Construção da identidade da antropologia na área de saúde: o caso brasileiro
Introdução
Neste artigo proponho realizar uma discussão sobre o estado da arte da antropologia no campo da saúde no Brasil, a partir de revisões já elaboradas por alguns autores, e levantar pontos que julgo importante assinalar como desafios, caminhos de possibilidades e rumos a serem tomados, nesta relação. A hipótese aqui levantada é de que existe um campo de conhecimentos em plena efervescência e em construção de sua própria identidade.
Este estudo não tem pretensões de aprofundamento epistemológico e sim, de acompanhar e descrever o movimento de constituição dessa nova "interdisciplina", ou seja a rede de produção e de reprodução do saber e das práticas antropológicas que, por sua vez, se incorporam ao campo da saúde. Para tal recorrerei a alguns conceitos e noções da sociologia da ciência, tais como "rede", "campo", "comunidade científica" e outros.
Utilizo o termo "rede" tal como vem sendo usado recentemente no âmbito da teoria das organizações. Ou seja, como uma noção que define as articulações entre indivíduos, núcleos e instituições, criando conexões por onde circulam informações, criam-se elos e constituem-se "focos de irradiação" de concepções, práticas e referências. O conceito de campo científico foi desenvolvido por Bourdieu (1983) para significar o espaço estruturado de lutas pelo monopólio da autoridade, da competência e do crédito científico, dentro das mesmas leis e interesses que regem a acumulação de capital. Bourdieu faz uma crítica profunda ao conceito de comunidade científica desenvolvido por Kuhn (1982) que idealizava esse grupo social como autônomo, insulado e auto-reprodutor, demonstrando como a competição, a desigualdade, os interesses, o conservadorismo e as resistências estão na lógica de organização da prática científica.
Na perspectiva de Latour & Woolgan (1979) que enaltecem a importância de se conhecerem etnograficamente os laboratórios e grupos de pesquisar é preciso relativizar a idéia de "ciência enquanto mercadoria" desenvolvida por Bourdieu.
Para esses autores, a informação produzida por cientistas adquire valor enquanto serve a outros para se gerarem novas informações, havendo uma clara associação entre o ciclo do cientista e o ciclo de investimento do capital. Mas o sentido do crédito científico está mais vinculado a sua credibilidade e ao poder do que ao capital econômico propriamente dito.
O conceito de "prática científica " de Knorr-Cetina (1982) também é importante para os objetivos deste trabalho. A autora faz críticas aos estudos que tomam a comunidade científica como uma unidade organizacional independente. Propõe, ao invés, o conceito de arena transepistêmica e campos transcientíficos para designar o espaço das interações. Para a autora, o trabalho científico é perpassado e sustentado por relações e atividades que transcendem os laboratórios e grupos de pesquisa. No seu cotidiano, estão permanentemente confrontados por pessoas e argumentos que não podem ser classificados nem como puramente científicos e nem como não-científicos. Nesse campo ou arena transitam demandas acadêmicas, sociais, de agências de financiamento, das indústrias, do estado, das instituições, assim como parcerias e trocas científicas e de cientistas envolvidos na negociação e administração de recursos. De acordo com Knorr-Cetina, as arenas transepistêmicas são constituídas, dissolvidas e reconstituídas na cotidiana e contextualizada atividade cientifica, implicando sempre numa rede interativa de relações entre os vários sujeitos que dela participam, em mútua dependência de informações, recursos e tecnologias. Os interesses, os conflitos de poder e a cooperação são parte dessa dinâmica dentro dos universos de produção e com todo o mundo relacionai, inclusive o leigo, envolvido na construção da ciência.
Desta forma, este artigo se insere nesse universo movimentado e dinâmico no qual a produção científica se processa. Em que pesem todas as críticas sobre os conceitos e autores citados acima: uns porque analisam externamente o fenômeno da produção científica (Kuhn e Bourdieu), outros porque não conseguem captar toda a complexidade etnográfica e o movimento interno e contextual do tema (Latour e Knorr-Cetina), para os objetivos deste trabalho, as contribuições foram fundamentais. Aproveito o conceito de campo de Bourdieu, para tratar os conflitos de interesses e de competência; e a acumulação de conhecimentos; a noção de creditação científica de Latour para mostrar os autores e teorias de referência; e as idéias de prática transepistêmica e transcientífica de Knorr-Cetina para mostrar a intensa interatividade leiga, técnica e transdisciplinar que atravessa as relações entre os saberes antropológicos e da saúde coletiva. Ao mapear esse mundo em construção buscarei focalizar e analisar as seguintes questões:
Os itens assinalados acima não serão tratados separadamente, constituindose em objeto de reflexão transversal a ser processada no desenrolar do conjunto do texto.
Raízes e identidade
Em 1985, Everardo Duarte Nunes e Juan César Garcia coordenaram e publicaram uma obra de grande relevância acadêmica, denominada As Ciências Sociais em Saúde na América Latina. No capítulo introdutório, Nunes (1985:31-79) teceu algumas considerações sobre a Antropologia, as quais resumo aqui.
