I
Antecedentes e Primeiros Tempos
1. OS ANTEPASSADOS E OS PAIS
OS ANTEPASSADOS DE AGOSTINHO DA SILVA SÃO ANÓNIMOS, de quem nada à partida, de outiva ou por escrito, se conhece; não fosse a existência do seu proveniente, que muito se individualizou nas letras, e nunca a curiosidade recairia sobre a obscura fila destes antecedentes, idênticos a tantos de que nada sabemos, nem mesmo que foram, o que parecendo um absurdo é afinal a mais bela e descansada condição de ser.
Na obra escrita de Agostinho há boas e copiosas informações relativas aos seus antepassados, que permitem traçar com à-vontade uma genealogia de histórias e pontos e reconstruir sem custo o enquadramento social da família em que o meu biografado viu a luz. No discurso de agradecimento pela atribuição e entrega da Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada, em 1987, dado à luz numa folha solta do mesmo ano com o título «Conversa Um de 87», e logo recolhido no livro Dispersos (1988), Agostinho da Silva pôs um segmento confessional sobre os seus antecedentes familiares, curto mas eficiente, que nos deixa tirar sem nevoeiro de espécie alguma o meio de que ele descendia, afinal o mais trivial, ínfimo e anónimo, aquele que é cabouco invisível do volume social em evidência, a base sofrida de qualquer pico. Diz assim (1988: 789-90): «[…] toda a gente humilde de camponeses e marinheiros, de pastores e soldados, profissionais de que afectuosa e gratamente descendo […]». Também no Caderno de Lembranças, da autoria de Agostinho da Silva, escrito em 1986, aos 80 anos, e que constitui no respeitante aos antepassados, como no relativo à infância, adolescência e primeira juventude, a melhor fonte de informação, ficou, no meio de considerações várias, registo fugaz que reitera na generalidade a linha genealógica acima apresentada. Diz Agostinho (2006: 23): «[…] um bisavô, meio árabe, pastor do Alentejo, um avô marinheiro da Fuzeta, se não árabe, mouro». O retrato dos ascendentes confirma-se ainda em entrevista dada no final de 1986, recolhida depois no livro O Império Acabou. E agora? (2001: 15): «A minha gente é toda do Sul. […] Se eu fosse ao Algarve […] encontrava-me também chamado por aquele mar, por aquela costa admirável, porque minha gente também foi de lá. Se vou para o Alentejo, donde é outra minha gente, que foi pastora por lá, pois eu naturalmente também me sinto do Alentejo.»
Veio ele pois a este mundo, modesto, obscuro, provincial, sem o mais ínfimo título pergamináceo, de sangue ou de finança, mas de modo nenhum inculto ou miserável, sobretudo se atendermos à casa dos pais, decerto para os magros padrões da época confortável e semi-ilustrada. Camponeses, pastores, marinheiros e soldados, eis o barro obscuro e plebeico, do trastagano Sul e até de extrema fronteira, essa Fuzeta final, de que descendia o molde carnal de Agostinho da Silva. Numa entrevista em Outubro de 1993, meses antes da morte, Agostinho deixou testemunho sobre um avô, que parece não ter conhecido, mas do qual deve ter ouvido no meio familiar, pitorro ainda, obras e casos, e que seria porventura o avô paterno, filho daquele bisavô meio árabe, pastor do montado e dos plainos de além Tejo, que parece ter sido quem deixou ao póstero aqui recordado o silvoso apelido pelo qual ficou conhecido. Eis o testemunho (A Última Conversa, 2001: 32): «Pois [o avô] era militar e estava colocado no Alentejo, mas devia descender dalgum riquíssimo maometano, porque era um homem muito truculento e um pouco agressivo. […] a verdade é que teve de sair daqui e foi experimentar o Brasil, onde também não se deu bem, e acabou por voltar.»
Uma figura precisa, a única dos avós, cujo retrato chega do passado em corpo inteiro, com cheiro e cor, contornos nítidos e rosto vivo, a ponto de tornar a retratada uma figura totémica, máscara que torna visível uma personalidade e até um clã familiar, é a avó materna do escritor, nada e criada em Olhão, que acompanhou a infância e primeira mocidade do meu biografado. Foi essa humilde Maria da Cruz, ainda sem Baptista do marido, a escolhida, na juventude, para nubente daquele doido e obscuro fuzetano, marítimo de barco e almorávida, escuro de olho e de pele, que atrás se apontou, a partir de extracto de Agostinho, e sobre o qual nada mais se sabe, a não ser que também ele, caso o soldado trastagano seja de feito o avô paterno, se decidiu a zarpar para o Brasil, quando já tinha a cargo a esposa escolhida em vilar próximo e a filha que de ambos nascera, Georgina do Carmo Baptista, que mais tarde juntará ao nome o Silva do senhor seu esposo.
Em Caderno de Lembranças, já apontada como a melhor fonte de notícia sobre questões de ascendência, o escritor deixou dessa avó algarvia uma gravura impressiva, de traços exactos e fortes (2006: 28): «[…] quem a governava [a casa], e o fez tranquilamente, podendo sem apetência nem gosto do poder, foi minha avó, a de Olhão, de que lembro, em gestos, o fazer de peúgas a quatro agulhas, e com que habilidade no calcanhar difícil, e, depois, o recolhimento, sossego e absorção com que lia o folhetim do Diário de Notícias. Creio que eram suas três orações quotidianas: compras, peúgas e folhetim. Ao domingo, tudo suspenso: o importante era arear o fogão. Melhor dito: tê-lo areado. Nunca me falou de seu marido: acho que só uma vez mencionou, não a ele, mas à pele de carneiro que guarnecia a proa do barco, em que viajava ou para Marrocos (donde era ele, afinal?) ou para Lisboa. […] Seu vestuário era uma blusa preta de pintinha branca e uma saia preta e, preto, um lenço de cabeça. Para sair se revestia e, ao voltar, se devestia, solenemente, de uma capa, é evidente que preta, com aquela romeira algarvia que, não muito atrás, fazia bioco e permitia, no Algarve, que se fosse pela rua sem ser conhecido, mas vendo tudo o que haveria a registar. […] Jamais me falou também de sua estada, nunca soube por que motivo, em Vitória do Espírito Santo, no Brasil, com o marido e a filha. Chamamento de empresa? Surto de emigração? Retorno de nomadismo de um antigo deserto? Também o não soube de minha mãe e apenas recordo sua afectuosa impressão da amizade de uns emigrantes italianos e o terror de uma caranguejeira que subitamente aparecera sobre o piano, pois havia piano, e a admiração pelo Rio, já de bondes, enquanto em Lisboa, só trotavam, com tecnologia atrasada, as mulas do Chora. […]. Creio que se lhe perguntassem como devia ser Portugal, responderia, e estava certa, à maneira de Olhão, talvez com uns toques de Brasil e de Largo de Santo Antoninho, onde vivera em Lisboa. O diria decidida, calma, confiante. Chamava-se Maria da Cruz. Da Cruz Baptista: do amado dever que ao pecado redime. Que baptiza na vida.»
Que me desculpe o leitor citação tão larga, mas nela se pinta um quadro que nunca doutro modo se poderia mostrar. O retrato foi traçado aos 80 anos, em 1986, ano da escrita do referido Caderno autobiográfico, muitas décadas depois dos eventos e do convívio, e a vivacidade com que se apresenta, nítido no pormenor da pintinha da blusa e do desajoujar da capa olhanense, sonoro até no tiquetique das agulhas metálicas e no silêncio a guardar quanto a passado e seus segredos, mostra a importância e a proximidade que esta avó de Olhão — de resto vulgaríssima e serviçal, sabendo porém ler os folhetins do Diário de Notícias, o que já não seria assim tão comum entre a classe de rurais e marítimos assoldados — terá tido junto do jovem Agostinho, que décadas após, quando escreve as lembranças em caderno, toma o seu nome de mulher casada, Maria da Cruz Baptista, como legenda dum alto carácter moral, crismando com o que ele, nome, tem de plebeu e de místico alguns dos valores que mais caros lhe haviam sido e continuaram a ser ao longo da profícua vida. Sobre o modo e a lide que os avós maternos de Agostinho tiveram no Brasil, estado do Espírito Santo, ou o tempo que por lá ficaram, ou as viagens que por lá fizeram, ou o dinheirame que por lá tiraram, nada se sabe, a não ser o pouco — para mim e para o leitor, não para quem o disse — que no passo acima se topa, o contubérnio que os da família Baptista tiveram com clãs de italianos e o deslumbrante efeito que a carioca cabeça do país, esse Rio de Janeiro de carro precoce, operou sobre a menina Georgina, que ao que se entende depois disso sempre com assombro votou à cidade um culto sem mancha, o que tão decisivo viria a ser em transe crucial da vida de Agostinho, como mais tarde o meu leitor verá.
Vivendo em Vitória, capital do estado do Espírito Santo, num ecossistema marinho dalguma afinidade com o do Sotavento algarvio, entre Tavira e Faro, é quase certo que o Baptista fuzetano terá continuado a meter proa de barco na esmeralda do Atlântico e a cambar velas ao vento. Deste ou doutro modo, com barco ou sem ele, pescando ou mercando, pelo ponto do piano, a família — e a caranguejeira, grosso aracnídeo do Brasil, não deixa dúvida sobre o lugar onde houve piano — não parece ter piorado no outro lado do mar a situação do seu viver; ao invés, das mexidas e vagabundas areias da Ria Formosa à ilha mercante e laboriosa do porto de Vitória houve grimpa, e grimpa alta, com a menina do casal a ser educada em esmero, com piano de sala e quem sabe se com o seu magro francês ensinado por madama viajada por Nice ou São Remo, o que um dia se poderá tirar a limpo.
Os pais de Agostinho da Silva, Francisco José Agostinho da Silva e Georgina do Carmo Baptista da Silva, mais próximos do presente, fazem ainda a vez de dois desconhecidos, integrando essa indistinta fileira de gente que, não obstante a bravura e as realizações, por vezes nada efémeras, passa pela vida sem que os que canonizam no livro da glória neles vejam sinal de interesse, de todo desaparecendo com o primeiro correr das gerações. Não fosse ainda aqui a visível e marcante existência de Agostinho, que deles deixou nota grada, e, próximos ou não, bravos ou moles, proficientes ou parados, esses dois já teriam entrado na tranquila noite do não ser. Assim, com o filho por perto, por cá continuam a meu lado, longe ainda da paz perfeita.
Sobre Francisco José Agostinho da Silva — educação, personalidade, percalços, interesses, situação, afazeres — deixou Agostinho informação, se não quantiosa ao menos aceitável, para dele se tirar, na parte mais linear, que é a das formas exteriores, um retrato próximo, durável, merecedor de crédito. Da família Silva com pouca certeza se sabe daquele bisavô silvestre que no montado trastagano petiscou taliscas de pão, enquanto o borreguinho cevava a primeira bolota esguia da azinheira, e daquele avô, mais selvoso que silvoso, militar colocado no Alentejo, truculento e assomadiço, que foi torna-viagem do Brasil e pode ter acabado a espiolhar as tortas vielas de Lisboa. Certo, ou quase, é a infância de Francisco José, nascido a 6 de Setembro de 1879, e a informação é de Agostinho da Silva em texto inédito de que dou notícia adiante, no ponto sete deste capítulo, ter corrido por uma Lisboa oitocentista, já fontista, ou por lá passou o bastante para deixar marcas e recordos, com senhoras de mantilha e véu, senhores de coco e cigarrilha, aguadeiros e americanos puxados a mulas, o comboio do Carregado a apitar na Estação Central e os burrinhos ajaezados em fila, a caminho de Algés ou de Caneças, os cafés do Chiado pesados de gente a fumegar e palitar, a ensonada gare do Rossio em vaga e permanente sombra.
Da estadia do pai como menino por Lisboa algo se sabe, ou se presume saber, por respigo apanhado em depoimento de Agostinho a um confidente na senectude, Henryk Siewierski, e recolhido na segunda parte de Vida Conversável, ainda hoje inédita, ao contrário da primeira, dada a público em 1994. Cito (inédito): «Os meninos em Lisboa no tempo de meu pai faziam uma brincadeira que era a seguinte: naquele tempo ainda, quando alguém estava para morrer, iam buscar o padre à igreja e o padre ia pela rua num cortejo para dar a comunhão, a extrema-unção, ao homem que estava morrendo. E chamava-se vem aí Nosso Pai quando ele vinha. E toda a gente que estava na rua — naquele tempo toda a gente usava chapéu — tirava o chapéu à passagem da extrema-unção com o padre para o moribundo. Então, naquele tempo, e ainda hoje há nas confeitarias, vendia-se um doce chamado abóbora coberta. São umas fatias de abóbora com doce à volta. […] Então os meninos da rua chegavam a uma confeitaria e perguntavam assim: — Tem abóbora coberta? — E o homem dizia: — Tenho, sim, senhor. — Então descubra-a, porque vem aí o Nosso Pai. — Tirar o chapéu diz-se em português descobrir-se. E eles então tinham essa graça.»
Sobre a condição profissional do pai adianta o meu biografado em Caderno de Lembranças (2006: 30): «Aspirante aduaneiro, depois de experiência, acho que malsucedida, como empregado de escritório em firma de judeus de Faro, foi meu pai colocado no Porto e daí transferido, pelos meus seis ou sete meses, para delegação da fronteira.» Funcionário público, com emprego nas alfândegas, onde o Estado cobra os direitos das importações e das exportações, depois de ter passado por escritório de firma comercial, Francisco José alguma escola há-de ter feito, e mais do que a elementar seria, com a leitura da cartilha e a tabuada das quatro operações aritméticas, pois quem jovem se propunha a aduaneiro sabia com certeza fazer a escrituração de receitas e despesas, e alguma lida e facilidade havia de ter com leis, como de resto se depreende de quem começou por secretariar empresa comercial em Faro, terra da Ria Formosa, vizinha de Olhão e Fuzeta, onde pode ter pegado de namoro com aquela menina Georgina que em Vitória do Espírito Santo entretivera algumas horas ao piano e numa delas, aziaga e horrível, se arrepiara à vista do aranhão que no lugar se conhece por caranguejeira. Quem sabe se não foi por via desse enleio ao lânguido sol algarvio que o trabalho de Faro mancou, acabando no torto, e Francisco José, até pela urgência de casar, comum ao tempo, se viu na obrigação de procurar recurso, entrando nas duanas públicas e zarpando para paragens distantes, no caso a Foz do Douro, onde lhe havia de nascer, em dia de Fevereiro, o primeiro filho. Seja como for, e só outro depois de mim esclarecerá se possível for a hipótese do galanteio, o meu biografado confirma a ilustração do pai, em números e leis, referindo em passo de Caderno de Lembranças (2006: 23) «os interesses matemáticos e jurídicos de meu pai».
A mãe de Agostinho da Silva, Georgina do Carmo Baptista Rodrigues da Silva, por sua vez, é já nossa contubernal, apresentada que foi atrás ao lado de sua mãe de Olhão, a mulher de blusa preta de pintinha branca, e de seu pai, o fuzetano habituado à onda vadia, e cujo percurso seguimos desde a cabeça do estado do Espírito Santo, onde fez o tirocínio na música e outras artes, parcas no meio, que os recursos nesse aspecto duma cidade mercante de madeiras e café não podiam ser largos como os de Paris, até aos passeios da Baixa de Faro, já de regresso ao torrão natal, com a mãe Cruz embiocada ao lado, onde o senhor Silva a catrapiscou talvez, ou da varanda da firma, dando logo de barato os papéis do comércio, ou dos cafés do passeio, onde a matula das secretarias vinha com piadas grossas fumegar o cigarro e beberricar o café e o licor adocicado da amarguinha. Retida em casa, como era afinal comum ao tempo às meninas que não tinham necessidade de ir costurar de pequenas ou de andar ao deus-dará das ruas, a mãe de Agostinho da Silva deve ter beneficiado na cidade de Vitória, Brasil, dalgum desafogo material da família Baptista Rodrigues, ou não teria chegado até hoje notícia do piano de sala, pormenor burguês, mesmo pequeno, e das viagens ao Rio, que distava de Vitória o bastante, posto que por linha férrea, para meter então despesas na capital carioca de alojamento.
Georgina do Carmo ao que presumo alguma educação há-de ter tido em casa, não sei se aquele francês de que atrás falei, mas com certeza o português basilar, pois sabia ela ler de nova, já que ainda nova ensinou seu primogénito a ler, ou mesmo de pequena, o que talvez não tenha sucedido com a olhanense mãe, a Maria da Cruz Baptista que na velhice do Douro dia a dia seguia por leitura o folhetim do Diário de Notícias mas talvez antes do Brasil não tivesse para tal meios. A favor da instrução da mãe, deixou Agostinho nota em A Última Conversa, onde, com novas indicações sobre o perfil deles, regressam os italianos, conviventes próximos da família Baptista Rodrigues. Diz ele (2001: 28): «A minha mãe […] tinha estado no Brasil durante uma longa temporada e conviveu com gente italiana bastante culta para a época, com quem aprendeu bastantes coisas, sobretudo de carácter prático.» Além da instrução, e até com pouca relação com ela, algumas prendas e habilidades teve Georgina do Carmo, pois no mesmo passo auto-reflexivo de Caderno de Lembranças (2006: 23) em que Agostinho assenta a ilustração paterna, matemática e jurídica, assinala também «as inclinações artísticas de minha mãe».
Quanto à formação religiosa, Georgina era católica, mesmo que católica sem missa, e portanto católica muito a seu modo, solta de rituais e de clero, e disso sei por declaração do filho na segunda parte (inédita) de Vida Conversável, como católico deveria ser o pai, porventura livre também de obrigações, mesmo que sobre a espiritualidade deste não haja em lugar algum, que eu saiba, testemunho. Sobre as convicções da mãe leia-se o depoimento de Agostinho: «[…] um catolicismo da minha mãe que porventura não seria um catolicismo muito ortodoxo, porque não me lembro por exemplo de ela ir à missa, de maneira que já devia ser um catolicismo meio avariado pelos mouros lá de baixo porque ela era originária do Algarve. Não nasceu no Algarve, nasceu em Lisboa, mas a minha avó, mãe dela, era realmente do Algarve, de maneira que aquele catolicismo dela já devia estar temperado. Além disso ela tinha tido uma experiência de Brasil, onde também não podemos garantir que o catolicismo seja perfeitamente ortodoxo». No testemunho fico a saber que a mãe de Agostinho nasceu em Lisboa. Pouco antes da partida para o Brasil, pergunto-me? E já agora em que lugar alfacinha? Avanço o Largo de Santo Antoninho onde Agostinho confessa em Vida Conversável, que a avó Maria da Cruz viveu, o que pode deixar a pairar uma interrogação sobre o lugar onde os pais de Agostinho se viram pela primeira vez, não Faro, mas Lisboa. Todavia, noutro passo, a informação do meu biografado contradita a do nascimento da mãe em Lisboa. Diz assim (A Última Conversa, 2001: 28): «A minha mãe, embora alentejana de nascimento […].»
2. NASCIMENTO NO PORTO E IDA PARA A BARCA DE ALVA
Colocado nas duanas do Porto, ao que parece como terceiro-aspirante de aduaneiro, Francisco José Agostinho da Silva, já com família a cargo, terá alugado morada — não consta que a casa tenha sido algum dia propriedade sua, pois a ela não regressará — no portuense bairro da Campanhã, porventura a primeira que teve no Porto, e que teria a vantagem de estar cerca do rio, onde se situavam os edifícios da Alfândega, e a um dedo da gare dos comboios que partiam para sul, onde Francisco José e Georgina continuavam a ter os parentes próximos. Aceita-se que terá sido nesse período que a avó materna de Agostinho, a totémica mulher que fazia peúga a quatro agulhas e refinava fogão, se juntou ao casal, ou porque, viúva já daquele marítimo da Fuzeta, se sentia desgostosa na casa vazia, fosse na Ria Formosa ou fosse em Lisboa, ou porque, sozinha sempre, a filha, não sei se única, com algumas probabilidades já à espera de criança, dela precisava para os trabalhos de cueiros que aí vinham.
A casa, ainda hoje de pé, na Travessa Barão de Nova Sintra, n.º 126 (antigo n.º 67), com placa evocativa do meu biografado, era modesta, com uma fachada curta e baixa, entalada entre outras duas de idêntico escopo, dividida ainda entre dois alugueres, o do primeiro andar, onde pousava o casal Silva, com varanda de porta e duas janelas, e o rés-do-chão, mais pobre e mais acanhado, com uma única janela na fachada e um quintalinho de arrabalde nas traseiras, para estendal e couve. Neste primeiro andar, em 1906, dia 13 de Fevereiro, ao início da noite, tomando por seguro o horóscopo que muito anos depois António Telmo deu a conhecer do escritor («O horóscopo de Agostinho da Silva», A. da S. e o Espírito Universal, Sesimbra, 2007), nasceu George Agostinho Baptista da Silva, assim registado, primeiro produto do cruzamento das duas famílias que antes segui, no Alentejo, no Algarve, em Lisboa, em Vitória, a dos Baptistas e as dos Silvas, sobre as quais muito haverá ainda a elucidar, em particular no lado paterno, onde as dúvidas são muitas e o quadro sumido, com um provável bisavô zagal e um avô militar fero e fundibulário.
O início da noite, para hora de nascimento de Agostinho, que se tira do horóscopo feito por António Telmo, certo bate, ou perto anda disso, pois o meu homem o confirma, ainda que duvidando um tanto, em discreto passo de Caderno de Lembranças (2006: 24): «é muito importante a questão da hora […] não sei ao certo (ponha, por exemplo, vinte e trinta de 13 de Fevereiro o calculista interessado) […]». E «calculista interessado», como nenhum mais, terá sido António Telmo, que para determinar no horóscopo o ponto do Ascendente, tão essencial no desenho da Carta do Céu como a posição dos planetas no cinturão do zodíaco, carecia em absoluto dessa hora; a que lhe serviu, apesar de não estar expressa na carta que traçou, senão pelos cálculos que levaram à fixação do ponto, a meio do signo da Virgem, ponto este sobre o qual não me pronuncio, foi a que Agostinho aqui aponta, vinte e trinta, como provável ou aproximada.
Por vários modos e em tempos vários se referiu Agostinho da Silva ao lugar do seu nascimento, ou qualificando, como fez em A Última Conversa (2001: 26), «sim nasci no Porto, em Campanhã, que é um bairro aristocrático», ou ponderando, como se lê em Caderno de Lembranças (2006: 15, 26-7), que foi por atropelo de cálculo, relativo à rapidez do movimento da Terra, que veio ao mundo no Porto — «o Porto de Campanhã e Bonfim, exactamente na Barão de Nova Cintra» — e não em Barca de Alva, outrora Barca d’Este, terra raiana, do Alto Douro, concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, escolhida pelo próprio para lugar de nascimento, parece que pela fragrância das mimosas em flor, pela severidade das encostas, pelo vasto e soberbo horizonte, na ostensiva e ao mesmo tempo singela encenação do seu primeiro ponto autobiográfico, que se pode ter como carnavalização do livre-arbítrio, ou rábula a Platão, com aquela memória de Agostinho, tão serena quanto truculenta, relativa ao ano de 1905, em que ele se pinta, na estratosfera, de companhia com alguns outros, a espiar, na procura de eleger local de berço, a superfície encoscorada do Planeta. Leia-se o passo, na festiva abertura de Caderno de Lembranças — «Lá por 1905 […] comecei a tomar atenção no belo globo que rolava diante de nós, e a tentar descobrir lugar onde me agradasse descer para principiar minha vida […].» O ponto, escolher lugar de nascimento antes de vir ao mundo, não é afinal exclusivo a esse livro de memórias, ainda que seja nele que a sua radicalidade melhor se topa, por via das ramificações que sustentam por longo momento o efeito da surpresa inicial. Noutro passo, oral esse, por isso mais concentrado, menos refinado, coetâneo porém da redacção do «caderno», o depoimento no Outono de 1985, recolhido na primeira parte de Vida Conversável, deparo com idêntica modelação do início da vida do meu biografado, embora sem os excursos desviantes, que carnavalizam exponencialmente as primeiras páginas de Caderno de Lembranças, tornando-as aqui, pela extensão, irreprodutíveis, ao menos na totalidade. Eis aqui um ponto delas (1994: 16): «Não, senhor, eu o que escolhi foi Barca de Alva, que é a última terra portuguesa antes da fronteira com Espanha, isto é, logo a seguir à Espanha. Mas é muito difícil fazer o cálculo matemático necessário para de um corpo em movimento, como é o Céu, ir acertar noutro corpo também em movimento que é a Terra. Então os calculistas lá se enganaram e eu fui parar ao Porto. Mas, logo que foi possível, repararam o erro e apenas com alguns meses de idade fui realmente crescer para Barca de Alva.»
Quanto à Campanhã portuense, na encosta da gare, ser bairro «aristocrático», que é o epíteto que Agostinho lhe dá em A Última Conversa, só mesmo por ter lá rua e travessa com nome de barão, pois de resto, tirando o nome e o pouco que dele é ou foi, já nas traseiras do cemitério, o que sobra, em vielas sujas e pulverulentas, é um desordenado e sorumbático aglomerado de favos, do tempo em que ferroviários e operários faziam rancho, os primeiros nas linhas férreas e os segundos nas Devesas, ou noutra fábrica das vizinhanças, que as havia, uns e outros acabados de chegar das Lameiras de São Roque, então só pasto e casais, ou das bouças de Rio Tinto. Nascido no Porto, na só de nome aristocrática Travessa do Barão de Nova Sintra, mas tendo escolhido para berço na carnavalesca recriação da sua memória Barca de Alva, Agostinho da Silva, por via do pai, transferido para o vilar do Alto Douro, viu logo rectificado o desvio do seu nascimento. Sobre o caso pronunciou-se assim em Caderno de Lembranças (2006: 30): «[…] meu pai colocado no Porto e daí transferido, pelos meus seis ou sete meses, para a delegação de fronteira. No céu tinham corrigido o erro ou me queriam cidadão do Porto, embora acedessem em que minha primeira e básica formação fosse daquelas terras de Beira Interior e Alto Douro, com boa tinta ainda de Leão e Castela». Doutro modo o diz, mais assertivo, menos folião, na conversa de O Império Acabou. E agora? (2001: 15): «Eu nasci no Porto, ouviu? Mas onde me criei e peguei aquilo que se chama a informação básica da pessoa foi em Barca de Alva, em todo terreno entre Barca de Alva e Figueira de Castelo Rodrigo e Guarda, por ali. […] Ainda hoje, sabe, quando eu passo por Barca de Alva ou Figueira ou Escalhão ou em qualquer um daqueles lugares, eu sinto que pertenço àquela terra.»
A Barca de Alva, posto fronteiriço, com uma importante linha férrea que seguia para Espanha, por onde entrava e saía muita mercancia, a bem dizer toda a que por terra se trocava no Norte com a antiga região de Leão, sobretudo com Salamanca, cidade choruda, chegou vindo do Porto, em Julho ou Agosto de 1906, ardia o granito ao sol, o casal Silva, Francisco e Georgina, ele para fazer a escrituração aduaneira, com certeza complexa e exigente, a contrastar com a humildade do lugar, uma rua de casas baixas a deitar ao rio Águeda e um largo de altas faias, e ela, a recordar afogueada o alísio marinho, que tão bem conhecera deste e do outro lado do Atlântico, com um pimpolho, ao que se sabe sem mancha de maleita, acabado de lhe cair nos braços.
Atrás, na sombra, vestida de preto, para libertar a filha do governo caseiro, que criadas de servir não parece ter havido, até porque os proventos resultavam só do ordenado do aduaneiro, seguia já, presumo, aquela calada e totémica Maria da Cruz, que foi quem se ocupou do serviço da casa, com presença activa e disciplinada, que nela foi menos horário tudesco do que tacto de vida, assim deixando duradouro retrato, se não mesmo exemplo modelar, na memória de quem, como Agostinho, seu neto, com ela então lidou de perto.
No Caderno de Lembranças (2006: 28 e 30) topam-se passos que exaram o lugar que essa avó algarvia ocupou na economia da casa de Barca de Alva, ao que aí se adianta também de aluguer, desempenhando nela, mas com um cuidado que se pode chamar e sem favor sageza, as funções das serviçais das famílias de maior fazenda, serviçais bem vulgares ao tempo, mais ainda fora das cidades, pela curteza dos honorários, às vezes só mesmo simbólicos, cama sólida, mesa farta, casquilha farda de goma e nada mais. Os rendimentos da família eram magros — 30 mil réis por mês, diz Agostinho, quer dizer, 30 escudos ou, no dinheiro que hoje corre, 15 cêntimos (Camilo em 1862 recebia 144 mil réis por cada livro entregue ao editor) — e não davam folga para deixar o dinheiro correr à vontade, sem olhar a gastos, tanto mais que pouco tardou Georgina em encher de novo, na expectação de nova criança, corria a Primavera de 1908, com o sopro arrepiante do regicídio de Fevereiro do mesmo ano a cavalgar o País, mais ainda o Norte, e o Norte duriense e transmontano antes de qualquer outro, pois aí acontecera a primeira revolução republicana e daí era natural o principal cabeça dos que haviam chacinado a família real no Terreiro do Paço.
A avó de Olhão, que atravessara a bancarrota do Ultimato e se fizera expedita em estratagemas de poupança caseira, se é que não os herdara já, era a ecónoma arguta, mas descontraída, discreta, nada ostensiva, pé leve em vez de sapatorro ferrado, mais gazua no bolso que chaveiro no cinturão grosso, daquela pequena e jovem fronde. Sobre o período de Barca de Alva o Caderno pronuncia-se assim (2006: 28 e 30): «O dono da casa era naturalmente meu pai, não no sentido de proprietário, que nunca o foi de coisa alguma, e não o quis nunca, o que é muito melhor, porque não há sacrifício — mas quem a governava, e o fez tranquilamente, podendo sem apetência nem gosto de poder, foi minha avó, a de Olhão […]. Naquela altura ganhava-se de posto trinta mil réis mensais, mas o que havia de comer era restrito, pouco variado e, como da terra, barato mesmo. Não tinha minha avó de matar muito a cabeça: muita coisa era dada — hortaliça ou uva, coelho ou lebre de caça, galinha de pé no chão e sua sopa de miúdos; pão, uma vez por semana; farmácia ou médico só a cavalo até Figueira.»
A terra era pobre, nua, abandonada numa das pontas do Portugal, e nem o pessoal de passagem, e algum era, por causa da fronteira e da linha férrea, alterava, talvez pelo provisório da situação, a carantonha visigótica da povoação. Ficou-nos de Agostinho, sobre este ponto, em A Última Conversa, depoimento útil (2001: 27-8): «[…] Tive a sorte de, a partir dos meus sete ou oito meses, crescer numa aldeia mesmo na fronteira junto ao Douro, que era a mais primitiva que se podia imaginar em Portugal. Havia montes de relevo igual aos que atravessavam Trás-os-Montes ou mesmo a Beira, mas sem uma única árvore, sem nada, completamente despidos, completamente nus. Não havia escola, não havia correio, não havia luz eléctrica, nem havia coisa nenhuma, nem pão havia… só à segunda-feira!»
3. AS DUAS IRMÃS. LER, ESCREVER, FALAR
A 27 de Janeiro de 1909, três anos depois do nascimento no primeiro andar da Campanhã de George Agostinho, nome próprio que resulta do cruzamento do dos progenitores, sinal pois nele da aliança deles, Georgina do Carmo, agora na casa de Barca de Alva, baixa como todas as do lugar mas talvez mais espaçosa, deu de novo à luz, desta vez uma menina, cujo nome, Estefânia Estrela, quando examinado ao lado do nome do mano, faz figura de estrambótico, desconhecendo eu se Estefânia porque algum dos ascendentes maternos ou paternos assim se chamara, ou se por estarem no rescaldo do regicídio se deram à recordação algo saudosa daquela que fora a última rainha portuguesa que a ninguém envergonhava, e não sabendo eu se Estrela ou por Francisco José ter, além de números e leis, interesse na astronomia, ou se a chegada do Halley, que havia de brilhar forte na entrada do ano de 1910, já se fazia, na boca do povo, com um ano de antecedência, para além do cálculo de órbita, anunciar. Que o nome desta menina, viesse ele donde viesse, fez efeito de surpresa, não sobram dúvidas, pois mesmo o meu biografado, muitos anos após, no Caderno, ao recordá-lo, ainda exclamava estupefacto (2006: 16): «[…] minha irmã Estefaninha Estrela, vejam só que nome, Estrela, como se lhe adivinhassem o destino.»
A passagem do cometa Halley, era o meu homem pitorro de três anos, deixou na escrita de Caderno água-forte tão viva, tão impressiva, que podia, não fosse a tolice de tais classificações, dar-lhe o estatuto de primeira memória de Agostinho, memória pelo menos nítida, fotológica, fora daquela truculência, nata da alma, que tão vivaz foi no autor de Caderno. Passo-lhe a palavra: (2006: 31-2): «Uma noite, ou me tiraram da cama ou me fizeram deitar mais tarde: o certo é que me puseram de colo no quintal e me mandaram olhar o cometa que aparecera no céu […] no horizonte em um pôr-de-sol mais que início de noite, num céu de azul esbranquiçado, de amarelo e vago raio vermelho, há uma estrela de pontas nítidas e cauda em penacho.»
