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O cabo austríaco

Assim como aconteceu em quase todo o mundo, o boom econômico que a Alemanha vivera nos Roaring Twenties veio abaixo com o crash de 1929 e com a depressão que se seguiu. Dessa tragédia valeu-se o ex-cabo Adolf Hitler, abutre sinistro que se alimentava de crises para incrementar o poder político de seu mais do que radical e xenofóbico Partido Nazista, que quase caíra no esquecimento nos tempos de prosperidade da República de Weimar.

Não é exagero afirmar que Hitler foi a consequência mefistofélica da queda da Bolsa. Senão vejamos:

Em 1929 os filiados do Partido Nazista, decadente após o sucesso inicial, somavam apenas 178 mil, numa população de 65 milhões. Um ano mais tarde, nas eleições parlamentares, agora tendo ao fundo um cenário de 4 milhões de trabalhadores desempregados, os hitleristas obtiveram 6 milhões de votos, o que lhes valeu a segunda maior bancada do parlamento: 107 cadeiras. Os nazistas de carteirinha, contribuintes do partido, eram agora 800 mil.

Em suas diatribes histéricas, pronunciadas perante multidões hipnotizadas que incluíam milhares de homens das SA (Sturmabteilung — divisões de assalto) usando camisas marrons e braçadeiras com suásticas, Hitler prometia uma Alemanha forte e autossuficiente.

Em 1932 realizaram-se eleições presidenciais, com Hitler concorrendo contra o presidente em exercício, o venerando e popular marechal Hindenburg, então com 84 anos. O desemprego subira para apocalípticos 9,5 milhões.

Tal como se esperava, Hindenburg venceu, mas lhe faltou 0,4% dos votos necessários para obter a maioria exigida por lei. Houve necessidade de um segundo turno para o marechal se manter no cargo.

Nas eleições seguintes, para o Parlamento, os nazistas, sempre com a proposta de emprego para todos, tornaram-se o maior partido alemão, conquistando 230 de um total de 608 cadeiras. Hitler recusou a vice-chancelaria que lhe foi oferecida pelo chanceler de Hindenburg, Franz von Papen.

As tropas de assalto de Hitler transformaram a vida alemã em um sobressalto constante, espancando e matando adversários políticos, empastelando redações e gráficas de jornais que lhes opunham e saqueando lojas de judeus. Finalmente, temendo uma guerra civil, Hindenburg ofereceu o cargo de chanceler a Adolf Hitler.

Tendo aceitado a chancelaria, Hitler quis aumentar seu poder e exigiu novas eleições, no que foi atendido. Na segunda-feira, 27 de fevereiro de 1933, dias antes da votação, o chanceler foi extremamente beneficiado por um incêndio criminoso. Era noite quando o edifício do Parlamento, Reichstag, ardeu em chamas, obra de um jovem comunista holandês com problemas mentais, Marinus van der Lubbe. Como seria praticamente impossível uma pessoa sozinha provocar um incêndio de proporções tão grandes, é provável que agentes nazistas, interessados em ver o circo, literalmente, pegar fogo, tenham facilitado a tarefa de Lubbe, espalhando gasolina pelos corredores do prédio.

Aproveitando-se do incidente, Hitler conseguiu a aprovação de um decreto suspendendo os direitos civis. Sua recém-criada polícia, a Gestapo, prendeu 4 mil comunistas. Nesse clima de medo e coerção, os nazistas elevaram sua bancada de 230 para 288 cadeiras. Embora esse número não significasse maioria absoluta, Hitler, com seus métodos truculentos, conseguiu a aprovação de uma lei, o Ato de Capacitação, que lhe permitiu governar por decreto. Era o início de uma das mais sangrentas ditaduras da história, por certo mais um subproduto do crash de Nova York. Para começar, 24 parlamentares que faziam oposição aos nazistas foram assassinados por eles.

Com um gigantesco programa de obras públicas — autoestradas, pontes, túneis, barragens, portos e replantio de florestas — e de incentivo à indústria bélica, o governo nazista trouxe o índice de desemprego para níveis desprezíveis, façanha que pouquíssimos países haviam conseguido naqueles meados dos tenebrosos anos 1930.

Adolf Hitler passou a ser cultuado, dentro e fora da Alemanha, como um gênio econômico, um homem que derrotara a depressão, transformando seu país em uma ilha de prosperidade. Se derrotara também a democracia e as liberdades individuais, se perseguia os judeus e outras minorias, se defendia teorias raciais esdrúxulas e extremadas, se divulgava ideias expansionistas, para os alemães isso não importava muito. O que valia era não sofrer a humilhação da miséria e do desemprego.

No dia 2 de agosto de 1934, Hindenburg morreu. Mais do que depressa, Adolf Hitler se autonomeou presidente, acumulando o cargo com o de chanceler e dando a si próprio o título de Führer (chefe). Exigiu que todos os oficiais e soldados das forças armadas lhe jurassem obediência incondicional. Legitimou seus atos submetendo-os a um plebiscito, no qual obteve 90% dos votos. Pôde então dar início aos seus projetos de expansão territorial.

O primeiro ato do “Reich de Mil Anos”, que era como Hitler se referia à “sua” Alemanha, foi anexar a Áustria, operação conhecida como Anschluss, que as potências a leste e a oeste aceitaram passivamente. Não era Adolf Hitler austríaco? Não fora recebido triunfalmente em Viena? Um referendo popular, levado a cabo na Áustria e na Alemanha, não aprovara a fusão dos dois países, com 99,7% dos votos a favor? Quem poderia ser contra?

À anexação da Áustria seguiu-se a conquista da Tchecoslováquia, aceita passivamente por França e Inglaterra. Veio então a invasão da Polônia, no dia 1o de setembro de 1939, quando tropas alemãs irromperam através da fronteira.

Desta vez os ingleses e os franceses reagiram, dando início à Segunda Guerra Mundial, a última e pior consequência do crash da Bolsa de Valores de Nova York, ocorrido dez anos antes. A depressão econômica mundial dera lugar ao maior morticínio de todos os tempos.