Os primeiros trabalhos da disciplina sobre o objeto saúde surgem a partir da II Guerra Mundial, quando antropólogos europeus e americanos focalizavam os países subdesenvolvidos como alvos preferenciais dos modelos de saúde pública, gestados nos moldes culturais dos chamados países desenvolvidos. Tratava-se de projetos de compreensão de hábitos e costumes de outros povos e grupos, com o objetivo de transmitir uma certa "ciência da conduta", através da educação sanitária e da orientação para erradicação de doenças transmitidas por vetores. Nesse texto introdutório, Nunes recomenda que vários trabalhos anteriores à década de 50 deveriam ser considerados numa reconstrução arqueológica do saber (Foucault: 1972) antropológico em saúde. Porém assinala que é a partir dessa década que se dá ênfase a uma produção específica.
Se essa produção peculiar partiu de trabalhos americanos e europeus, havia uma considerável diferença entre as abordagens. Os americanos, desde o início, trabalharam junto com os médicos, criando relações de interdisciplinaridade, segundo alguns, ou de dependência disciplinar, segundo outros, tanto nas missões que empreenderam na África, na América Latina e Ásia, como quando procuraram entender sua própria sociedade. Suas contribuições foram desenvolvidas visando à compreensão de sistemas específicos de saúde, das relações médicopaciente, dos universos simbólicos que cercam os fenômenos da vida, da morte e do adoecer, articulando-se sobretudo à clínica, à epidemiologia e ao planejamento do setor, conforme revelam os trabalhos de Raymond Firth (1978) e Cammaroff (1978), ambos citados por Nunes (1985).
Os antropólogos ingleses voltaram-se mais para os povos sob controle colonial, elaborando abordagens holísticas, numa linha estrutural-funcionalista e dedicada a compreender os universos cosmológicos dos grupos específicos. Os temas sobre saúde e doença aparecem, então, vinculados à religião e à magia. É como os tratam, por exemplo, Evans-Pritchard (1978) e Victor Turner (1967 e 1969). Uma avaliação feita pelo Social Anthropology Committee de Londres em 1968, deixa clara a circunscrição da antropologia britânica aos países africanos e orientais e o direcionamento dos estudos para discussões de tabus e práticas alimentares, práticas médicas tradicionais e cosmologias (Fortes, 1976).
Nunes (1985) comenta que a partir da década de 70, organismos internacionais, como a OMS e a OPAS, investiram no fortalecimento das relações entre a antropologia e a medicina, sobretudo incentivando a etnomedicina. O estranhamento das culturas indígenas e subdesenvolvidas pelos sanitaristas de formação campanhista, e as resistências das populações locais em adotarem normas de conduta não condizentes com sua cosmologia, exigiram investimentos antropológicos no sentido de buscar pontos de consenso e de legitimação, e também a utilização dos líderes comunitários e tribais como mediadores das relações entre a medicina oficial e as sociedades alvo.
Por isso mesmo, das décadas de 50 a 70, independente das tradições específicas americanas ou inglesas, a chamada Antropologia Médica se desenvolveu sob a égide de uma categoria cujo nome dispensa maiores comentários: ciências da conduta, junto com a sociologia e a psicologia social, no campo da saúde pública. Ou seja, as ciências da conduta eram elaboradas dentro da corrente funcionalista da sociologia, voltadas para a adequação de normas, saberes e linguagem médica aos diferentes contextos leigos, em particular ao dos povos colonizados e subdesenvolvidos. Estrella (1985) reafirma esse investimento internacional na América Latina, na década de 70, mostrando o interesse conjugado de organismos internacionais e dos estados nacionais. O autor menciona as várias abordagens então em curso, incluindo o treinamento de investigadores locais, passando por estudos sobre o folclore dos grupos-alvo até os trabalhos que se desenvolveram dentro dos marcos da antropologia clássica. Mostra também as tentativas de avanço conceituai e de intervenções que buscaram superar o ponto de vista legitimador-utilitário, em favor de tendências naturalista-humanista e revolucionária que marcaram os esforços dos antropólogos latino-americanos.
Em seu cuidadoso trabalho de revisão, Canesqui (1994) lembra que, nas décadas de 40 e 50, nos Estados Unidos, a antropologia foi incorporada nos programas internacionais de saúde pública, todos eles dirigidos à América Latina, África e Ásia, com forte conotação funcionalista e voltados para estudos de comunidade, tais como preconizados por Foster (1977) e Foster & Anderson (1978) no Smithsonian Institute. Uma contribuição fundamental da antropologia americana da década de 70 foi a categorização e a discussão conceituai dos termos: disease (manifestação patológica em linguagem biomédica); illness (percepção subjetiva expressa em linguagem de senso comum); sickness (expressão cultural da doença). (Kleinman, 1986; Frankenberg, 1980; Young, 1982).
Mesmo com todas as críticas que possam ser feitas, o avanço da Antropologia Médica nos Estados Unidos foi monumental nesses quase 50 anos, influenciando abordagens no mundo inteiro, criando uma rede de especialistas, de instituições acadêmicas e de produção cientifica. Sua representatividade se expressa na Society of Medical Anthropology.
