Relações entre epidemiologia e antropologia
No nos une el amor sino el espanto...
Borges
Introdução
Nos últimos dez anos tem sido afirmado o reconhecimento do caráter complexo e multidimensional dos problemas de saúde-enfermidade e, correlativamente, a necessidade de articulação entre distintas abordagens. De fato, está hoje claro que a complexidade da maior parte dos problemas de saúde-enfermidade excede as categorias analíticas, as metodologias e técnicas - de estudo e intervenção dos atuais e estreitos marcos disciplinares. Os requerimentos de interdisciplina estão cada vez mais a vista e são cada vez mais numerosos tanto em termos de discurso acadêmico como político institucional.
Parte deste reconhecimento se manifesta nas propostas - embora segundo nosso critérios ainda iniciais - de incluir a análise sociocultural e o uso de métodos qualitativos em alguns programas de investigação impulsionados por organismos e fundações internacionais1 e em programas de pós-graduação2. A incorporação de enfoques qualitativos e especificamente de estudos etnográficos em linhas de investigação epidemiológicas pode abrir importantes perspectivas na análise das relações entre saúde e práticas sociais. Entretanto, deve notar-se que esta tendência parece basicamente reduzida àquelas propostas que vinculam em termos causais problemas de saúde a "comportamentos" de determinados indivíduos ou grupos (Standig, 1992; Glick Schiller, 1994).Neste contexto, resulta de sumo interesse a crescente preocupação com as relações entre epidemiologia e antropologia em encontros e outros eventos acadêmicos, assim como a sistemática aparição da temática em distintas publicações sobretudo dos EUA e Canadá (Janes, C. R. et al.. 1986; True, 1990). Lamentavelmente, como assinalam vários trabalhos, as relações entre epidemiologia e antropologia são todavia escassas e pontuais e com notórias dificuldades, ao mesmo tempo em que as iniciativas parecem responder mais a preocupações surgidas do campo antropológico (Inhorn, 1995). Na maior parte dos países da América Latina as experiências de colaboração são escassas e a preocupação com a problemática, inicial e desigual, enquanto que na Argentina a reflexão sobre a problemática parece não ter se instaurado ainda3.
Esta apresentação se inscreve em uma linha de reflexão teórico-metodológica do Programa de Antropologia y Saúde da Faculdade de Filosofia e Letras da universidade de Buenos Aires, centrada no estudo da constituição, perspectivas e problemas da Antropologia Médica, com ênfase no contexto latino-americano (Grimberg, 1992; 1994; 1995). Contribuiu de forma decisiva para esta linha o trabalho bibliográfico, assim como os resultados da primeira etapa de investigação sobre Construção Social e Hegemonia em sua aplicação ao caso HIV-AIDS4. Devo deixar claro, então, que as reflexões apresentadas aqui têm, em sua maior parte, como referência, bibliografia sócio-antropológica relacionada ao complexo HIV-AIDS.
Começo discutindo alguns aspectos da relação entre epidemiologia e antropologia que considero problemáticos, atendendo a questões relacionadas com as tradições históricas e os marcos dominantes de ambas disciplinas. Em uma segunda parte focalizo algumas condições para o encontro, para colocar na terceira algumas propostas que considero passíveis de aprofundar o caminho iniciado.
As relações difíceis: encontros e desencontros
Embora se enfatize a necessidade da articulação antropologia-epidemiologia tanto para um avanço significativo na compreensão e elaboração de estratégias globais frente a problemas de saúde-enfermidade (o HIV-AIDS é um exemplo), como para o próprio desenvolvimento de cada uma das disciplinas (Brown, 1992; Frankemberg, 1994; Almeida, 1992), a maior parte da bibliografia antropológica destaca as dificuldades, em termos de divergências e oposições, mais que os pontos ou possibilidades de encontro.
