromper o descanso do patrão.

O especulador Billy Durant perdera dinheiro naquela quinta, embora não tanto quanto chegara a temer em certo momento do dia — antes da chegada do socorro dos banqueiros. Agora Durant estava otimista para a sessão de sexta-feira.

Durante o jantar, em seu luxuoso apartamento da Quinta Avenida, sua mulher, Catherine, admirou-se da calma com que o marido enfrentava o momento crítico. Faminto, Billy comeu por dois.

O comportamento do mercado nova-iorquino na Quinta-Feira Negra, dia 24 de outubro de 1929, repercutiu em todo o mundo.

No mercado informal de rua de Shorters Court, em Londres, mesmo sob forte chuva, os corretores, ensopados, continuaram negociando com ações americanas até altas horas da noite. Os papéis caíram para níveis bem abaixo do fechamento em Nova York. Foi preciso que policiais da Scotland Yard encerrassem o “pregão” por causa da barulheira.

Em Paris havia euforia. Os financistas de lá acreditavam que a Bourse parisiense poderia se beneficiar de uma provável repatriação de capital francês que se movera para Nova York em busca de melhores ganhos. Já a Berlin Börse acompanhara Wall Street tanto na queda da primeira metade do pregão quanto na recuperação no fim do dia.

Após ponderar todas as notícias, o editor financeiro do The New York Times, Alexander Noyes, optou pelas seguintes manchetes que estampariam a primeira página da edição de sexta:

 

Crash abafado pelos bancos

 

12.894.650 ações inundam o mercado

 

Líderes conferenciam e deduzem que as condições são sólidas

 

Financistas reduzem as tensões

 

Queda foi técnica

 

Wall Street otimista após dia tempestuoso

Charles Mitchell, do City Bank, terminara o dia praticamente quebrado, mesmo tendo informações privilegiadas, já que participara da reunião na Casa Morgan. Na verdade, as informações não tinham lhe valido muito, pois no momento em que as obteve já estava com todo seu dinheiro comprometido em operações a termo. Assim não pôde comprar mais nada antes do início das atividades do suporte organizado dos bancos, o tal fundo de 50 milhões de dólares.

Nos cinco semestres compreendidos entre janeiro de 1927 e julho de 1929, Mitchell ganhara 3,5 milhões de dólares em participações nos lucros do banco. Esse dinheiro lhe permitiria viver confortavelmente até o fim de seus dias. Só que Mitchell quis mais, muito mais, alavancou sua fortuna no mercado e ao final da Quinta-Feira Negra só lhe restavam esperanças. Esperanças de que a Bolsa se recuperasse desde o primeiro minuto do pregão de sexta-feira, antes que ele fosse chamado para comparecer com reforços de margens.

Na noite de 24 de outubro o músico Irving Berlin trabalhava até altas horas nos estúdios da United Artists, na Califórnia, com o coreógrafo Maurice Kusell. Começou a circular no estúdio a notícia de que algo muito sério ocorrera nas bolsas de valores.

Mesmo tendo sido instado na véspera por Charles Chaplin a liquidar sua carteira, Berlin recebeu a notícia impassível.

“Vou aproveitar essa crise”, o compositor disse para Kusell, “para comprar mais. E se o mercado continuar caindo comprarei ainda mais. Até ser dono de toda a América”.