O Halley — porventura por antecipação o verdadeiro padrinho de Estefaninha, que com ele veio e com ele se foi, pois só viveu neste palheiro de surpresas, valetudinária ou não, uns escassos 18 meses — trouxe, como parece comum, desastres e cataclismos, de que na região o mais acre foi uma chuva diluvial, que levantou a água dos rios vizinhos, o Águeda e o Douro, e obrigou à evacuação de Barca de Alva, com as casas tomadas pela água, e a fila dos retirantes na escuridão da noite a caminho das elevações do sul, entre eles os cinco da família Silva, com o pai destemido talvez na dianteira, a mãe, de novo prenhe, Estefaninha ao colo do pai ou da mãe, e na traseira, fechando o cortejo, a sombra adejante e trágica da avó, toda de preto, tendo talvez ao seu cuidado o menino George Agostinho, mimoso de aninhos, mas outrossim, pelo que dele depois se notará, intrépido e nada fatalista, mesmo com cometa a queimar o céu e hecatombe a rolar na Terra. E tal violência teve a cheia que mais dum mês estiveram os de Barca de Alva alojados fora de casa, porventura em barracas improvisadas que os regedores levantaram nos cerros, enquanto se pedia com rezas a baixa das águas, ou instalados em anexos de parentes que viviam no Escalhão ou em Figueira, para onde devem ter ido, não sei se em parte à boleia dalgum carro de muares, os Silva, por razão da prenhez de Georgina, que lá terá tido, com farmácia e médico por perto, nova menina, esta de nome mais vulgar, Maria Cecília, e até por via das preocupações de saúde que a primeira menina — morreria cinco meses depois — devia já inspirar aos adultos da família.
Nada aqui invento de meu. A fonte destes factos encontra-se em Caderno de Lembranças, onde deparo com o seguinte (2006: 32): «[…] trouxe o cometa bastante prejuízo: choveu violento, em Portugal e em Espanha, o rio inchou, invadiu a povoação, entrou-nos em casa: disso me lembro eu, bem claro: a marcha de noite, a pé, pela estrada da Figueira, até apanharmos um alto a que as águas não subiriam e donde talvez se obtivesse outro transporte, já que estava para nascer nova irmã, a Maria Cecília, mais tarde de aventura africana, como eu de Brasil. Quando, lá por Fevereiro, foi possível voltar, o lodo se pegara a tudo […]». Duradoura foi a marca do lodo, verde e seca, já que nesse mesmo passo Agostinho chama a marca do Douro, que anos depois, ou nem tanto assim, quando já lia com fluência, ainda dava com ela nos livros que tinha à mão — a Bíblia do padre Pereira de Figueiredo e uma selecta literária com trechos de Vieira, Bernardes, Frei Luís de Sousa e Filinto — e que terão sido, com magríssima idade, no tempo ainda dos cueiros, quatro anos ao que parece, as primeiras leituras autónomas. Calcule o leitor desde já a clareza do discorrer oral, a fluência e a concatenação da fala, em menino que começou a ler por tal selecta.
No regresso a casa, depois da baixa das águas, trazia a família consigo mais uma boca, Maria Cecília, nascida ao que tudo indica fora de Barca de Alva, nos primeiro dias de Janeiro, e que algumas parecenças viria a ter com Agostinho, pelo menos de acaso, posto que os destinos dos dois manos pouco se cruzassem e por isso ela pouco compareça nesta biografia. E nesse regresso uma outra boca estava prestes a partir, Estefaninha, cujo arco vital biológico se resumiu a 18 curtos meses de existência, fiel ao mesmo local, sem nada de acasos e de desvios, ao que parece com uma única jornada para fugir das águas, e por isso, no destino, sem parecenças nenhumas com os manos, que virão a bater muito mundo. Os restos mortais desta Estefaninha ainda hoje devem repousar no cemitério de Barca, pois, em 1986, quando Agostinho regista o passado (Caderno de Lembranças, 2006: 16), toma a terra desse cemitério, e para sempre a toma, como o lugar de volta ao céu da irmã Estrela, de quem nada se saberia, e nada é mesmo nada, se do meu biografado não tivesse havido o que depois houve e tanto foi.
Agostinho, pitorro de colo talvez mas já desmamado e a roer côdea de pão, ao contrário de Maria Cecília, acabada de nascer, memória individualizada guardou dessa sua primeira irmã, pois isso confessa ele em A Última Conversa (2001: 30): «Ainda me lembro dela ao colo da minha mãe. Morreu com pouca idade, pouco depois de ter nascido. Coitada, nem chegou a completar os dois anos!» A morte de Estefaninha, ainda que comum em época de muita sangria infantil, deve ter perturbado os adultos da casa e tanto assim parece ter sido que Georgina do Carmo nunca mais se voltou a meter em trabalhos de parto, ficando apenas com George Agostinho e Maria Cecília, esta ao peito pouco mais do que recém-nascida, o outro menino espigado e vivo de quatro anos, que provara já a têmpera na retirada de Barca de Alva. E, pelo que depois se sabe dele e ao longo deste livro se contará, rija e despachada se terá ela mostrado logo de entrada, na primeira catástrofe que lhe tocou enfrentar, e não pequena terá ela sido, já que a região era à época tão bárbara e selvagem que até — e assim o confessou na entrevista que deu ao Diário de Notícias (20-8-1986), depois recolhida em Dispersos (1987: 146) — os lobos, de Inverno, mal caía a noite, vinham bater as ruas de Barca de Alva, à procura da carniça dalgum transviado. Em Caderno de Lembranças, coetâneo da entrevista ao Diário de Notícias, reitera Agostinho esta memória de Barca de Alva, agravando-a talvez com as ousadias da alcateia e juntando-lhe, na estação estival, o escorpião e a cobra. Cito, não vá o leitor pensar que invento, coisa que aqui ponho por proibida (2006: 30): «De Inverno, ao que diziam, vinha lobo rapar nas portas. No Verão, que torrava, caía escorpião dos telhados, por graça se matavam cobras e se penduravam de ramos baixos de árvore.»
Para despistar mágoas, e não apenas as de dentro, e bem ásperas seriam, com o absurdo adeus a Estefaninha, mas também as de fora, as colectivas, do País, com uma monarquia a agonizar nas mãos dum rapazinho de buço sombreado, cuja única preocupação era uma actriz parisina de olhos pestanudos, Georgina do Carmo, vendo o filho aos quatro anos afoito na fala que nem rapaz de dez ou quinze, decidiu, recordando as seroadas cultas do estado brasileiro do Espírito Santo, ensiná-lo a ler por seus próprios meios, pois escola de meninos era coisa que não existia em terra tão rude como Barca de Alva em tempos de monarquia, nem nos seus arrabaldes, pelo menos até Figueira de Castelo Rodrigo, onde poisava, além, da botica e do João Semana, o cofre-forte do banco, em que, às temporadas, o pai de Agostinho ia depositar o maço das notas que capitalizava no trabalho da duana. Isto o diz ele, não eu (Caderno de Lembranças, 2006: 30): «Meu pai usava revólver — e nunca o levava quando ia à Figueira, a cavalo, rápido, depositar o dinheiro da Alfândega: a arma lhe era brinquedo mais que defesa: medo lhe era coisa desconhecida, o que, ao que parece, não herdei muito.»
Como a severa Barca de Alva era, por via da duana, da linha férrea, do posto da guarda e talvez dalgum comércio, terra de forasteiros com aspirações a urbanos, e muitos seriam eles já que Agostinho no seu Caderno (2006: 34) só para guardas-fiscais chega a falar de uma fila deles, e porque para o efeito obteve o acordo do marido, e até por ele uma sala da Alfândega, decidiu Georgina do Carmo alargar as seroadas aos meninos que no povoado quisessem vir entreter as horas a aprender a casar as letras, e quem sabe os números, com uma única exigência, a de trazerem consigo banquinho onde assentassem os fundilhos, já que a sala era mais nua do que figueira no Inverno. Para tanto os préstimos de Maria da Cruz Baptista, a mãe, terão sido mais uma vez intorneáveis, pois alguém havia, nestas ausências ainda demoradas, de velar o sono da menina acabada de nascer ou de a tomar ao colo, dando-lhe embalo e canto, em caso de choro e freima, pois não é crível que Georgina se apresentasse às sessões com a cesta da bebé ao lado ou com esta presa na ilharga. Assim, num quarto desocupado do edifício da Alfândega, com a mãe por mestra, numa improvisada escolinha artesanal, fruto apenas da vontade dos que ali se reuniam, num modo livre que sempre depois lhe servirá de modelo, aprendeu o meu biografado a juntar as letras. Deixara pouco antes os cueiros, mas é quase certo que bebeu aquilo das letras num relâmpago, mesmo que não soubesse muito bem, numa terra onde uivava o lobo e mordia o escorpião, para que lhe serviam elas, a não ser para espiar aqueles dois livros, com a verdosa marca do Douro e seu lodo, a Bíblia do padre Figueiredo e a selecta literária, que se não eram os únicos da morada por perto andavam, e já agora deitar os olhos às letras que serviam de peanha às figurinhas que estampavam as caixas de pauzinhos inflamáveis e que tão atractivas eram de cores e feições. A fonte dalguns destes factos encontro-a eu em A Última Conversa (2001: 28-9): «A minha mãe […] quando chegou a Barca de Alva, como não havia escola e a casa da Alfândega tinha uma sala disponível, resolveu utilizá-la para dar aulas aos meninos da terra que quisessem, contanto que trouxessem um banquinho, pois nem banquinhos havia! Nessa altura, naquele Portugal de início de século, a pobreza era muita. Bom, e foi assim que então aprendi a ler. Mas não me lembro absolutamente nada do que li, nem sequer como foi.»
Quanto a Agostinho nada lembrar do que leu em criança, e até do modo ou do método como iniciou o processo de leitura, não o posso levar à letra, dando-lhe o desconto da entrevista e das 87 primaveras já havidas, pois no Caderno de Lembranças, onde ele puxou pela memória à séria, temos informações mais bastas, que me permitem falar dos livros que ele espiou em casa e das caixas de fósforos que tentou interessado decifrar, e que muito lhe excitaram o apetite, e me deixam agora dizer que ao lote juntou ainda poemas de João de Deus (1830-1895), com certeza aqueles que ainda hoje se estampam na Cartilha e que já na altura lá estavam e tão populares eram. Cito (Caderno de Lembranças, 2006: 32): «A marca do Douro me acompanhou muito: estava ela, bem firme e veneranda, na Bíblia do Padre Pereira de Figueiredo e numa crestomatia que incluía Vieira, Bernardes, Frei Luís de Sousa e Filinto, minhas primeiras leituras, com que entendimento, Santo Deus?, logo que minha mãe, que me pusera a ler aos quatro anos, me despejou de livros elementares, o João de Deus, o primeiro entre os outros. Felizmente, ao que parece, não aprendi pelo método João de Deus: […] aprendi no João de Deus; talvez também, por minha conta, em caixas de fósforos.» Imagine-se o que meu garoto não cantaria aos quatro anos, em clareza e em fluência, se começou a comer por tais autores.
E se os quatro anos de Agostinho, em 1910, foram os de ler, com Halley aceso no céu e cheias no Douro, foram também os do estertor da monarquia com aquele menino chamado Manuel II que tinha só apetite para a boémia de Paris, de resto na boa tradição do pai, caricato número do Maxime, e os da chegada, em hora tépida de vindima e fermento, nos primeiros dias de Outubro, da República, que logo foi vista, depois de tanta reescrita, como o alívio duma página nova e limpa. Que a República foi popular, logo de entrada, em todo o País, e além de popular chegou mesmo ao patamar de alegria contagiosa, prova-o um menino de quatro anos desterrado na ponta fria do Nordeste, agitando, inchado e feliz, a verde rubra do novo regime. Tal menino foi o meu biografado. Mais de sete décadas após informa assim (Caderno de Lembranças, 2006: 33): «a República, de que, também orgulhosamente, agitei na aldeia a primeira bandeira». À cena, talvez pague a pena acrescentar uma outra memória do Gravoche transmontano, também fixada no Caderno (2006: 52), e que aqui me abstenho de citar: uma sessão de cinema mudo, no largo das faias, ou no barracão que nele havia, onde uma noite alguém apresentou o documentário do enterro de Cândido dos Reis, a trágica vítima dos acontecimentos do 5 de Outubro e que Agostinho chama leal soldado.
Barca de Alva, posto fronteiriço na linha férrea que ligava o Porto a Salamanca, um quintal do diabo na ponta leste do Douro, não passava duma rua, e através de Agostinho o sei (Caderno de Lembranças, 2006: 16), ladeada em ambos os lados por casas baixas, que ia dar à baixa do rio Douro, perto do qual passava a linha e se erguiam os barracões da estação e os edifícios em alvenaria da Alfândega de mercadorias, onde Georgina parece ter assentado escola. Tirando isto, só havia mesmo, na outra ponta do vilarinho, onde começava a estrada da Beira, a desaguar lá longe na fria Guarda, o larguinho das faias, com a igreja modesta em pedra amarelada, para baptizados e vigílias mortuárias, além do culto diário, em cujo átrio os velhos vinham às tardes comentar as notícias do lugar e dos arredores e mais raramente do País ou do mundo.
A terra mais próxima, a cerca de mil metros, à distância dum dedo, não era Escalhão, que ficava a mais de duas léguas de caminho puxado, se não árduo, por meio de cerros alterosos onde grimpava a oliveira, e menos ainda Figueira, a quatro léguas, mas San Martín, a leste, do outro lado da fronteira, que ali é feita pelo rio Águeda, que vem das serras de Plasencia, na fronteira da Extremadura, à procura de se lançar às águas frias e fundas do Douro, fazendo das duas povoações lugares onde os rios se encontram, a portuguesa debruçada sobre o Douro e a leonesa à beira do Águeda, que quase lhe atravessa as ruas. Cedo pois conviveu o meu garoto com a língua de Castela, se é que não com a de Leão, quer pelos que em Barca de Alva estavam mas vinham do outro lado da fronteira e só falavam a língua de Cervantes, como o Mialgo, que tinha a cargo o comedoiro — Agostinho diz «restaurante» (Caderno de Lembranças, 2006: 34) — da estação dos comboios, e com o qual o meu pequeno rústico conviveu o bastante para lhe lembrar aos 80 anos nome e perfil, e outros haveria no comércio, não no funcionalismo, que só chalravam o castelhano, quer pelas incursões que os meninos faziam nas imediações da aldeia, à procura das encostas do Águeda, onde peneiravam o granito à procura de lagarto ou de escorpião, pondo o pé nos arrabaldes de San Martín e juntando-se aos bandos que lá andavam. Se fervia pedra duns aos outros, ou se serenavam em brincadeiras de urbanidade, não sei, nem isso me parece que interesse muito ao ponto que aqui vai e que é o contacto de Agostinho criança com a língua castelhana. Juntem-se as viagens feitas em família por linha férrea à Espanha próxima, San Martín, Fregeneda e Salamanca, sobretudo em dias de mercado ou de feira garrida, e logo se perceberá melhor o bilinguismo com que este garnisé despontou para a vida. De tais viagens ficaram esparsos e delidos restos nas lembranças de Agostinho, como aquele «poupava-se dinheiro e […] se faziam compras em Salamanca» (Caderno de Lembranças, 2006: 31), que parecem indicar passeios frequentes às raianas terras de Espanha, talvez ainda mais vulgares do que aqueles que a família fazia a Figueira ou à Guarda, já que para estas não tinha, ao que me parece, nem a comodidade, nem a rapidez da linha férrea, mas apenas a picada da Beira, infestada de pedras e de lobos.
Fosse como fosse, com mais ou menos saída, com ou sem Fregeneda, de resto citada (Caderno de Lembranças, 2006: 34), certo mesmo é o facto de George Agostinho, desde menino, ele que mais tarde chegaria a dominar 15 línguas, se bater com a língua castelhana como se de português nativo se tratasse, tomando-se por capaz nas duas línguas. A fonte probatória deste primeiro bilinguismo, não só linguístico, antes se alargando ao que de patrimonial pode haver em pilar de identificação cultural, encontro-a eu na entrada de Vida Conversável (1994: 16): «E uma coisa muito importante foi que, em Barca de Alva, com os meus amigos, grandes e pequenos, aprendi ao mesmo tempo português e espanhol. De maneira que, de facto, se o Fernando Pessoa disse que a pátria dele era a língua portuguesa, eu tenho ao mesmo tempo uma espécie de duas pátrias.» E para as 15 línguas que o Agostinho da idade adulta meteu ao bolso, veja-se Fernando Dacosta (Jornal de Letras, 16-2-1987; Público, 4-4-1994, texto reproduzido mais tarde no vol. Presença de Agostinho da Silva no Brasil, 2007: 324).
4. OS AMIGOS E O REGRESSO AO PORTO
A escolinha que Georgina do Carmo abriu em vazia dependência da Alfândega de Barca de Alva alguns meninos teve, já que, apesar de terra rude e esquecida, com o uivar do lobo nas ravinas, por lá se viam funcionários de três importantes instituições da época, o caminho-de-ferro, a fronteira e a guarda, todos deslocados doutros centros de maior arcabouço, quando não de Lisboa e Porto, como sucedia com a família de Agostinho, e por isso com algumas ou mesmo muitas aspirações de instrução. Nos banquinhos que traçavam circunferência em volta de sua mãe, e que de casa vinham, terá Agostinho, aos quatro anos, entre a impressão do Halley e o agitar da bandeira republicana, sem olvido nunca de Estefaninha, chegado pela vez primeira à fala com meninos do povoado, pelo menos fala de recreio, com demoras e brincadeiras, meninos desterrados ali, na ponta de Portugal, como ele, por via da azáfama dos pais. A aproximação, ao menos do meu biografado, que mais tarde advogará a vida conversável, quer dizer, uma existência a falar, terá sido imediata e muita excitante alegria lhe terá dado, mais ainda do que a que terá tirado da decifração solipsista das legendas das caixas de fósforos, depressa se transformando ela em solidária camaradagem, com muita liberdade às tardes, após a escola, primeiro em brincadeira de bando pela rua do povoado, arquinho em vez de bola, que a não havia ainda naquele momento, pelo menos de borracha como a conhecem os de hoje, e depois, mais confiantes, pelos montes e pelas ravinas do Douro e do Águeda, numa vadiagem meio cigana que modelará a personalidade de Agostinho da Silva, a ponto de ele, já adulto, com muito lugar vivido, se continuar a dar dela credor.
A caminho do fim da vida, aos 80 anos, quando a diuturna idade lhe devia pôr freio no ânimo, deixou ele cair exclamação escaldante — «Minha senhora, o meu ideal, no fundo, ao que penso, foi sempre ser vadio, sabe» (O Império Acabou. E agora?, 2001: 216) — que muito ilustra, por razão do sempre que aponta ao sem cessar, de menino a velho, a importância fundadora desses primeiros anos e neles da exaltante itinerância meio nómada que terá vivido, em grupo, nos arrabaldes da aldeia duriense. A exaltação do vilarejo transmontano a que Agostinho sempre se mostrou fiel, carnavalizando o nascimento portuense e dando-se como menino calejado de aldeia, nunca de cidade (id., 2001: 15), radicou com certeza na primeira liberdade selvagem que ele encontrou na povoação raiana e que só um castro rural, duma única rua, em que os lobos se misturavam ao humano, lhe permitiu na primeira idade gozar, já que nenhuma urbana travessa de aristocrático nome, mesmo em favo operário, como a Barão de Nova Sintra, guardava dessa liberdade memória ou cheiro — o das «mimoseiras em flor» tão exaltado — que prestasse.
Verdade porém é que a fotografia que desse tempo dele resta, e que hoje cobre a contracapa da primeira edição de Caderno de Lembranças, um menino de seis anos, em cima dum triciclo de ferro, rosto lavado, cabelo cortado, gola larga de goma, laço preto, vestido às listas, bota caneleira onde espreita a meia escura de merino, é mais o retrato dum colegial aplicado e obediente, um filho-família cujo único espaço de folga fosse a quadra fechada dum pátio calcetado de recreio, do que a prova provada dessa vida aciganada, livre de obrigações que não fossem as da escolinha tolerante da mãe Georgina, em que ponho e vejo o Agostinho menino de Barca de Alva. Não nos enganem todavia fotografias, e menos ainda daquele tempo, que as teria, em concelho tão excêntrico como Figueira de Castelo Rodrigo, por raríssimas, pois bem se sabe que traje, pose, cabelo, tudo na fotografia obedecia nesse tempo a uma encenação particular e cuidada, destinada a fazer perpetuar uma imagem idealizada do fotografado, modelada segundo o ideal burguês da época. Daí o betinho catita que nos surge no triciclo, propositadamente encenado para esse momento único, ou quase, por oposição ao desembaraçado garoto que batia as congostas perigosas do Douro e nos dias de gelado barbeirinho não hesitava mal saltava da cama em ir ao bebedoiro das galinhas, que as havia no quintal da casa, quebrar por elas o gelo (v. Caderno de Lembranças, 2006: 36).
Um dos que terá frequentado lado a lado com o meu biografado a sala da Alfândega, com banquinho e ardósia, dele se tornando próximo, e tanto o terá sido que o meu Silva o recorda com uma precisão que só pode resultar de convívio intenso, e até prolongado no tempo, sendo mesmo o único companheiro de Barca que se individualiza, foi António Pereira, filho duma família de funcionários do caminho-de-ferro, que alguma vizinhança de contubérnio terá tido com a de Agostinho. A fonte para conhecer esta amizade, que se estendeu para além de Barca de Alva, chegando à velhice de ambos, um no Porto e outro em Lisboa, está no Caderno de Lembranças, constituindo o passo momento cheio para se entender, além da amizade, aspectos essenciais da vida de Agostinho na Barca de Alva dos inícios do século XX. Diz ele (2006: 34): «Do […] António, o Pereira, sou eu amigo há bem mais de setenta anos: nunca nos desentendemos; deve ter aprendido na escolinha que minha mãe abriu na Barca e a que vinham os meninos com seus banquinhos, sua saca de piteira, seu papel, seu livro. Foi-me companheiro na caça a lagarto das arribas do Águeda e nalguma saída para os lados de Fregeneda, em comboio de manobra; deve ter participado comigo nas festas espanholas do hornaje, que em Portugal vinham os de lá fazer; juntos devemos ter corrido aventura de escalada, de que às vezes havia ferida, a curar ou, pelo menos, a estancar o sangue com teia de aranha; para cura mesmo, decerto iodo, de que também se fazia na Barca bom consumo de Inverno, quando vinha a pneumonia: se ao doente doía muito da tintura, brutamente, às camadas, punha-se-lhe por cima folha de couve, para refrescar.»
A mãe do Pereira, que parece ter enviuvado cedo, Maria da Ponte, e da Ponte porque fazia guarda ao pé do Douro, onde passagem havia, é outra das figuras marcantes da primeira infância de Agostinho, o que desde logo indicia o valor que o espaço da gare da linha férrea terá tido nas brincadeiras de Agostinho, que dele recordará pitorescas notas, como aqueles ruidosos que vindos do Minho ou de Trás-os-Montes viajavam para Lourdes, nos Pirenéus, à espera de milagres, deixando na Barca votos e garrulices (v. Caderno de Lembranças, 2006: 31). O Pereira, por seu lado, com a experiência que tinha do trabalho da mãe, acabou por se dedicar à ferrovia, primeiro como factor, encarregado da escrituração relativa à recepção, expedição e entrega de mercadoria, e depois, já feito, com o saber que tinha de tudo o que a gare dizia respeito, como chefe de estação, lugar em que se reformou.
Além do Pereira e da mãe, que seguiram Agostinho para lá da Barca, marcando por isso encontro no fio desta história, outras figuras há que povoaram o primeiro espaço de Agostinho e por lá ficaram, não mais se cruzando com ele. Foram porém visíveis o bastante na sua infância, para aos 80 anos o meu biografado os dar por vivos (Caderno de Lembranças, 2006: 34): o Mialgo, conviva nosso já, que explorava os comes e bebes da linha férrea e que nunca se fez à fala portuguesa, tudo ensarilhando num castelhano pontuado de lusismos, que muito ajudou ao bilinguismo natal de Agostinho; o guarda-freio, outro ligado à ferrovia, este sem nome, que tinha por hábito dormir ao sol, mesmo na canícula mais ardente, igual à do Alentejo mais interior, «quarenta e seis à sombra», diz a minha testemunha; o Perna de Pau, figura de pirata aldeão, se é que não de quadrazenho contrabandista, que usava a perna falsa como cofre para meter segredos.
A figura pública que se cruzou nesta época e neste espaço, a primeira de tantas que se seguiram, com o meu Silva foi Guerra Junqueiro, o poeta de Pátria (1896), que teve herdade vinícola em Barca de Alva, já na margem direita do Douro, porventura herança da família, que era de Freixo de Espada à Cinta, a quatro léguas para norte da Barca, a Quinta da Batoca, onde ensaiou pesquisas com a luz solar para combater a maromba, bactéria que atacava e destruía as vinhas, e mudou o semblante de «Vencido da Vida», janota tertuliante do Hotel Bragança, ao Chiado, com cartola e charuto, em camponês vinhateiro, de longas barbas, adunco nariz e puído burel. Junqueiro, que mantinha com certeza casa no Porto, e porventura até em Viana, onde a esposa nascera, e viajava muito para Salamanca, por causa do ferro-velho e dos encontros com Miguel de Unamuno, fartos momentos havia de passar na gare da linha férrea, ou dando um dedo de conversa ao Mialgo, ou folheando livro, ou lendo jornal, ou contemplando do cais o ripanço amaltesado do guarda-freios, enquanto esperava embarcar; aí o deve ter catrafilado o meu cabrito, que muitas décadas depois o lembra assim (Caderno de Lembranças, 2006: 35): «Não lhe recordo o rosto, embora o saiba de barbas nas fotos: só lembro, quase a roçar o chão, o sobretudo imenso e um cachecol de ponta em baixo e ponta no ombro. O diria cinzento, quem sabe se era.»
Além deste recordo enevoado, outros há, que se prendem com a imagem que Junqueiro tinha no lugar de Barca de Alva, representação dum homem forte, influente, cujo nome, retrato, ideias e dizeres apareciam todos os dias nos jornais, valendo por isso muita conversa apaixonada em roda, nas vendas ou no largo das faias, tanto mais que o homem vinha de Freixo de Espada à Cinta, a um pulo dali, e tinha poiso, onde se detinha às temporadas largas, na Batoca de Barca de Alva. Contraditantes juízos se fizeram por certo nos círculos do vilarejo, consoante a inclinação política e religiosa deles, sobre este homem público, que pontuara o seu percurso por uma alternância de actos políticos, primeiro como deputado do Partido Progressista, depois como testa coroada do Republicano, respondendo em tribunal no ano de 1907 por ofensas escritas ao rei, as mais graves de que então memória havia entre nós, e de factos literários, autor que era dalgumas das mais escandalosas e fundibulárias obras poéticas do seu tempo português.
Agostinho da Silva na memória guardou apenas uma das sentenças que na Barca se atirariam sobre este homem, ou pelo menos de todos os pontos que guardou apenas nos restituiu um deles, e em vários momentos o repetiu, com evidente gozo, e esse ponto pouco, ou mesmo nada, abonatório para o poeta d’A Velhice do Padre Eterno, pois questiona, a partir do que na Barca corria, e por verdade se havia, ao menos assim diz a minha fonte, a coerência dos seus actos. Passo-lhe a palavra (Caderno de Lembranças, 2006: 34): «Para que não se diga que ponho de parte os intelectuais, acrescentarei que me lembro de Junqueiro, que decerto já pregava Tolstoi, ao mesmo tempo que se queixavam os pobres de pedir, de que na quinta dele, do outro lado do rio, era onde recebiam menor esmola.» Outra fonte que apoia o ponto, a incoerência de Junqueiro nos sururus de Barca de Alva, está em O Império Acabou. E agora?, onde se repetem os motivos (2001: 27): «Eu conheço o Junqueiro desde Barca de Alva. Lembro-me do Junqueiro aí por 1910, 1911, talvez, com um cachecol em que uma ponta estava no pescoço e a outra estava nos pés, que ele arrastava pelo cais da alfândega de Barca de Alva […]. Então eu acho que é muito mais engraçado ver o Guerra Junqueiro com uma frase decorada, como tinha decorado o Tolstoi, e no entanto procedia ao contrário de Tolstoi. Nos arredores de Barca de Alva era a única casa, a única quinta em que pobre não recebia esmola. E no entanto ele escreveu pobres, são pobres, os pobrezinhos. E podia ser que ele desse de vez em quando, mas como não dava sempre as pessoas inventaram aquela história de que os pobres não recebiam esmola na casa do Junqueiro.» Ainda na mesma conversa (2001: 149), a propósito da geração de 70, dirá Agostinho que «Junqueiro prega coisas em que não acredita». A mesma ideia, desta vez com caso sucedido no Porto, se tira doutro momento (Ir à Índia sem Abandonar Portugal, 1994: 29-30). Em época posterior, de regresso ao Porto, o menino de Barca de Alva voltará a cruzar-se com Junqueiro. Seja como for os novos sucessos, se os há, pois factos não parecem, antes motejos caricatos, não alterarão, ao invés reforçarão, a ideia que Agostinho faz do poeta, mesmo que aqui ou ali, menos em seu nome que no de outros, ele possa desculpar a incoerência que vitupera.
Se alguma característica o meu biografado tirou da primeira infância de Barca de Alva, com os rigores do clima e a rispidez dum lugar que nem farmácia tinha, foi porventura, por cima de todos os riscos, um teimoso sentido da individualidade, que o obrigou tantas vezes a ficar só, acompanhado apenas pela consciência, às avessas com a candeia do mundo, preferindo a dureza do castigo que resultava do seu lugar de impenitente à facilidade e às doçuras que uns e outros lhe ofereciam em troca da capitulação pessoal.
Espírito activo, severo, recto, capaz de cavalgar sem pistola com a mala do dinheiro público por congostas mais perigosas que as da poeirenta Mongólia, Francisco José Agostinho da Silva deve ter sido em Barca de Alva um funcionário laborioso e exemplar, um dos mais cumpridores e proficientes, que não tardou em merecer dos superiores o louvor duma promoção, regressando ao Porto, terra muito mais doce do que a Barca severa dos gelos e das canículas e que valia só por si uma rica taluda, tanto mais que a família Silva tinha para escolarizar duas crianças — e aspirações à escolarização não faltavam decerto no seio de família em que o pai tinha interesses matemáticos e jurídicos e a mãe formação artística — e na Barca corria a pobreza que se sabia. A família recebeu a promoção e o regresso ao Porto com alívio; não me custa calcular esta alegria pondo o que era a Barca do início do século XX, com o lobo, a pneumonia, o tifo, as febres do paludismo, responsáveis porventura pela partida rápida de Estefaninha. Agostinho confirma assim a leveza (Caderno de Lembranças, 2006: 36): «Suspiro de alívio da família, que se sentia desterrada ou presa em Barca d’Alva.» O regresso ao Porto, por certo em viagem de comboio, com boa parte do cangalho a seguir atrás no vagão das mercadorias, aconteceu no ano de 1913 — o Caderno (p. 35) hesita entre 1912 ou 1913 —, quando Agostinho ia nos sete anos e a irmã, Maria Cecília, nos três, pequerrucha, a exigir ainda muito colo.
A primeira imagem — e fulva foi ela — que o meu garoto teve do Porto, não sei se no momento inicial da chegada, ou se tempo após, porque no espaço de transição como que anestesiado andou, arrancado que fora aos trilhos familiares da Barca, foi a corrida num eléctrico iluminado, sempre encantado com o banho luminoso que dele se desprendia e em que o bólide progredia, libertando chispas, talvez em noite cerrada, isto na parte baixa da cidade, da Ribeira até Massarelos e daqui até ao centro. A fonte desta primeira impressão está em Caderno de Lembranças e diz assim (2006: 35-6): «Porto se me inaugurou com luz a jorros, que ainda se projectava para a rua, sobre casas, árvores ou desvãos, nesse trajecto, que me pareceu fabuloso, do Infante a Massarelos, de Massarelos à Praça. E sempre para mim houve luz, até nos mais cerrados nevoeiros da cidade […] ou nos nevoeiros do mundo e da vida.»
Desta vez a família não precisou — por via dos proventos melhorados que Francisco José auferia, e com certeza dos aforros de Barca de Alva que uma economia caseira de galinhas e couves permitia amealhar — de se afastar para o lado oriental da cidade, onde ficava o bairro da Campanhã, com a Travessa Barão de Nova Sintra, antes se instalando mesmo à beira do edifício da Alfândega, primeiro no cotovelo de São João Novo e depois, poucos metros adiante, nas traseiras da gótica Igreja de São Francisco, na Rua Comércio do Porto, artéria larga e arejada, onde a família parece ter permanecido larga temporada, pois não temos notícia de qualquer outra morada dela no Porto. A fonte das casas portuenses de Agostinho neste seu regresso à Invicta, deve buscar-se ainda em Caderno de Lembranças (2006: 37): «[…] larguei o rio, que devia escrever Rio, na confluência do Águeda e vim retomá-lo um pouco a jusante da Ribeira do Porto, já que viemos morar, primeiro no Largo de São João Novo, depois na Comércio do Porto.» A mudança da família do largo para a Rua Comércio do Porto, ao que parece n.º 118, segundo andar, terá ocorrido em 1917. A informação está em «Biografia Sumária de George Agostinho Baptista da Silva» (IV Ciclo Agostiniano — Açores, 2007: 7).