Considerando o peso das diferenças na abordagem, conceitualização e modalidade explicativa dos problemas de saúde-enfermidade entre ambas disciplinas, deve se reconhecer distintos níveis de dificuldades, que situam estas relações pelo menos como problemáticas. Tomando como ponto de partida a vigência de um discurso que planteia estas relações em termos de oposição, podemos organizar estas oposições sob quatro eixos:
a) O primeiro relativo ao modo de construção do objeto de estudo. Assim tem sido apontado que a epidemiologia trata a "enfermidade" a partir de uma definição profissional - a partir de categorias médicas - e se volta para determinar sua prevalência e incidência ("mais quantitativa"), abordagem sintetizado no estudo da distribuição e determinação da enfermidade nas populações. A antropologia, diferentemente, indaga "problemas" a partir de uma definição "popular", não profissional, ou a partir da perspectiva dos atores, utilizando "categorias mais amplas e menos definidas" (Bibeau, 1992), focalizando a análise na "experiência" da enfermidade, nos sentidos culturais e nas relações sociais que constituem esta experiência (Kleiman, Eisembergl & Good, 1978; Kleiman, 1981).
b) Um segundo ponto remete a oposição objetividade/subjetividade, segundo a qual a epidemiologia se ocuparia de "entidades" (objetos empiricamente verificáveis), enquanto a antropologia atenderia os aspectos subjetivos e intersubjetivos das representações e práticas. Este ponto foi colocado em termos de uma oposição entre um reducionismo positivista - epidemiologia - e um holismo humanista - antropologia - (Fabrega, 1974; Gifford, 1986), que enfatiza as diferenças entre um conhecimento estatístico e um conhecimento interpretativo a partir das interações com os sujeitos. Paradoxalmente, este é um dos aspectos em que vem a centrar-se a possibilidade de complementaridade entre ambas disciplinas.
c) Outro eixo implica os modelos explicativos, em particular a causalidade. Neste sentido, tem sido apontado o predomínio na epidemiologia de modelos que implicam uma "causalidade linear", um "número limitado de fatores determinantes" (Bibeau, 1992), em sua maior parte focalizados em "comportamentos individuais" e em certas "características comuns" (idade, gênero, educação, etc.) dirigidos a identificar "grupos"/"comportamentos individuais de risco" (Standing, 1992; Glick Schiller, 1994). A partir de uma tradição mais holística, a antropologia privilegia modelos explicativos centrados na análise do "contexto" de produção ou construção dos problemas, atendendo ao contexto de significação cultural e aos aspectos subjetivos e intersubjetivos (Kleinman, Eisemberg & Good, 1978; Kleinman, 1981; Glick Schiller, 1994), ou incorporando a estes as "condições materiais" (Bibeau, 1992) e o "contexto histórico social" (Standing, 1992; Frankemberg, 1994).
d) Vinculado ao anterior, um quarto eixo inclui os métodos e as técnicas. De um lado, os estudos experimentais e sócio-estatísticos, o compromisso quantitativo, a abordagem extensiva e generalizante da epidemiologia; o privilégio da representatividade, as técnicas de análise probabilísticas, de validação de variáveis, a ênfase na padronização de instrumentos e no problema do controle. De outro, a bordagem intensiva e localizada da antropologia, o privilégio do estudo local, a análise de casos em profundidade, das histórias de vida e dos pequenos grupos, priorizando a significação dos processos e sua relação com o contexto sociocultural mais amplo, assim como os processos de interação entre investigador e sujeitos para a produção de conhecimento.
e) Um último aspecto a levar em conta: diferente da epidemiologia, que concebe a população em termos "agregado de indivíduos", constituindo-a em "objeto de intervenção profissional", a antropologia opera com conceitos como os de "comunidade", heterogeneidade social, cultural e econômica, enfatizando o papel dos atores como participantes na solução de problemas de saúde (Bibeau, 1992).
Uma análise mais profunda mostra, a meu ver, que um conjunto de reificações se encontram na base destas oposições, reificações da enfermidade e do corpo enfermo, do conhecimento e sua metodologia, etc. por parte da epidemiologia. Reificações da cultura e dos sujeitos, do tipo de conhecimento e sua metodologia, do alcance das significações, etc, por parte da antropologia.