Um contraponto importante à hegemonia americana é dado pela antropologia francesa. Em primeiro lugar, do ponto de vista téorico-conceitual, a contribuição de Lévy-Strauss tanto na postura de relativização das culturas (1970), quanto nas descobertas do pensamento lógico na cultura selvagem (1976) foi fundamental como parâmetro de abordagem, inclusive frente às tentativas de desqualificação de sistemas médicos tradicionais. Em segundo lugar, a antropologia francesa problematizou o sentido do conceito de antropologia médica, mostrando sua concepção reduzida e sua submissão disciplinar e instrumental. (Herzlich, 1984; Laplatine, 1986). Ao invés, passou a trabalhar com a denominação Antropologia da Saúde da Doença, retirando o tema do interior da área medica (embora contendo também esse contexto) elevando-o a uma perspectiva metacultural e comparativa dos fenômenos da saúde, da doença e da cura. (Boltanski, 1979; Herzlich, 1984; Laplatine, 1986).
Quando elaborou a mencionada revisão, Nunes (1985) não se deteve na situação da antropologia brasileira, mesmo porque, a articulação dessa disciplina no campo da saúde era ainda muito incipiente. O autor menciona, na bibliografia, apenas uma tese de mestrado na UNICAMP, a de Oliveira (1983) e notifica, o que possivelmente seria um relatório de pesquisa de Loyola (1977). Esse silêncio que está ligado, com certeza, à escassez de dados, vai ser rompido pelo trabalho de Canesqui (1994) que muito acertadamente delimita a década de 80 para a elaboração de sua revisão. É então que começam a florescer os trabalhos, sobretudo a partir da segunda metade da década, permitindo observar as temáticas recorrentes e as tendências reflexivas.
Com um sistema de Ciência e Tecnologia ainda muito jovem, o Brasil, como seria de esperar, tem sido objeto de estudos de pesquisadores estrangeiros e recebe a influência do debate internacional. Essa exposição ao pensamento e às teorias estrangeiras está se dando cada vez de forma mais amadurecida, mas merece uma reflexão crítica. Nesse contexto, um tema que não me parece menor é a própria categorização da área de antropologia no interior do campo da saúde: antropologia médica ou antropologia da saúde?
Com um conjunto de profissionais formados em escolas francesas e anglosaxônicas ou em centros acadêmicos brasileiros marcados por influências ora de uns ora de outros, existe ambigüidade, permissividade e aleatoriamente na utilização dos termos em questão. Certamente isso revela confusões conceituais e uma certa falta de clareza do próprio lugar ou papel que teria hoje, no país, a antropologia para o campo da saúde. É bem verdade que tal condição de insegurança é alimentada por fatores externos e internos à área. Alguns exemplos ajudam a esclarecer a situação. Um deles é a repetida recusa da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) em abrir um grupo de trabalho sobre Ciências Sociais ou Antropologia da Saúde, evidenciando, mais uma vez, a crônica dificuldade das Ciências Sociais Brasileiras de se abrirem para áreas aplicadas. A alegação reiterada de não ampliar os grupos existentes é também o pretexto para dizer que os temas da saúde cabem melhor na ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Quando, atualmente se conseguiu furar o cerco da ANPOCS, os termos de referência tiveram que se restringir ao título "Pessoa, Corpo e Doença " que apenas parcialmente tem a ver com o que estudam e praticam os antropólogos atuantes no campo da saúde.
Mais recentemente, a ABA (Associação Brasileira de Antropologia) abriu um espaço para esta reflexão específica, augurando aos investigadores que trabalham com o objeto saúde, oportunidade de articulação, troca de experiências e possibilidades de avanço no conhecimento. No entanto o grupo de trabalho também gravita em torno do tema "Corpo e Medicina " ainda não abrangendo o conjunto de objetos identificatórios da área. E no interior das especializações da ABRASCO, a antropologia apenas detém hoje um dos assentos na Comissão de Ciências Sociais, faltando-lhe, portanto, um espaço próprio de reflexão, crescimento e expressão própria.
Tenho como hipótese que essa antropologia brasileira "médica ou da saúde " tenderá a um processo de maturação, impulsionado por vários fatores convergentes:
a) a consolidação de núcleos e linhas de investigação em vários centros e institutos, de antropologia da saúde/medicina. (Passarei a utilizar a forma ambígua de se nomear a sub-área até que tenhamos definido conceitualmente sua gramática);
b) a organização de eventos tais como o I Encontro Nacional de Antropologia Médica (Salvador, 1993), onde os professores/pesquisadores terão que se autoreferenciar;
c) a realização de publicações individuais ou coletivas que impulsionam a reflexão crítica;
d) a demanda da própria área de saúde, explicitando suas necessidades para o recorte disciplinar e suas interações inter ou transdisciplinar.
Como é de conhecimento geral, a identidade se faz, de um lado, a partir dos traços dos progenitores (e no nosso caso, os pais são de origem anglo-saxônica ou francesa). De outro, porém, ela se constrói no confronto com os diferentes e as diferenças externas, ou seja, na própria historicidade. Nessa dialética, a antropologia, pelo seu próprio dever de ofício, e por trabalhar com fenômenos complexos e relacionais, sejam eles numa tribo ou numa mega-cidade, necessita tomar, como objeto, o próprio conceito de saúde como referência identificatória. Se a intenção é focalizá-lo no campo da intervenção técnica do sistema médico, terá um objeto mais restrito, mais delimitado, mais instrumental e passível de melhor controle e demarcação, dentro dos quadros da chamada "ciência normal".