A vinda para o Porto cruzou-se, está dito, com a necessidade de escolarizar o meu vadio, então com sete anos, sem marca institucional, já que a primeira escola que frequentara, a da mãe, a partir dos quatro anos, na sala da Alfândega de Barca, não passava dum círculo familiar de entretenimento, sem reconhecimento formal. Assim como assim, os estupendos dotes naturais do menino, visíveis por exemplo no facto de ele se ter posto à leitura daquela crestomatia de clássicos portugueses, do padre Vieira a Manuel de Sousa Coutinho, talvez na Barca ainda, já que na Invicta outras leituras haveria, com muito quiosque de jornal e não menos cubículo de literatura de cordel, terão ajudado a que, logo de pequeno, avanço digno de nota ele registasse, com fluência de letras lidas e escritas, além da clareza de fala, já admirável para os que o escutavam, isto sem falar nos números, talvez a cargo do pai, muito dado à contabilidade e ao cálculo desde os tempos da juventude, e em que o menino sem atrapalhações, com visível gosto até, se desembaraçava também.
Tinha pois Agostinho, aos sete anos, apesar da terra bárbara em que se criara, uma cómoda almofada para aterrar no Porto ou em escola dele. A escolhida foi a de São Nicolau, perto de casa, num altinho de terra, sobranceiro à Rua da Alfândega, com duas salas de aula ou então, isto só o futuro tirará a limpo, um só compartimento, amplo e luminoso, de largas janelas envidraçadas, deitando vista para o rio e para o cais de Gaia, onde dum lado se sentavam os meninos mais atrasados, à espera de se apresentarem a exame de primeiro grau, e doutro os mais afoitos e adiantados, à procura de se prepararem para o de segundo, geridas as duas partes por duas manas, as senhoras Falcão, que de vez em vez, em casos mais sérios de disciplina, raríssimos, ou de aritmética mais imbricada, estes mais comuns, chamavam um mano, mais novo, que estudava Ciências na vizinha Politécnica.
Além desta sala, se é que não eram mesmo duas, a escola de São Nicolau tinha ainda um recreio amplo, arejado, batido pelos ventos do ocidente e do sul, deitando cerca para as ruas do norte, as que serpenteavam até às traseiras do Hospital de Santo António e onde passavam os carroceiros que iam para Massarelos, Lordelo e Cantareira, ou de lá vinham com peixe e hortícolas; num dos talhões do espaço parece que algumas sementes lhe deitavam, e por isso lhe chamavam «quintal» (v. Caderno de Lembranças, 2006: 39), ficando o restante para, em inteira liberdade, os meninos saltarem e correrem, o que comprazia e serenava as manas Falcão, que teriam alguma formação, e por aí desafogo pedagógico, pois a escola, ao que se entende, era pública, laica, sem resquício de religião, e chegava mesmo a meter festa jacobina, com plantação de árvore e discursata republicana oficial.
Que a almofada trazida por Agostinho da Barca, com letras e números, fofo amparo lhe foi, não fica dúvida, pois no mesmo ano em que entrou na escola de São Nicolau, depois de alguma novidade de gramática e história, mais umas recapitulações da tabuada e das operações, logo fez, aos sete de idade ainda, e com distinção, o que foi a sua primeira vaidade, o exame de primeiro grau, tornando-se no menino modelo da escola, o que não quer dizer que não entrasse nas bulhas do recreio e não preferisse a mandria das férias, nas pedras da Ribeira, aos trabalhos da escola. A fonte desta afirmação, como de quase tudo o que diz respeito à escola de São Nicolau, deve buscar-se em Caderno de Lembranças. Cito: (2006: 38-40): «Mas o importante era a escola, embora fossem as férias muito melhores do que ela.» Encontro parágrafo em texto ulterior de Agostinho, que pode remeter para recordação caricatural da escola de São Nicolau («A Nobre Vida de Paradigma», Seara Nova, 26-5-1932): «Quando conheci Paradigma, andava eu por volta dos sete anos; frequentava, com outros mocinhos da minha idade e da minha rua, a escola primária da freguesia; as aulas eram todas viradas ao Douro, a mestra uma vasta senhora, de lunetas e picada das bexigas. Pelas dez e meia, quando o rio se punha, sob o sol, como as folhas de estanho que guardávamos entre as páginas da selecta e toda a sala se penetrava do cheiro de alcatrão que vinha das barcaças e dos navios, o Paradigma fazia a sua aparição.» O meu palúrdio, apesar de adventício, mostrava capacidade de adaptação e deitava raiz na brita do burgo como antes fizera, ao pé do Pereira, no xisto da aldeia.
A naturalidade com que Agostinho pusera pé no coração do Porto, maravilhando as manas Falcão com o desembaraço da língua — aquilo que ele chama no Caderno «a perícia nos quês» — e dando fortes esperanças de si à família, não abrandou e no ano seguinte, em 1914, aos oito anos, passa, com a mesma distinção, o exame de segundo grau, arrumando, em duas penadas, a primeira etapa da escolaridade. Numa altura em que a irmã Maria Cecília mal ainda poria o pé fora de casa, já o menino George Agostinho se arrumaria na sua blusa de riscado azul, ar vivaço, impante, satisfeito, pronto à conversa no meio dos adultos, de que lhe ficou, por volta dessa época, de outiva, a crítica cruzada, e cruzada por chover de tanto e tanto lado, a Afonso Costa e a Teófilo Braga, as duas figuras emblemáticas da República (v. Caderno de Lembranças, 2006: 40), que, embora de bibe, mostrava já os primeiros sinais de irremediável declínio. O novo regime, surgido em maré de favor, perdera, com os orçamentos restritivos dos últimos anos, com mais impostos para o Zé, a aura luminosa dos primeiros tempos; estava ainda para se ver se, baço como andava, com tanta voz a lastimar a largueza que se fora com a monarquia, perdia razão de ser.
Tirando o estudo e o recreio, a escola de São Nicolau, pela situação que ocupava no sopé de Miragaia, foi outrossim, até na sala de aula, com a galeria envidraçada deitando ao rio e aos armazéns da margem esquerda, um miradouro, onde o meu biografado avaliou aquilo que via, em primeiro lugar o leito esplêndido do rio, ardendo à luz gloriosa do Sol ou fundindo na chuva doce, com os rabelos de espadela longa e fina, vela quadrangular, carregados de barricas, deslizando aos ziguezagues lentos no prateado suave das águas, os navios carvoeiros a atracar no cais a jusante para a vistoria da Alfândega e os canhoneiros, com a artilharia recolhida, imóveis, em repouso, com a fateixa no fundo, na curva de Massarelos. Nunca este George Agostinho, conquanto tenha ideado uma sociedade sem escola, levantou a mais leve objecção ao que se passou, com gente e métodos, em São Nicolau. Ao invés grato se deu para com o lugar (O Império Acabou. E agora?, 2001: 16-7): «Fui muito bem tratado na escola, sabe? Não tenho a menor razão de queixa da minha escola primária no Porto […]. Gente óptima. Estive sempre à vontade ali, nunca ninguém me prendeu a coisa nenhuma.» Resta saber se esta liberdade, que é apenas a primeira de muitas outras que ele tomou na vida apertada das instituições, a encontrou ele por dádiva fácil nos outros ou por conquista bem suada em si.
5. A ESCOLA INDUSTRIAL E OS PRIMEIROS ANOS DE LICEU
Mal o exame de segundo grau lhe saiu com distinção, o que terá sucedido no final da Primavera de 1914, fizera o garnisé oito anos, foi ele presenteado, em festa de bolos e sumos, com zuavos de jaqueta vermelha, longa carabina ao ombro, quico preto no cocuruto, e soldados de infantaria búlgara, na época os entreténs mais cobiçados no grupo de meninos de Miragaia e São Nicolau. Ele, Agostinho, pelava-se por soldadinho no chão. Não se pense que invento; encontro a fonte destas informações, como das próximas, respeitantes aos sucessos da escola industrial, em Caderno de Lembranças (2006: 40-3), riquíssimo manancial para esta época. Também na conversa do livro O Império Acabou. E agora? há curto resumo dos anos imediatos à saída da escola de São Nicolau (2001: 191). Começaram, distraídas e soltas, as férias, decerto com muita surtida para os lados da Cantareira, onde se metiam à água os filhos dos marítimos, e em Agosto de 1914, quando as colunas alemãs entravam na Bélgica e a Inglaterra declarava guerra à Alemanha, reuniu-se conciliábulo em casa dos Silvas para projectar a vida do menino, que acabara de despachar num assobio o exame de segundo grau, ficando disponível para novo futuro, que tudo dizia promissor e temporão.
Entravam nesse círculo Francisco José e Georgina do Carmo, o primeiro com o exercício sério do funcionalismo público e a segunda com a prática de ensinar meninos, além da natural autoridade de ambos, e ainda, ao que se tira de passo, vago todavia, das lembranças do canhenho (2006: 40), de três tios de Agostinho da Silva, um na marinha de guerra («Engenheiro maquinista de navios da marinha de guerra», diz ele em O Império Acabou. E agora?, 2001: 191), outro faroleiro e herói do 5 do Outubro, outro ainda anarco-sindicalista e parece que giro dos correios postais, irmãos do pai, já que a mãe ao que me cheira se tratava de rebento único, e todos os três a viver pela Invicta. O primeiro destes tios é José Joaquim Agostinho da Silva, segundo-maquinista da Armada, já que o meu biografado o identifica em texto inédito chamado «Um Passeio a Leixões e uma Visita a Bordo do Vapor Português “Porto Alexandre”», de que mais à frente se falará. Era ele talvez o mais próximo da casa de Francisco e de Georgina por via de duas meninas, Berta e Aida Silva, suas filhas, que vinham a espaços brincar com os priminhos, George Agostinho e Maria Cecília. O último, o anarquista, ao que apurei Domingos Agostinho da Silva, era próximo do tipógrafo José Benedy, parente ainda dos Silvas, e que foi um dos redactores principais do semanário anarquista Terra Livre, fundado em 1913.
O certo é que, talvez com a palavra do menino, que não despegara olhos em São Nicolau de rabelos e canhoneiros, metendo mar e barcos em casa na hora da conversa, inclinação essa que era para mais de estema, com dois tios na marinha e um avô em caíque nos mares do Algarve e talvez do Brasil, o certo, dizia, é que a assembleia, maior ou menor, decidiu-se por escola industrial, a ver se do garnisé saía oficial de máquinas de barco ou mesmo, caso a sorte prosseguisse, oficial da marinha de guerra, com escala e escola no Alfeite. E no início do ano escolar, calculo que de fatinho novo, sem remendos, e nova saca, sem falar da novidade de cadernos e livros, lá se apresentou, com certeza pela mão da mãe, o menino George Agostinho na Escola Industrial Infante D. Henrique, paredes meias com plátanos e freixos da Cordoaria, a cerca de 15 minutos da Rua Comércio do Porto, ou do Largo de São João Novo, tanto monta. Em vários excursos biográficos — ver por exemplo Artur Manso (Agostinho da Silva, 2004: 7) — aponta-se a Escola Industrial Mouzinho da Silveira como a frequentada por Agostinho da Silva; ao que parece nunca terá existido escola com tal crisma na Invicta (Caderno de Lembranças, 2006: 41-42).
A adaptação de entrada fez-se difícil, com o menino a estranhar o escuro do edifício, sem quintalão de recreio, sem galeria envidraçada para avaliar o entretém de barcos, aboletado de salas de aulas, como favos de colmeia, monótonas escadas de pedra ou madeira e em cada andar patamares de espera, sem janelas, ao menos janelas rasgadas por onde se pudesse espreitar para o exterior, que serviam à matula para se aquartelar nos intervalos, ou grunhindo diante de imagem canalha ou puxando as primeiras fumaças do cigarro. As aulas, centradas em matérias práticas e de grande rigor, desenho técnico, cálculo, física moderna e química elementar, tudo pombalino, de régua e esquadro, não conseguiram puxar pelo jovem acabado de sair do regaço suave das manas Falcão, onde o estudo da morfologia, do léxico e da sintaxe, ao modo do trívio antigo, dominava sobre o resto, fazendo a glória prematura do estudante, antes de mais naqueles quês que ele recorda com vaidade anódina no Caderno. Choveram os primeiros resultados negativos, talvez com alguma dúvida inicial da parte dos lentes, que reconheciam ser o menino novo de mais para as lides destras do cálculo e do desenho, merecendo por isso dilação de prazo e tolerância. De qualquer modo o Francisco José que batia as picadas do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo com a caixa do dinheiro da Alfândega a tiracolo, carácter duro — Agostinho no Caderno diz que «medo lhe era coisa desconhecida» (2006: 30-1) — e teimoso, não era fulano que se ficasse diante dos insucessos do filho; aplicou-lhe por isso um severo programa de estudo, com horários rígidos nas horas livres do dia, sob vigilância apertada da mãe e da avó, que se prolongava pelas manhãs de domingo, sem missa, dessa vez às ordens dele, que sabia o bastante de cálculo e de química para lhe orientar e apoiar o estudo.
Embora! A atenção do menino no estudo era nula — distracção contínua em virtude de magno aborrecimento — e os resultados em vez de melhorarem foram a pique, porque com o desinteresse do estudante, que já não fazia qualquer esforço por esconder bocejo e enfado, quando não o comentário irreverente, a benevolência dos professores esgotou-se. Passou o pai ao regime dos castigos, indo-lhe aos zuavos, tão do gosto do menino, retendo-o no quarto, proibindo-lhe isto e aquilo, trespassando-o com o olhar gelado, mas nem a perda da infantaria, tão dramática para o jovem Agostinho como o afundamento dos corpos franceses nas Ardenas, lhe estimulou o apetite pelo estudo e lhe salvou o ano; no final a pauta dava-o, a vermelho gritante, sem obséquios, por reprovado. As férias dessa vez entraram sem bolinhos e sem folgas, com censuras várias e muitas horas de abandono solitário no quarto, a que só a indulgência da mãe de quando em quando o livrava.
Lá fora, nas ruas, com os pavores da grande guerra na Europa, corria uma crise de géneros e a subida do açúcar em cinco tostões, de que ficou a exclamação incrédula da avó Maria da Cruz dando em casa a notícia (Caderno de Lembranças, 2006: 38), já que cinco tostões na época eram quinhentos réis, quer dizer, meio escudo, uma pequena fortuna na mão dum pobre. Cresceram de imediato os clamores contra os democráticos, que, fiados na vitória dos aliados e temerosos das ambições tudescas sobre as colónias africanas portuguesas, advogavam a entrada imediata de Portugal na guerra ao lado da França e da Inglaterra. A República de Afonso Costa, gaiata de quatro anos, caiu de cama, diagnóstico reservado, quase a dar o badagaio, com os democráticos impedidos de entrar no Palácio de São Bento e um Governo de ditadura, que, dizia-se, preparava em segredo o regresso do rei. A República, num último arranco, levantou-se, arreganhou os dentinhos de leite, bateu-se e debelou o tifo da ditadura de Pimenta de Castro. No chão ficaram centenas de mortos e muita poeira suja para levantar nos tempos próximos.
No ano lectivo seguinte, a receita repetiu-se. O estudante da escola industrial mostrava um olímpico desinteresse por todas as matérias do cálculo e da física, chegando a ponto de confessar que o melhor da escola era o caminho (Caderno de Lembranças, 2006: 41-2), quase ainda sem tráfego de motor de explosão, só gente a pé, que todos os dias batia entre a Igreja de São Francisco, ao pé da qual morava, e a Cordoaria, onde ficava o edifício escolar. E tão curioso o deve ter julgado, com o cotovelo da Rua do Belomonte e o fontanário da Rua das Taipas onde bebiam os muares, que mal avistava o paralelepípedo da escola, mais escuso que prisão, o garnisé começava a perder a vontade de se emparedar em tal sólido. Depois, aproximando-se, e vendo à porta o sentinela, maciço funcionário de bigodes, de que ficou recordo preciso (id., 2006: 42), que tinha por hábito levar de arrastão até à carteira da sala os recalcitrantes, a réstia de vontade desvanecia-se, debandando ele para o Jardim da Cordoaria, onde outros como ele entretinham os ócios clandestinos até a sineta da escola lhes indicar a hora do regresso.
Em casa, quando se percebeu o rumo que o ano levava, com faltas e negativas a vermelho, contínuas queixas dos docentes sobre desatenção e ausência, as relações azedaram. Em vez de recriminações, e visto que já não havia zuavos para tirar, vieram os sopapos. Preto no branco, assim diz o meu biografado (Caderno de Lembranças, 2006: 42): «[…] castigo nenhum, pancada nenhuma teve o menor êxito». À imagem do que antes sucedera, também deste modo nada se conseguiu; o ano chegou ao fim com a pauta corrida a negas e uma reprovação ainda mais rotunda. E para mostrar que afinal havia nele uma firmeza de carácter que nada ficava a dever à do pai, no ano seguinte, quando todos esperavam que os castigos corporais começassem a chamar o pimpolho à via desejada, ele repetiu a dose, carregando nas faltas e abusando na vadiagem, desta vez com surtidas mais largas, explorando os jardins do Palácio de Cristal e até os longes de Gaia, através do corredor da Ponte de D. Luís. Não invento; limito-me a seguir o Caderno de Lembranças, onde leio o seguinte (2006:42-3): «Com o tempo, houve companheiros e tivemos arte de entrar no Palácio sem pagar bilhete: nos entendíamos muito bem com a aldeia dos macacos ou descendo o mais possível dos jardins sobre o rio, com a arriba de Gaia a convidar para o mais longe.»
Ante as censuras, não mostrava o mais pequeno sobressalto; guardava silêncio, numa atitude decidida, mais de desafio que de culpa. Se pensavam que o vergavam com castigos, tirassem daí o sentido, que quanto mais o escarmentavam mais lhe arreigavam a certeza do que fazia. Era um contumaz bonifrate dos sérios. Em casa tristeza e desnorte não conheciam limites. O miúdo estava a entrar na adolescência e não se divisava futuro para ele; era irreverente, acamaradava com os cábulas e até ao banco do Hospital de Santo António já fora uma vez dar com uma pedrada monumental (Caderno de Lembranças, 2006: 43: «e fui parar uma vez ao banco do Santo António, com uma boa pedrada na testa».
Os pais, que anos antes tanta esperança haviam posto naquele filho, que lhes aprendera as letras num ápice e tanta distinção tirara na escola de São Nicolau, andavam desolados, sem saber que rumo dar ao assunto; chegaram a pensar meter o menino em colégio particular, o Almeida Garrett, roubando-o às ruas, por onde ele vadiava sempre que se furtava à apertada vigilância da mãe, mas o orçamento, contados os pintos, não cobria o luxo. A avó, que era esfíngica, na blusa preta de pintinha branca, não abria a boca, nem sequer para pedir o socorro de Providência, mas percebia-se no olhar de névoa a mágoa cerrada em que consumia alma e cisma; até o folhetim do Diário de Notícias, tão íntimo dela, lhe seria enfado, e tão grande seria que, presumo eu, o punha de lado sem sequer o abrir.
No País o ambiente não era mais animado. O regresso dos democráticos, depois da varicela inofensiva da ditadura de 1915, com o Costa de novo ao timão do Governo e Bernardino Machado na presidência, empurrou Portugal para a Grande Guerra, com a requisição dos navios alemães refugiados nos portos portugueses, a que logo se seguiu formal declaração de guerra da Alemanha a Portugal. O esforço de guerra, com a necessidade de preparar em poucos meses, com bisonhos arrancados às bouças, um corpo de infantaria capaz de intervir na dura guerra das trincheiras da Europa Central, que metia tanques blindados, de motor de explosão, e até bombardeamentos aéreos de bimotores, fez-se de imediato sentir, levando a explosões sociais, com as classes urbanas mais pobres a queixarem-se de fome e a levarem de assalto mercearias, mercados, armazéns e barracões onde os espertos guardavam géneros de primeira necessidade. Já o Corpo Expedicionário Português combatia em França, quando a família Silva desesperada, consciente que nada se extraía daquela leiva, decidiu dar guinada valente, como em derradeiro recurso, tirando o menino da escola industrial, candidatando-o ao liceu, com exame de admissão por precaução, já que o candidato era um tanto serôdio, pois ia ele a caminho dos doze. Agostinho da Silva mostrava semblante de rebelde; estava só por se ver se o era por natureza ou se o sabia ser quando a situação assim lho exigia. Leia-se o resumo do caso pelo próprio em O Império Acabou. E agora? (2001: 191): «Aos oito anos entrei para a escola industrial. Felizmente, eu tinha bom senso, mesmo naquela altura, e achei que aprender física e química aos oito anos era uma estupidez grande. Não pego a escola, sabe? Ia passear, diverti-me à grande por todos os lados do Porto e o resultado foi dois, três anos deitados abaixo. Não houve jeito! Então eles resolveram pôr-me no liceu.»
Pelo que se vê na segunda parte da Vida Conversável, a religiosidade da mãe de Agostinho da Silva era comedida, pessoal, pouco dada a beatérios e a missas; também o pai, apesar da falta de testemunhos directos sobre o caso, assim seria, pois que não insistia com a mãe em saídas de igreja, o que se prova na declaração de Agostinho, «não me lembro de ela [a mãe] ir à missa». Também Agostinho não iria, pois num canhenho de lembranças tão a pormenor como é o Caderno não comparece uma única igreja onde Agostinho metesse pé para cataquese e primeira comunhão. Escolas públicas estão lá, com a celebração cívica em São Nicolau e a tentativa cerrada e frustrada de o fazerem engenheiro de máquinas; igrejas, sacristias, procissões, confissões e outras que tais da educação religiosa vulgar duma família cristã praticante, nem uma, o que bate certo com clã que tinha no seio um herói do 5 de Outubro — o faroleiro carbonário que Agostinho diz que apanhou «um tiro nos treinos para o 5 de Outubro» (Caderno de Lembranças, 2006: 40) — e um anarco-sindicalista aguerrido e militante. Mesmo o terceiro tio, José Joaquim Agostinho da Silva, segundo-maquinista da Armada, porventura dos quatro irmãos o mais conservador, por via do espírito de caserna em que se formara, não parece ter pinta de grande papa-missas.
Não obstante, não me custa admitir, em família que não repudiava de forma militante o cristianismo, ou mesmo o catolicismo, apenas o entendia, e assim o diz Agostinho, como um «catolicismo meio avariado pelos mouros lá de baixo», que tenha havido em momento de tanta angústia, e tão crucial, com o exame de admissão ao liceu, rezas e pedidos fervorosos, ao menos da parte da mãe e da avó de Agostinho. Não tenho fonte directa para o caso mas suspeito que é disso que se trata, quando Agostinho assevera, espirituoso e brincão (Caderno de Lembranças, 2006: 43), que o exame, no velho edifício central do Liceu Rodrigues de Freitas, na Rua São Bento da Vitória, perto da Cadeia da Relação do Porto, foi vitória e milagre do santo, só comparável ao que antes fizera com a reconstrução da Europa devastada pelos bárbaros, neste caso sendo ele o bárbaro ou o índio do Jardim da Cordoaria e das aventuras do longe com o tabuleiro da Ponte de D. Luís pelo meio. Momentos há — este é um deles — em que se desconhece se o tão propalado providencialismo de Agostinho da Silva, tomando o que acontece como aquilo que havia de acontecer e desde há muito se sabia que por alto desígnio iria acontecer, não passa afinal de brincadeira catita para entreter o tempo, ganhar verve e boa disposição, alimentar à volta da távola aquela vida de palavras que não tem de ser verdadeira para ser conversável. Habitue-se o leitor à malícia do meu biografado. E quem lhe visse nesta época o sorriso rasgado de lado a lado, mas retido por uma ponta de cepticismo, entenderia na perfeição o que digo.
Voltou o meu Silva à distinção, nas letras e nos números, com o exame de admissão ao Liceu Rodrigues de Freitas. Escarmentados por três longos anos de mandria, os pais, se flectiram os olhos de alívio, ou se agradeceram à Providência o favor, não avaliaram porém o feito como merecedor de bolinhos e de prendas; desconfiavam daquela primeira abundância. Mas o menino, mais espigado, até na puberdade entrava, com pilosidades e recatos, deu boa conta de si. Nada de visitas à Cordoaria, nada de desvios para Miragaia ou para o Palácio de Cristal, nada de momices no tabuleiro da Ponte D. Luís com os rabelos por baixo, no cais de Gaia, a despejar barrica e os canhoneiros ao fundo, no estendal verdurento das águas; apenas o caminho certo para as salas de aula do Rodrigues de Freitas. Qual foi o nó do milagre que deu sumiço ao gazeteiro, pergunta o leitor. Há fonte directa para o assunto. Diz Agostinho em entrevista de 1986 (Dispersos, 1988: 82): «não fiz esforço nenhum: a primeira aula que o professor me deu, de geografia, me interessou e a coisa continuou por ali fora». Tudo natural, pois. Dessa aula ficou outro registo (Caderno de Lembranças, 2006: 44): «E tudo muito simples: foi só, no primeiro dia, entender que a Rua do Mouzinho da Silveira era um vale e achar que era um problema interessante saber como o dito se abrira […]. Aquela aula me abriu para a ciência e, muito mais importante, a apetência do impossível […].»
As notas que chegaram pelo Natal tiraram teimas: era tudo acima de quinze e dezasseis. Quem diria que da Rua das Taipas à de São Bento da Vitória, um quarteirão se tanto, nem cinco minutos, se ia dum lugar ao seu antípoda. Foram assim as primeiras ironias deste desconcertante. Estava visto, o meu biografado só era rebelde quando queria ou quando lhe convinha. E quem diz rebelde, diz o resto, pois este rústico que sempre se quis o aldeão de Barca de Alva parece ter gozado da capacidade de metamorfose, nada assumindo em exclusivo e por tudo passando, menos por destino ou fatalidade que por gosto, esse em pleno assumido, de passar e experimentar. O conciliábulo familiar, de novo reunido, com pais e tios à conversa, respirou aliviado, ainda que o segundo-maquinista da Armada, José Joaquim Agostinho da Silva, porventura o mais influente do clã, até pela posição que tinha, se tenha ressentido o seu tanto com a troca, pois é bem de ver que a pancada da escola industrial, visando meter o menino nos barcos, algo deveu ao seu espírito de caserna. Até as filhas, Berta e Aida, que sonhavam já com o priminho fechado numa farda igual à do pai, terão feito cara de caso à notícia da debandada. Já o anarco-sindicalista, detestando porventura galões e hierarquias como convinha ao seu ideário, dando de barato fardas e dragonas, rejubilou com o abandono.
Faça-se um intervalo na vida do liceu para se apontar o primeiro texto hoje conhecido de Agostinho da Silva. Antes dele só mesmo singelo cartão enviado à mãe, por volta dos seis anos. O texto é carta a seu pai, Francisco José, escrita a 6 de Setembro de 1917. O remetente tem 11 anos e sete meses; está prestes, presume-se por aquele «espectacular princípio de Outubro» de que ele fala no Caderno (2006: 44), a ficar distinto, em letras e números, em época de recursos, na prova de admissão ao liceu; há-de gozar dum novo estado de graça, se bem que vigiado, mas por agora, depois de três anos de desacato, sem prova ainda de acesso ao Rodrigues de Freitas, que parece ter acontecido nos primeiros de Outubro, vive a desconfiança e a preocupação da família. É por essa carta, que infelizmente não nos chegou completa, ou por cópia dela, depositada hoje nos arquivos da Associação Agostinho da Silva, que se tira que Francisco José nasceu a 6 de Setembro de 1879, pois a epístola, escrita nesse dia, é um presente de aniversário ao destinatário, que nesse dia, segundo nela se lê, completa 38 anos.
Diz Agostinho da Silva: «Meu querido papá / Passando hoje, o seu trigésimo oitavo aniversário, pelo qual o felicito, e desejando-lhe largos anos de vida e felicidade, e como não tenho uma lembrança chique para oferecer-lhe como recordação deste feliz dia, peço-lhe licença para ofertar-lhe esta singela descrição da minha estadia em Ovar.» Além da informação sobre Francisco José, a carta tem o proveito de pôr à disposição um texto escrito por Agostinho da Silva aos 11 anos. Basta atentar com alguma minúcia no primeiro parágrafo acima transcrito, um único período com a interpolação de sucessivas orações subordinadas, num encaixe múltiplo, exemplar no uso do pronome relativo «qual», até se atingir o clímax da oração principal, para se perceber a habilidade sintáctica, a facilidade de composição de quem aqui dispõe na página as palavras, destreza que muitos nunca chegam a agilizar no curso duma longa vida de contacto com a palavra escrita e lida. Quem aos 11 anos possuía uma sintaxe assim robusta, sem nunca criar hiatos de sentido ou tropeções de articulação em tão imbricado período, cedo prometia novos boleios à frase da língua, habilitando-se a vir a ser um dos mais hábeis criadores da língua portuguesa do seu tempo, como de feito veio a ser, tanto na expressão escrita como na oral, atingindo em ambas culminâncias raras. O meu biografado era meão, mais para o pequenote que para o avantajado, e assim ficou para a vida inteira, mas em termos de lábia foi um dos gigantes que por esta Terra passou.
Entende-se agora melhor que este Silva tenha em jeito de brincadeira aprendido a ler aos quatro anos, quer dizer, numa idade em que outros ainda aprendem a soletrar as primeiras palavras, e logo se tenha lançado à leitura de Vieira, Bernardes, Manuel de Sousa Coutinho, Filinto e sabe-se lá mais quem. E outrossim se entende que as manas Falcão, por razão daqueles quês, marca já de portentosa sintaxe, tenham feito dele a eminência — ele diz «a glória» (Caderno, 2006: 39) — da escola de São Nicolau. E se no período acima transcrito aquilo que de imediato choca é a solidez da sintaxe, num tópico que se consolidará, tornando-se a marca-d’água da prosa de maturidade do escritor, não menos comove em segunda visão o domínio lexical, em que se destaca o uso do ordinal em lugar do cardinal, sinal de largo cabedal verbal, se não mesmo de opulência em miúdo onzeno, o desdobramento, para diversificar a frase, do verbo oferecer e ofertar, e o acerto apaladado, sápido mesmo, posto que talvez então corrente, do adjectivo em «lembrança chique» ou em «singela descrição».
O que se conhece da «singela descrição», três parágrafos, cerca de 20 linhas, oferecidos ao pai como regalo de aniversário, não desmerece o que acima se aponta, mostrando, além do potencial artífice do verbo, alguém capaz de manusear língua com plasticidade pictórica e sentido de observação, numa cadeia descritiva do real de bom efeito visual. Atente-se na seguinte passagem, onde é notável, para tão curta idade, o desembaraço verbal, a observação realista — veja-se a notação sonora que se associa à nora ou o adjectivo que caracteriza o fundo do cais — e a capacidade imagética final: «O cais da Ribeira é um dos braços da ria de Aveiro, que chega até Ovar. O caminho para o cais da Ribeira, é uma estrada marginada de imensos e verdejantes campos de milho. Em um deles uma vaquinha tirava água de uma nora ao som do chiar dos carros de boi, que conduziam as algas tiradas ao fundo lodoso do cais da Ribeira. Ouve-se o coaxar das rãs, que nos espreitam com seus olhinhos muito vivos. Vi partir para Aveiro, que dista de Ovar umas três horas de caminho, um braço de velas soltas ao vento, nas quais o sol punha uns reflexos de oiro.»
Regressemos ao Liceu Rodrigues de Freitas, onde deixámos o meu biografado no final do primeiro trimestre de aulas, no Natal do ano lectivo de 1917-1918, com aquela pauta miraculosa de notas excepcionais, aprumadas de quinze para cima. Sobre as primeiras classificações no liceu, encontro a seguinte notícia (Caderno de Lembranças, 2006: 44): «Em qualquer parte perdi a caderneta escolar do liceu: não andarei, porém, muito longe da verdade, dizendo que todas as notas iam além de quinze ou dezasseis.» Francisco José e Georgina do Carmo, quando puseram os olhos nessas classificações, e as viram caligrafadas num bastardinho verde ou azul, já lá ia a magenta que alarmava e magoava, logo se encantaram e se aliviaram com fundo respiro. Voltaram ao chão do quarto do jovem Agostinho, com palavras de incentivo e congratulação, os zuavos, desta vez acompanhados por novos corpos de infantaria, trajando à moderna, com os capacetes de ferro das trincheiras, que logo serviram para montar duros enfrentamentos imaginários, que imitavam os que se desenvolviam na França e na Flandres. Os heróis do meu garnisé — pelo Caderno (2006: 44) o sei — eram os comandos das tropas aliadas, Pétain, Foch e Pershing, o que não deixa dúvida sobre a sua posição adversa aos Impérios Centrais, posição porventura da família, do tio anarco-sindicalista ao tio da Armada, e até da maioria dos portugueses, já que desde 1916 a Alemanha declarara guerra a Portugal. Conquanto poucos ou nenhuns desejassem o encravanço da França republicana, a participação de Portugal na guerra era impopular. O brutal esforço financeiro que fora preciso fazer para formar um atabalhoado corpo militar levara a que logo em 1916 a parte mais vulnerável e exposta da população urbana se revoltasse contra os republicanos de Afonso Costa e de Bernardino Machado, culpando-os da escassez de géneros, da violenta carestia de vida e da fome que alastrava nas classes baixas das cidades.