Entretanto, é preciso se reconhecer que reificações deste tipo também se encontram na base das proposições que reduzem a possibilidade do encontro a incorporação de técnicas etnográficas para uma primeira etapa - exploratória de uma investigação com metodologia quantitativa (estatística), ou a possibilidade de aprofundamento de algumas "variáveis" e "indicadores" para uma etapa posterior. Também expressam reificações propostas tais como as de complementar a preocupação epidemiológica com o "quem", "quando", "onde" e "como" dos processos de saúde-enfermidade, com o "porque" contextual da aptropologia (Inhom, 1995), ou a de construir uma etnografía epidemiológica (Janes, 1986). Definitivamente, é significativo que a maior parte das tentativas de articulação se mantenham exclusivamente no plano metodológico, sem abordar o problema das categorias e perspectiva de análise que sustentam o metodológico nas duas disciplinas.
Interessa, então, pelo menos assinalar algumas noções reificadas que estão em jogo.
Um problema básico é a noção biomédica de enfermidade como entidade, estado ou processo natural -"objetivo " - (mais facilmente anormalidades orgânicas), independente de todo processo histórico social e cultural de produção e definição. Em outras palavras, a proposição positivista de categorias biológicas como condições cientificamente verificáveis, submetidas a leis naturais (Conrad & Scheneider, 1985) e, portanto, de um conhecimento objetivo, livre de condicionamentos histórico-políticos e culturais (Singer, 1990). Tal naturalização permite obscurecer os processos que constituem os problemas de saúde, ao mesmo tempo, tanto em condições de vida emergentes quanto em construções culturais, em significantes sociais (Kleinman, 1981). Trata-se de uma reificação, por sua vez, que oculta as relações sociais (econômicas, políticas, ideológicas e culturais) e o caráter de construção social (histórico-política) destas categorias, assim como a ordem moral a que remetem. Impede sobretudo reconhecer sua contribuição ao crescente processo de medicalização de áreas chaves das práticas cotidianas dos conjuntos sociais, e o papel de parte da medicina de construção e expansão da enfermidade (Freidson, 1978).
Mais além das diferenças ou ponderações conceituais em que se firmam as distintas perspectivas, os estudos de antropologia médica vêm trazendo uma ampla gama de constatações em torno do caráter de construção - cultural, histórica social - da "enfermidade" e das categorias epidemiológicas.
Outro problema resulta da incorporação subordinada e naturalizadora que os enfoques multicausais e algumas perspectivas críticas à "historia natural da enfermidade" fazem do social e cultural. Esta se dá seja através de sua incorporação como mais um fator, reduzido a indicadores mensuráveis em termos de educação, sexo, idade, nível sócio-econômico, etc; seja fragmentando e isolando em ações pontuais descontextualizadas uma categoria descritiva tão fértil como a de "estilos de vida", enfoque segundo o qual o sujeito se dilui ou aparece apenas a partir do lugar negativo da transgressão.
Um problema particularmente relevante se expressa nos estudos epidemiológicos de "grupos" ou "comportamentos de risco", que em sua maior parte, se constróem a partir de uma seleção de condições ou propriedades atribuídas como inerentes a ditos "grupos" ou "comportamentos", tais como os estudos de "homossexuais", "prostitutas" ou "drogadictos". Outro problema está na utilização de noções de senso comum no discurso médico como põe em evidência o peso que tem um termo como "promiscuidade" para descrever e explicar práticas sociais.
Estas reificações "de-historicizam" os conteúdos de "desaprovação de comportamentos perigosos" incluídos nas categorizações acerca do HIV-AIDS e suas vinculações com outras epidemias. A atualização e o reforço de processos de estigmatização e discriminação social de sujeitos e grupos sociais não pode ser considerada um "efeito não desejado" das categorias epidemiológicas; é estrutural a um processo mais amplo de construção social de identidades e práticas, que obtém sua validação científica através da medicina.
Sem embargo, outro tipo de problemática surge das correntes críticas da epidemiologia que, centradas na consideração das dimensões econômico-políticas dos processos de saúde-enfermidade, não consideram a dimensão da significação social, nem fazem uma contextualização com base nos processos que remetem às identidades e práticas dos sujeitos e grupos sociais.