Se entender a saúde como objeto de interesse da sociedade, ou seja, como o conjunto de ações e movimentos que ela promove para se manter saudável, vai retirá-la, conceitualmente, da tutela médica, para ampliar suas fronteiras. E aí se incluem tanto a medicina e a saúde pública assim como todos os temas de relevância que recobrem o universo de uma sociedade saudável. Ou seja, serão seu objeto de reflexão teórico-prática as condições de vida que interferem nas condições de saúde; as políticas públicas e sociais do setor e intersetoriais; os vários sistemas terapêuticos, incluindo-se a atenção em todos os níveis; e por fim, os valores e crenças que dão suporte aos limites da tolerância e vulnerabilidade da sociedade frente ao que afeta sua saúde individual e coletivamente. Nesse caso, o papel da Antropologia, parafraseando White (1991) seria restituir aos fenômenos biológicos, sua verdadeira natureza social, destruindo a indevida "naturalização" empreendida pela ciência, sobretudo pela biologia e pela medicina.
Dilemas do crescimento
Herzlich (1984), White (1991) e Carrara (1994) nos convidam a um olhar construcionista para entender a articulação entre antropologia e saúde/medicina. Nada melhor que isso para uma sub-área que tenta se definir levando em conta fatores internos e externos que influenciam seu crescimento.
Em primeiro lugar, é preciso prestar atenção aos lugares diferenciados de onde falam os antropólogos voltados para a saúde. Porque existem várias situações e posições institucionais em jogo nessa interrelação. Ou seja, ou falam de departamentos de antropologia, buscando diálogo com a área de saúde "stricto sensu" ou de espaços híbridos (institutos, escolas, departamentos de Medicina Social ou Preventiva, Saúde Pública ou Coletiva) onde os antropólogos estabelecem um diálogo nem sempre fácil com profissionais das designadas "ciências duras", "ora nossos aliados, ora concorrentes, ora nossos objetos, ora nossos interlocutores" (Carrara, 1994, 37). Independente da vinculação institucional, há profissionais que trabalham e investigam junto com médicos e epidemiologistas, assim como há outros que se colocam de forma desvinculada dos serviços e atividades de saúde "stricto sensu" e voltados para análises tipicamente disciplinares.
Herzlich (1984) analisando as relações iniciais da sociologia e da antropologia americana com a medicina, destacou que eles (os profissionais dessas áreas) "assumiam e aceitavam" plenamente as concepções médicas dos fatos patológicos". O passo desconstrucionista dessa relação, portanto teria que ser a desmistificação do caráter transcendental do ato médico, para mostrar como ele se origina, se produz e se reproduz no contexto social. Por outro lado o que necessitaria ser construido com todos os instrumentos teóricos e práticos de que a antropologia e as disciplinas do setor saúde dispõem, são as bases dessa relação de cooperação. Pois o que me parece é que, ora de lado, ora de outro, dependendo do tema em questão, uma delas será a dominante.
Analisando essa atitude (construcionista/desconstrucionista) necessária à relação e à tensão entre Medicina/Saúde/Antropologia e ao lugar que deveria ocupar na díade disciplinar, tanto Carrara (1994) quanto Herzlich chamam atenção, para os riscos da radicalização, sobretudo quando se propõem fórmulas que não nasçam da realidade
"O próprio construcionismo começa a gerar apreensões e angústias" diz Carrara (1994). E Herzlich, atinava em seu crítico trabalho sobre a doença enquanto significante social (1984), para o erro de "limitar-se a tratar a medicina sem referência à positividade de seu saber ou à eficácia de sua prática como simples resposta simbólica ou como pura ideologia" (Herzlich, 1984:12-13).
Carrara (1994) cita também uma crítica de Rosenberg (1988) ao relativismo e ao construcionismo radical, mostrando que, como por exemplo a forma como frequentemente são tratados temas relativos a AIDS. Não se podem aprofundar estigmatizações que medicalizam o homossexualismo, da mesma forma como não se podem desconhecer as descobertas dos imunologistas e dos virologistas sobre AIDS, uma doença com um grau de quase 100% de fatalidade. Mais do que nunca, o que a AIDS, em particular, vem mostrar é a necessidade de interação, sem pretensões de hegemonia entre as ciências biomédicas e antropológicas. Seguindo-se uma lógica habermasiana (Habermas, 1987) a construção da compreensão dessa epidemia do final do século trouxe também a necessidade de articular o conhecimento científico às exigências do mundo da vida, ponto sobre o qual a antropologia, tem muito a dizer, pois trabalha prioritariamente com o entendimento da lógica dos atores sociais.