Agora, em Dezembro de 1917, o esforço para manter na Flandres e na África os batalhões portugueses, com o agravamento imparável dos preços, a que se acrescentava uma lista interminável de mortos e feridos, que todos os dias engordava, generalizara a todo o País a insatisfação com a situação militar. Para além dos tumultos urbanos, com saques de mercearias e armazéns, cujos donos eram acusados de açambarcamento e especulação, a insubordinação alargou-se às populações rurais, com recusas ao recrutamento e incitamentos à deserção. Ao lado destes adventícios, ou à frente deles, borbulhava aquela minoria de monárquicos e católicos que desde a primeira hora se divorciara da República, intrigando em público e conspirando em privado, e que agora, no meio dos motins, se exaltava às claras, sem medos, pedindo publicamente o seu fim. Assim em Dezembro desse ano, quando Agostinho se preparava para movimentar os soldadinhos de chumbo no chão do quarto, já na Rua Comércio do Porto a situação da República, ou nela do Partido Democrático, que herdara a máquina do antigo Partido Republicano, tanto se degradou por fora e por dentro que um sector do exército, chefiado por um pequeno major, Sidónio Pais, republicano cesárico e augusto, adverso à facção dos democráticos, deu um golpe de Estado, aprisionou Afonso Costa, varreu Bernardino Machado, mexeu na Constituição, instituiu o presidencialismo e fundou a República Nova, arrecadando Sidónio a presidência e refazendo a câmara legislativa com sidonistas, monárquicos e católicos de direita. À porta, sem lugar, ressabiadas, a chuchar no dedo, as facções tradicionais do antigo Partido Republicano.
No Porto, no vetusto edifício do Rodrigues de Freitas, na Rua de São Bento da Vitória, sob o atento e ainda desconfiado olhar dos pais, o jovem Agostinho da Silva continuava em todos os campos a batalhar por si. Nada de vadiagem e tudo de estudo, ou, querendo, vadiagem só na matéria a estudar e aí, sim, com toda a liberdade de encurvar, de seguir em frente, de voltar atrás, de saltar e até de meter pela vizinhança, catando do novo, com que sempre surpreendia os mestres, porém sem panturra inane de vaidoso e com uma simpleza rude de quem ganhara alma entre as faias plebeias e rústicas de Barca de Alva. As notas subiram tanto, que em pouco tempo batiam no tecto, sem alcance para galgarem mais; vintes, sobre vintes, a que novos vintes se somavam, faziam deste Silva já não a mera eminência da escola, como sucedera na escolinha de São Nicolau, mas o nunca visto Héracles dela, o «pedagógico monstro» como ele mesmo se designa (Caderno de Lembranças, 2006: 45), não se sabe se por brinquedo de momento, que o faria na velhice sorrir de ironia, se por eco de antigo epónimo portuense, entre mestres e colegas. Pergunto-me até se as duas priminhas, Berta e Aida, muito lá de casa, filhas do oficial da Armada e chefe natural do clã Silva, não o chamariam assim, misturando espanto, admiração e uma pontinha nada ruim de inveja.
Francisco José e Georgina do Carmo abriam de pasmo a boca, incrédulos mas já não desconfiados, convencidos de que o perigo dos vermelhos já de vez se fora, levado para sempre nas enxurradas fortes que limparam do horizonte o pesadelo da escola industrial, pela qual este pequeno génio mostrou que também sabia ser cábula e mau quando preciso era. Com tal desembaraço — extensivo à matemática, pois ele confessa (id., 2006: 45): «Fracções e potências, as abatia às dúzias e num minuto, tangentes e teoremas» — bem podia Agostinho, que terminará o curso geral dos liceus em 1924, sete anos depois do exame de admissão, ter fechado o primeiro ciclo num ano, fazendo dois em um e assim alcançando, o que se sabe não ter sucedido, os meninos de sua idade, visto ter ele entrado, por atraso conhecido, serôdio, ao menos, dum ano. A vida de estudante, atentando nos resultados, calhou ao meão de Barca de Alva como a poucos; combinava a disciplina dum horário, em que de futuro se fará perito, com algum semblante firme de tropa, obediência e continência, mas só algum, pois para o necessário, e até para o essencial, guardava nele um fato de vadio, com a liberdade colorida de saltar, avançando a seu gosto nas matérias que aprendia ou lhe faziam aprender. Para justificar os sucessos que teve nesta época, que sempre repetirá de seguida, o meu biografado apresenta-se mais como «papagueante» do que como «imaginativo» ou «audacioso» (Caderno de Lembranças, 2006: 46), quer dizer, a si se vê ou dá a ver como disciplinado e esforçado menino — «tão calmo estava eu no estudo, tão de horas certas e a cada dia sua tarefa» (id., 2006: 45) — que cumpria à risca os trabalhos que lhe punham, mas nada lhes acrescentava por si. Aceitar porém essa versão, ao menos de forma absoluta, é tomar por verdade o que mais parece um adorno de ficção. Agostinho nasceu para excepção, ou de bandidos, como havia pouco se vira com a vida de vadio, em que caprichara mais que nenhum, ou de génios, com a anormalidade teratológica dos vintes.
Do mesmo período, talvez da primeira metade de 1918, registe-se a descida ao Algarve (id., 2006: 53), Armação de Pêra, com viagem até Lisboa, passagem de barco ao Barreiro pelo Tejo de cristal, novo embarque e novo transbordo em Alcantarilha, não se sabe se para ver família colateral que ainda por lá desabrochasse, se por simples vilegiatura em família, na companhia da mãe, da avó e da irmã Maria Cecília, com o pai metido nas responsabilidades da bicuda Alfândega do Porto, à imagem do que sucedera no ano anterior com a estadia em Ovar, de que ficou o escrito já comentado. Ao deleite das novidades que houve pelo Natal, com novos zuavos e a chegada dos uniformes do Sidónio, junte-se o espanto do menino diante do mar azul do Algarve mais limpo e sereno do que um azulejo, tão distinto daquele barbatão que rolava com fúria de vendaval as pedras da Foz do Porto.
Com a passagem ao segundo ciclo dos liceus, equivalente ao sétimo ano de hoje, trocou o meu garnisé o velho edifício de São Bento da Vitória pelo anexo da Bateria, ao pé da Cadeia da Relação do Porto, num sítio que lhe era familiar desde as vagabundagens do tempo raposante e que não mudou um milímetro a sua nova e genial disposição de estudante. O que perdeu em gravidade, com o «badalado toque de entradas e saídas, a biblioteca ordenada e vigiada, o lançamento da escada que levava a laboratórios ainda misteriosos» (Caderno, 2006: 45), ganhou em licença, com um terreiro largo na Bateria, donde se tocava com o olhar a serra do Pilar, desta vez com pouco rio, para repetir as cavalgadas folgazonas de São Nicolau e desopilar das opressões da pedagogia, que este jovem de que aqui se fala também tinha dentro dele pendurado um cabide com uma alma de tunante. Desse primeiro período no liceu, há que registar, além do bom pulo que deu na gramática do português, das fracções e potências que às dúzias resolveu, do bom ginasta que se revelou, com equilíbrios raros em barras e recordes na velocidade e no salto, há que registar, dizia-se, o contacto com as línguas estrangeiras, primeiro o francês, depois o latim e o inglês, que tão dele serão, isto sem desprimor para as contas de berlinde, os saltos no terreiro e quem sabe se a sua fisgada para treino de pontaria, que também virão a ser, como à frente se verá, tão dele.
Na língua francesa, que logo lhe calhou no primeiro ciclo, e de que virá a ser especialista, se é que esta palavra pode caber a broxote que sem necessitar de companhia punha a tocar uma orquestra, teve como mestre Carlos Santos, que experimentava na época (Caderno de Lembranças, 2006: 44) um método novo no ensino daquela língua, recorrendo ao máximo de conversação e deixando para segundo plano a secura da gramática, que também houve, e em barda, pois no mesmo passo nos informa que encheu «cadernos e cadernos de Qu’est-ce que c’est que ça». Em Vida Conversável retoma-se o Rodrigues Freitas, com alusões ao ensino do francês, sem se nomear professor. Leia-se a avaliação de Agostinho (1994: 42): «O liceu era muito bem administrado, muito bem ordenado, com gente muito boa, sendo alguns deles ao mesmo tempo professores do ensino secundário e da Universidade, de maneira que havia gente profundamente conhecedora das coisas que ensinava e, por outro lado, tinha mesmo jeito para ensinar rapazinhos de quinze ou dezasseis anos […]. Lembro-me também de outra pessoa notável, o professor de francês que introduziu o método novo. O método pelo qual se ensinava era o de ler a selecta, decorar o vocabulário e as regras da gramática. Ele introduziu o método de falar com os alunos na aula de francês, e todos mais ou menos saímos com capacidade para isso.» Assim ou assado, quando passou ao segundo ciclo tinha Agostinho língua bastante para ler e comentar Corneille, Racine e Voltaire, este acima dos outros, «tão modelar me pareceu no Carlos XII e nas Novelas» diz ele no Caderno (2006: 45), o que lhe consumiu decerto domingo atrás de domingo, dicionário na mão, caderninho de sinónimos na mesa e muita paciência para avançar na selva da sintaxe clássica e do léxico raro dos gauleses. Que o meu Silva tenha mastigado aos 13 anos o teatro de Corneille e de Racine, mais enovelado este que o Dédalo de Creta, e a narrativa fina de Voltaire, não espanta em quem, mal aprendeu a casar as letras, aos quatro anos, menino ainda de muito colo, logo deitou mão à língua vernácula de Vieira, Bernardes, Coutinho e Filinto.
Na Bateria veio a primeira novidade com a língua latina, orquestrada por Francisco Torrinha e que seria depois um ponto forte na vida adulta deste homem, pois em tal matéria fez o meu biografado os estudos superiores, a ela dedicando depois muitos momentos da larga existência a traduzir Horácio, Salústio, Cícero, Catulo, Plauto, Terêncio e Virgílio. O método — atenção, paciência, teimosia — com que bebeu a língua de Racine foi com certeza, com mais algum dicionário e gramática, com mais alguma contumácia e concentração, ou mesmo muita, aquele que ele usou para domar a língua de Cícero. Encheu cadernos de declinações, de verbos, de cópias, de traduções, de notas de sintaxe e de regras de gramática, numa resignação tranquila e perseverante, que o levou aos 80 anos de idade a dizer o seguinte (Caderno de Lembranças, 2006: 48): «A imagem que tenho hoje do meu trabalho na disciplina, a exprimo de muito boa vontade pelo jogo de palavras sobre o nome de Bossuet e sua entrega às tarefas — bos suetus aratro — boi ao arado feito.»
No fim, quando já lavrava razoavelmente uma passagem curta de Virgílio ou alguma outra de Horácio, não teve a felicidade de encontrar nenhum marco, que lhe surgisse modelar no céu da vida, como lhe sucedera antes com o gaulês autor do Carlos XII, o que arrefeceu o seu entusiasmo pela língua do Lácio, vindo a ter consequências importantes na vida imediata e até na escolha do curso. Em Vida Conversável, Agostinho fala assim do latim liceal (1994: 42): «Durante o tempo em que me ensinou o latim no liceu [Francisco Torrinha], eu não fui um aluno muito brilhante; estava muito mais interessado no português e nos escritores portugueses do que em aprender latim.» Atrás se disse que fez o meu biografado os estudos superiores em Filologia Clássica, com o latim por centro, mas como em tantas outras coisas da vida deste homem isso assim sucedeu menos por vontade própria do que por acaso, como a seu tempo se verá.
A segunda novidade foi a língua de Chaucer, em que teve por mestre o padre Júlio Ferreira, autor de livros didácticos da disciplina, pelas provas tipográficas dos quais os alunos dele do ensino oficial — fora antes professor de meninos em colégios privados — aprendiam e estudavam (Caderno de Lembranças, 2006: 48). A terceira e última novidade, com certeza a de maior relevo, pelo que se tira das palavras atrás citadas, «muito mais interessado no português e nos escritores portugueses», foi o aprofundamento da língua portuguesa, através do estudo da sua literatura, em especial a leitura d’Os Lusíadas, no final do segundo ciclo, com pilotagem de Augusto César Pires de Lima, letrado que muito carimbou a primeira formação do meu garoto. Sobre este Pires de Lima, do qual se voltará a falar, diz Agostinho (Caderno de Lembranças, 2006: 49): «Homem bem escolado em clássicos portugueses, embora com um fraquinho especial pelos que tivessem sido grandes.» Para já, guarde o leitor o deleite do meu Silva diante do verso boleado do épico português, deleite que tanto seria cisma séria de estudioso como garotice de ninfas e nautas, esta última talvez ainda mais marcante do que a primeira, já que o gramático que Agostinho foi em privado menos importância teve do que aquele que viu, público e sanhoso, no conúbio da Ilha o fecho da história do Homem sobre a Terra. Que edição d’Os Lusíadas terá Agostinho lido? Atendendo ao guia, Pires de Lima, supõe-se que haja sido a de Epifânio da Silva Dias, ainda hoje de referência, que acabara de ver a luz do dia (1910).
Sidónio Pais, o fundador da República Nova, foi assassinado um ano depois do golpe militar que depôs Afonso Costa e Bernardino Machado. Pelo meio, naquele curto ano em que o regime durou, houve muito sonoro bater de tacão, muito chá dançante de cadete e de oficial fardado, muito desfile militar, a passo de ganso, estica o braço, encolhe a barriga, cuja cintilação não chegou todavia para ofuscar o desaire dos portuguesinhos em La Lys, desfeitos pela ofensiva alemã da Primavera de 1918, nem o novo dissídio das classes populares, a braços com uma epidemia arrasadora, a pneumónica, que varria o País de lés a lés, acumulando de norte a sul uma pira de dezenas de milhares de mortos. Com o desaparecimento de Sidónio, começou a luta pelo poder entre republicanos democráticos e monárquicos, únicas correntes que pareciam sair fortalecidas da derrocada do sidonismo. Os democráticos, em aliança com evolucionistas e unionistas, lançam nos primeiros dias de Janeiro um golpe militar para restaurar a Constituição de 1911 e dissolver as Juntas Militares que no final da República Nova se tinham constituído para defender o regime de Sidónio.
O insucesso da revolta precipitou as Juntas Militares a restaurarem a monarquia, vista como a única resposta eficaz aos avanços dos democráticos. A 19 de Janeiro as Juntas ensaiam um movimento conjunto em Lisboa e Porto. Em Lisboa os republicanos unidos em torno dos democráticos mobilizam as classes populares, criam batalhões civis, libertam os presos políticos, isolam o núcleo militar monárquico, que, acantonado em Monsanto, foi sem dificuldade desarmado e aprisionado. Depois desta vitória os republicanos históricos, os da República Velha, regressam ao poder por meio de José Relvas e depois Domingos Pereira. Ao invés, no Porto, o movimento, com Paiva Couceiro à cabeça, venceu as resistências tímidas e logrou proclamar, no meio do entusiasmo popular, das salvas da artilharia, da banda da guarda a tocar o «Hino da Carta», dos foguetes, das bandeirinhas azuis e brancas, a restauração da monarquia, logo se constituindo uma Junta Governativa do Reino, regida por Paiva Couceiro. A adesão do Norte do País aos acontecimentos do Porto foi quase imediata e o território sob administração da Junta Real passou a cobrir o Minho, Trás-os-Montes, descendo nas Beiras até ao Vouga, onde se haviam concentrado as tropas republicanas.
Foi a este caso que se chamou «Monarquia do Norte», que durou até ao dia 13 de Fevereiro de 1919, altura em que as tropas do Sul, passando a linha do Vouga, consumam com sucesso, através da ajuda da Guarda Real da cidade, a ofensiva sobre o Porto. Em pouco mais duma semana, todo o Norte do País voltou às mãos dos republicanos, com a verde rubra hasteada nos edifícios públicos. Saíam reforçados, com António José de Almeida na presidência e Afonso Costa como representante de Portugal na Conferência da Paz e depois na Sociedade das Nações, os políticos da vetusta República, que assim voltava a bailar, após a desagregação do sidonismo e da fugaz existência da Monarquia do Norte, sem fazer muito por isso, uma segunda valsa. A demissão de Francisco José Agostinho da Silva do cargo que ocupava na Alfândega do Porto — onde regressara depois do bom desempenho de Barca de Alva — aconteceu com o regresso da República e o protagonismo dos democráticos. A demissão tem sido vista por alguns estudiosos como sinal de identificação de Francisco José com a Monarquia do Norte e seu ideário. Parece ser esta a posição de Artur Manso no subsídio biográfico Agostinho da Silva (2004: 8): «No momento de traçar o prosseguimento dos estudos outra contrariedade lhe surgiu. Devido aos acontecimentos de 1919, com a sublevação de um grupo de Monárquicos do Norte que o regime republicano cedo neutralizou, seu pai, que estava envolvido na revolta monárquica, foi demitido da função pública, o que veio a causar algumas dificuldades económicas ao agregado familiar […].» A tese — conspiração de Francisco José a favor de Paiva Couceiro — parece-me porém forçada. A Junta Governativa do Reino tinha formado Governo no Porto — sete ministérios, uma produção legislativa contínua e diária com um órgão de imprensa próprio — e obrigado à obediência os funcionários públicos, mediante notícias falsas, em época de magra informação, de que a monarquia fora restaurada com alicerce firme de Valença a Faro. Muitos administrativos acataram assim, sem convicção autêntica, as ordens da Junta, assistindo à sessão solene da investidura do Governo e assinando em seu nome, nas repartições, documentos e ofícios. Até prova em contrário, acredito ser esta última a situação de Francisco José, como afinal a de tantos outros, que não despegaram do serviço no Porto e nas outras localidades — Guimarães, Braga, Viana, Vila Real, Bragança, Viseu e até Aveiro — em que a Junta governou e que acabaram por esse motivo penalizados pelo regresso dos democráticos ao poder.
Em abono desta hipótese temos intervenção de Agostinho da Silva, à altura com 13 anos e testemunha fiável do caso, quer pela idade, quer pela proximidade. No Caderno de Lembranças (2006: 53) ele recorda factos políticos da época: primeiro a entrada do tio anarco-sindicalista, para fazer o gosto ao dedo e se vingar do «racha-sindicalistas», na bernarda contra os democráticos que levou ao triunfo de Sidónio; depois, no ano seguinte, o homicídio do mesmo Sidónio e a ida do pai a Lisboa, numa delegação oficial da Alfândega do Porto, para assistir ao funeral; por fim a proclamação da Monarquia do Norte e o seu fim em dia de aniversário de Agostinho, 13 de Fevereiro, sem aulas nesse dia («o benefício foi que, exactamente em dia de meus anos, nos mandaram embora das aulas», id., 2006: 53), que teve como consequência a prisão do pai e sua demissão do lugar que ocupava desde os tempos da monarquia e que tão negativos reflexos veio a ter numa família da muito pequena burguesia urbana, com dois filhos menores, George Agostinho e Maria Cecília, que vivia em exclusivo do magro ordenado público de Francisco José. A versão que o meu biografado dá da demissão do pai não me parece deixar dúvida sobre o equívoco em que Francisco José se viu enredado e do pouco ou nenhum apoio, ao menos de ideias, que deu à restauração da monarquia. Diz Agostinho (Caderno de Lembranças, 2006: 54): «[…] quando o acontecimento me tocava por casa, como foi a prisão de meu pai e sua demissão das Alfândegas, ele, no fundo anarquista, acusado de monárquico, quando o que apenas queria era que os serviços funcionassem em tempo de desordem». No mesmo sentido — Francisco José não se identifica com o ideário da Monarquia do Norte — vai a notícia que ele deu em A Última Conversa, completando-a dessa vez com uma informação biográfica de monta, os trabalhos que Francisco José veio a ter depois da demissão. Passo-lhe a palavra (2001: 32-3): «Entretanto, dá-se aquela coisa da Monarquia do Porto, mas ele continuou o seu trabalho e fazia o que tinha a fazer. Porque achou que a alteração política não devia interferir com o trabalho. Bom, mas no fundo também devia haver gente que não gostava muito dele, talvez porque ele gostava de cumprir a lei. Portanto, logo que se instaurou a República e a Monarquia no Porto foi esmagada, ele foi preso e demitido. Naturalmente que os meses que se seguiram não foram fáceis, sobretudo economicamente. Mas acabou por arranjar emprego no jornal O Comércio do Porto como jornalista. Mais tarde, como tinha de se levantar muito cedo, decidiu aceitar um convite e foi trabalhar na Carris.»
No Carnaval do ano seguinte, 1920, quando ainda estava bem vivo o episódio da Monarquia do Norte e suas consequências, parece ter falecido a avó materna, a algarvia Maria da Cruz Baptista, a mulher de blusa preta com pintinha branca, que o leitor encontrou no Brasil, no Algarve, no governo da casa de Barca de Alva, e de quem já aqui se disse o bastante para se perceber o lugar que tinha junto da filha e até do neto, que lhe parece dever silêncio e escusa de qualquer espalhafato. No Caderno, depois de falar da demissão do pai, diz Agostinho sobre o acontecimento (2006: 54): «Pela mesma altura, talvez antes, talvez depois, não, depois mesmo, faleceu minha avó e foi o préstito para o Prado do Repouso, em dia de Carnaval […].» Sabe-se que a 5 de Fevereiro de 1920 Maria da Cruz estava ainda viva, pois o meu biografado dedica-lhe texto inédito manuscrito. O ano de 1920 como o da sua morte, que aqui submeto, fica assim sujeito confirmação futura.
Por essa altura o semblante da cidade mudava aos poucos com a chegada, cada vez mais massiva, de automóveis de motor de explosão; aqui e ali, abriam garagens onde se arrumava a nova espécie zoológica e o seu nutriente, gasolina em lata para atestar o estômago dos autómatos. Desconheço se o meu Silva acompanhou o corpo da avó à terra. Se sim, nenhum derrame sentimental o terá tomado, nem mesmo aquele que é previsível nesses momentos, pois tumultos com tiros e mortos tinha-os ele todos os dias à volta para já ter aprendido a guardar dentro de si medos e nojos. Que o instante que passa lhe é difícil não é para duvidar. O pai vira-se humilhado e demitido, a avó desaparecia sem mais explicações numa caixa estreita de pinho. É o que basta para qualquer miúdo de 13 ou 14 anos se ressentir. O retrato que ele de si deixa contraria porém qualquer fragilidade. Diz ele de si (Caderno de Lembranças, 2006: 54): «Disciplinado marinheiro, indiferente à tempestade». Quer dizer, mesmo em pandemónio ele avançava tranquilo naquilo que sentia ser o gosto dele, mais até do que dever, no caso, os escritores lusos e gauleses e o arado do latim.
Encontra aqui o leitor um traço forte do meu biografado, ao qual se deve habituar: nunca desarmar. Teimosamente disciplinado, não pela disciplina em si, que lhe é inútil, mas porque ela deixa a liberdade de viver sem disciplina alguma. George Agostinho foi um vadio interessado em curtir a fundo; não quis perder pitada da vida. Por esse motivo se socorreu dalguma ordem. Lapidar a resposta que ele deu em 1986 à revista ICALP recordando este tempo de estudante (Dispersos, 1988: 82): «E fui tirando o curso sempre com muito cuidado, estudando o mais possível para me deixarem em paz e depois cabulando o mais possível. Quer dizer, fiz sempre uma tarefa de cobertura estudando táctica para seguir a minha própria estratégia, que não era a tal do “plano” mas a de me ir divertindo na vida.»
6. OS ANOS FINAIS DO LICEU
Regresso de novo ao Liceu Rodrigues de Freitas para apreciar os restantes anos do meu rapaz como estudante liceal. Momento crucial, com cruzamento de dois caminhos, havendo mister de escolher só um, abandonando o outro, foi o final do segundo ciclo do antigo curso geral dos liceus, o quinto ano, equivalente hoje ao nono ano da escolaridade, com a etapa seguinte, o curso complementar, dividida em dois ramos, o das Letras e o das Ciências, para os quais o meu jovem mostrava apetência e capacidade idênticas, ou ao menos aptidão próxima, o que terá tornado a escolha difícil. Em O Império Acabou. E agora? o meu biografado falou de si como um homem sem indecisões, que nunca se atrapalhava diante de escolhas, talvez porque tudo para ele se equivalia (2001: 106): «Sabe uma coisa? Eu já me tenho decidido nessa coisa de comida por ordem alfabética. Como linguado ou goraz? Goraz. Acabou.» As decisões são rápidas, já que aleatórias. E nesse aleatório vai toda uma construção de dúvida, como se o mundo na totalidade não passasse duma incerteza. Deste modo as resoluções dele eram rápidas porque assentavam na irresolução de tudo.
Uma coisa pode porém o leitor tomar por certa: a decisão, rápida ou demorada, não se tira a limpo, do jovem Agostinho para ingressar no curso complementar dos liceus não foi feita «por ordem alfabética», pois escolhidas foram as Letras, não as Ciências. A favor destas tinha ele muito, desde a fluência nos números aos resultados no desporto, mas a desfavor também havia o facto de a família, por hesitação ou por receio, lhe ter recusado pouco antes, quem sabe se por causa ainda do azedo da escola industrial, a possibilidade de frequentar, em paralelo, um curso «de pilotos para a marinha mercante» (Caderno de Lembranças, 2006: 49). Esta contrariedade em moço tão ciente e cioso dos seus interesses, posto que disfarçado de menino obediente, levou a desleixo da parte dele para com as matérias aí implicadas — «pouquíssimo lhes estudava para as disciplinas [matemática, física, química] […] e alguma vagabundagem do tipo Escola Industrial voltou a me tomar» (id., 2006: 49) — e acréscimo de aplicação naquelas matérias que de todo escapavam ao tal curso de pilotos, antes de mais a literatura e as línguas, o que em algum recanto da sua mente o ajudou a decidir pelas Letras para o curso complementar.
Na mesma linha se deve ter em conta a intervenção daquele Augusto César Pires de Lima, seu professor de língua portuguesa, que o guiou na leitura d’Os Lusíadas no final do segundo ciclo do curso, despertando nele com a interpretação da sintaxe do poema emoções novas, e que sendo também o mestre do ensino do português no complementar o atraiu naturalmente ao ramo de estudos onde a disciplina prosseguia. Demais, desde a mudança para o anexo da Bateria, desde que alargara as leituras e se pusera à conquista de escritores como Racine e Voltaire, que o meu biografado se entretinha com regularidade a compor textos, em verso e em prosa, com pretensões pessoais, que davam seguimento àquela facilidade de composição, fluência sintáctica e ginástica lexical, que atrás se abordou a propósito do seu primeiro texto conhecido, uma epístola ao pai, ou um fragmento dela, no trigésimo oitavo aniversário deste, a 6 de Setembro de 1917.
Do verso, que houve e abundante, pouco ou nada restou — e ele o dá a entender (id., 2006: 45): «Poesia, era escusado tê-la feito; a pragmática dos relógios, levantando uma aldeia da submissão e da miséria, valeu mais que o melhor que em tal campo poderia ter feito» — mas da prosa ficou uma resma bem contada, entre éditos e inéditos, que servirá em breve para nova inquirição sobre a sua primeira escrita, muito temporã ao que se vê, já que estou a falar dum gaiato de 14 ou 15 anos. Não se avalie porém a opção das Letras como fácil e líquida, mesmo em homem que se decidia pelo goraz recorrendo à letra do alfabeto, já que muitos anos depois, deparo com traço de dúvida, e até de lamento, relativo ao assunto, que assinala talvez dilaceração antiga. Cito (id., 2006: 55): «[…] no fim de tudo, se tenho hoje alguma coisa a lamentar, junto a São Bento da Vitória, foi que as circunstâncias me não tivessem de algum modo levado a repetir o quinto ano e a entrar pelas ciências, talvez com preferência pela geografia física e pela paleontologia». No mesmo passo fala o meu biografado de expedição à serra de Santa Justa, no Valongo, perto de Rio Tinto, onde teria encontrado trilobite, que o acusaria até hoje — e o «hoje» é o momento da escrita do «caderno» em 1986 — de não se lhe ter dedicado como devia.
Veio pois o curso complementar na área das Letras, já de regresso, ao que se percebe, ao vetusto edifício da Rua de São Bento da Vitória, onde se situavam biblioteca e laboratórios. Liberto, ou obrigado a libertar-se, da intenção de pilotar navios, mas não do propósito de viver em navio, menos ainda de se comportar em terra como livre marinheiro, Agostinho da Silva regressou em cheio aos resultados gordos dos primeiros anos, sem desvios, nem ligeiros, para novo alívio do casal Silva, muito perturbado pela demissão recente de Francisco José, pela precariedade actual do trabalho dele — ao que se sabe a exercer actividade no jornal O Comércio do Porto, na contabilidade, na revisão dos linguados ou na redacção de pequenas notícias — e pelo desaparecimento num talhão triste dum cemitério portuense, talvez o Prado do Repouso, da figura espectral e antiga de Maria da Cruz Baptista. Não fosse o «monstro pedagógico», vintes juntando, a que se soma a gravidade de Maria Cecília, e a cratera deixada por tanto desaire afundaria não se sabe até onde.
Dos dois anos do curso complementar, registem-se os trabalhos que fez em geografia — «entendimento inteligente da paisagem e algumas habilidades extra como o manejo da régua milimétrica ou o paciente esculpir de relevos, como o da Caldeira das Sete Cidades», informa (Caderno de Lembranças, 2006: 54-5) — com o professor Ferreira Lobo, os avanços gerais em História, da formação da Europa com Bento de Núrsia às fases da Revolução Francesa contadas por Carlyle, com Simões Pina («que expunha com a segurança do saber e o sentimento da língua e o entusiasmo de ensinar que só Damião Peres igualava»), e por fim os desenvolvimentos na língua inglesa, e as primícias na japonesa, não menos importantes, com Luís Carlos Chatillon da Rocha Beça, que lia Dickens nas aulas, comovendo-se até às lágrimas, e por fora retratava os amigos a carvão ou a nanquim. Para além destas matérias, houve com certeza muita língua portuguesa, com consolidação da gramática e novos escaninhos na literatura portuguesa, com o Augusto César Pires de Lima, e muita língua francesa, talvez agora com os românticos e os realistas, tão populares no Portugal do tempo, de Balzac e Victor Hugo a Flaubert e Zola, não sei se com Carlos Santos, que o levara a galgar, ainda petiz, os obstáculos da língua de Montaigne e o pusera a ler Corneille e Racine e Voltaire, se com algum outro, cuja figura não chegou até mim mas de monta foi, pois decidiu Agostinho pouco depois a seguir estudos superiores nessa língua.
Assinalem-se os amigos dessa época, evoluindo com o meu biografado desde o anexo da Bateria: Melo Adrião, o melhor nas ciências, isto segundo a notícia que dele ficou (Caderno de Lembranças, 2006: 51); Álvaro Rodrigues, unha com carne com o anterior; Arnaldo Pinheiro Torres, muito dado à política e às leis; Florentino da Silva Borges, caricata figura de ginasta, filho do chefe da banda do Asilo do Terço, mais tarde despachante oficial na Alfândega do Porto e nas horas livres pescador de trutas; Arnaldo Pereira Barbosa, atlético cabo-verdiano que Agostinho acompanhou até ao desaparecimento, posto que à distância; por fim Basílio Ferreira Barros, o mais próximo, que acabou por falecer ignorado do amigo de juventude, em consequência do exílio brasileiro deste. Pouco se sabe deste Basílio, a não ser que foi íntimo de Agostinho nos tempos do liceu e nos anos, ao menos iniciais, da universidade. Era dos poucos, a não ser mesmo o único, que frequentava a casa dos Silva, nas traseiras da Igreja de São Francisco, e o que dele se conhece é o que Agostinho dele exarou no «caderno» (2006: 51-2). Tinha um irmão que nunca aparecia; votava um desleixo feroz à aparência; abominava roupa nova. O que o ligava ao meu biografado não era a vida solta e livre de Barca de Alva, nem a vadiagem da escola industrial, mas o amor do verso, uma paixão partilhada pelos dois, entre o neoclássico, que bem se entende com Racine, e o romântico, com leituras trocadas nas mais estranhas e descabeladas situações. Uma das histórias que o meu poliglota conta dele é assustadora e mostra bem a natureza ameaçadora deste contubérnio, que tinha por amparo a poesia, assunto muito mais perigoso nas mãos de dois adolescentes do que pólvora; afinal o menino que acumulava vintes no curso dos liceus e era apontado como modelo de estudantes bem comportados não perdia o sestro de marginal, sina que manteve até ao fim, quem sabe se com feroz avidez. Conta Agostinho que um dia emprestou ao seu Basílio um livro de Camilo — nem título nem colecção se conhecem — e que o amigo se pôs a lê-lo, ao mesmo tempo que com a mão livre sacava de revólver e se dava com ele a brincar por entretém. Revólver, pergunta o leitor assustado? Estes gaiatos de 14 ou 15 anos tiravam da pistola no meio dos estudos e ficavam a rodar o tambor nos dedos? Assim mesmo. Pior. Disparavam e deixavam o livro marcado a sangue. Cito (Caderno de Lembranças, 2006: 52): «Um dia, enquanto me lia um Camilo que lhe emprestara, brincava com um revólver e achou jeito de disparar sobre a outra mão: e o livro me voltou muito adequado a Camilo: manchado de sangue.» É para que se veja a natureza selvagem deles, ou não fosse um Silva e o outro Barro ou, o que é pior, o seu plural. Eu disse, por minha conta e risco, sem documento probatório, que nos recreios do Rodrigues de Freitas, ainda corria o primeiro ciclo, houve fisga e treino de pedrada; não devo ter errado assim tanto, se pensar que três ou quatro anos depois, e aqui sem qualquer risco meu, tudo à conta do depoimento de Agostinho, houve revólver e tiro na mão.