Um conjunto de problemas se vincula às próprias reificações antropológicas, quer dizer, àqueles enfoques que reduzem a enfermidade a construção cultural, significante social ou metáfora, deixando fora da análise a "materialidade" do sofrimento e as mudanças na subjetividade; ou que separam conceitualmente "o material" e "o simbólico", sem considerar o contexto econômico, político e histórico desde o qual estos processos adquirem sua significação. Seus resultados constituem construções coisificadas e naturalizadoras da cultura, são enfoques estáticos de uma cultura sem sujeito, sem atividade, ou tipologias essencialistas de grupos e sujeitos, como o "outro da diferença", sem dar conta de relações, heterogeneidades e conflitos.
Por último, resultam problemáticas aquelas caracterizações que, a favor da simplificação e da generalidade, diluem a heterogeneidade e as disputas ao interior das disciplinas, sem considerar a vigência de paradigmas hegemônicos ou recuperar a necessidade de crítica sistemática aos mesmos. Parte desta problemática é recuperar conceitualmente o processo histórico conflitivo, os enfoques e perspectivas marginais, os conceitos excluídos ou remodelados pelos enfoques dominantes. Parte desta problemática é também reconhecer a posição e a particular inserção da epidemiologia na Medicina, e da antropologia nesta e nas Ciências Sociais.
Algumas propostas
A partir destas considerações me permito sugerir que um ponto de partida geral de articulação só pode ser uma perspectiva crítica às reificações conceituais e metodológicas de ambas disciplinas, que historicamente instituíram a epidemiologia como subordinada - e em metodologia de investigação, auxiliar -à Clínica e Saúde Pública ou à Medicina Preventiva e, por outro lado, à antropologia como intermediária ou mediadora entre práticas clínicas ou Programas de Saúde e os conjuntos sociais subalternos, sejam estes indígenas, pobres rurais, urbanos, etc.
Neste aspecto considero que a Antropologia deve desenvolver com mais força um enfoque político e uma perspectiva histórica em seus estudos. Em primeiro lugar, como ponto de partida, gostaria de chamar atenção para pelo menos quatro dados de contexto:
a) No contexto de crise dos modelos de acumulação de capital e de regulação social a nível mundial, as políticas governamentais intensificaram em nossos países processos de concentração econômica e política que aprofundam a desigualdade, a fragmentação e a exclusão social em uma escala inédita. Talvez a crueza do modelo se expressa com claridade no crescimento do desemprego5, no aumento das condições de precarização do emprego no marco de uma contínua perda global das condições de estabilidade laboral e de contratação e de uma constante deterioração salarial; na intensificação da crise das economias regionais e provinciais e, por fim, no aumento da pobreza em todos seus termos (novos pobres, maior número de pobres e pobres com maior pobreza). A perspectiva não é outra que o aprofundamento destas tendências, na medida em que a política vigente coloca o "crescimento econômico" na maior liberalização e desregulamentação dos mercados e no desenvolvimento de processos produtivos que supõem baixas taxas de emprego, intensificação da concentração e da competência, baixos salários combinados com estratégias de individualização das relações sociais, perda de conquistas laborais e sociais, desmantelamento das formas de organização e organização coletiva.
b) Ao mesmo tempo, o curso do atual processo de transformação do setor saúde gira em torno da descentralização e transferência de serviços às províncias e municípios, da restrição financeira ("desfinanciação") e na reforma do sistema de financiamento (denominado de "autogestão"). Com crueza este processo consolida e aprofunda condições prévias de heterogeneidade, fragmentação e profunda desigualdade (ineficiência e iniquidade nas prestações sociais) que caracterizaram o modelo argentino. Neste sentido reafirma dois processos prévios: o fortalecimento e a concentração econômico-política do setor privado, e a mercantilização da saúde que reforça a orientação assistencialista individual do modelo. A isto se soma, por sua vez, o desgaste, descontinuidade ou suspensão direta de programas provinciais que incluíam algum nível de participação comunitária, seja devido a crise de financiamento, seja pelo descrédito das modalidades de "participação" colocadas, e/ou pelo agravamento de situações de conflito e disputas clientelísticas.