Sobre o espaço dessa relação entre ambas as ciências, creio que é preciso elucidar os vários níveis de interação e os diferentes graus de aproximação. Assinalarei pelo menos três Em primeiro lugar estão os estudos básicos, tipicamente antropológicos, onde a questão da saúde e da doença fazem parte de um universo "totalizante" e complexo de relações sociais, políticas, econômicas, domésticas e cosmológicas, e onde a compreensão da saúde e doença e dos sistemas médicos compõem o quadro geral e da ordem social. Trata-se de trabalhos profundos, longos e demorados, quase sempre realizados em departamentos de antropologia, onde a geração do conhecimento, independentemente de sua repercussão, entra no âmbito do desenvolvimento de teorias e conhecimentos imprescindíveis para o avanço da disciplina. Exemplo desse tipo de contribuição são os estudos de Duarte (1986; 1994; 1996; 1993). Tais estudos são de fundamental importância também para o campo da saúde "stricto sensu" porque é nessa fonte que podem e devem se saciar, os que pertencem àquele universo "híbrido" de que fala Latour (1993). Em segundo lugar, situam-se trabalhos que intitularei aqui "estratégicos" utilizando um termo de Bulmer (1987). São, em geral, estudos empreendidos nos cursos de pós-graduação e nos núcleos de pesquisa dos departamentos, escolas e institutos de Medicina Preventiva, Medicina Social e Saúde Pública/ Coletiva. Essas investigações, habitualmente, tomam um tema especifico, articulam-no tanto no âmbito da antropologia como na biomedicina, buscando dar subsídios para a implementação de políticas públicas. Esse objeto "híbrido" parodiando Latour (1993) bebe na fonte da antropologia social, da epidemiologia ou de outras disciplinas do campo da saúde e em geral termina com propostas de ação e atuação. As elaborações que se incluem nesse segundo grupo também trazem vários desafios teóricos-práticos, porque são de total relevância para o campo da saúde pública. É nesses trabalhos que se exercita e se reafirma a possibilidade interdisciplinar e nisso reside uma de suas maiores importâncias, como o mostram autores tais quais Minayo (1993) e Minayo e Cruz Neto (1997). Quando realizada com competência não correm o risco de se tornarem reducionistas e instrumentais, gerando conhecimentos dos quais se beneficiam tanto a antropologia quanto a biomedicina, embora esse conhecimento será sempre diferenciado em relação ao disciplinar. A abordagem estratégica indui uma condição colocada por Carrara (1994) apud Mauss (1974), que é a articulação entre natureza e cultura e entre ciência e técnica, vistas como um bloco em que o ser o homem cria e cria-se a si próprio; cria seus meios de viver e seu pensamento inscrito nessas coisas. O locus preferencial desses trabalhos são os cursos de pós-graduação e os centros de investigação em saúde pública/coletiva e de medicina preventiva. Alguns tratam da compreensão de condições de saúde, de atividades dos serviços e outros são destinados à avaliação de relações institucionais e de programas. As abordagens interdisciplinares supõem que os bons trabalhos de antropologia médica ou da saúde não podem dispensar a compreensão intrínseca dos objetos com os quais trabalham para se limitarem à análise discursiva. Pelo contrário, abrangem o universo de coisas e ao mesmo tempo um mundo de idéias sobre elas, ou seja, num "híbrido" real onde, como diz Latour (1993), os cientistas vivem. Neste sentido, a construção dos domínios chamados a cooperar acaba por ir definindo uma disciplina interdisciplinar. Em outras palavras, a interdisciplinaridade só obtém êxito como forma de conhecimento e prática científica, na medida em que a disciplina utilizadora (e igualmente, o sujeito que a pratica) se apropria da disciplina utilizada, passando rigorosamente por dentro de sua problemática. "Isso implica que a colaboração entre duas disciplinas exige a dupla competência e a interdisciplinaridade exige igualmente, a competência nas disciplinas que coloca em colaboração" (Sinaceur, 1977:621). Em relação aos problemas dessa forma de abordagem estratégica e interdisciplinar, tratarei mais à frente, quando falar do universo de atores que circulam em volta dessas práticas teóricas.
Uma terceira categoria de trabalhos que hoje se apresentam no universo da antropologia médica e da saúde se vinculam ao que genericamente se chama aqui "pesquisas operacionais". Tendo em mente as necessidades de intervenção para promoção, prevenção e tratamento da saúde, existe uma demanda clara do setor para as abordagens antropológicas. Muito freqüentemente, as instituições de ação política e assistencial necessitam compreender os significados (ao lado dos significantes) as intencionalidades e o universo simbólico dos diferentes sujeitos com quem devem interagir, de forma a tornar sua atuação mais adequada, eficaz e respeitadora os universos culturais de segmentos e grupos específicos.
Se olharmos com rigor metodológico, poderíamos dizer que, essas investigações se apropriam de forma bastante reduzida e fragmentada dos estudos mais totalizantes da antropologia e dela retiram as técnicas de abordagem e, simplificadamente, os modelos analíticos. Um exemplo desse tipo de utilização é o já popular RAP (Rapid Assessment Procedures) elaborado para a avaliação de programas de saúde por Schrimshaw e por Hurtado (1987) que, de certa forma, vulgariza, direciona e estrutura o método antropológico para objetivos operacionais.
Hoje na área da saúde são inúmeros, incontáveis e proliferantes os trabalhos de cunho operacional e estratégico que empregam a "metodologia qualitativa" Se é verdade que as metodologias qualitativas são domínio comum da sociologia e da antropologia, quando utilizadas na área da saúde, costumam incluir todo o instrumental antropológico do trabalho de campo. Considero que esta é uma das formas que a área da saúde descobriu de se aproximar das abordagens compreensivas, delas se apropriando seja para humanizar a medicina, seja para encontrar respostas ou fazer ainda mais perguntas sobre as crises e dificuldades que o setor atravessa.
Nos meus 12 anos de atividade docente e de pesquisa numa Escola de Saúde Pública (e talvez porque aí o universo dos atores - incluindo os médicos - seja sensivelmente diferenciado e diferencialmente sensível) cada vez me surpreende mais o número de profissionais que investem na compreensão cultural da saúde/ doença e de todas as questões que recobrem esse tema mobilizador da economia e da vida social. E muitos o conseguem com grande êxito! Do ponto de vista da efetividade seria um bom tema de pesquisa, o impacto que esta aproximação amorosa tem causado no âmbito das práticas em saúde. Creio que mereceria um estudo de longo alcance e dificilmente conseguiria reunir todas as influências diretas e indiretas de um campo sobre o outro.