A parceria dos dois não se resumia porém a leituras e a tiros. Tinham ambos pretensões criadoras e fundaram uma «academia de gongóricos improvisadores», a designação é do meu estudante (id., 2006: 52), que se manteve aberta alguns anos e deve ter fechado portas algum tempo depois do fim do curso complementar. Que actividades se conhecem à célebre escola? Confessa o meu biografado que a mais inofensiva: fabricar abundante munição de versos. Era passatempo dos dois improvisar em despique oral versos, arrumando-os depois, com semântica límpida e coerente, em modelos de 14 linhas. Numa segunda fase, depois de passados a escrito, os poemas eram entregues em jornal — Agostinho não diz qual, mas presume-se aquele em que o pai trabalhava e que à porta ficava — e alguns publicados. Eis a informação de Agostinho sobre o episódio, porventura o mais representativo da sua juventude (id., 2006: 52): «[…] nosso grande entretenimento era o de fazermos versos e os alinharmos em soneto: íamos pela rua, bem atentos a tudo, e fabricávamos as linhas, uma eu, outra ele, uma ele, outra eu, com ritmo perfeito — decassílabo nos era elementar e natural, acentos certos e nada de sáficos —, e sentido claro e logicamente encadeado. Quando acabávamos, os passávamos a limpo e os levávamos a jornal que às vezes os publicava, nem me lembro se com nossos nomes, se com pseudónimo colectivo».
Quem disse que Agostinho da Silva não foi um escritor nem pretendeu sê-lo? Bastava este caso singular, em idade tão mimosa, para se perceber que aqui se lida com um aprendiz do ofício. Este capítulo da sua biografia bem se podia chamar: da educação do escritor jovem. À filosofia é que me parece que ele nunca aspirou, mesmo tendo dois bons carros de metafísica e outros tantos de filósofos. A verdade é que nas páginas do Caderno de Lembranças relativas ao seu primeiro tirocínio nem uma palavra sobre a matéria, que cursou no velho Rodrigues de Freitas, a não ser alusão fugaz, sem qualquer relevo (2006: 54). Ao revés, o apetite pelo literário é como se vê desmedido. Que larica, para gaiato de 15 anos!
Outro que aparecia por casa dos Silva, dessa vez para matar saudades e tratar da vida, era o António Pereira, o da escolinha de Barca de Alva, que logo nessa época emparceirara com o meu rústico, tornando-se nessa idade o seu primaz camarada. Agora, órfão de pai, com a mãe viúva e encanecida, andava insofrido por se meter em emprego que lhe desse dinheiro certo ao fim do mês. Ao que se vê (Caderno de Lembrança, 2006: 34), o Pereira arrumou-se na morada do amigo e daí desandava todas as manhãs a frequentar, quem sabe se na estação central de São Bento, bem cerca, as sessões que o habilitavam a ingressar nos caminhos-de-ferro portugueses como escrivão de bagagens e mercadorias. Só a presença do Pereira à mesa como gente de família parece justificar as aparições da mãe, a Maria da Ponte, marcante personagem da Barca de Alva do tempo dos Silvas, calhando ainda a trabalhar nas cancelas, e que aparecia sempre de xaile negro com presentes de rolas e frutas (id., 2006: 33).
Com o Pereira e o Basílio se fizeram talvez nos momentos livres — e muitos não seriam eles em estudante de vintes e em contumaz aprendiz de escritor — viagens e expedições, como a da serra de Santa Justa, no Valongo, perto de Rio Tinto, donde veio a trilobite ainda lembrada em 1986 no momento da escrita do Caderno (2006: 55). E outras viagens terá havido, mais longas, em família, à imagem daquela descida ao Algarve (id., 2006: 53), de que já para trás se disse o bastante, sobretudo antes da demissão do pai, porque após os apertos de finanças devem ter sido muitos e as saídas por isso curtas. E talvez as férias grandes de Verão, antes passadas ao pé do mar, em casinha estival de Esmoriz, Ovar ou Ílhavo, alugada ao mês ou à quinzena para o efeito, fossem agora, sem a avó Baptista, e o que é mais sem o desafogo da duana, no andar da Baixa do Porto com surtidas à Foz, quem sabe se à pata, com cestinho de merenda e chapéu de palha, em dias soalheiros e limpos, nem pingo de berriça, para a pequenina Maria Cecília abrir apetite e deitar viço e corpo, que Agostinho era já sólido, embora baixote, e talvez, não é certo, preferisse ficar à volta das estrofes de Camões ou dos versos do Basílio do que ir para a praia dos Ingleses ou, com mais sorte, para o vasto areal de Matosinhos, molhar o pé, mostrar o pêlo da perna, fazer companhia às priminhas ou catrapiscar a Loló, a Zazá ou a Teté.
Demais, ele, que ganhou a cisma das embarcações na janela das manas Falcão e chegou mesmo a pensar nos anos adiantados do liceu, com empenho sério, pilotar barcos, não sabia nadar nem tinha apetite por banhos de mar, chegando, já não sei onde, a lastimar o turismo da beira-mar. Queria ser marinheiro, não banhista. Por isso na única fotografia que dele conheço em areal de praia (In Memoriam de Agostinho da Silva, 2006: 8), por sinal bem selvagem e extenso, o do Baleal, ele calça meia e sapato e até camisa com botão de punho veste. Numa entrevista do fim da vida diz o seguinte (A Última Conversa, 2001: 106): «Essa agora da cozinha fez-me lembrar uma pergunta que uma vez me fizeram: — O senhor, com esse entusiasmo todo pela Marinha, deve saber nadar bem? — Não, nunca aprendi. — Então o senhor quer ir para a Marinha e ainda não aprendeu a nadar? — Não, porque um marinheiro nunca abandona o navio. E mesmo que às vezes tenha vontade de o fazer, se não souber nadar, o melhor é não o abandonar mesmo.» Decididamente ponham-se nessas tardes quentes e estivais do Porto as linhas de Camões, ou até as de Basílio, nanja a praia.
7. O PRIMEIRO EMPREGO E OS PRIMEIROS TEXTOS
Com as pressões de dinheiro que se viviam dentro de casa, já que o trabalho de Francisco José num jornal de trejeito regional como era O Comércio do Porto, mesmo em época de grande circulação deles, não podia dar remuneração que se chegasse à do anterior emprego público como aduaneiro, Agostinho, com certeza por via da grande competência que mostrava em questões de língua, com muita ginástica de gramática e exercício de papel, mas antes mesmo de fazer o exame final do curso complementar dos liceus, aos 16 anos, teve a sua primeira experiência de trabalho remunerado.
Aconteceu assim. Por vontade da família, e com esforço danado dela, entrou o jovem, em 1922 ou antes mesmo, é ponto a esclarecer, no Riley Institute of Languages and Commerce, para aperfeiçoar as línguas que estudava no Rodrigues de Freitas, talvez já em abertura de curso complementar. Não sabia a família o que daquele rebento ia sair, se advogado do foro, se juiz de comarca, se professor de meninos ou de graúdos, se ainda publicista de renome e político de acção. Esperava-se o melhor, já que pautas corridas a vintes não havia duas no Porto inteiro. Fosse como fosse, nem francês nem inglês se perdiam, antes era mister, que na branda cera daquela idade, elas, as línguas, para sempre aí se fixassem, com proveito evidente do futuro. E assim o levaram ao Riley Institute, a que ele logo se fez, ou o instituto a ele. Deste modo parece ter sido, pois que acabou o instituto por requisitá-lo para lá ensinar — diz ele guiar (Caderno de Lembranças, 2006: 48) — língua portuguesa aos ingleses que chegavam de Albion para trabalhar nos vinhos sem conhecer patavina do falar indígena. Desconhece-se — a «Biografia Sumária de George Agostinho Baptista da Silva» (2007: 4) aponta 1925 — até quando Agostinho se manteve no Riley Institute, ensinando conversação aos jovens bifes. O ponto certo, e calhando o que interessa, é que, como em muitos outros momentos posteriores, a tal se habitue pois o leitor, ele se viu mais como aprendiz de alunos, aprendiz humílimo, do que como empertigado docente cheio da prosápia do saber. Aprendiz de quê? — pergunta-se. Dou a palavra a George Agostinho (Caderno de Lembranças, 2006: 49): «Se os instruí o melhor que podia, me educaram eles muito mais em contenção britânica, em sentido de humor e no gosto de cumprir o dever.» Para tudo ser lindo, ainda lhe pagavam o tempo que ele por lá estava. A vida lhe começou assim por ser coisa leve e fácil e pelo mesmo trilho continuou. Nunca houve, que eu dê nota, da parte dele factura a cobrar mas antes recibo de gratidão. E quando houve, fez de conta que não. Se foi contumaz, como naquela teima da escola industrial, em que bateu pé e disse de seguida três vezes não, e outras birras terá idênticas na vida, algumas piores e com maior escândalo, foi também um doce e pacato Zé dos Anzóis, fácil de contentar, que se dava por feliz com uma camisa no corpo e quando a não a havia com aquilo que lhe calhasse à mão, um raio de sol ou chuva fresca que fosse. É o biógrafo de Francisco de Assis que aqui se topa em primeira mão mas cujo embrião se formou na paisagem abissal de Barca de Alva em que um golpe de vista, a tocar o infinito, valia muito mais do que boné novo.
No final da Primavera de 1924 veio o exame final do complementar dos liceus. Nova palma de arregalar o olho. Diz ele que a assistência abriu a boca de pasmo. Cito (Caderno, 2006: 54): […] uma assistência embasbacada com o brilhante em Geografia, e em Filosofia, em Latim e em História, nisto, naquilo e naqueloutro, e com os professores em solidária festa, plena distinção e abraços de júbilo e um relógio, oferta de meu pai». Eis então a despedida definitiva ao velho Rodrigues de Freitas — e talvez o primeiro relógio. A prova foi tão feliz que até o tio da Armada, José Joaquim, que amuara um tanto com o abandono da escola industrial, se deve ter dado por vencido diante de tal limpeza teratológica. O rapaz era uma fortaleza capaz de resistir a qualquer ataque. As filhas, Berta e Aida, há muito que se haviam convertido ao talento do priminho.
Depois do exame, abriu-se uma nova porta, a dos estudos superiores. Era etapa nova, cheia o bastante para lhe marcar os anos próximos, e até para lhe tomar o presente na escolha do curso a seguir, mas não tão absorvente que lhe roubasse o júbilo de se ver em férias grandes, livre das obrigações do liceu e do emprego no Riley Institute, livre até de pensar no que se seguia. Pergunta-se: livre para quê? Para ceder aos puxões que a mãe, a irmã e as priminhas lhe davam para que as seguisse para as clareiras de areia da Foz? Ná! Livre para se dedicar à leitura e à escrita, desta vez sem apertos de aulas e de provas. Quem tanto escreveu e quem tanto publicou nesse preclaro Verão de 1924, não podia ter outro desiderato senão escrever. Habitue-se o leitor a ver neste trabalho a biografia dum escritor. Haverá outros Agostinhos para lhe dar, mas o escritor estará sempre, em todos, presente. E no semblante físico é tempo de deixar para trás o gaiato de Barca de Alva ou da escolinha das manas Falcão, ou até da Cordoaria, de calção e gazua, e de pôr os olhos no mânfio em que ele se fez. Eis o retrato: magro, esbelto, baixa estatura mas carão avantajado, bem puxado, queixo respeitável, barba rapada, testa alta, cabelo revolto, olhos escuros e vivaços, tez rosada, maxilas alongadas, nariz de traço certo, narinas como asas frementes, roupa desalinhada, pé miúdo.
Falem-se agora dos primeiros escritos a sério do meu escritor, que ele alinhou no período do liceu, de 1919 a 1924, entre os 13 e os 18 anos, quase menino, e que passaram muitos anos despercebidos, embora alguns deles, depois de 1922, em quantidade copiosa, tenham sido passados a letra redonda n’O Comércio do Porto. Em momento recente a família do meu biografado entregou cópias dos manuscritos e dos recortes dos jornais à Associação Agostinho da Silva, onde pude compulsá-los. Esse corpo de textos, com géneros muito variados, que vão da crónica à carta e até ao teatro, numa profusão de modos e matérias, mais tarde sinais identificadores da actividade escrita do homem maduro, onde falta ainda, se não toda, pelo menos parte substancial da poesia em verso que ele confessa ter escrito nesse período (Caderno de Lembranças, 2006: 52), parte dela em colaboração com Basílio Ferreira Barros, divide-se em primeira impressão em textos manuscritos, nunca dados à estampa, e textos éditos, todos impressos no jornal onde o pai por então, tudo leva a supor, tirava o magro provento, talvez acumulando a tarefa de redactor de pequenas notícias com a de revisor e até com a de contabilista.
Os textos inéditos, tirando aquele de que já se falou, a carta ao pai no ano de 1917, e que constitui hoje o primeiro escrito conhecido de Agostinho, vão do ano de 1919 até ao de 1922 (na verdade 1923), numa soma de 23 textos, onde se encontram páginas vizinhas daquilo que se viu na carta de 1917, como é o caso da composição «Os Inocentes», dedicada à mãe e à avó, de 5 de Fevereiro de 1920, ou da resenha «Um Passeio a Leixões e Uma Visita a Bordo do Vapor Português “Porto Alexandre”», dedicado ao tio Joaquim José Agostinho da Silva, e outras que podem ser súmulas de aprendizado literário, como acontece «No Teatro», Novembro de 1921, em que se resume uma peça vicentina, Farsa de Inês Pereira, ou «Na Aula», do mesmo mês, em que um professor e um aluno, de nome Barros, estabelecem, no quadro duma chamada oral, com pitoresco que baste ao gáudio, um diálogo cerrado em torno de António Ferreira e da tragédia Castro, que leva ao enquadramento e sinopse desta, por sinal com excelente informação associada, deixando perceber um liceal de 15 anos altamente desenvolto no conhecimento da literatura portuguesa e dalguns dos seus escaninhos.
Neste conjunto percebe-se um novo passo no alargamento daquele domínio da sintaxe, com períodos copiosos mas sempre claros, e daquela propriedade de léxico, com recurso a vocabulário expressivo e variado, nunca porém a tender ao nefelibata, que atrás se apontou como as principais marcas estilísticas do primeiro texto de George Agostinho. Demais, pode agora considerar-se a fluência dos diálogos, que aparecem pela primeira vez no contínuo da escrita, uma inclinação irónica e até auto-humoral, que tão importante se tornará no desenvolvimento de certos aspectos dela, e um notável sentido de observação e de antecipação, como se vê naquela curiosa composição de 1919, aos 13 anos, talvez uma redacção escolar, chamada «Viagem Futurista ao Século XXV», onde o conhecimento da realidade científica da época, de mistura com uma cuidada atenção aos percursos do quotidiano e às formas de vida histórica, contribuem para criar um texto que tem tanto de feérico como de realista.
Deste primeiro conjunto, inédito, compreendido entre os 13 e os 16 anos, é de destacar por um lado o aparecimento dum pseudónimo, em 1922, Victor Alberto, num texto chamado «O Meu Amigo João Lopes», que ganhará corpo, e até parceiros, na criação textual dos anos seguintes do mesmo período, e por outro a produção dramática, teatral, com dois inéditos de 1922, um Auto da Índia e uma Tela Histórica, e um outro de 1923, O Primo Basílio, adaptação à cena de parte da intriga do romance homónimo de Eça. Caderno de Lembranças (2006: 62) informa que este meu jovem escreveu pelo menos mais uma peça dramática, versando o episódio de Inês de Castro, que se perdeu ou foi, a conselho de Hernâni Cidade, seu crivo de leitura, destruída. Diz ele (id., 2006: 56 e 62): «Hernâni Cidade, que passara a ser, na Renascença Portuguesa, meu leitor de manuscritos, depois do paciente e interessado Pires de Lima. […] Já o conhecia [Hernâni Cidade], disse-o atrás, da Renascença Portuguesa, e lhe submetera, entre outros originais, minha modesta (ao que me parecia, grandiosa) contribuição para a bibliografia dramática de Inês de Castro e que, caridosamente, me recomendara jogasse fora.»
Paga a pena perceber com mais pormenor esta gaveta de produção teatral, até porque ela constitui na época a mais empenhada e acabada forma da criação escrita do meu jovem, com textos dalguma envergadura, que requeriam montagem, cenários, acções e personagens e onde decerto o autor empenhou todos os recursos de que dispunha naquele tempo, desde a vasta erudição que mostra noutros textos — vasta erudição em rapaz de 14 anos, bem entendido — à fluência dramática do diálogo e aos recursos lexicais e até de versificação. Os dois textos, de 1922, Auto da Índia e Tela Histórica, versam motivos históricos e estão ambos vazados em verso. O primeiro, em glosa assumida da farsa vicentina, até no uso da redondilha maior, centra-se no ponto de vista duma filha (Maria) e duma esposa (Leonor) que esperam em Lisboa o regresso da Índia dum marinheiro (João), e evolui para o desenlace não a partir do choque da fidelidade conjugal, como acontece em Gil Vicente, mas duma espera vã, já que João, vítima de escorbuto, não regressará. Tomando por deixa uma das representações quinhentistas mais castigadoras das viagens portuguesas, e não obstante o modo faustoso que parece ecoar com grandeza trágica no fecho do auto, o texto do meu biografado ganha coloração crítica, até nas invectivas finais de Leonor: «Maldito seja D. Vasco! / … Bem vos dizia eu, ó filha; / Lá ficou… João naquela ilha / Morreu; é certo? — Dizei?! / Oh! Maldito seja el-rei!» O segundo texto, porventura o mais interessante do conjunto, sobretudo pelos recursos de construção, em primeiro lugar métricos, com um dodecassílabo sonoro e maleável, e decerto o mais querido do seu jovem autor, põe em cena os principais factos do levantamento do 1.º de Dezembro de 1640, misturando uma voz épica que se desenvolve em torno da situação dos conjurados e uma voz cómica em torno de traidores como Miguel de Vasconcelos. Na mistura do cómico e do épico, na cadência ritmada e lenta do dodecassílabo, na exaltação e no ridículo, o poema do jovem George Agostinho lembra Pátria de Junqueiro, com o qual de modo visível interage. Quem não percebe no seguinte monólogo de Miguel de Vasconcelos a situação de voz de Carlos de Bragança no poema de 1896: «Quem sou eu? Na própria pátria um desterrado! / De todos sou temido e desprezado… / É este o prémio de minha traição… / / Tenho Portugal inteiro na minha mão…»
E aqui de novo chega à boca de cena Junqueiro, o poeta que se cruzou em Barca com o meu garnisé, quando este, sozinho ou com o Pereira, ia pela estação dos comboios e lá encontrava, enfarpelado, à espera de embarcar o poeta da Batoca, sobre quem, ademais, pela aldeia, corriam ditos e histórias, que Agostinho recolheu e transmitiu. Agora, apesar de não haver disso prova certa, a não ser a curta tela de 1922, Junqueiro volta ao convívio de Agostinho, desta vez por via dos poemas e dos livros, antes de mais a construção dramática de 1896, talvez o ápice da criação do poeta, o que não espanta dada a recepção que por então tinha, vivo que estava e muito visto no Porto, onde tinha casa, na Sé, não longe da morada da Rua Comércio do Porto e do Liceu Rodrigues de Freitas que Agostinho frequentava. Da presença de Junqueiro por esta época na cidade do Porto ficou registo, sempre cáustico, no Caderno de Lembranças (2006: 35), o que pode indiciar cruzamento dos dois nas ruas do velho burgo, ao modo do que antes acontecera no espaço solto de Barca de Alva. Sobre o facto de Tela Histórica ser o mais apreciado texto do autor na época leia-se o aparte, e não o tomo por irónico, que dois anos após, em 1924, Agostinho apôs no final: «Está admirável e chega a ser grandioso! Como pude eu fazer isto?!»
Deste primeiro conjunto, a que a teatralização do romance de Eça pouco junta, a não ser assentar mais um autor marcante no rol das leituras do moço, deve tirar-se a ideia de alguém que se, por acidente, tivesse ficado reduzido a estas duas dezenas de textos, pouco ou nada de original deixaria de si. Dificilmente isto doutro modo seria, tratando-se duma produção escrita entre os 13 e os 16 anos. Ainda assim, tendo em atenção a pouca idade, aquilo que se encontra neste primeiro feixe de escritos, na pujança do primeiro adolescer, é o jorro inicial do que será depois um caudal amazónico de largo e longo fôlego.
Entre Junho de 1922, momento da estreia em letra impressa — dois textos, uma celebração da viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral (O Comércio do Porto, 2-6-1922) e uma curta fábula moral, «O Alquimista» (O Comércio do Porto, 5-6-1922) — e o final de 1924 publica Agostinho da Silva uma volumosa soma de textos, na ordem das várias dezenas, nunca recolhida em livro, e que ao invés dos textos inéditos anteriores mostra, ao menos em alguns momentos, um escritor original que se nada mais tivesse escrito ainda assim podia de si deixar notícia efectiva e curiosa em algum verbete. Haverá real motivo para verbete com textos escritos entre os 16 e os 18 anos e que Agostinho da Silva nunca mais lembrou ou deu a lembrar? Por certo não. Aquilo que aqui vai não é porém uma ponderação exacta do valor dos textos mas antes uma nota sobre a sua existência, essa, sim, surpreendente e digna de nota, em primeiro lugar pelo volume giganteu. O segundo texto dado à estampa, afinal o primeiro que publicou com o nome pelo qual hoje é conhecido, Agostinho da Silva, não obstante a fluência no diálogo e a propriedade lexical, mal se distingue dos inéditos mais incaracterísticos dos anos anteriores; talvez por esse motivo, consciente do pouco significado do texto, Agostinho tenha sentido necessidade de republicá-lo, um ano depois, em versão remodelada («D. Vasco», O Comércio do Porto, 15-9-1923). De qualquer modo logo no texto seguinte, «Foz do Douro, Tantos do Tal», repartido em duas partes (O Comércio do Porto, 4-9-1922 e 12-9-1922), se depara com um estilo — leia-se o seguinte passo: «Todos conhecem o Molhe, todos sabem o que é o Molhe: é a praia aristocrática da Foz invadida aos domingos por numerosas legiões de caixeiros portuenses todos mais ou menos cintados e almofadados» — frio e humorado, contido e observador, bem servido de imagens e de expressões, leves mas cáusticas, que parece libertar-se de vez do semblante entaramelado, próximo em demasia da mera composição de liceu, dos textos anteriores. Numa profusão de linguados imediatos, o jovem escritor desenvolverá esse estilo amável mas ácido, atento à realidade e à necessidade de criar uma tipologia que dela dê conta, menos por uma escala sociológica que racionalize o tema em números, quadros e relações, do que pela ficção poética própria da imaginação, com a criação de personagens emblemáticas e representativas e de diálogos que revelem a força das acções, ou de cenários fantásticos que levem a idêntico resultado. Leia-se por exemplo este curto passo de «O Homem Que Viu o Diabo», (O Comércio do Porto, 25 de Agosto de 1923), onde diálogos feéricos e cenários fáusticos sinalizam casos comezinhos: «E o diabo levantou-se a sacudir a cinza no vão da janela. — Sabes que está a chover… É trovoada… Dantes dizia-se que era o Padre Eterno a ralhar… Agora… Tu sabes a causa da trovoada…? — O João Elias abriu a boca, depois mastigou em seco e não respondeu. — Não sabes…! Ah! Sim! Tu és amanuense… Pois olha, menino! Continua assim que daqui a pouco estás Ministro da Instrução Pública… — Tu não estejas a chuchar comigo, Diabo! Então eu hei-de ser ministro da instrução, sem saber nada? — É a condição essencial! Meu filho, é a condição essencial, essencialíssima. Tu não és capaz de me oferecer um cálice de vinho?»
Este conjunto desenvolve a pseudonímia — e esse é um dos seus aspectos mais singulares — com seis textos assinados por Victor Alberto, nome já conhecido dos inéditos de 1922 e que lhe serviu para se estrear em letra paginada, com o texto «Águias» já referido, dedicado à travessia aérea do Atlântico, ligando Portugal e Brasil, feito de Gago Coutinho e Sacadura Cabral que teve lugar no ano de 1922, entre Março e Junho. Também as duas partes de «Foz do Douro, Tantos do Tal», em que se assiste ao nascimento dum cronista desenvolto, são assinadas por Victor Alberto. Os criptónimos sucedem-se nesta fase, seja por necessidade de muito publicar, para isso diversificando os autores, seja por motivo dalgum teatro íntimo, em que vozes distintas entram em diálogo poliédrico, por vezes contrastivo. Em 1923 — acabara Agostinho de fazer 17 anos — surge João Mendes de Castelo (Castello) Dinis, com «Esboços e Ensaios I e II» (O Comércio do Porto, 21-3-1923 e 30-3-1923) e um poema em três sextilhas, com três decassílabos e o restante em redondilha menor, «A Rosa de Amor» (O Comércio do Porto, 26-3-1923). A produção em verso de Agostinho destes anos deve ter sido abundante pelo que se tira de Caderno de Lembranças; por ora, aquilo que dela se conhece é — além das duas peças dramáticas acima referidas, Um Auto da Índia e Tela Histórica — o que apareceu publicado em O Comércio do Porto entre Março e Agosto de 1923, num conjunto de quatro textos, de que destaco o soneto, de evidente talento formal, «Um Tema Provençal» (4-8-1923). Em Setembro do mesmo ano surge Arnaldo Vaz com três textos, «Desabafando I e II» (O Comércio do Porto, 14 e 22-9-1923) e «A Esfolhada» (O Comércio do Porto, 22-9-1923); no Verão seguinte, em 1924, ano em que o novel escritor termina com distinção o curso geral dos liceus, momento que acompanhei já, aparece Pedro de Meneses, com um vasto conjunto de textos publicados no mês de Agosto e uma biografia montada pelo bonecreiro de todos estes títeres, naquele que parece ser, pelos meios criativos aplicados, pela inteligência construtiva, pela maturidade das considerações, pelo dinamismo do todo, o mais representativo conjunto deste período.
A parcela de que falo, «Inéditos de Pedro de Mendonça», é constituída por 16 textos, sete de Agostinho da Silva e 11 de Pedro de Mendonça, servindo os primeiros de prólogo aos segundos, estampados entre 11 e 30 de Agosto de 1924 n’O Comércio do Porto; o que de imediato impressiona é o vasto universo de criptónimos que esses textos criam e desenvolvem, num cruzamento cerrado de gente imaginária mas verosimilmente viva. Pedro de Mendonça é um jovem autor acabado de falecer, vítima de tuberculose, que Agostinho da Silva, como seu amigo próximo, apresenta aos leitores, dele traçando uma biografia de pormenor, onde se reconhecem casos autobiográficos de mistura com outros, e dele dando a conhecer 11 cartas inéditas. Um dos processos usados por Agostinho para dar verosimilhança à sua personagem ficcional é recorrer na parte introdutória da sua responsabilidade a extractos de cartas de Pedro de Mendonça, onde num estilo interpelante e familiar, próprio à correspondência epistolar de dois amigos próximos, se percebe a personalidade de Pedro de Mendonça. Leia-se o efeito no seguinte passo (O Comércio do Porto, 15-8-1924): «Eu só me dou bem nos dois extremos, meu caro: cidade verdadeiramente cidade ou campo sólida e genuinamente campesino. O meio-termo — a vila — é uma coisa perfeitamente atroz. Deus te livre, ó Agostinho, de alguma vez caíres nas mãos de um cicerone vilão. Chegam a ser hediondos; e eu, com esta paciência exemplar que possuo, estive para cortar um aos pedacinhos, não sei onde […].» Pelo derradeiro texto de Agostinho da Silva, dado à estampa em 18 de Agosto, ficamos a saber que João Mendes de Castelo Dinis, que um ano antes assinara dois textos no jornal, «Esboços e Ensaios I e II», era afinal um pseudónimo de Pedro de Mendonça. Arnaldo Vaz, por sua vez, que em Setembro do ano anterior surgira com três crónicas no mesmo espaço, é um dos amigos próximos de Pedro, a quem de resto são remetidas duas das cartas inéditas publicadas no conjunto. O outro destinatário, com nove missivas, é Roque Sampaio, um médico cuja biografia nos é restituída quer pelos comentários introdutórios de Agostinho, quer pelas cartas, o que de resto já sucedia com a de Arnaldo Vaz, cábula incorrigível e proprietário minhoto da Quinta da Bazila, cuja biografia é construída pelos mesmos processos, cartas do jovem autor falecido e comentários introdutórios.
Entre os inéditos de Pedro de Mendonça espiolhados por Agostinho da Silva figura uma parcela que merece atenção. Trata-se duma dramatização do episódio histórico de Inês de Castro, cujos contornos criativos e os traços internos de evolução são restituídos em vários momentos pelo introdutor. O caso tem boas hipóteses de ser tomado como a transposição dum elemento autobiográfico de Agostinho, também autor duma peça dramática sobre Inês de Castro, hoje perdida, que em momentos cruciais parece coincidente com a de Pedro de Mendonça. O texto deste, ou o que dele se sabe através da resenha de Agostinho, já que a peça não nos chegou de forma literal, torna-se assim a melhor fonte de informação que hoje se conhece sobre a perdida dramatização de tema inesiano do meu biografado. Que o linguado de Pedro de Mendonça sobre a Castro ocupa um lugar central no conjunto dos 16 textos que constituem «Inéditos de Pedro de Mendonça» não sobra dúvida pela recorrência com que o texto surge nos cinco textos iniciais de Agostinho e pela força e intensidade do enfoque. De resto é com um diálogo vivo em torno do texto, entre Agostinho e Pedro de Mendonça, que a série abre — «Inéditos de Pedro Mendonça», O Comércio do Porto, 11(?)-8-1924: «— Ouve lá! — era como ele começava quase sempre as conversas. — Tu estás disposto a aturar-me uma peça histórica, em quatro actos? — Pois não, menino! Salta a peça! Assunto? Bradei, atirando com o Tito Lívio. — Adivinha. — Afonso de Albuquerque? — Não… — Nuno Álvares? — Não… — Então é a D. Inês… Era de facto a D. Inês… — Tu compreendes, ó latinista, que eu não ia escrever alguma coisa sobre a D. Inês depois das “Trovas” de Resende, e d’Os Lusíadas, e do António Ferreira, se não introduzisse alguma coisa de novo na maneira de tratar o tema… A humanidade tinha esplêndidos versos… que vinha eu fazer com a minha prosazinha? — Na verdade… — Posto isto… ouve… E leu-me a peça. As impressões que dela me ficaram narrá-las-ei na parte em que tratar da obra de Pedro de Mendonça. Pediu-me que o acompanhasse a uma livraria onde ia oferecer o manuscrito. Fui com ele à R.P. [Renascença Portuguesa] e dias depois soube que a obra fora recusada por conter pouco de espírito trágico, violento, que seria necessário, mormente nos dois últimos actos.» Eis algumas das impressões de Agostinho sobre a peça de Pedro de Mendonça (O Comércio do Porto, 15-8-1924): «Escrita esta peça quando Pedro era ainda muito novo ela não contém a beleza que seria antirracional pedir à obra de um rapaz de 17 ou 18 anos. Mas tem uma qualidade curiosa que eu passo a expor: Nesta peça — tragédia histórica em quatro actos — afastou-se Pedro de Mendonça da maneira de pensar de todos os que em prosa ou verso tratavam os ressabidos amores da “mísera e mesquinha”; considerou ele Inês de Castro, não a mártir que a ferocidade de três algozes matou, mas, na sua própria expressão, “uma Leonor Teles liquidada a tempo”.»
Arrumando a parcela que dá por título «Inéditos de Pedro de Mendonça», que revela no Verão de 1924 a destreza do autor na construção duma personagem de ficção, assinale-se no mesmo período, no mês de Setembro, a publicação dum curioso conto, «O Bolchevista» (5 e 8 de Setembro), assinado desta vez com o nome próprio, e dum despique, a propósito do esperanto, língua internacional, que também interessará no ponto seguinte, entre um anónimo que assina apenas com as iniciais, S. F., e Agostinho da Silva (5 e 9 de Setembro). O nome que se esconde debaixo das iniciais é com certeza, pelo estilo e pelas deixas que aí se deixam, o de Agostinho da Silva, que dessa forma publica nesse mesmo dia e no mesmo jornal dois textos, um com o seu nome, a segunda parte de «O Bolchevista» e outro sob pseudónimo. Coincidindo com o surgimento destes textos, Agostinho da Silva dá ainda à estampa no mesmo jornal, entre 1 e 4 de Setembro, quatro textos críticos sobre um aspecto mal conhecido da criação camoniana, o teatro, «Camões Dramaturgo I a IV», que revelam um leitor que poderia ter reposicionado o camonismo, caso a ele se houvesse dedicado nesses anos com sistemática e quase exclusiva atenção o que não sucedeu como se percebe pela variedade de assuntos dos vários textos que por então deu a lume.