c) Neste marco de degradação das condições de vida, inexistência de políticas sociais e reestruturação /desmantelamento do "setor público de saúde", "velhos" e "novos" processos de saúde-enfermidade-atenção recompõem, em um cenário de tensão e conflito, o complexo entrecruzamento de relações de poder entre classes, gêneros, grupos sociais e étnicos; entre instituições e conjuntos sociais; e ao interior do "campo da saúde". Sem estender-me, a título de exemplo, e considerando as estatísticas oficiais disponíveis, só mencionarei o crescimento das pneumonias, tuberculose e sobretudo infeções evitáveis como o cólera, o sarampo, etc.; o fato de que as complicações da gravidez, parto e puerpério continuam sendo a quinta causa de morte entre mulheres de 15 a 49 anos; ou de que os acidentes são a primeira causa de morte entre os 1 e 15 anos, e a terceira entre os 15 e 49 anos. Estes e outros processos como a "drogadição", a violência a menores e mulheres indicam um complexo entrecruzamento de problemas diferenciais de caráter social, em um contexto de cada vez maior de precarização das condições sócio-sanitárias gerais.
d) Porém, além disso, deve ser considerada uma série de processos sociais a nível das identidades e práticas de sujeitos coletivos. Neste sentido, observa-se uma crescente medicalização de cada vez mais áreas da vida cotidiana que transforma avaliações, identidades e práticas sob o controle da unidade doméstica ou de alguns de seus membros ou das redes de parentesco ou solidariedade, ou sob o controle da igreja, em problemas que requerem intervenções e soluções médicas. Parte disto é a aparição de novas enfermidades e novos tratamentos médicos (hiperkinesis, anorexia, bulimia, etc.).
A partir destas considerações me permito sugerir como condição de articulação entre a epidemiologia e a antropologia :
Em primeiro lugar, priorizar um enfoque político que aborde os processos de saúde-enfermidade-atenção a partir das relações de poder que constituem um campo societal, heterogêneo, fragmentário e conflitivo. Este campo implica formas de desigualdade e estratificação social que incluem tanto relações econômicas como relações políticas, ideológicas e culturais. Estas duas últimas resultam particularmente pertinentes dado que sua análise permite captar mecanismos, construções, etc. nos modos de interpretar, de definir problemas e cursos de ação individuais e coletivos, que podem se constituir em possibilidade de mascarar os processos e as condições da desigualdade e sua vinculação com os processos de saúde-enfermidade-atenção; assim como colocá-los em manifesto através de questionamento, resistências, impugnações, ou outros tipos de práticas sociais. Cabe notar, entretanto, que a relevância destes processos de questionamento e resistência não pode circunscrever-se apenas à análise das práticas dos conjuntos sociais; pelo contrário, gostaria de enfatizar sua pertinência para o estudo das práticas especializadas e profissionalizadas, incluídas aquelas enquadradas como epidemiológicas ou antropológicas.
Em segundo lugar, é preciso aprofundar o desenvolvimento de uma perspectiva dos sujeitos, que amplie os termos sócio-econômicos de "classe", "estrato", "pobres" urbanos ou rurais. Uma perspectiva que inclua o problema do gênero, dos grupos étnicos, das categorias de idade, como os jovens e os aposentados (jubilados), considerando a fragmentação social em níveis grupais, comunitários macro ou intermediário, como também no nível micro das unidades domésticas, as redes familiares e de solidariedade, etc. O ponto aqui é não só superar a concepção do coletivo como agregado de indivíduos, senão também superar o peso de noções economicistas, tipologistas e estigmatizadoras. Neste sentido, creio que deve se privilegiar a prática social, considerando os sujeitos como constituídos a partir de relações de hegemonia, de processos históricos concretos, a partir da lógica de suas práticas cotidianas de vida (trabalho, desocupação, consumo, sociabilidade etc.) e nas unidades sociais em que se encontram, focalizando sujeitos ativos que formam parte de um campo de forças mais amplo, enfrentando opções e desenvolvendo estratégias diversas cujo caráter deve ser problematizado.