Embora os mais ortodoxos poderiam lastimar a vulgarização ou mesmo a banalização provocada pelas dificuldades da interdisciplinaridade que acaba sendo sempre uma articulação de fragmentos, tenho uma hipótese de que os ganhos são maiores que as perdas, embora creia que há perdas e ganhos para ambos os lados.
Do lado das "perdas" há algumas questões mapeadas, por vários antropólogos "básicos". Dentre outras, está o risco que a apropriação de fragmentos disciplinares e metodológicos contém, quando não são analisados os contextos culturais, levando a uma visão parcial dos objetos e das relações. Também se ouve falar muito na submissão colonialista da antropologia em relação à medicina, como já foi mencionado neste trabalho, contemplando várias razões, dentre elas, a hegemonia tecnológica do setor saúde. Gostaria de assinalar uma a que denominarei aqui "a proliferação de discursos transparentes", parafraseando a expressão de Bourdieu "a ilusão da transparência" (1972). Ela se traduz hoje nas análises do material qualitativo nos muitos trabalhos realizados por estudantes e profissionais de saúde, quase sempre de forma indutiva (semi-estruturada) ou diretiva, buscando compreender os significados, tanto de ações como de pensamentos, sentimentos e resistências de grupos populacionais frente a doenças específicas, tratamentos, políticas e relações médico-pacientes. Vários estudos demonstram grande sensibilidade e vão muito além do que seria justo esperar de profissionais de saúde se apropriando do instrumental de outra disciplina. Porém, a maioria deles padece da ilusão da transparência, na medida em que se contentam em classificar discursos, descolados das práticas e contextos que lhes deram origem; e comentar depoimentos dos informantes, tratando-os como a própria verdade. Muitos desses estudos nada mais são do que pesquisas de opinião (realizados sem as temáticas apropriadas para essa modalidade, portanto, mal feitas) fazendo coro com aquilo que Stoufler (1931:154-156) há 68 anos atrás, já criticava nos estudos antropológicos, do seu tempo, para enaltecer a objetividade das pesquisas quantitativas.
Numa tese denominada "An Experimental Comparison of Statistical and a Case History Technique of Attitude Research" defendida na Universidade de Chicago, Stoufler enalteceu a superioridade da estatística, contra as análises qualitativas, consideradas quando muito, estudos heurísticos, pré-científicos, subjetivistas e até reportagens mal feitas.
As perdas do ponto de vista do campo "stricto sensu" da saúde, consiste, a meu ver, na tentação de transformar a medicina num discurso, menosprezando a sua base técnica como de "natureza geral e humana" (Mauss, 1979), como arte prática, que faz o ser humano recriar a natureza. Essa concepção da saúde e da doença como fatos sociais, desconhecendo a base biológica dos fenômenos e a mediação psicológica é o avesso do que geralmente a medicina faz, sendo portanto também reducionista e pobre, e responsável pelo falso dilema que, por vezes, é criado entre a antropologia e o campo da saúde, como pode ser exemplificado nos vários debates, hoje muito presentes, em torno da AIDS. Participamos de um seminário em que um médico imunologista se retirou indignado porque antropólogos e cientistas sociais, em geral, diziam de forma absolutista que AIDS era questão de preconceito, uma construção social, brandindo contra os que defendiam o caráter biológico da síndrome, também de forma radical, Ou seja, ambos os lados tinham razão suficiente para estabelecerem um diálogo e nenhuma para continuarem o monólogo ensurdecido.
Outra crítica que geralmente os profissionais de saúde fazem aos antropólogos é quanto a seus ritmos e tempos muito lentos, para as necessidades de um setor que necessita dar respostas urgentes e rápidas. Por fim, o fato de utilizarem uma linguagem que por vezes é demasiado longínqua das tecnologias de intervenção.
Em síntese, eu diria que essa classificação que engloba os estudos básicos, os estudos estratégicos e os estudos operacionais aqui sugerida para visualizarmos as relações entre antropólogos e estudiosos da saúde, pode padecer de reducionismo. Os três cenários nos quais estariam atuando os diferentes atores sob a ótica da Antropologia Médica/da Saúde é flexível, interativo e interfertilizante. Para compreendê-los, porém, é preciso distinguir o universo dos "iniciados" (o primeiro) e os dois últimos onde os próprios profissionais de saúde e investigadores de outros campos disciplinares transitam em busca de interdisciplinaridade e aplicação, criando ao mesmo tempo, uma produção rica e promissora e uma necessidade de problematização dessas relações.
Inseguranças e dispersões de um campo "adolescente"
Referindo-se à antropologia médica da saúde latino-americana, Estrella (1985) comenta que o campo de estudos mais importante na região tem sido o da etnomedicina. Certamente o autor tomou, como base de análise, a produção dos países de língua espanhola, talvez perdendo, na sua referência a pujança de temas e linhas teóricas desenvolvidas no Brasil, desde o final da década de 60, numa crescente ampliação de autores e objetivos específicos.