Em conjunto esta produção relativa ao princípio de Setembro de 1924 mostra uma invulgar capacidade de trabalho por parte de Agostinho, pois entre 1 e 9 de Setembro deu à estampa oito textos, sobre temas tão diferentes como o esperanto, o teatro de Camões ou a figura dum operário bolchevista, isto depois de publicar no mês de Agosto, em tempo de férias, quase dia a dia, os 18 textos relativos aos inéditos de Pedro de Mendonça. Habitue-se pois o leitor aos trabalhos de Hércules deste homem que meteu o seu primeiro escrito em letra impressa aos 16 anos e que aos 18 possuía já uma vasta obra escrita e publicada — esquecida hoje e por esse motivo aqui recordada com alguma demora — em nome próprio e em nome dalguns outros que eram invenção dele, e dele só. Agostinho tinha dentro, desde a adolescência, porventura desde a infância, um fervilhar de vidas distintas e até opostas à sua, como S. F. condenando o esperanto, e que se desenvolveram em paralelo à heteronímia de Fernando Pessoa e, pelo menos nesta época, sem qualquer cruzamento com ela. Isto não é caso único, pois uma década mais tarde, cerca de 1930, o poeta espanhol Antonio Machado criará dois poetas apócrifos, Juan de Mairena e seu mestre Abel Martín, também sem conhecimento do que se passava com o poeta português.
Um aspecto de monta da primeira criação escrita do meu biografado é o ideário que nela se colhe. Alguns estudiosos, baseados nos textos que o autor deu a lume de seguida, entre 1925 e 1927, não muito diferentes destes, apontam para um jovem marcado, senão alinhado, pelas ideias do integralismo lusitano, quer pelas induções recebidas em casa e na escola — por via do pai, demitido por causa da Monarquia do Norte, e do principal mestre desta época, Augusto César Pires de Lima, monárquico militante —, quer pelo teor dos textos. Quanto ao pai, já se percebeu que as ligações dele à Monarquia do Norte podem ter sido apenas formais, idênticas à de tantos outros funcionários da região e está longe de ser líquido — antes há razões fortes para supor o contrário — que as ideias de Francisco José coincidissem com as de Paiva de Couceiro e acólitos. Em relação ao mestre liceal, que Agostinho voltou a reencontrar na universidade e que sobre ele exerceu, na área da literatura, um reconhecido magistério de influência, sabe-se que as suas ideias políticas alinhavam pelo nacionalismo monárquico mas nada garante que Agostinho as tomasse por suas. Contumaz como era, não me parece que Agostinho, já frango de esporão, se deixasse guiar como pintainho dócil por qualquer galo de crista. Também aqui se deparam boas razões para pensar que o mestre seguia por um trilho e o discípulo, com a teimosia que tinha, indiferente a ralhos, metia por outro. Decisivo para contrariar o argumento da influência política de Pires de Lima sobre o meu biografado, é o seguinte passo de Vida Conversável (1994: 43): «Era [Augusto César Pires de Lima] um homem extraordinário para ensinar literatura portuguesa. Com ele não se aprendia pelos manuais, mas sim pelos autores. Levava todos os dias para a aula um texto numa edição o mais possível aproximada da época do autor; lia-se e discutia-se o texto com grande largueza de ideias. Era um homem conservador, inclinado para a monarquia, fortemente católico e eu naquela altura não professava exactamente as mesmas ideias dele, no entanto ele tinha uma grande tolerância para comigo. Pedia opiniões, eu dava-lhe a minha opinião franca, discutíamos e depois tudo andava sempre muito bem.»
Como se vê, tirante os ossos do ofício, a literatura, o mestre levantava uma bíblia e o aprendiz outra. Talvez isto não bata assim tanto para surpresa se o leitor atender ao que Agostinho disse da linha política do pai — «ele, no fundo anarquista», informou (Caderno de Lembranças, 2006: 54) — e do ideário anarco-sindicalista dum dos tios, se bem que outro, o maquinista da Armada, Joaquim José Agostinho da Silva, pudesse alinhar por ideias bem mais moderadas, ou mesmo contrárias, o que está ainda por determinar. Resta neste ponto — o da fixação do ideário político do primeiro Agostinho — o conjunto de textos escritos ou publicados no período do liceu, de 1919 a 1924, e que fazem caudal grosso. Que se topa por lá? Em textos como «Águias» e «Glória», dedicados aos feitos de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, ou na peça dramática, inédita esta, em quatro actos, Tela Histórica, tratando da conjura do 1.º de Dezembro de 1640, ou ainda no quadro único, Quibir, dado a lume sob o nome de Victor Alberto (O Comércio do Porto, 3-7-1922), percebe-se uma atenção de simpatia aos momentos gloriosos de Portugal, por aí se aceitando, se bem que com reservas, que vêm dum estilo que se sobrepõe aos temas, uma linha de adesão à revalorização do nacional. Há porém temas históricos, como o da Índia ou o de Inês de Castro, onde a proximidade empática, emotiva, é trocada por uma observação crítica, muito mais distanciada e fria; a Inês de Castro do primeiro Agostinho, intriguista que pede meças à Leonor Teles de Fernão Lopes, ao que se tira das informações refractadas que ele dá da de Pedro de Mendonça, é tudo menos um contributo à glorificação, ou até ao desenvolvimento, duma tradição cara ao imaginário português; a Castro de Agostinho, pela natureza artificiosa que apresenta, antes se afigura a demolição dum mito nacional.
Demais, para se aceitar o influxo ideativo do integralismo lusitano no primeiro Agostinho, que não é apenas o da Tela Histórica, sobram sempre dois conjuntos tão atípicos como «O Bolchevista», onde se exalta a abnegação revolucionária dum operário esquerdista, que ganha semblante de herói sem para isso trair as ideias antiburguesas com que a abrir o narrador o pinta, e a polémica sobre o esperanto, língua universal criada pelo polaco Zamenhof, em 1887, que lhe pode ter sido dada a conhecer pelo tio libertário. Talvez em nenhum outro momento desta época se perceba a complexidade de ideias do jovem Agostinho como nessa controvérsia que ele próprio monta, criando um interlocutor fictício, S. F., causídico teimoso das línguas nacionais. Diz este («Coisas dum Selvagem. A Língua Universal», O Comércio do Porto, 5-9-1924): «A estrela verde não salvará a humanidade… // As leis naturais que dominam o Universo e que contêm os gérmenes dos antagonismos eternos podem mais que os sonhos de uma catalepsia retroactiva. A vida é a variedade. Ora não só o meu biografado lhe responde em nome próprio como se declara aí seguidor de Zamenhof e da língua universal, chegando a citar em seu abono o Tolstói da desobediência civil («Coisas dum Civilizado. A Língua Universal», O Comércio do Porto, 9-9-1924). Reconhece-se na posição deste meu jovem um princípio civilizacional progressivo, que nenhuma afinidade mostra com as ideias conservadoras da época, contrárias à divulgação da língua universal e ao rebelde de Iasnaia Poliana. O que pretendo com esta observação é apenas chamar a atenção para a necessidade de atender com mais cuidado e menos precipitação o ideário do primeiro Agostinho, que me parece avesso, pela abrangência de várias partes, antagónicas até, a qualquer classificação parcial. O meu biografado, na maturidade, advogou o paradoxo, expressou-se de forma complexa, patrocinou ideias que fora das suas mãos seriam inconjugáveis, foi ele mesmo um corpo doutrinal único, resultante da convergência e do diálogo de muitos lugares e que não pode ser avaliado em função de nenhum sistema, pois a todos subsumiu e de todos ficou de fora. É o embrião dessa inclassificável riqueza que se encontra já em botão no ideário do primeiro Agostinho.
8. A FACULDADE DE LETRAS DO PORTO
Deixei o meu Silva no Verão de 1924, após o brilharete do exame final do curso geral dos liceus. Era então um rapazão de 18 anos, prógnato, testa alta, carão rosado, a gozar o saboroso momento duma vitória sem mancha. Por um lado as primas, doidas por ele, puxavam-no para as excursões da Foz, desejosas de terem nele um peralvilho; por outro eram as estâncias de Camões, os versos de Ferreira e até os do Basílio que não lhe davam descanso. Basta passar os olhos, mesmo ao de leve, sobre os textos que ele deu à estampa nessa vilegiatura estival, nos meses de Agosto e Setembro, com a sucessão dos inéditos de Pedro de Mendonça, a polémica sobre o esperanto, a abordagem da dramaturgia camoniana em quatro momentos, e logo se vê a vida de forçado que o meu adolescente levou nesse Verão: papel, caneta, livros, tinteiro, com dois ligeiros intervalos para meter garfo em almoço e jantar e outro mais largo para estender o corpo no catre e dormir umas horas, sem despegar o sentido das letras que deixara por acabar na banca de trabalho. Das primas e das tiradas à Foz nem rasto, a não ser, por contraponto, e talvez por influxo do grande Camilo, a crueza dalguma crónica. Teimoso como era, surpreende ainda assim a cópia de trabalho produzido, numa fome pantagruélica de papel e tinta. Desconheço os manuscritos desse tempo mas imagino bem que foi aí, na febre dessa primeira ceifa, que a sua caligrafia ganhou pinta de enlouquecida, fazendo-se rectilínea e febril, um bastardinho taquigráfico, uma estenografia do pensamento, que só ele decifrava, tal a rapidez que punha na mão a acompanhar o relâmpago luminoso do cogitar. Será esta caligrafia desvairada e indecifrável, que o futuro tomará dele, quer nos manuscritos conhecidos quer nas muitas cartas que escreveu e que ainda hoje aguardam o seu Champollion.
Outro nó desse Verão, à volta da qual muito se cismou, sobretudo no momento do fecho do curso liceal, foi a escolha do trilho universitário por onde devia seguir caminho o jovem Agostinho da Silva. O pai, que sempre tivera larga fazenda de ambições e se via depois da aventura de Paiva Couceiro relegado para um trabalho instável e secundário, mais biscate que emprego, e que não pudera ter a satisfação de ver o filho oficial da Armada, queria-o agora — decerto com a anuência do mano José Joaquim, oficial da Armada — a estudar leis em Coimbra, iludido ainda pelo brilho de latão dos bacharéis de Direito que no fim da monarquia se encaixavam nos altos cargos do funcionalismo público como as abelhas nos casulos do cortiço. O bom senso do pai, estóico e viril, cegava diante da passadeira de veludo que queria ver estendida aos pés do primogénito, mais ainda depois da demissão, que o envelheceu antes de tempo, com 38 anos, e o fez acreditar que tudo o que perdera havia de ser cobrado e com juros altos pelo filho. O que salvou o meu adolescente do Direito em Coimbra — e de tal nó dificilmente se sairia bem, e ele mesmo levanta a possibilidade do fracasso no livro O Império Acabou. E agora? (2001: 191), não por desconhecimento da filosofia do direito, menos ainda do latim, mas por falta de pachorra para aturar a cabeça quadrada do presunçoso professor coimbrão — foi a falta de meios financeiros da família para o manter mês a mês durante um longo lustro no burgo do Mondego. Além dos poucos proventos do pai, havia ainda em casa uma menina por criar, Maria Cecília, 14 anos, a estudar decerto em escola de comércio, de resto como as priminhas.
Restava pois ao varão a Faculdade de Letras do Porto, recentemente fundada por Leonardo Coimbra, a funcionar na Quinta Amarela, e que não parecia destino assim tão inconsequente a quem passara os anos do liceu a queimar as pestanas a ler poetas e romancistas e se tornara nos últimos anos assíduo colaborador literário d’O Comércio do Porto e frequentador, à Rua dos Mártires, da sede da Renascença Portuguesa. Para fazer mais aceitável a escolha, o mestre dessa época, Augusto César Pires de Lima, ensinava na faculdade. Demais por lá andava, a orientar o francês, Hernâni Cidade, que se tornara nos últimos meses leitor e árbitro dos manuscritos poéticos de Agostinho. Escolhida a faculdade, mister era eleger o curso, pois a faculdade oferecia quatro ou cinco. Sabe-se que o meu Silva não era fulano para hesitações; se tinha de optar entre goraz e linguado não estava com medidas mornas, fazia do alfabeto critério para a escolha e não pensava mais no caso. Ainda assim não foi a ordem das letras que o levou, como se viu, à escolha do ramo do curso complementar dos liceus e também não foi ela que lhe serviu neste transe para eleição de curso superior; optou pela Filologia Românica, que surge depois da Clássica e da Germânica, com certeza por causa do francês aprendido com Carlos Santos, desenvolvido depois em muita leitura de romancista gaulês, ou até no Riley Institute, e ainda por compreensível entusiasmo pelo patrono da área, Hernâni Cidade, na época o primeiro credor do jovem escritor. Bastou uma nega dele, na sede da Renascença Portuguesa, para não sobreviver do pedaço inesiano de Agostinho outro vestígio que o entrecho ficcionado dos inéditos de Pedro de Mendonça, além da curta descarga de humor, muitos anos depois, no Caderno de Lembranças (2006: 62).
No princípio do Outono de 1924, começavam as noites a esfriar e os ventos a soprar da Afurada, meteu-se o meu estudante às ruas do Porto para se dirigir à Quinta Amarela e ter o seu primeiro dia de aulas como aluno universitário. Da Rua do Comércio do Porto, onde a família vivia e havia de viver, e a Quinta Amarela, por cima da Rotunda da Boavista, já vizinha à Rua da Constituição, no cu de Judas, tinha Agostinho meio Porto para bater, com subida conhecida até à Cordoaria, passagem daí à igreja de Cedofeita e daqui à Boavista, uma hora bem contada à lesta pata. No Caderno de Lembranças informa ele que tanto se metia ao dédalo das ruas com as asinhas dos pés, e muito voavam elas habituadas que foram a bater os pedregosos cerros da Barca, como sentado nos bancos de pau dos eléctricos que faiscavam nos ferros dos carris. Dou-lhe a palavra (2006: 56): «O jeito, pois, era tomar o caminho da Quinta Amarela, ou pelo eléctrico de Monte dos Burgos ou pela marcha.»
Sabe-se, Agostinho o diz (Caderno de Lembranças, 2006: 56), que no primeiro dia em que pôs o pé na Quinta Amarela lá encontrou, depois do jardim da entrada, antes mesmo de chegar à sala de aula, perto da secretaria, a olhar a afixação que corria solta pelas paredes, horários, avisos, pautas velhas, indicações de salas, abstraído do restante, a figura singular de António Salgado Júnior, a quem o meu biografado chama «o louro e lento, ao parecer imenso, António Salgado Júnior», e com quem depois veio a ter amizade próxima e duradoura. No jardim de entrada, em banco de pedra, à sombra de vasto rododendro, estariam porventura nesse dia dois outros condiscípulos, mais velhos estes, Sant’Anna Dionísio, que tinha por hábito, diz Agostinho, aí lançar esquiços ao papel, e que deles não perdeu hábito no futuro, e Domingos Saraiva que com ele se vinha entreter de filosofia, e cujas figuras esculturais no jardim da academia Agostinho para sempre reteve na retina (id., 2005: 56). Seja como for, a Quinta Amarela, nessa primeira manhã doirada de Outono, com o rododendro ainda florido e o banco de pedra no jardim de entrada, teve para Agostinho o ar acolhedor duma simples e encantadora casa de artistas, que lhe deve ter evocado, de leituras anteriores, o Porto cálido de Júlio Dinis, muito a seu gosto, longe da catadura severa da Escola Industrial Infante D. Henrique, esse estabelecimento prisional que o levou à rebelião, ou da não menos austera e magistral aparência da coimbrã Torre da Cabra, que decerto o lançaria em nova e aberta revolta contra a arrogância do lente e a pedagogia retrógrada.
Recebido na Quinta Amarela sob o signo da liberdade — nem contínuo havia para indicar salas — e do sonho, depressa Agostinho se fez aos hábitos livres da casa, fundada e regida por um homem, Leonardo Coimbra, que temperara ideias nas pedagogias libertárias do início do século XX e fora um dos intransigentes da greve estudantil de 1907, aderindo mais tarde aos democráticos e chegando ao Ministério da Instrução no rescaldo do levantamento contra a Monarquia do Norte, no curto Governo de Domingos Pereira, nele criando, para contrariar o espírito arcaico e praxista de Coimbra, a Faculdade de Letras do Porto, como escola nova, livre, aberta, dialogante. Leonardo Coimbra, professor de filosofia na Faculdade, ciente de que a orientação didáctica que sempre escapara às obsoletas pedagogias do passado era o diálogo, chegava a dar de barato as salas da Quinta Amarela, para passar às mesas dos cafés da baixa portuense, do Excelsior ao Majestic, onde acamaradava em animadas e longas tertúlias com os alunos. Na inédita atmosfera que se desenvolvia na inovadora Faculdade do Porto, em que rapazes e raparigas conviviam nas mesmas salas, sem barreiras, em que mestres e discípulos teciam laços de amizade à mesa do café ou no patamar das livrarias, Agostinho tropeçou porém em evento que o fez mudar de rumo, trocando de curso na faculdade. Sucedeu assim. Corria tranquilo o primeiro ano lectivo de Agostinho no vetusto palácio da Rua Oliveira Monteiro, com Sant’Anna a fazer esbocetos no jardim, Saraiva a cantar Kant, o loendro a abrir a espaços novas hastes. A aura de sonho que logo deslumbrara Agostinho nas primeiras visitas à Quinta Amarela expandia-se e tomava nos braços a parte alta da Boavista portuense; dia a dia, mais grato lhe era calcorrear as ruas do Porto para chegar às vastas regiões mentais da Faculdade de Letras. Dos docentes, Urbano Canuto Soares leccionava o latim e o grego, insistindo em léxico e gramática, Leonardo arranjava-se com a psicologia geral, cavaqueando no Majestic, Hernâni Cidade tutelava a língua e a literatura francesas, ensinando história da língua pelo Darmesteter (Caderno de Lembranças, 2006: 61-62). Um dia mestre Cidade pediu um trabalhinho a Agostinho da Silva. Consistia a tarefa em preparar em casa uma exposição sobre a Cantilena de Santa Eulália, para apresentar na aula seguinte. Assim fez o meu estudante, que primeiro leu o texto e depois se dirigiu à Biblioteca Pública para anotar bibliografia que o auxiliasse no comento histórico-filológico. Na aula que se seguiu, apresentou o meu estudante a prelecção sobre o texto. No final, depois de o ouvir em silêncio, sobrolho franzido, que o tinha grosso e piloso, transtagano que era da vila branca do Redondo, o mestre deixou cair sem pingo de simpatia ou de complacência (Caderno de Lembranças, 2006: 63):
«— Julguei que o senhor tinha sido mais honesto.»
Não se desmanchou o aluno diante do desconchavo. No canhenho de lembranças diz ele que manteve a atitude impassível de quem na parada dum quartel levanta a mão à testa para se pôr em continência. Também aqui se deve acostumar o leitor à capacidade de Agostinho passar pelo meio do incêndio, rosto sereno, sem um ai de pânico; se houvesse até uma folga de tempo, tinha curiosidade suficiente para se deter a observar com gosto o arremesso das línguas de fogo. Isso fizera já nas labaredas que se levantaram na época da escola industrial, em que tudo ardia à volta e ele, contumaz, não arredava pé da rebelião, dando-se ao escândalo de julgar muito certa a vadiagem. Agora, com o mestre diante de si, a rectilínea risca do cabelo abrindo-lhe na cabeça duas simétricas metades, o bigode farto, quase piramidal, sobre os lábios ondulados, os lóbulos carnudos das orelhas a tremerem, o pimpolho nem pestanejou; aguentou impávido o dito, sem deixar transparecer a mínima comoção. Voltou ao lugar, sentou-se e seguiu sem distracção o restante da matéria.
No final da aula, sem que ninguém mais lembrasse o caso, que Cidade de vez em vez era modelo de saídas disparatadas, todas imputadas às horríveis campanhas que fizera nas Ardenas com o Corpo Expedicionário Português e em que se portara como um mouro de heroísmo, Agostinho dirigiu-se à secretaria da escola, pediu o cardápio do plano geral dos cursos e conferiu as alternativas que havia para largar o francês de Cidade. Ao que o meu biografado confessa (Caderno de Lembranças, 2006: 63) estava por tudo, menos por Filosofia, que pouco despertara o seu interesse nos anos finais do liceu — onde ainda assim houvera guia competente, Augusto Martins — e para a qual não se via preparado. Com a determinação com que ia, logo ali escolheu a Filologia Clássica, onde andara menos mal no passado. E desta vez se pode pensar que a escolha foi mesmo entre goraz e linguado.
Ficou assim Agostinho latinista só para não pôr os butes na sala de Hernâni, ao menos naquele ano, que mais tarde, em ano ulterior, voltou a caçá-lo em cadeira de literatura portuguesa, que correu mansa, sem turbulência. O autor dos inéditos de Pedro de Mendonça não abria guerras, mas também não mamava aguarrás. Quanto ao pobre Cidade, nunca percebeu a verdadeira razão pela qual o estudante, afinal dilecto, deixara de lhe aparecer e ficou-se pelas aparências. O melro, pensou, puxa mais por Suetónio do que por Michelet. E foi ao trabalho, que o tinha puxado e sempre à perna. Agostinho resumiu assim o caso em entrevista de 1985 (Dispersos, 1988: 45-6): «Inicialmente matriculei-me no curso de Românicas. Tive desde os tempos de liceu grande interesse pela literatura portuguesa, estimulado por um óptimo professor, o Pires de Lima, homem muito reaccionário, com quem eu andava sempre brigando, mas que nos fazia ler nas aulas os escritores portugueses. Estava também muito bem preparado em francês, e daí a escolha. Malsucedida porque logo numa das primeiras aulas houve um incidente desagradável com o Hernâni Cidade, que leccionava francês antigo e nesse dia vinha com um mau humor de recém-chegado da batalha de La Lys, e eu não hesitei: fui à secretaria perguntar para que outro curso me poderia transferir.»
Estudante de latim e de grego se fez o meu Silva na velha mansão do Porto; em nada isso lhe transtornou o sonho, pois a Filologia Clássica, com muito estudo de linguística comparada, muita aplicação ao labirinto dos casos, muita atenção à ecdótica do texto, curso natural se fez para quem tinha treino de gramática desde as manas Falcão e muita agilidade de dicionário em línguas estrangeiras desde os primeiros anos do liceu, com cadernos e cadernos de significados ao monte. E de línguas, não se ficava o meu estudante pelo trivial; era bilingue desde o despertar na raia; metera depois o francês e o inglês, e acrescentara logo de seguida o latim e o grego. Nesta época andava, no menos, pelo alemão e pelo esperanto, língua que, pela facilidade esquemática, já nesta época suponho que conhecia bem. A vertente esperantista de Agostinho, testada pelos artigos que publica no Verão de 1924, já referidos, foi com certeza muito desenvolvida neste período, talvez através da influência do tio anarco-sindicalista. Mais tarde se poderão reconstituir com mais segurança as relações esperantistas que Agostinho manteve por esta época e nas imediatas, e que largas foram, pois, na informação de Helena Maria Briosa e Mota («Cidadania e Educação», A. da S. — Um Pensamento a Descobrir, 2004: 25-27), foram vertidas para a língua de Zamenhof, por oito tradutores distintos, entre 1941 e 1985, quase 40 obras de Agostinho, o que faz dele o autor português mais traduzido para esperanto.
Na Filologia Clássica só havia uma companhia, «a excelente Maria da Conceição Gomes», revela Agostinho (Caderno de Lembranças, 2006: 59). Pouco falavam, com certeza mais por feitio da menina do que por vontade de Agostinho, um dos maiores palradores do mundo, desde o tempo de Demóstenes e de Tucídides. O meu biografado só se calava, quando pegava na caneta e no tinteiro, para se acomodar à banca da escrita e deixar correr no papel as palavras e os fantasmas; então, naquele bastardinho regular que era uma taquigrafia do espírito, que ninguém decifrava à vista e a que se entregava durante dias seguidos, o seu verbo deslizava num silêncio concentrado e capcioso; por baixo o caudal do verbo fervia, borbulhava, com a cachoeira das ondas a levantar-se vistosa. Era uma multidão aos gritos que ele orquestrava com voz de trovão. Foi assim que nessa época ele criou a ficção de Pedro de Mendonça, como depois criará tantas outras, sempre em diálogo carnavalesco e folião, a rir muito por dentro, que este homem que aqui se biografa gostava da pândega e as turvas melancolias não entravam com ele, nem mesmo pela mão de poetas. A propósito de poetas, no livro O Império Acabou. E agora?, pronuncia-se Agostinho sobre António Nobre, que com certeza leu ainda no tempo do liceu (2001: 155): «António Nobre […] é um sujeito com quem embirro. Eu acho que o António Nobre, sabe?, foi um homem que pôs a melancolia a prazo no banco e passou a viver dos juros. De maneira que não me interessa absolutamente nada.» A risota interessava-lhe muito mais do que a mágoa. Assim se vingava este eloquente de silêncios brumosos como os da Maria da Conceição Gomes.
E de silêncios se faziam as aulas de Urbano Canuto Soares, o primeiro capataz do curso de Filologia Clássica da Quinta Amarela. Era discípulo de Epifânio, alfacinha de estudos, produto da novel Faculdade de Letras da capital, viera ao Porto chamado por Leonardo em comissão de serviço; dividia a secção de Clássicas com Torrinha e comportava-se como funcionário com o ponto sempre em dia. O meu rapaz pinta-o com tintas sombrias (Caderno de Lembranças, 2006: 60): «a catadura do homem era ruim, rígido por trás de rígida mesa e severo distribuidor e arrumador de aoristos e dativos». Não deixa porém de lhe gabar os méritos na sintaxe e na morfologia, mediano conhecedor que era das voltas da gramática, e até de lhe tomar o pulso para mais. Estou a falar da Quinta Amarela, da primeira Faculdade de Letras do Porto, que foi mais casa de onirómanos, e basta para isso atentar no estranho nome com que veio ao mundo, Quinta Amarela, do que baço estabelecimento público. Por isso, «um severo arrumador de oaristos e de dativos», que noutro local não seria mais do que uma assinatura correcta mas vazia, pôde ainda assim tornar-se naquela escola, rodado já o primeiro ano, um companheiro de aceleradas andanças. Ao que parece Canuto Soares era andarilho de meter medo a veloz maratonista e arrumara todo o corpo docente da Faculdade, até encontrar nos pés de ferro do antigo menino de Barca de Alva parceiro que o arrumava a ele. E assim se fizeram os dois não digo unha com carne mas pelo menos vizinhos que se saudavam a bem e que não mais se perderam de vista.
Outro que nas Clássicas dava cartas e nada tinha de calisto, Francisco Torrinha, já o meu biografado topava de ginjeira dos primeiros anos do Rodrigues de Freitas, piloto que fora da primeira navegação em que se metera na barca do latim. Por isso a filologia de Torrinha continuou o que sempre fora: empresa segura, aplicada, esforçada, sem desvios de rota, quer dizer, de gramática e dicionário, não muito diferente afinal do grego que Canuto regia na mesma sala com a severidade clássica que o fuste da coluna tem e que levou George Agostinho a exclamar que «de pensamento grego ou de alguma ideia sobre a civilização daquela gente, nunca o ouvi falar» (Caderno de Lembranças, 2006: 60).
Para aliviar de silêncios e daquela solidão em que se via com a Maria Conceição Gomes — «só havia uma colega e nos acompanhámos os dois até o último ano, com troca de poucas palavras e de nenhuma ideia» (id., 2006: 59) — havia as cadeiras comuns a Românicas, a Germânicas, a Filosofia, a História ou a Geografia, como a literatura portuguesa, a paleografia, a arqueologia, a geografia, a filosofia, a psicologia ou a gramática comparada das línguas românicas, leccionadas em grupo, sempre com muito garrulice e camaradagem. Destas cadeiras, há que ressalvar por excepção a gramática comparada das línguas românicas, regida por Teixeira Rego, um homem de Matosinhos, tímido, despretensioso, calado, sem títulos académicos, nem os do liceu, e duma modéstia tão exemplar, que Agostinho diz não ter ele «vaidade alguma em ser modesto» (id., 2006: 73), modesto que era da sua modéstia. Teve este homem por mestre, porventura — di-lo Agostinho (Vida Conversável, 1994: 29) — por causa das longas tardes que passava a estudar na biblioteca pública do Porto, Sampaio Bruno, então director da instituição. Aí deve ter aprendido tanto e em tão vastos campos que pouco depois, mesmo sem qualquer pergaminho académico, nem os mais elementares, pois não chegara sequer a completar o antigo quinto ano dos liceus, equivalente hoje ao nono da escolaridade, duas escolas superiores do Porto, o Instituto Superior do Comércio e a Faculdade de Letras, tentam obter os seus préstimos de professor, a primeira no campo da matemática superior e a segunda no da gramática, acabando ele por optar por este, talvez por deferência para com a Renascença Portuguesa, sociedade cultural de que era frequentador e colaborador e a que o fundador da Faculdade, Leonardo Coimbra, estava muito ligado.
Foi este homem, semelhando no abarrilado físico o mestre que o guiara nas leituras da biblioteca, que mais marcou os anos universitários de Agostinho da Silva, que a ele se refere como «a inigualável pessoa e o amplo sábio» (Caderno de Lembranças, 2006: 71). Como era hábito nesta singular escola, que nascera para romper o imobilismo retrógrado da pedagogia coimbrã, criada que fora em momento de euforia da República radical e por um homem que frequentara os pedagogos libertários, a sala de aula prolongava-se sempre na rua, aí encontrando um complemento de liberdade, um convívio de amizade entre professor e aluno, por vezes ainda mais importante, como acontecia com Leonardo, do que aquilo que se passava entre as quatro paredes da escola. Assim eram as passeatas de Urbano Canuto Soares, em que Agostinho com o pé de ferro de Barca de Alva, e bem se pode o leitor habituar a ele, deu o melhor de si, a ponto de cerzir com ele amizade para toda a vida; e assim foram as tardes passadas com Hernâni Cidade na Rua dos Mártires, na sede da Renascença Portuguesa, a falar de manuscritos ou de artigos dados à estampa em O Comércio do Porto. Assim foram ainda as longas horas de contubérnio passadas na Livraria Lello, ao cimo da Rua dos Clérigos, onde Teixeira Rego passava parte do tempo livre, talvez para folhear livros novos e antigos, e que Agostinho diz terem sido mais largas do que as horas passadas nas aulas. Cito (Caderno de Lembranças, 2006: 72-3): «O tempo em que convivemos, menos nas aulas formais, de que fazia o mais possível, do que nas conversas da Livraria Lello.» Outra informação diz assim («Alguma Nota sobre Casais», Convergência Lusíada, n.º 23, 2007: 400): «Teixeira Rego, que podia ter sido bom matemático e físico […] e ensinava filologia […] e o fazia com mais gosto para quem o acompanhava na velha Livraria Lello do que para quem, em obediência ao currículo, se matriculara na cadeira […].» Outro testemunho de valor está no livro Agostinho da Silva — Ele Próprio (2006: 90-91): «Ele [Teixeira Rego] sempre muito atrapalhado por dar aulas, porque não era actor, não se entendia naquela coisa de dar aulas, fugia o mais depressa que podia de dar aulas para ir para a Livraria Lello, onde se ia conversar com ele e, então, o homem ali estava inteiramente à vontade.» A livraria portuense era a editora de Guerra Junqueiro, que muito frequentara o espaço antes da sua morte, em 1923, e é de crer que nessa época a memória do poeta estivesse ainda muito viva no espaço. Agostinho recorda Teixeira Rego a recitar comovido a canção de Junqueiro «Minha mãe, minha mãe, ai que saudade imensa», não dando porém nota do espaço em que isso acontecia (Caderno de Lembranças, 2006: 35); por mim, foi na nave da Livraria Lello, no tempo em que os dois marcavam encontro no exterior da Faculdade de Letras do Porto.
Excepções ainda a ressalvar no conjunto das aulas colectivas em que Agostinho areava o verbo da ferrugem em que se via com os silêncios de Maria Conceição Gomes, única companhia que lhe assistia nas filologias de Urbano e Torrinha, eram as cadeiras leccionadas por Leonardo Coimbra. Logo no primeiro ano da licenciatura, primeiro na Filologia Românica, depois na Clássica, apanhou o meu estudante cadeira leccionada por Leonardo, Psicologia Geral, comum a todos os cursos da Faculdade. O corredor apinhava-se de gente, murmurava-se baixo, a medo, aguardando-se a chegada de Leonardo, tido então como um mito vivo, com a corpulência de praticante de remo, a aura de mentor da Renascença Portuguesa, o prestígio de político influente e de escritor de volumosa obra publicada. Era figura todos os dias mencionada pelos jornais, antigo ministro da Instrução e director da Faculdade de Letras. Por fim Leonardo chegava, senão impecável no sobretudo claro, pelo menos sem as gramáticas e os dicionários de línguas que Agostinho diz que Teixeira Rego usava nos bolsos e lhe punham as abas do amplo casaco a rojarem o chão (id., 2006: 73), fazendo dele um original burlesco que a miudagem de Matosinhos parodiava nos entreténs. Leonardo colocava pasta e chapéu em cima da mesa, olhava a mole informe da massa humana que suspendia a respiração e fixava os olhos basbaques no olímpico, suspirava de aborrecimento e debitava em voz alheada duas ou três banalidades, que fazia render sem esforço até ao fim da aula. Diz Agostinho que Leonardo guardava a eloquência e o saber, que os tinha a rodo, para os poucos que escolhia para discípulos, não estando para maçadas com a nuvem de miudagem que vinha ali, aos bancos da escola, tratar da vidinha. Aos escolhidos, aos que ele adivinhava estarem ali por algo mais do que o canudo, o casamento ou o emprego público, marcava-lhes encontro na roda do Majestic, onde se esforçava como Platão entre os discípulos.