Em terceiro lugar, é necessário reconhecer que, como coloca E. Menéndez, os problemas de saúde, os padecimentos e danos, comprometem o centro da cotidianeidade, constituindo eixos fundamentais na construção da subjetividade e da reprodução de qualquer sociedade. Neste sentido são fatos sociais frentes aos quais são desenvolvidas representações e práticas, incluída a construção de um saber técnico e especializado, profissionalizado. (Menéndez, 1992)
Fundamentamos, assim, a proposta de indagar, segundo uma perspectiva histórica e política, as representações e práticas sociais, as definições locais dos grupos, seu modo de problematizar, definir e estabelecer cursos de ação. Nesta linha, mais que avaliar condições de "risco", categoria problemática, considero necessário estudar os processos e condições que fragilizam os sujeitos e grupos, incluindo o conjunto de suas relações e condições econômicas, sociais, políticas, ideológicas e culturais de vida.
Porém, além disso, é preciso incluir na análise as condições de resposta coletiva aos problemas de saúde e de vida, as estratégias individuais e coletivas de proteção e de cuidado, considerando não só aquelas referidas à saúde-enfermidade, senão também aquelas vinculadas a formas coletivas de organização de identidades, de reivindicações ou direitos sociais e políticos. A multiplicidade de práticas e discursos, a disputa de sentidos em torno de problemáticas como as do HIV-AIDS ou da "droga" devem também ser objeto de análise. Isto é parte da forma "objetiva" que assume a enfermidade e sua distribuição desigual. Neste processo creio possível reconsiderar categorias médico-epidemiológicas e sócioantropológicas.
Em quarto lugar, devemos nos posicionar fora de falsas dicotomias entre métodos qualitativos e quantitativos ou entre o nível micro e macro social. O fundamental é como se define o problema segundo uma perspectiva teórica, é daí que resultarão as possibilidades e alternativas metodológicas, - se primeiro são utilizadas técnicas como as de história de vida, observação com participação, e depois questionários auto-administrados ou si o desenho é de survey; se o material antropológico é prévio e serve para construir hipóteses de trabalho ou modelos analíticos, ou si é posterior a um estudo quantitativo e permite aprofundar aspectos emergentes, etc. O problema é construir categorias de análise que permitam dar conta e explicar; tudo dependerá dos desenhos de investigação a partir do "como" do problema.
A partir de um enfoque político me interessa por último destacar que o caráter do objeto de estudo, e o contexto de agravamento dos problemas acima apontados, impõem a necessidade de um compromisso de produzir desenhos que permitam um conhecimento que, além de dar conta das problemáticas e condições de saúde-enfermidade-atenção, possibilite a seus protagonistas um processo de reflexão e construção de ferramentas de controle, apropriação e modificação de suas condições de vida. Portanto, os desenhos devem conter os modos de intervenção dos sujeitos de estudo nos distintos níveis da investigação.
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Notas
1 Me refiro a programas tais como os de HIV-AIDS da OMS, os de Saúde Reprodutiva da OMS e fundações internacionais.
2 Na Argentina alguns programas de pós-graduação, como o Mestrado em Saúde Pública da UBA e outros mestrados de centros privados incluem módulos de antropologia.
3 Creio que isto deveria ser parte de um estudo específico. No caso da Argentina só posso mencionar alguns estudos como o Centro de Estudos Sanitários e Sociais da Associação Médica de Rosário.
4 O programa inclui duas linhas de investigação: profissionais de saúde (médicos, pessoal de enfermaria e de administração); y mulheres jovens de 15 a 35 anos de setores populares da zona sul da cidade de Buenos Aires. Se realiza com o apoio de UBACyT y CONICET. Implementa um enfoque político do problema, como cenário conflitivo constituído a partir de relações de hegemonia. A primeira etapa teve como objetivo estudar, na construção social da HIV-AIDS, as tensões conceituais e, em particular, os aspectos de normatização e controle social.
5 Na Argentina o aumento de uma taxa de 12,2% em maio/94 para uma ainda não oficialmente reconhecida taxa de 18% em abril/95 representa um incremento de mais de 60% no número de desocupados para o conjunto das 25 cidades em que se realiza a Encuesta Permanente de Hogares.