Em sua revisão Canesqui (1994) elenca um conjunto de temáticas, cuja elaboração vai de 1968 até os dias de hoje, tecendo comentários sobre questões teóricas e metodológicas referentes aos diferentes estudos. Limitar-me-ei a nomeálas, classificando as linhas de trabalho, incluindo também o mapeamento realizado por Carrara (1994) para o I Encontro Nacional de Antropologia Médica, realizado em Salvador, e alguns temas que pude apreender nas minhas investigações e que não estavam incluídos pelos autores. Resumo-os na seguinte lista:
1) Alimentação e Hábitos Alimentares;
2) Sistemas terapêuticos indígenas;
3) Sistemas terapêuticos populares: etiologia, tratamento e cura;
4) Sistemas médicos comparados;
5) Práticas e relações médico/paciente; jurídico-legais;
6) Práticas terapêuticas corporais;
7) Relações entre religião e cura;
8) Concepções de doenças específicas: AIDS, Hanseníase, Parasitárias, Endêmicas;
9) Sexualidade, Reprodução e Gênero;
10) Etnopsiquiatria;
11) Instituições de saúde e instituições psiquiátricas;
12) Desenvolvimento de abordagens interdisciplinares e triangulação de métodos;
13) Avaliação de Políticas e Serviços de Saúde;
14) Cotidiano de doentes vivendo com doenças especificas.
Às observações de ordem conceituai e empírica tecidas por Canesqui (1994) e Carrara (1994), acrescentarei dois comentários analíticos, avançando a partir do ponto onde esses pesquisadores se detiveram.
1) O primeiro, desvendando algumas incongruências, no interior da pujança revelada pela área em questão, Ou seja, esse crescimento que foi se tornando notório nos últimos 20 anos nos autorizaria a pensar numa crescente autonomia de um campo de conhecimento "nativo" capaz de projetar luz sobre o universalismo e as peculiaridades do modo como o pais pensa, sente e atua frente às questões da vida e da morte, da saúde e da doença.
No entanto, isso não aparece nas fontes bibliográficas. A construção de conhecimentos que já se avolumam expressa uma escassa leitura de nossos pares nacionais (estejam eles na universidade ou nos institutos de pesquisa). Mesmo quando investigando temas semelhantes, a bibliografia citada é estrangeira, denotando, a meu ver, uma certa desconfiança dessa produção nacional. Ou seja, a relação é centrifugada pelas referências internacionais, tornando a comunicação entre os investigadores brasileiros um monólogo acadêmico surdo, em relação a seus colegas brasileiros.
Para tornar mais patente essa constatação, darei um exemplo, utilizando o recente livro Saúde-Doença: um olhar antropológico (Alves e Minayo, 1994) que se inicia com a citada revisão bibliográfica, onde Canesqui (1994) referencia 50 autores brasileiros. Pois bem, os 12 artigos seguintes que compõem o livro, no seu conjunto, fazem apenas 18 referências a autores nacionais, num total de 130 citações, realizadas no decorrer do livro. Ou seja, 86% são menções a obras de estrangeiros e 14% às de brasileiros. Há textos (e vários) em que o único autor nacional citado é o próprio assinante do trabalho. Como curiosidade a ser notada, há um artigo cujo autor se debruça sobre o programa do I Encontro Nacional de Antropologia Médica enquanto objeto de análise, apresentando importantes e brilhantes considerações sobre os temas lá tratados, sem citar um pesquisador do pais, nem os presentes ao seminário. Vale-se, ao contrário, de autores estrangeiros (vários clássicos) para elaborar sua abordagem critica, não fugindo à regra acima citada. Tentei analisar duas outras coletâneas ainda em prelo.
Numa delas quase toda composta por trabalhos de pós-graduandos em Antropologia, o percentual de citações de obras nacionais é de 58%. Na outra, que reúne os autores de maior renome no tema do país, a proporção é de 39% em relação às 61% de referência internacional. Procurei entender o aumento de citações de investigadores brasileiros por estudantes de pós-graduação como um sinal de que a segunda ou terceira geração de antropólogos da saúde já terão uma visão mais nítida do pensamento nacional.
Buscando interpretar o ponto em discussão, tendo a pensar que essa dificuldade de interação interpares pode ser indicio da falta de obras e autores vigorosos e de referência, capazes de nortear leituras, análise e propostas. Mas, não poderá significar também uma certa dependência "adolescente" ou talvez colonialista em relação à antropologia gerada nos centros "desenvolvidos"? Talvez o local de formação dos nossos PhDs seria um fator importante para explicar essa ligação umbilical, que julguei necessário explicitar para se processar uma proposta de superação. Ou seja, numa disciplina em que o país é reconhecido pela sua competência, é necessário rever o crédito que seus intelectuais lhe dão.
Em outras áreas da saúde como as de epidemiologia e de políticas públicas (é uma hipótese) talvez essa síndrome de dependência seja menor. No primeiro caso, graças ao vigor e à maturidade da disciplina. No segundo, porque o próprio objeto exige referência a fontes nacionais. No entanto, também em relação a elas seria importante proceder a uma análise crítica sobre esse assunto em particular. Quero deixar claro que não nutro nenhuma visão xenófoba e que, antes de tudo entendo o campo científico, embora conflitivo, também, marcado pela universalidade. Quis apenas fazer um exercício que nos alertasse sobre a forma como estamos expressando ou não nossas potencialidades.