Não podia a têmpera seca e dura de Agostinho, marcada pela paisagem rude de Barca de Alva, que batera pé a pai e mãe com irreverência em tempos de escola industrial, simpatizar de forma natural e espontânea com homem tão sobranceiro. Agostinho amava de mais o fluxo comum da vida para se poder aproximar sem escândalo dum homem que desdenhava a multidão. Ademais a filosofia nunca chegara a interessar de verdade Agostinho no curso dos liceus, e isso o confessa ele (id., 2006: 64). Noutro texto de 1986 confirma (Dispersos, 1988: 813): «Ao contrário do que pensam alguns benévolos mas iludidos Amigos — e desculpem que os contradiga — não sou filósofo, sempre fui mau aluno ou discípulo de filosofia, quer com Leonardo quer com Sérgio, pouco sei de filósofos e não creio que venha a sabê-los algum tanto que seja.» O facto de Leonardo ser um homem que a si mesmo se tomava por filósofo — e com filosofia tecia ele as falas de café — não terá ajudado Agostinho a juntar-se ao autor de O Criacionismo. Enquanto alguns dos imediatos do meu biografado na Quinta Amarela, como Sant’Anna Dionísio e José Marinho, corriam para as mesas dos cafés da baixa portuense abarbados de entusiasmo, Agostinho retraía-se, reservava-se, ficava na retranca. Decisões destas, em homem que nunca hesitou entre goraz e linguado, não eram caso para pensar muito como quando a bola saltita na roda da fortuna; eram resoluções sem retorno tomadas na fracção dum relâmpago. Encontro eco deste desembaraço no seguinte passo (Caderno de Lembranças, 2006: 64): «Se ele [Leonardo] me estava indiferente a mim, decidi eu logo que lhe estaria indiferente a ele.»
Um único episódio parece ter abalado nesse primeiro ano a indiferença com que Leonardo e Agostinho se tratavam. Um dia chegou o professor à sala com a displicência de sempre. Poisou papéis e chapéu, mirou a multidão que se apinhava na sala, sorriu de ironia e lançou uma pergunta que tanto passava por ingénua como por malévola (id., 2006: 64):
— Há anos houve drama fundamental na matemática. Alguém o conhece?
Por hábito, na aula, Leonardo limitava-se a desfiar uma quadra de nomes, com que todos se contentavam, abrindo mesmo a boca de espanto diante da fluência do mestre. Isto assim era já que o expositor não se maçava a preparar lições, tão falho de tempo andava para escrever artigos e livros. Naquele dia — Agostinho diz (id., 2006: 64) que Leonardo fora mordido por «bicho que tinha uma tenaz de desprezo e outra de ironia» — foi diferente. A sala, em geral descontraída, que o mestre tinha semblante afável, gelou. Foi então que Agostinho se levantou e fez ouvir a voz grossa, clara e assertiva:
— Os dramaturgos foram Riemann e Lobatchevski e o drama foi a descoberta da geometria não-euclidiana.
Leonardo, que se convencera que a pergunta não mereceria mais do que silêncio e constrangimento, baralhou-se. Fitou com espanto o ousado que se atrevera a levantar corpo e voz no meio do terror em que a sala caíra depois da interrogação. Levou a mão ao cabelo e esteve para sujeitar à sorte mais conversa. Desistiu porém. As aulas não eram lugar para simpósios filosóficos. Voltou ao ramerrão da tira de nomes. No final do ano o meu intrépido, agastado com tal filáucia, nem sequer lhe pôs os pés no exame; voltavam os tempos da mandria e da insolência. Leonardo não tinha porém catadura de institucional nem termo de comparação com os rudes monitores da escola industrial; passou-o por isso pela tangente. Salvaram-no, ao que se vê, os dramaturgos da matemática.
Dois anos depois voltou o meu biografado a ser contemplado com uma cadeira geral, Filosofia Medieval, cuja regência cabia a Leonardo. A mesma displicência do mestre para com o rebanho; a mesma paga de irreverência do aluno para com o magíster. No fim do ano, quando foi de preencher as pautas, voltou Leonardo a mostrar como o aluno se enganava. Encontrou-o no corredor da Faculdade e logo o chamou (Caderno de Lembranças, 2006: 65).
— Consultei o seu processo na secretaria; caso eu lhe dê a nota tangencial para passar, como já aconteceu, você desmancha a média. Que tal fazermos um acerto para eu lhe dar o dezassete que você precisa para manter a média?
Desceu Agostinho o sobrolho e cerrou o cenho. A média, ele o sabia, era vinte, mas tanto lhe dava mantê-la como desmanchá-la; não vinha ali, à Quinta Amarela, por razão dum número. Gostava de aprender, era tudo. Não papava pois ajustes abusadores; o resto não era com ele. A média que se cozesse. Leonardo sorriu e continuou (id., 2006: 65):
— Terá você a nota. Em troca fico à espera, acredite com paciência, que a mosca filosófica um dia se lembre de si e o pique.
Foi a vez de Agostinho sorrir e replicar:
— Mosca não chega para mim; vai ser preciso moscardo.
Foi dali Leonardo à secretaria desenhar na pauta da turma o rotundo dezassete que convinha à média do aluno. Quando soube da nota, habituado que estava aos zelosos das leis, o meu rústico de Barca de Alva rendeu-se à alma de Leonardo. Nunca enterrou a atitude do professor e sempre que pôde puxou-a como exemplo de grandeza pedagógica. A fonte do episódio, tal como o conto, é Caderno de Lembranças (2006: 64-66). Outra versão, muito desembaraçada, com recurso até ao discurso directo, o que não é o caso do canhenho, está no depoimento ao Jornal de Letras (12-2-1987; Dispersos, 1988: 173-4). Cito o final: «Dezassete foi a classificação que me deu. Era a largueza de espírito do Leonardo que tinha formado aquela faculdade. Ali se percebia por que razão uma instituição universitária não é tão importante como muitas vezes se julga. Ele confiava nalguma outra coisa que não eram os regulamentos, as notas, as pautas e essa trapalhada toda.» Na entrevista à revista Filosofia em 1985 (Dispersos, 1988: 46), Agostinho troca dezassete por dezasseis. Outra fonte — mantém aí dezassete — é o livro Ir à Índia sem Abandonar Portugal (1994: 26-7).
Não pense todavia o leitor que as relações entre aluno e mestre se resumiram a estes dois episódios. Houve mais. No momento das geometrias não-euclidianas Leonardo não arriscou mais paleio, mas na primeira ocasião chamou o aluno de parte e convidou-o a passar pelo Majestic. Queria falar com ele com mais demora. A decifração da charada por parte de Agostinho fora caso de surpresa. Aquele baixote de carão rosado, prognatismo acentuado, ágil e vivaz, roupa sem jeito, a atirar ao rústico, merecia uma conversa a sós, na roda filosófica do café. Ali se veria quem era o descarado que no meio dos entorpecidos do costume levantara a voz para falar de Riemann e Lobatchevski.
Agostinho era, além do escritor precoce que já se conhece, o truculento que, ginasticado nos alcantis do Águeda e do Douro, levava de calcorreada as ruas do Porto, deixando o pobre Canuto a pingar do sovaco. Não era menino que gostasse de ser bajulado e antes tomava para si uma picada de lacrau que uma tarde morna de chá e bolos. Foi com certeza essa têmpera dura que o levou, contra promessas e castigos, a reprovar três anos a fio na escola industrial mas foi ainda ela que lhe deu a disciplina com que pôs a render o génio, primeiro nos estudos do liceu, que fechou com nota máxima, e logo nos escritos que por então deixou. Encontros em cafés faziam pouco o género do meu moço, que trocava de bom grado um tecto de estuque por um céu estrelado, mas a curiosidade de ir conhecer o leão no seu fojo, sem o permeio da pasta, era superior. Houve pois Agostinho na roda do Majestic e trato próximo entre o jovem e o paraninfo da filosofia. Foi contemplar o bicho na cova familiar, onde ele rugia a contento, sem o caparazão das aulas. Pelo Caderno de Lembranças se fica a saber que o jovem aluno de Filologia Clássica chegou mesmo a frequentar a casa de Matosinhos, onde Leonardo vivia com a mulher e o filho, e aí admirou o trato do pai para com o filho (2006: 66). E pelo depoimento ao Jornal de Letras, que apresenta larga soma sobre a relação de Agostinho com Leonardo, se percebe que o primeiro assessorou até palestras do segundo — «fui eu quem pôs o Leonardo por escrito», dirá (Dispersos, 1988: 174). Mas daí a dizer-se que o pardal ficou magnetizado pelo encanto solar do leão, a ponto de cegar para outra luz, é passo que não dou. O meu biografado, mesmo jovem, fazia a rábula do rústico que chega à cidade e vai ao jardim ver o que lá corre. Experimentava tudo, até bordel, mas como quem não está talhado para a função e logo passa à frente. Se lhe perguntassem o porquê dos saltos, encolhia os ombros e respondia uma fineza de campónio.
Uma coisa dou por segura: com ou sem filosofia, com mais ou menos Leonardo, a primeira Faculdade de Letras do Porto foi para o meu biografado lugar de agrado. Estava ali, do jeito do edifício aos funcionários e aos mestres, tudo gente da mesma família, a contrária, a antipódica escola da outra onde, sem dó nem arte, reprovou a eito. Da escola dirá na entrevista que deu à revista Filosofia (id., 1988: 47): «Mas a grande lição que colhi na Faculdade de Letras do Porto foi, repito, a minha formatura em liberdade: ali, respeitávamo-nos todos, éramos respeitados, fazíamos o que queríamos e ainda nos sobrava tempo.» Na nota que escreveu para Casais, recordando-a, tomou-a por nada menos que milagre, consentido por Deus e fruto do humano empenho. Feliz e solto, por lá andou os anos da licenciatura, que concluiu em Junho de 1928, com uma dissertação sobre o poeta latino Catulo, que mais tarde desenvolveu e arrumou em livro, com as amabilidades que adiante se contarão. Quando a vida lhe pôs a questão de se doutorar, foi para lá que a toda a pressa regressou, que a escola estava para encerrar e ele não papava outra.
9. OS AMIGOS DA UNIVERSIDADE. SEXUALIDADE E AMORES
No primeiro dia em que entrou na Quinta Amarela, chegado da baixa portuense, decerto à pata, para aliviar receios, posto que a Faculdade lhe não fosse uma incógnita, pois os inéditos de Pedro de Mendonça dados à estampa em Agosto dela falam, Agostinho deu de caras com António Salgado Júnior. Aranhava ele os olhos pelas paredes à procura de avisos e de horários, com aquele sólido volume que mais tarde o meu biografado dirá (Caderno de Lembranças, 2006: 56) «louro e lento» e «ao parecer imenso». Foi traço simpático de gente que se lhe gravou de imediato na retina, até por ser o primeiro; presume-se que depressa chegou à fala com o colega, mais velho mas do mesmo curso, bom entendedor das fúrias mansas do grande Hernâni. Salgado Júnior, que se notabilizaria no estudo da literatura portuguesa, no trabalho documental de investigação, na crítica textual — editou a obra completa de Camões (1963) e a de Verney (1942-1952) — e na exegese de realistas, foi com certeza um dos comparsas regulares do meu estudante universitário. Com ele bateu a penates as artérias portuenses, entre a Boavista e a Praça da República, perto da qual ficava o mudéjar nicho da Renascença Portuguesa, que continuava a imprimir a revista A Águia, já canonizada por mais duma década de edição. E com ele — já Basílio Ferreira Barros se distanciava — passou em revista as literaturas do presente e do passado, à procura daquela que viria a ser a do futuro.
Outro que George Agostinho assinalou em tempo de chegada à Quinta Amarela foi Sant’Anna Dionísio. Recorda-o, no canhenho, no jardim de entrada, debaixo do rododendro, sentado em banco de pedra, ao lado de Domingos Saraiva, a lapisar medalhas. Sant’Anna era quatro anos mais velho do que o meu Silva e faria nesse tempo de menino de oiro. Fora um dos primeiros matriculados na nova escola, logo no ano lectivo de 1919-1920, e estava a ponto de concluir a licenciatura, em Filologia Românica, faltando-lhe só a dissertação; nesses primeiros dias de Outono de 1924, quando Agostinho o topou, estava ele a fechar a dissertação de licenciatura, de fácies filosófica, «Vida e Pensamento de Nietzsche», que apresentou pouco depois, em Novembro, com sucesso. Frequentava o Majestic, onde adestrava o parlapié filosófico, e à sombra da árvore de Leonardo cogitava via própria. Se tudo quedasse por tal quadro — conclusão da licenciatura, Majestic, medalhões — e Sant’Anna depois da licenciatura batesse asa para outro poiso, com certeza Agostinho pouco teria dado por ele. Mas concluída a Filologia, Sant’Anna voltou a matricular-se na escola, desta feita no curso de Filosofia. Depois das rodas peripatéticas dos cafés da baixa, que marca funda haviam deixado no seu espírito, dava de barato a Filologia; ansiava agora a Filosofia. Voltou pois Sant’Anna aos bancos da Faculdade e por mais dois anos lá se sentou, até que se licenciou no novo curso em Outubro de 1926 com uma dissertação sobre o pensamento de Henri Bergson. Nesse interim conviveu Agostinho com ele. Pergunta o leitor em que podiam gastar a conversa os dois? Está bem de ver que nem nos númenos de Kant nem nas mónadas de Leibniz. Sobrava ainda assim vasto campo. Cheirava-se à distância a presença de Sant’Anna na literatura — será futuro intérprete de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes — e nesse terreno marcava já cartas — ponha-se por modelo a recensão que fez no anexo literário de A Batalha da estreia poética de José Régio, em 1925. De literatura portuguesa chalravam pois os dois na Quinta Amarela ou nas artérias do centro do Porto, onde de mistura com muito trote teimoso de muar se faziam agora ouvir com frequência as buzinas tolas dos automóveis.
Outro que dava brado na Quinta Amarela no tempo em que Agostinho lá entrou era José Marinho — e a ele alude o meu biografado, e por mais duma vez, em Caderno de Lembranças (2006: 60 e 74). Mais antigo na Terra que o andarilho de Barca, Marinho estava com três anos de adianto sobre Agostinho; frequentava o último ano de Filologia Românica, cuja licenciatura concluiu no início do ano lectivo seguinte, em Dezembro, com um estudo sobre a poesia de Teixeira de Pascoaes. Era o filho dilecto de Leonardo, que via nele a mais adiantada mente especulativa da Faculdade; não o dispensava a seu lado e chegou a prometer-lhe entrada no ensino como seu assistente. Frequentara o Rodrigues de Freitas e é provável que Agostinho o tivesse então topado nos corredores ou na biblioteca do liceu. Marinho era um sagaz da literatura portuguesa e europeia, como se vê pela sua dissertação defendida no final de 1925, e por esse caminho se terá feito na Quinta Amarela o convívio dos dois. Agostinho trazia na mala de viagem com que chegou à Faculdade de Letras, e daí à roda das tertúlias onde Leonardo fazia de pontífice, letra impressa que chegasse para despertar a curiosidade dum pequeno zoilo, quanto mais dum fino leitor como Marinho. Seja como for, o afastamento de José Marinho no princípio do ano seguinte, por força da conclusão do curso, seguindo para Coimbra, a fazer estágio de ensino na Escola Normal Superior, terá cortado o convívio dos dois, que só reatou com encontros regulares muito ano depois.
Outros, com quem o Agostinho universitário se deu, não se encontravam ainda na Quinta Amarela, quando ele lá desembarcou. Só aportaram depois, o que não impediu a convivência. É a situação de Adolfo Casais Monteiro, que entrou na Faculdade no ano lectivo de 1926-1927, curso de Ciências Históricas e Geográficas, e terá sido até o principal conviva destes tempos, pelo menos o único sobre quem Agostinho resolveu deixar página autónoma de memórias, já atrás referida, relatando episódios comuns ao tempo da Quinta Amarela. Por ela se sabe que Agostinho tinha o hábito de estudar na biblioteca pública do Porto, que não ficava longe do Mercado do Bolhão; aí topava com Casais Monteiro, um bom palmo mais alto do que ele, escondido por torres de livros que tinha por hábito requisitar à vez e de vez lia. Diz Agostinho (Convergência Lusíada, 2007: 401): «Nunca vi ninguém estudar tanto e tão seriamente como Casais naquela Biblioteca Municipal do Porto.» Era ainda Casais um ruidoso jangaz que arregimentava tropa para bater as ruas do Porto até que a madrugada despontasse do lado de Rio Tinto. Umas vezes por outras se meteu Agostinho na boémia do grupo, pois dele e dos seus deixou notícia segura, até com identificação de nomes, na nota que escreveu para o autor de Confusão (id., p. 401). Num conto muito posterior, «Teresinha», dado à estampa no livro Herta. Teresinha. Joan (1953), encontra-se uma larga e curiosa geografia do Porto — Santa Catarina, Fontainhas, Santa Justa, São Bento e Santo António —, que alguma relação terá com a vivência da cidade que Agostinho teve nesta época.
Outro que repete a situação de Casais, e com quem o meu biografado se deu, foi Álvaro Ribeiro. Era mais velho mas chegou tarde à Quinta Amarela. Fez duas matrículas, em 1925 e em 1927, e acabou por concluir o curso de Histórico-Filosóficas em Julho de 1931. Foi lento mas seguro. Teve por parceiro de carteira Adolfo Casais Monteiro e pode ter sido pela mão deste que chegou à mesa de Agostinho. Estudante arredio, tornou-se depois do afastamento de Marinho para Coimbra o preferido de Leonardo e o promotor dalgumas iniciativas e acções, no âmbito da Renascença Portuguesa, como a revista Princípio, a que Agostinho aderiu. Foi com certeza próximo do meu biografado, pois na única fotografia que conheço da Faculdade de Letras do Porto, tirada no ano lectivo de 1927-1928, porventura já na Rua do Breyner, e que fixa na retina, entre professores, alunos e funcionários, 68 figurantes, Agostinho, de chapéu meio aciganado, e Álvaro Ribeiro estão lado a lado.
Ponho estes — Salgado Júnior, Sant’Anna, Marinho, Casais e Álvaro — pelos que tiveram com Agostinho na Faculdade de Letras do Porto convívio aturado. Mas outros, alguns até lembrados em passos diversos, como Domingos Saraiva, Eugénio Aresta e Delfim Santos, fizeram também, posto que de passagem, vida comum com ele. Todos eles, citados aqui, se notabilizaram ou no pensamento ou nas letras; todos foram dos mais destacados alunos que passaram pela primeira Faculdade de Letras do Porto, alguns, como Marinho e Álvaro, destinados até, por figuração do fundador, a ocupar lugar de relevo na vida da escola, caso ela não tivesse cerrado, de forma prematura, portas. Mas, para que se perceba a excepção do homem que aqui biografo, corre dizer que de todos eles, salvando Eugénio Aresta, 15 anos mais velho, estudante experiente e serôdio, apenas o autor dos inéditos de Pedro de Mendonça fechou a licenciatura com monstruoso vinte. Os outros ficaram-se por médias perfunctórias; até Marinho e Álvaro, os meninos de oiro de Leonardo, não foram além do vulgar quinze e o grande Casais não deve ter chegado sequer a isso, como de resto aconteceu ao vetusto Sant’Anna que se ficou pelo rasante catorze na Filologia, subindo a dezasseis na Filosofia.
O esforço de Agostinho na Faculdade não se ficou porém apenas pelo estudo da gramática, pela ordenação dos casos raros da sintaxe latina e da grega, pelas traduções eruditas. Interessou-se também pelas questões da corporação, pela acção social, pela vida estudantil comum, chegando mesmo a dirigente associativo de projecção; mostrou por aí uma perspectiva nova do seu espírito, a intervenção prática reformadora, que tanto peso virá a ter na sua vida futura, constituindo uma das suas «tipias» marcantes. Sobre os cargos associativos de Agostinho da Silva no que diz respeito às datas os elementos que hoje correm desdizem-se. Artur Manso no pequeno estudo biográfico já assinalado diz o seguinte (2004: 8): «Em 1927, na Academia Portuense desempenhou vários cargos como dirigente estudantil, tais como o de Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras, Delegado da Academia à Assembleia Geral da Universidade e director do jornal da Academia Porto Académico.» Sobre os cargos associativos de Agostinho, há também elementos no estudo de Amon Pinho Davi, «O Pensamento Político do Jovem Agostinho da Silva» (Agostinho da Silva, Pensador do Mundo a Haver, 2007: 349-397). Em livro de Álvaro Ribeiro, seu colega, encontro parágrafo sobre a presença de Agostinho na Faculdade de Letras do Porto que evoca talvez o seu papel de dirigente associativo (Memórias de Um Letrado, vol. III, 1977, p. 119): «No meu tempo de estudante universitário era já Agostinho da Silva o nome mais famoso de uma personalidade que haveria de ser superior.» Seguros parecem-me ser os dados que o jornalista Bento Caldas avança na entrevista feita a Agostinho da Silva para o jornal A Voz (24-5-1927) e que servem para apresentação do entrevistado (In Memoriam de A. da S., 2007: 84-85): «Delegado da academia à Assembleia Geral da Universidade; presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras e director do quinzenário Porto Académico.»
Por fim, de regresso ao convívio escolar, não se esqueça a colega que ele tinha nas aulas de Torrinha e de Canuto, evocada em Caderno de Lembranças (2006: 59), «a excelente Maria da Conceição Gomes», e que foi porventura ao lado de Agostinho a presença mais assídua durante os quatro anos do curso. O que dela sei é nada, a não ser que de conversa, tão grata a Agostinho, nicles — o que não pôs obstáculo a que ele a desse por excelsa. É a primeira moça, salvante as priminhas e a maninha, essa Maria Cecília, que aqui me cai no teclado, entre amigos do liceu e comensais da universidade. No liceu não alvoroça, que a separação dos géneros existia, era de rigor, não sofria discussão; na Quinta Amarela já sacode, que a escola era livre, a tolerância grande — foi pública, assumida e até correspondida a paixão de Leonardo por aluna sua, dela resultando a publicação do livro Adoração (1921) — e os rapazes entremeavam-se com as raparigas, e disso faz prova a fotografia, a lembrar tudo menos o provincial, acima referida e dada a conhecer por Dalila Pereira da Costa, que a recebeu de Maria Guilhermina Ricca Gonçalves, aluna da Faculdade (reproduzida em Alfredo Ribeiro dos Santos, História Literária do Porto — Através das Suas Publicações Periódicas, Afrontamento, 2009: 23).
Por falar em raparigas, é altura de inquirir da sexualidade deste rapaz que despertou para a vida da consciência na aldeia da Barca e para a vida do espírito na Invicta. Uma biografia sem sexualidade é como uma tela sem tinta; não existe. Como sucede a qualquer humano, o vendaval do sexo bateu à porta de Agostinho em verde tempo. Não sei precisar o momento, mas calculo que no quartinho da Rua Comércio do Porto, para onde a família se mudou em 1917. A rua é estreita e longa, margens apertadas, o cocuruto dos prédios baixos a quererem tocar-se, mas o sol a pique, nos dias húmidos de Abril, faz dela um rio de ouro, esplêndido e silencioso. Falo do tempo em que Agostinho subia ao Liceu Rodrigues de Freitas e se aplicava nas aulas de Carlos Santos, de Pires de Lima e do padre Júlio Ferreira. Dir-se-á que o trabalho que a gramática lhe dava, que ele assumia sem enfado, e desenvolvia ainda no arrumo das equações, enchendo-lhe os dias por inteiro de esforço mental, era guarda-chuva largo o bastante para o amparar do chicote forte do instinto. E teria seguido desse modo, sem muito se incomodar com o premer da pulsão, até aos tempos em que se deu com Marinho e com Casais. Para bem dizer, se assim fosse, aqui se provava que, mesmo sem seminários na educação do meu foliculário, a dieta dos padres, qual muro de pedra, mais antigo que a história dos gambozinos, chegava para conter a violência da maré da carne.
Quem assim diga, esquece que aqui se fala dum homem que pelo menos gerou oito filhos, pois outros haverá, ao que dele mais tarde correrá, que nem sequer levou a registo. O instinto era nele rijo, urgente, intorneável. Por certo não se contentava com gramática, repetida a eito, como livro de horas, para iludir ou afugentar desejos e fremências. Houve por isso nas soalheiras tardes do quartinho da Comércio do Porto, como nas noites álgidas de Inverno, entre lençóis, muito onanismo para aliviar a pressão séria do instinto, como aliás sucede hoje com qualquer mocinho de idêntico adolescer. E porventura, com o tio libertário, mais solto de costumes, ou com a tropa fandanga do Casais, visita a bordel nocturno. Não creio todavia que o amor trocado por moeda de cobre fizesse a alegria dum anarquista e desse alívio a um leitor de Terêncio e de Virgílio.
Sem bordel, ou com pouco dele, sobrava-lhe o toque de Onan e o namoro às escondidas. No liceu, nicles de namoro, que as Catarinas e as Lorenas só mesmo nos versos dos poetas ou nas linhas dos prosadores. Dava para fantasiar um soneto de Camões mas não para livrar o silvo do instinto. Na Faculdade o caso fiava mais fino, que as Natércias e as Dinamenes saltavam das páginas dos livros para a carnadura das meninas. E mais eram elas do que eles, ao que se vê na citada fotografia — onde vejo 22 rapazes para 25 raparigas, algumas de refinadíssimo nome, como uma vampe, de grandes olhos, que se chama Alma Dei Negro Coque, o bastante para desatar um par de gritos. Ainda assim não dou por nenhum galanteio na Quinta Amarela, em que a reserva de Maria Conceição Gomes fazia regra, pelo menos para a maioria. Onde identifico o galanteio, e mais até, é no próprio ninho pátrio com uma das priminhas, a mais velha, Berta David da Silva. Se tinha uma Natércia mesmo à mão, dentro de casa, não pagava andar por fora à cata dela.
Esta Berta da Silva já me apareceu em vários momentos. Era filha do oficial da Armada, José Joaquim Agostinho da Silva, e próxima do meu pitorro desde o regresso ao Porto. Acompanharam juntos os zuavos nas batalhas campais da sala, lastimaram ambos a prisão de José Francisco e a sua forçada saída da Alfândega, juntos viveram as derrotas e as vitórias escolares de Agostinho, decerto com amuo da priminha quando se deu conta de que Agostinho não ia enfarpelar as fardas azuis da Marinha que se habituara a estimar no pai. Mas quando no Liceu Rodrigues de Freitas assobiaram os vintes, a priminha rejubilou e passou a olhar o primo como uma promessa de sucesso. Se o epíteto de monstro, pedagógico ou não, vem dessa época, não do aparo que escreveu o Caderno de Lembranças, foi com certeza esta Berta, sabedora que os marrões mais distintos de Coimbra se conheciam por ursos, que lho deu. E que gosto para uma menina travessa mas contida, educada na reserva duma família castrense, exclamar entre fingida e cobiçosa: — Que Monstro!
Demais, os priminhos despertaram juntos para o instinto. Quando deram por eles estavam talvez de mãos dadas, às escuras, a fazer confidências um ao outro. A menina era com certeza refreada, e para isso fora industriada, mas o garoto que viera de Barca de Alva, malgrado a vigilância aturada do pai e a pecha dos estudos, devia ser um tanto solto e insofrido. Quis logo roubar uns beijos à menina e não mostrava sossego enquanto não se via com ela, escudado em brincadeiras sem maldade, no quartinho mais esconso da casa. O caminho era de passo curto, que a prima só deixava fazer o que a moral de ferro lhe consentia. Lá cedia um beijo, contra a regra, já que o primo, de viril e sonhadora bizarria, lhe interessava a valer. Nunca se perdoaria se o deixasse ir na vazante da maré por falta de solicitude para com ele. Até o pai, o oficial dos barcos, gabava a palavra de oiro do rapaz, fazendo previsões altas sobre o seu futuro como funcionário público ou como prestigiado publicista. O meu Silva engodava-se naqueles beijos, dando-se por feliz com o namoro, que chegava para lhe nutrir a fantasia e lhe deixar à distância dum dedo uma Catarina verdadeira, elegante e perfumada, que com arrulhos de pomba e alguma benevolência doce lhe prometia para mais tarde o que por ora lhe negava. Para um eloquente da sua estirpe, que gastava horas a desfiar palavras, e cujo supremo bicanço estava numa boa conversa, um namoro não eram só carnes e requebros; eram os oaristos trocados entre os dois a propósito de cada cisco. E nesse campo talvez a priminha fosse a melhor parelha do orbe.
A princípio o namorisco foi apenas dos dois; depois, à medida que os meses correram, difícil foi escondê-lo das duas mais novas, Maria Cecília e Aida, que, espigando corpo e entendimento, se deitavam a desconfiar daqueles dois que repenicavam beijos entre portas e andavam sempre desejosos de se isolarem em lugar esconso. Não houve outro modo senão metê-las o seu tanto no segredo, com risinhos e brincos de folgar. Não tardou que Francisco José e Georgina do Carmo chegassem ao conhecimento do assunto, já que meninas assim pequenas batiam o dedo para guardar um segredo. Vieram as conversas de Georgina com o filho, com muito tacto e receio. O oficial da Armada nas fardas azuis de traçado impecável, debruada de fitas entrançadas de oiro e prata, era respeitado como soba; ninguém deitava o dedo às filhas dum tal caudilho assim do pé para mão.
Exigiu-se seriedade, mediu-se e acautelou-se a situação da menina. Andavam às boas, com interesse um no outro, a menina consciente dos deveres do caso, o que o salvaguardava de perigo. Entrou Francisco José em falas com o irmão, primeiro a medir os riscos e as intenções já desenhadas, depois com o à-vontade do costume, quando percebeu que o mano não tinha planos para a filha e não desdenhava da novidade. Amuara com o sobrinho, ao vê-lo madraço e vadio, nos tempos da escola industrial, mas reconciliara-se, e com pasmo o fizera, quando no liceu começaram a desfilar os vintes. Deu-se pois em conciliábulo e com o agrado das duas partes o namoro por oficial, logo se estabelecendo o casamento entre os dois, que na época não se fazia por menos o encontro leve de dois meninos. Bastavam dois beijos às escuras, longe dos faróis da família, para logo chegar a obrigação do enlace.
Impossível estabelecer aqui ou por agora o momento exacto em que isto foi. Apontaria eu para o complementar do liceu, sem qualquer documento porém para me justificar, que nestas coisas da libido e do amor o meu biografado foi sempre mais hermético do que um mudo. Também não me é possível ter qualquer certeza de que o curso do encontro dos dois seguiu aquilo que aqui digo. O Agostinho, que no Caderno de Lembranças dedica páginas a enumerar os amigos de Barca de Alva, e lembra até as volutas do lenço que Junqueiro põe ao pescoço, não tem uma linha, uma letra que seja, para nos falar do efeito que a pressão do instinto teve sobre ele. O vulcão formou-se, expeliu a lava ardente, mas ele calado. Do mesmo modo nem uma palavra para o namoro com a prima, que tanta importância virá a ter no futuro. E quem diz o canhenho de lembranças, diz todas as entrevistas que deu, e tantas foram, em que se comprazia a falar da escola de São Nicolau e das manas que lá encontrara, da vadiagem da escola industrial, dos mestres liceais e universitários, dos colegas dentro e fora da faculdade. E nem uma palavra sobre o namoro em que andou nesse tempo. Pudor? Trauma? Desinteresse? Fico-me por um sentido feroz da privacidade amorosa, que sempre defenderá com unhas e dentes, pondo na biografia de Agostinho da Silva pontos de dúvida insolúvel. Por ora uma coisa me parece segura: casamento, naqueles tempos em que o varão tinha obrigações, até legais, de manutenção da célula familiar, só depois de situação prática adquirida. Ora o meu George, marrão de Letras, filho de gente pobre, mesmo com a artigalhada que dava aos jornais desde tenra idade, e que ganhou novas larguezas nesta época, estava longe de ter situação que lhe permitisse fundar família.
10. OS TEXTOS DA ÉPOCA UNIVERSITÁRIA
Os textos escritos e publicados neste arco de vida do meu biografado, de 1924 a 1928, que são os da licenciatura, ganham um novo alcance e alargam o círculo de acção. Uma biografia de Agostinho não é um estudo dos seus escritos mas uma forma de lhe refazer a vida. Ainda assim os escritos deste homem, pela constância e pelo volume, são momentos cruciais da sua passagem pela vida e por isso não se lhe pode reconstruir os passos sem os noticiar. O documento biográfico que aqui monto serve também para firmar Agostinho como um escritor raro da sua língua.