2) Uma segunda questão que julgo pertinente levantar, diz respeito á aleatoriedade dos temas investigados, chamando atenção em pelo menos dois sentidos: o da forma com que são gerados e o de sua adequação em relação às necessidades de saúde da população brasileira. Certamente esse item da discussão merecerá reparo e crítica de muitos estudiosos que consideram a liberdade de cátedra e de investigação, causa pétrea e condição "sine qua non" do progresso da ciência.
Acreditar nessa lei seria ir contra todas as teorias sociológicas críticas mencionadas na introdução deste trabalho, desde Kuhn (1970); Bourdieu (1975); Latour (1978) e Knorr-Cetina (1981). Defendo que a liberdade de cátedra possa ser confrontada com alguns princípios dentre os quais, a necessária responsabilização "accountability" dos investigadores numa área tão sensível, tão problemática e tão crucial para a sociedade, como a saúde. Teoricamente parece verdade que, se o indivíduo escolhe livremente seu objeto, seus métodos e seus caminhos, produz melhor. Porém, na prática está comprovado que o "campo científico" está carregado de interesses (sobretudo aos de financiamento e de prestígio) na escolha dos investimentos temáticos. Portanto, além do interesse individual e dos estímulos econômicos é importante buscar uma certa organização temática que exija atenção e prioridade acadêmica. Não estou, necessariamente defendendo uma ciência engajada, e sim uma sintonia entre a antropologia e as questões mais relevantes para a população, o sistema e a política sanitária.
Sendo assim, resumo, dizendo que é preciso distinguir e diferenciar os diversos lugares e papéis da antropologia no campo da saúde, valorizando-os e mantendo sobre eles uma crítica construtiva. Do ponto de vista da antropologia enquanto ciência básica, a escolha dos objetos é normatizada, preferencialmente, pelos cânones dessa ciência e pelas escolhas acadêmicas. Não diria o mesmo para as atividades que se exercem no campo específico do setor saúde. Aí há que se preservar duas tensões salutares. Ou seja a que se estabelece entre a pesquisa teórica-básica sem compromisso imediato com a realidade e a pesquisa estratégica e operacional voltada para formulação, acompanhamento e avaliação de políticas e solução de problemas.
A segunda tensão seria entre a disciplinaridade que leva a aprofundar o lugar, o papel e a contribuição da antropologia na sua incursão no setor saúde, e a interdisciplinaridade que significa sua interface com as outras disciplinas, como a epidemiologia, a engenharia sanitária, o planejamento e outras. São tensões a que a antropologia não pode e não deve fugir sob risco de se isolar num nicho de prepotência sempre olhando o "outro" como objeto e diferente, num caso; ou no limite contrário, tornando-se apenas uma "ferramenta instrumental" para facilitar culturalmente a intervenção da medicina e da saúde pública. Esse estar entre nossos "ora concorrentes, ora aliados, ora objetos, ora interlocutores " (Carrara, 1994, 37) se não facilita nada o diálogo, evidência possibilidades de exercício cooperativo, interdisciplinar, vôos transdisciplinares, e permite a interfertilização e a criação, no campo da cultura e do pensamento, de objetos híbridos bem típicos do mundo de coisas e de idéias no qual os cientistas vivem. Além dessa contribuição epistemológica que também deve ser contada no investimento histórico da antropologia no setor saúde, é preciso ressaltar sua colaboração para introduzir a lógica das populações como elemento fundamental no planejamento, na atenção médica e nos programas de promoção e prevenção.
Conclusões
Mais que conclusões, resumirei as reflexões aqui expostas em alguns itens:
1) Em primeiro lugar, é relevante assinalar o crescente desenvolvimento e as tendências de aprofundamento da antropologia médica/de saúde no Brasil;
2) Da mesma forma, a reflexão aponta para um campo ainda "adolescente", em fase de afirmação de identidade, debatendo-se entre a dependência do desenvolvimento teórico-conceitual e metodológico estrangeiro e o já razoável acúmulo de conhecimentos gerados no país. De qualquer forma pesa ainda muito a situação de dependência;
3) Existe uma dispersão temática, compreensível e compatível com o estado da arte, ao sabor dos financiamentos e das escolhas individuais. Essa situação exige do conjunto de atores, uma ação mais sistemática frente ao quadro de necessidades de saúde do país, para repensar as contribuições que a antropologia pode dar para compreendê-las, de um lado, e de outro, para estar presente nas atividades voltadas a solucionar problemas;
4) É fundamental cultivar, de forma refletida e orientada, a partir de análises coletivas, uma salutar tensão entre a investigação teórica, a estratégica e o operacional; e entre a disciplinaridade capaz de fortalecer essa área específica e o diálogo interdisciplinar com os outros saberes que se colocam na parceria exercida no complexo campo da saúde;
5) É crucial investir cada vez mais e melhor no terreno profícuo da formação dos profissionais de saúde para a utilização da abordagem antropológica, sobretudo no manejo das metodologias de análise de contextos, linguagens e conceitos;
6) Por fim, mas não menos importante, a sub-área terá que investir na sua nomeação. Independentemente do tributo merecido a tradições americana, francesa ou inglesa, com quem necessita manter profunda interação, parece-me que a produção brasileira estaria nos apontando, na prática, para a formação de um campo de Antropologia da Saúde. Este é meu anseio e minha preferência em relação ao debate inacabado, sobre a construção da identidade.
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