No Verão de 1924, depois de se despedir das salas do Liceu Rodrigues de Freitas e enquanto aguardava ingresso na Quinta Amarela, Agostinho escreveu e publicou, já o sabe o leitor, que nem um insofrido. Entre Agosto e o princípio de Setembro, enquanto a tropa ia para as areias quentes da Foz, dava ele à estampa a série interminável dos inéditos de Pedro de Mendonça, os dois textos do «Bolchevista», a arquitectura desusada da polémica com S. F. a propósito do esperanto, o conjunto de estudos dedicados à dramaturgia de Camões, para só pôr no cômputo a letra redonda que foi ao caixotim. É soma rara, com momentos marcantes, que merecem sublinhados de interesse por baixo e anotações cuidadas de lado, já que, andando no desconhecimento geral, chegam para dar um escritor aos 18 anos. Sei que prometem mais do que valem, mas ainda assim merecem uma paragem para mesura séria. Estações dessas, nessa idade, não são frequentes e só de largo a largo sucedem. Assim depois da revoada chega uma pausa, embora curta, pois trato dum homem sem medida na bitola comum. Ao invés os excessos hão-de crescer até ao inverosímil, que é maravilha, quando não horror, e disso se dirá adiante. Por ora, com a entrada nas salas da Quinta Amarela, houve mesmo pausa, embora curta, e só três meses depois Agostinho volta a publicar n’O Comércio Porto (9-12-1924), desta vez nota crítica sobre a autoria de Crónica do Condestabre, onde mostra firme conhecimento da história editorial do texto. Basta essa nota, porventura base dos estudos posteriores de Hernâni Cidade sobre o assunto, para se perceber o formoso crisol de que Agostinho dispunha na crítica aos 18 anos. Quem lera aos quatro ou cinco anos Bernardes e Vieira, não era para pasmar que aos dezoito estivesse de estilo formado. Eis outra cabeça do meu monstro tricéfalo.
No Verão seguinte voltou com nova caravana de textos. O rapaz não conhecia repouso; mal chegava a vilegiatura, depunha pasta e livros — capa e batina não seriam o mais vulgar para os lados da Quinta Amarela — e enfiava-se no quarto, para deitar o aparo à tinta. Nesse estio de 1925 publicou no jornal em que se estreara duas ficções — «O Poeta», em sete textos (10-7-1925 a 17-7-1925) e «O Cadáver», em quatro (22-7-1925 a 25-7-1925) —, numa enfiadura de 12 linguados, onde deparo com a boa prática coloquial de ficções anteriores. Estou em crer que os três estudos — o primeiro sobre Eça de Queirós e os outros sobre o futurismo — que publicou nesse mesmo ano no jornal Acção Académica (15-10-1925; 1-11-1925; 1-12-1925), foram pensados e deitados ao papel no calor da mesma sazão. Os textos — «As Responsabilidades de Eça de Queiroz», «O Futurismo I — O Mal» e «O Futurismo II — O Remédio» — serão os primeiros coligidos em livro, se bem que não por ele (Obras de Agostinho da Silva, vols. V e VII, 2000 e 2002), que os deixou em vida enterrados nas páginas do pasquim estudantil e nunca a eles aludiu, se é que deles se lembrou. São textos em que dou o estilo, pelo menos do crítico, por concluído, tal a agilidade da fluência, a desenvoltura da elegância, o domínio da expressão. Aos 19 anos, com curso longo de leitura, o meu biografado podia fechar em definitivo uma etapa.
Quanto às ideias, a apreciação dos escritos de Eça vale pelo bom conhecimento que revela da obra do escritor, numa posição adversa que se manterá quase sem tergiversações ao longo da vida, e as considerações sobre o futurismo são por um lado desbunda verbal e por outro afirmação do espírito clássico, o que se entende em estudante que queimava pálpebras e neurónios a fazer os deveres de Canuto e Torrinha. O Agostinho helenista, atente o leitor, é para fixar na retina, entre o eloquente que dava de bom grado um dos mindinhos por um dia de conversa e o papa-léguas que dava o outro por uma longa tarde de marcha. Quanto ao erótico, também primaz, tinha o namoro com a priminha, o toque de Onan, as tropelias de Casais, se as havia, e o banho de água gelada, com certeza em tina de semicúpio, para baixar a fervura e pôr os penates em movimento.
No ano seguinte, 1926, colabora com o quinzenário Porto Académico, que chegará a capitanear, aí exercitando a disposição crítica de que tão bem se saíra nos artigos d’O Comércio do Porto. Entre os textos então dados a lume registe-se recensão a livro infantil de António Sérgio, Contos Gregos, onde o crítico segue a pecha do helenista e bate palmas à divulgação do espírito clássico. No mesmo ano surge como colaborador da revista A Águia, órgão da Renascença Portuguesa, dirigida por Leonardo Coimbra, outro testemunho das relações entre os dois. Que ele frequentava desde os tempos do liceu o ninho da revista, na comprida rua que vai da Praça da República até à Praça Carlos Alberto, ele o confessa (Caderno de Lembranças, 2006: 56); mas entre entrar a medo no ninho do altivo bicho e fazer parte do sangue que lhe passa nas artérias vai diferença séria. A participação na revista manter-se-á até 1929 com 10 colaborações, todas elas, salvante duas recensões, na filologia clássica. Estreou-se com uma «Nota Filológica sobre o Verbo “Trabalhar”» (A Águia, Julho-Dezembro de 1926) e fechou com um trecho da dissertação de doutoramento, «Sentido Histórico das Civilizações Clássicas» (A Águia, Abril-Junho de 1929).
Pelo meio, tomou em mãos a direcção do Porto Académico, deu, em Maio de 1927, a entrevista a Bento Caldas e iniciou a colaboração com a revista Seara Nova, esta em Outubro de 1928. As duas primeiras não têm permeio e delas falo de seguida; da derradeira, «Carta aos Velhos Latinistas», se falará depois, já que abriu trincheira nova na vida do meu helenista que demorou uma larga década a cavar, se não mesmo duas. Diga-se apenas que se conhece hoje exemplar deste número da revista — depositado na Associação Agostinho da Silva — oferecido a Berta David, com o seguinte autógrafo no texto impresso de Agostinho: «Duas páginas tão feias para uma noivazinha tão linda! Eis uma maldade que nunca se poderá perdoar. O teu George.» Já antes houvera dedicatória manuscrita em texto de Porto Académico («Estudantes», 1-8-1926) e na entrevista a Bento Caldas — «à mais linda das primas oferece o mais feio dos primos» (v. Amon Pinho Davi, Agostinho da Silva, Pensador do Mundo a Haver, 2007: 355). Feio? Maldade? Sim, que a noiva não era com certeza a Purinha do António Nobre nem ele, o George da dedicatória, seráfico que se contentasse com versos e nuvens. Tinha até, com o carão sanhudo e o sorriso arrepelado, mais ar de malandro do que de poeta. Seguro, seguro é que no momento da licenciatura, ou logo depois, Berta e Agostinho, após arrulho e piropo, ficaram noivos. No Verão do noivado nenhum bando de textos com a assinatura de Agostinho poisou n’O Comércio do Porto. Ao que sei nem mesmo avezinha solitária lá aterrou. Este vazio contrasta com os vinte e tantos que deu à estampa nos calores de 1924 e com a dozena do Verão seguinte; em 1926 ainda lá poisou quadrilha jeitosa, com «Um Assassínio» (9 e 10-9-1926) e «O Suicídio de Manuel Mendonça» (16 e 17-9-1926). Muito fogo apagava aquela tinta!
A vitória dos democráticos depois da breve existência da Monarquia do Norte trouxe de regresso a República Velha. Esta, depois de tão gorda vitória, preparava-se para regressar ao inicial estado de graça em que vivera nos meses que se seguiram ao 5 de Outubro. A esperança durou um fogacho, pois depressa se viu que a República dos democráticos não tinha modo de fugir da instabilidade política. Em 1920 sucederam-se oito ministérios e no seguinte sete. Em 1922 veio a noite sangrenta em que três prestigiados — Machado Santos, Carlos da Maia e António Granjo — foram assassinados. O descrédito da República virou lugar-comum. As correntes monárquicas, abaladas pela derrocada dos impérios centrais, desacreditadas pela Monarquia do Norte, encontraram nesta instabilidade um factor de crescimento, que exploraram à força, reforçando o ascendente sobre a juventude. A situação europeia, marcada pelo advento do fascismo, favorecia a radicalização autoritária das doutrinas monárquicas. A direita passava a mão pela farda dos chefes militares, heróis da Grande Guerra, e incentivava sem freio o exército a varrer de vez a classe política constitucional, instituindo pelas armas um regime novo e autoritário.
A crise no final de 1924 parecia mais gravosa do que aquela que levara à ditadura militar de Sidónio Pais. A República estava sem apoio. Dum lado via-se um bloco conservador, exigindo estabilidade política e ordem nas ruas, constituído pela banca, pelo comércio, pela indústria, pela Igreja e pelo País rural e do outro arregimentava-se um bloco reivindicativo, menos numeroso, que exigia reformas e progresso, constituído pelo operariado e por alguma população urbana. Não havia meio-termo para este confronto desigual, que tinha por força de acabar com a vitória dos primeiros. No ano de 1925 estalaram duas revoltas militares, de tipo sidonista, que a República conseguiu sufocar. No final do ano, descontente com a evolução desfavorável da situação política, triste com a vida mental do país, desgostoso até com o estado da Europa, Teixeira Gomes, Presidente da República, resignou e partiu para não mais regressar. Em Maio do ano seguinte o general Gomes da Costa, um dos que era adulado como herói e reclamado como salvador, seguiu pela insubordinação e desceu sobre Lisboa com a maioria do exército a seu lado, decidido a pôr fim à situação política. A República num relâmpago desfez-se. Em menos duma semana, o Governo desapareceu, o velho Bernardino Machado, que fazia de Presidente da República, demitiu-se, o Parlamento foi dissolvido, o poder ficou concentrado na mão dos militares, tudo em nome do ressurgimento nacional, da moralização da administração pública, da constituição dum Governo militar musculado e do fim dos partidos políticos. Dois meses depois, dois generais, Sinel de Cordes e Óscar Carmona, o primeiro como ministro forte do Governo e o segundo como Presidente da República, estabilizavam a fórmula governativa da ditadura militar e davam início a uma nova etapa da vida política do País.
Como viveu o jovem George Agostinho a perturbação deste período decisivo? Antes de mais, cabe dizer que a casa dos Silvas na Rua Comércio do Porto não podia morrer de amores pela República que saíra do sidonismo. Depois da queda da Monarquia do Norte, o pai fora atirado à enxovia e demitido da Alfândega, isto, segundo as observações feitas em Caderno de Lembranças, sem qualquer razão, a não ser ter obedecido, como centenas de outros, ao Governo do Porto. Mesmo aceitando que Francisco José era estruturalmente anarquista, e nada tinha de monárquico, como avança Agostinho no seu caderno (2006: 54), as simpatias pelo regime, que o humilhara e o deixara numa situação económica aflitiva, só podiam ser nulas. Da parte do oficial da Armada, pai de Berta David, a proximidade à situação não seria maior, dada a instabilidade governativa, sempre antipática ao espírito castrense. Restam os dois outros tios paternos: o faroleiro, herói do 5 de Outubro, Justino ao que parece, e que talvez mantivesse a fé no regime, e Domingos, o anarquista, ligado a José Benedy, e que fazia parte do bloco social reivindicativo, também ele muito contrário à República, em especial à facção de Afonso Costa, o racha sindicalistas.
De qualquer modo, um fulano que cortara letra impressa aos 16 anos e dois anos depois levava já dezenas de linguados assinados na imprensa, e em domínios tão variados como a crítica camoniana ou a exequibilidade do esperanto, era com certeza um sujeito cerebrado, que pensava por si, não se subordinando — a não ser naquele mínimo aceitável que vinha da solidariedade que devia ao pai — às circunstâncias da família e às ideias dela. Atendendo a parte da colaboração que Agostinho deu ao jornal O Comércio do Porto no mês de Setembro de 1924, o que lá encontro é o perfil de alguém muito mais próximo das aspirações progressivas do arco social dinâmico do que das convenções conservadoras da parcela retrógrada. Dois anos depois Agostinho da Silva assume papel no associativismo académico e torna-se presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras do Porto e delegado da Academia à Assembleia Geral da Universidade. Em Março de 1927 assume a direcção do jornal Porto Académico e em 24 de Maio dá a entrevista a Bento Caldas para A Voz, reproduzida no dia seguinte em A Ideia Nacional, de Aveiro, fundado por Homem Cristo Filho, jornal em que colabora no mês seguinte com dois textos, um sobre literatura infantil e outro sobre literatura feminina.
Estas prestações, salvante as duas últimas, têm servido para alinhar o meu estudante universitário junto das correntes monárquicas integralistas, pois tanto A Voz como A Ideia Nacional eram periódicos ligados à radicalização das ideias monárquicas (v. Amon Pinho Davi, «O Pensamento político do jovem Agostinho da Silva: da primeira Faculdade de Letras do Porto e da Renascença Portuguesa ao ingresso no grupo Seara Nova», Agostinho da Silva, Pensador do Mundo a Haver, 2007: 349-397; Artur Manso «Nacionalismo e Patriotismo no Jovem Agostinho da Silva», id., 2007: 267-274, e «O nacionalismo monárquico de Agostinho da Silva», Viva a República! Viva o Rei!, Teresa Sabugosa, 2006: 111-118). A entrevista a Bento Caldas foi dada na qualidade de dirigente associativo e de director do Porto Académico, órgão estudantil da Associação Académica local. Agostinho acabara de assumir a direcção, dando à luz a 15 de Março o ideário programático, num editorial «A Política do Porto Académico». O que chama aí a atenção é a passagem seguinte, crucial para se entender a direcção que Agostinho imprime ao periódico estudantil: «É efectivamente necessário marcar nitidamente a nossa posição em face das diferentes correntes políticas em que se encontra dividida a Academia, para que não suceda, depois, termos de roubar tempo a ocupações mais proveitosas para virmos responder aos ataques feitos por tal ou tal agrupamento. Porto Académico é o órgão de toda a Academia, tendo por isso a obrigação de não ofender a convicção e as susceptibilidades políticas de qualquer dos seus componentes — o que se tornaria impossível se o nosso jornal tomasse partido por um determinado pensamento político. A sua atitude será, pois, a da independência e a da imparcialidade absoluta, apenas levantando a sua voz contra qualquer grupo político quando ele, esquecido dos deveres que lhe competem, lesar de alguma maneira o prestígio e a dignidade da Academia.» Nenhum «integralismo» se tira deste passo. Ao invés, o que dele se extrai é uma declaração a favor do pluralismo, uma defesa intransigente da tolerância, que podia ser assinada na época por qualquer «democrático» ou até por qualquer «libertário».
Sobra a entrevista a Bento Caldas, activo dirigente estudantil coimbrão. Nesta distingue-se o que pertence ao entrevistador, reaccionário sem rebuço, e o que pertence ao entrevistado, mais cauteloso e muito mais estratégico. Quando Bento Caldas, indisposto com Leonardo Coimbra, figura da esquerda democrática da época, procura apoucar a Faculdade de Letras do Porto como «escola em que os alunos são levados a aceitar doutrinas perigosas», o meu biografado tem reacção de revolta e responde: «É falso. Na Faculdade de Letras da Universidade do Porto os alunos têm absoluta liberdade de pensamento. Não há subordinação às opiniões dos mestres nem estes exercem qualquer pressão tendente a arrastar os alunos para qualquer campo político. […] As duas Faculdades — bases de qualquer Universidade e sem as quais ela não pode existir — as de Letras e Ciências […].» São estas palavras dum «integralista? Não parecem. A entrevista de Agostinho da Silva a Bento Caldas, única peça que em verdade pode servir ao processo do integralismo do meu jovem universitário, tem como fundo a situação da Faculdade de Letras do Porto, tão favorecida no passo pelo entrevistado e tão desconfiadamente abordada pelo entrevistador. Nenhum comentário até hoje sobre a entrevista cruzou de forma directa a situação da escola portuense e a acção de Agostinho da Silva. O cruzamento dos dois planos talvez possa trazer alguma luz nova sobre o texto.
A Faculdade de Letras do Porto, já o disse, foi criação de Leonardo Coimbra no Governo democrático de Domingos Pereira, no rescaldo da queda da Monarquia do Norte. O espírito da escola vinha das pedagogias libertárias em que Leonardo se formara na juventude e contrariava a linha praxista da Universidade de Coimbra. Era a escola nova, livre, aberta com que os sectores libertários da República haviam sonhado. Natural que agremiação assim tivesse de imediato levantado vozes contrárias, tanto entre a Universidade de Coimbra, defensora feroz do tradicionalismo académico, como nos sectores sociais mais conservadores. À medida que a instabilidade política se acentuou e que a situação europeia se radicalizou em soluções governativas autoritárias, a contenda subiu de tom. No ano de 1923 — cumpria mandato na presidência da República um homem livre, de costumes liberais e tolerantes, Teixeira Gomes — estalou uma violenta diatribe pública contra a Faculdade de Letras do Porto. Teve como agente Francisco Homem Cristo e ficou conhecida como a campanha Homem Cristo. As operações visaram a disciplina da escola e o principal réu foi o fundador dela, Leonardo Coimbra. Era acusado de não marcar faltas, de não dar notas negativas (o que Álvaro Ribeiro confirma em Memórias de Um Letrado, III, 1977: 122), de acamaradar com os alunos em público, de permitir a contratação de docentes que pouco mais tinham do que a habilitação oficial do curso primário, como Teixeira Rego. A diatribe chegou à câmara dos deputados, onde Leonardo acabou injuriado por ter escrito um livro, Adoração, que era segundo os deputados católicos o elogio escandaloso do adultério, ainda por cima com uma aluna. A operação difamatória durou dois anos, teve picos violentíssimos, mas fechou com a vitória de Leonardo e a consolidação da escola. A demissão de Teixeira Gomes, o golpe de Gomes da Costa e a instauração da ditadura militar com Carmona na presidência, reanimou de novo a campanha, desta vez exigindo, em nome da moral e do fim dum ciclo, o encerramento imediato da escola. No início do ano de 1927 correram os primeiros rumores do fecho da faculdade. A difamação política e moral da escola e do seu fundador, um canhoto, continuou; dela se toma nota no passo da entrevista de Bento Caldas, um coimbrão rematado, a Agostinho. Ao invés, este é rigoroso na defesa da Faculdade e dos seus professores. Agostinho não era um aluno vulgar; era o responsável da associação estudantil e tinha por isso obrigações acrescidas. Procurou pois fazer o que estava ao seu alcance para defender a Faculdade, incluindo encontro em Lisboa com Carmona, para o dissuadir de encerrar a escola. O encontro entre Agostinho e Carmona deve ter acontecido no final do ano lectivo de 1926-1927, um ano antes da conclusão da licenciatura, altura em que cumpria mandato como presidente da Associação e momento em que a revista A Águia (Abril-Junho de 1927), em nota da redacção, antecipando-se ao Governo, toma a defesa da escola, salientando a sua importância para a vida cultural portuense.
A conversa com Bento Caldas precisa de ser encarada na preparação estratégica desse encontro entre o responsável estudantil e o Presidente da República. A Voz e A Ideia Nacional — o segundo fora fundado pelo filho do desbragado contraditor de Leonardo, Homem Cristo Filho — eram periódicos que apoiavam a ditadura militar. Constituíam só por isso duas guias de marcha excepcionais para o estudante se apresentar diante do Presidente Carmona. Agostinho procurou dois trunfos, bem ao seu estilo, para a vasa que ia ser jogada. Perdeu-a, porque o adversário — chamava-se Universidade de Coimbra — era forte, inexorável, vingativo, estava melindrado e ferido. Demais, através do Centro Académico de Democracia Cristã, constituía o principal núcleo orientador do novo ciclo político português. No ano seguinte a Faculdade era extinta pelo decreto-lei 15.365 (12-4-1928); alguns dos professores, o seu fundador incluído, foram assim afastados para sempre da vida universitária, isto num tempo em que António de Oliveira Salazar, professor de Coimbra e membro do CADC, se preparava já para tomar a rédea do Ministério das Finanças, com direito de veto em todos os aumentos públicos de despesa e supervisão orçamental de todos os ministérios. Sobre o assunto do encerramento da Faculdade e da vinda a Lisboa do meu biografado para interceder junto do Presidente da República em sentido contrário, encontro testemunho directo na entrevista de 1985 à revista Filosofia (Dispersos, 1988: 47): «[…] o governo da ditadura decide, pelas razões que se sabem (pressões de Coimbra e Lisboa ressabiadas, etc.), acabar com a Faculdade de Letras do Porto. Outra vez o acaso a mudar o rumo da minha vida! Ainda vim a Lisboa, com uma comissão de estudantes, falar com o Carmona. Recordo-me que o homem envergava capa de cavalaria — ainda ficava pior — e que não entendia nada de nada do que fosse uma Faculdade de Letras, ou outra Faculdade qualquer, e continuou a não entender. De modo que a Faculdade fechou mesmo.» Na página final do Caderno de Lembranças lê-se o seguinte (2006: 76): «[…] Carmona se mostrou bem longe de preocupação de cultura, quando vim expor-lhe, em delegação de estudantes, o inconveniente do decreto […].» Sobre o encontro com Carmona ver ainda Ir à Índia sem Abandonar Portugal (1994: 27).
Também a colaboração do jovem Agostinho da Silva na revista A Águia, entre 1926 e 1929 me parece impugnar o seu «integralismo». De todos os alunos ilustres da Faculdade de Letras do Porto, incluindo os dois mais próximos de Leonardo Coimbra, José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi ele, salvante o caso de Sant’Anna Dionísio, que deu mais colaborações ao órgão da Renascença Portuguesa e, de todos, foi ele o primeiro a pisar as páginas da revista. Não acredito que Leonardo, que dirigia a revista e fazia despacho na sede da associação cultural, lhe cedesse espaço se o soubesse um faccioso de António Sardinha. Achincalhara este sem dó a Renascença Portuguesa e por várias vezes o fizera, desautorizando-lhe sempre o magistério. Qualquer partidário convicto do integralismo recusaria pois colaborar no órgão da associação. Escrever em A Águia era estar marcado à esquerda. É por aqui, não por qualquer apostasia, que se explica para mim o início da prestação escrita do jovem Agostinho na revista lisboeta Seara Nova em 1928, que era um dos brotos do renascentismo portuense. De resto, no Caderno de Lembranças (2006: 66) o meu biografado declara que o nome do corifeu monárquico lhe era nessa época quase desconhecido — e com ele o do António Sérgio político. Aceita-se porém — já que o próprio o confessa na nota que escreveu para Casais Monteiro (Convergência Lusíada, 2007: 401) — que Agostinho poucas ilusões tinha para com a «República Velha». Encarou pois com simpatia a marcha militar de 1926, onde enfileiravam republicanos históricos tão autorizados como Mendes Cabeçadas. Simpatia não equivale todavia aqui a militância integralista. George Agostinho foi um refractário à política partidária, um resistente às ideologias, um crítico dos sistemas acabados de pensamento; procurou ser tudo — «sermos todos religiosos de todas as crenças do mundo», dirá ele no seu canhenho (2006: 70) — para agarrar a vida em cheio. Aos 17 anos de idade explodiu em personalidades distintas, criando, sem qualquer influxo exterior, apenas por natural direcção do espírito que o assistia, uma ficção em torno do seu eu, com Victor Alberto, João Mendes de Castelo Diniz, Arnaldo Vaz e Roque Sampaio; um ano depois, no momento dos inéditos de Pedro de Mendonça, deu à luz o seu próprio adversário, S. F., na polémica em torno do esperanto. Não se satisfazia em ser uma personalidade, em ter uma ideia, em representar uma linha; para viver plenamente necessitava de ideias contraditórias, de linhas paralelas, de personalidades distintas. Assim ideou nas brincas e nas bulhas de Barca de Alva; assim assumiu nos escritos e nos estudos da licenciatura; assim viveu na larga e variada silva do futuro que o aguardava. Como podia ele ser um apaniguado de António Sardinha ou de Pequito, se havia tantos outros, e tão distintos, como Teixeira Rego ou Hernâni Cidade, em seu redor?!
11. PROFESSOR PROVISÓRIO DE LICEU E DOUTORAMENTO
Terminada a licenciatura em 15 de Junho de 1928, com uma dissertação sobre o poeta Catulo, que o interessava desde a adolescência, não sei se por crítica textual ou se por empatia de sentido, tão solto de Eros que era, ou se pelas duas, o que será mais acertado, estaria o meu biografado destinado pela média final obtida, um rotundo vinte, a ingressar de imediato na Faculdade de Letras do Porto, como professor assistente de latim e grego. A campanha que se levantou com a ditadura militar para o desmantelamento da escola, e que teve em 10 de Agosto de 1928, já com Oliveira Salazar no Governo de Vicente de Freitas, o derradeiro momento de confirmação, matou à nascença a possibilidade, vedando-lhe o caminho natural a que estaria destinado. Com certeza que uma das consequências desse fecho foi o adiamento do casamento com Berta David, a noivazinha tão linda da dedicatória de Outubro desse ano no texto com que se estreou na revista Seara Nova.
Ao longo da vida, Agostinho olhou para este período da vida sem mágoa. Não cobrou a ninguém o tropeção do destino; antes se congratulou com ele, pois em vez de o tomar como impedimento aceitou-o como um favor, que lhe permitiu rasgar horizonte mais amplo por comparação com o que lhe teria calhado como assistente da Faculdade. Assim se comportara já em momentos anteriores — malogro da escola industrial, falta de meios para ir cursar Direito em Coimbra, percalço com Hernâni em sala de aula — e assim seguiria pela vida fora, negando a existência de desastres, de desgraças, de azares, pondo em seu lugar eventos favoráveis, a ser vividos como socorros inesperados. Da ocasião perdida de ser assistente universitário, aos 22 anos, disse ele (Caderno de Lembranças, 2006:76): «O decreto, cortando-me a carreira universitária, me arrancou a biblioteca e rodas de vizinhos, me fez marinheiro doutro jeito. O drama se cumpriu.» Na entrevista à revista Filosofia deu o mesmo testemunho (Dispersos, 1988: 47): «Foi uma grande perda em geral, é claro, mas do ponto de vista pessoal poupou-me à condenação de ficar no Porto para me tornar professor universitário e passar o resto da vida fixado apenas no estudo do grego e do latim. Assim, ao extinguir a minha Faculdade, a ditadura acabou por me prestar um bom serviço, compelindo-me a uma variedade de vida e de interesses de que eu não poderia ousar supor a existência se tivesse prosseguido uma carreira universitária no Porto.» O mesmo repetiu noutros lugares (v. O Império Acabou. E agora?, 2001: 18).
Primogénito dum casal que empobrecera com a demissão forçada do ganha-pão, com uma irmã mais nova em casa a cargo da família, com a Faculdade asfixiada, desejoso de tirar a prima da casa do tio, Agostinho não tinha outro remédio senão bater a outra porta. Com um canudo que o autorizava a ensinar português, latim e grego, não podia o meu rústico seguir outro trilho senão o de se meter a mestre de liceu, já que o não podia ser de faculdade. Ele, que tão bem se acomodara às manas Falcão, e depois às salinhas do Riley Institute, não via nas aulas trabalho escravo mas benefício grato. Uma sala de aula não tinha de ser um cárcere, ao modo do que lhe causticara a pele na escola da Cordoaria; antes podia ser um lugar aprazível e descontraído, onde o ser, em contacto com a instrução e o saber, desenvolvia, sem esforços e cansaços inúteis, em natural harmonia com o meio, o apetite de crescer e o gosto de viver. Nesse sentido não se conhecia profissão mais necessária, humana e gratificante do que a do professor. Era um sacerdócio de almas, não uma carreira social.
Pensou pois no caso com natural agrado, leu e ganhou ideias, mesmo que os escritos que deu à luz entre 1922 e o momento da licenciatura não dêem disso testemunho — ele que tanta tinta faria depois correr sobre pedagogos e pedagogias. O certo é que quando começou as aulas no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, no ano lectivo de 1928-1929, como professor provisório do primeiro grupo, latim e português, já trazia dentro de si um mundo de reflexões e uma direcção escolhida — como de resto se percebe no texto que publicou na abertura lectiva desse ano, em Outubro de 1928, na Seara Nova, «Carta aos Velhos Latinistas», que pode ser tido como a sua primeira observação pedagógica. O que nele se colhe é a necessidade de desempoeirar de maçadas desnecessárias o ensino duma disciplina difícil, que afasta os que pensam que só paga a pena ensinar e aprender as utilidades imediatas que ajudam a resolver as questões da vida prática. O que ele visa com a proposta, que tem antecedente nos exercícios lúdicos que faz com as etimologias na revista A Águia, é contribuir para que a sala de aula seja lugar confortável, nunca um campo de batalha ou de trabalhos forçados.
Não me custa imaginar o que terá sido esse seu primeiro ano como professor de liceu, no centro do Porto. Com uma cara de menino, dois palmos de altura, rosto desbarbado, olhos vivos, orelhas largas, o trato na aula era leve, até familiar, se não mesmo doce; nada de catadura severa e pose castrense; nada de máscara de lobo, pronto a saltar sobre os anhos assustados. Modesto no traje, mas elegante de corpo, não impunha também, nem aos ricos nem aos pobres, qualquer distância pela aparência. Desengane-se porém quem ajuíze que aqui deixo um professor baldas. Empenhado, esforçado, entusiasta, contagiante, George Agostinho era o tipo de crente, que pensava estar ali para aperfeiçoar o barro humano e se sentia grato e recompensado só pela missão que lhe haviam confiado. Investido em tão nobre cargo, não conhecia horários e era capaz de dispor de dias inteiros, uns a seguir aos outros, sem conhecer descanso, numa abnegação sem limite, para obter resultados. E quando lhe perguntavam «Ouve lá, George, os cobres que ganhas, pagam assim tanto suor?», ele abria um sorriso e respondia: «Mesmo que não pusessem os cobres no Montepio, ainda me dava por bem pago só com a alegria dos meninos; se esta não houver, os cobres não passam dum empréstimo.»
Não se pense que falo aqui dum professor sem autoridade, em estado de graça, que fugia desorientado na primeira insubordinação que lhe rebentava na sala de aula. Nada disso. Falo dum rapaz de pulso, que se criou com o Pereira na caça do lagarto nas arribas de Barca de Alva ou na pedrada vadia nas ruas do Porto, no seu tempo de cabulão. O professor entusiasta, idealista, erudito e culto, que ideara os inéditos de Pedro de Mendonça e escrevera sobre a sátira romana na revista A Águia, era também, por detrás do semblante doce e infantil, um estóico austero, capaz de sofrer sem um ai as penas mais duras. E aqui se recorde a contumácia dele diante dos castigos morais e físicos do pai e da mãe no tempo em que raposava na escola industrial. Com tal homem, não havia motim em sala de aula que o pusesse em pânico. A propósito, o meu palúrdio conta um caso. O Alexandre Herculano recebia boa parte dos cábulas do Porto. Quando para lá entrou, o recém-licenciado da Faculdade de Letras tinha 22 anos; era um betinho de rosto imberbe, que dividia o cabelo com risco ao meio. Logo correu que o menino da mamã vinha ensinar latim e literatura aos relapsos do liceu; foi a galhofa pegada entre os gandulos. Prometeram estendê-lo às primeiras aulas; antes do Natal debandava que nem avezinha ferida pelo frio. Pois o meu George aguentou-os, torceu-os que nem cera mole e teve manhãs e tardes de nababo até ao fim do ano. Relata ele assim o ponto (Vida Conversável, parte inédita, 29): «Deram-me para ensinar, eu era ainda muito jovem, uma classe de moços do quinto ano, em plena adolescência, repetentes, sujeitos que nunca tinham estudado, sabe, a coisa mais tremenda que eu vi na vida. O discurso que lhes fiz foi simples. Enquanto o empregado fazia a chamada, eles, em completa desordem faziam o que queriam, ah, com aquele rapaz novo como professor. Quando a barafunda acabou fiz uma coisa muito simples. Olhei para o número um até ele ficar sério, depois para o número dois, e fui até ao trinta e um da classe, passando um a um. Quando acabei, o silêncio era absoluto na aula, Não imagina. — Os meus amigos é que vão escolher o processo da ordem que aqui vai vigorar — disse-lhes eu. — Dou-vos dois à escolha: o da cavalaria da Guarda Republicana, que eu sei aplicar como ninguém, ou aquele em que as pessoas se dão bem umas com as outras, que conversam alegremente, enfim, o das pessoas civilizadas. Não precisam de me dizer qual o eleito, pois, na próxima aula basta-me olhar para vocês para saber qual o que escolheram. Ora foi uma vida deliciosa até ao fim do ano.» Noutro texto, o folheto Compostela — Carta sem Prazo a Seus Amigos (1971; Dispersos, 1988: 512), Agostinho refere o seguinte sobre a experiência pela qual passou: «Houve tempos, maus, de Alexandre Herculano, o liceu em que também ensinavam Régio e Carlos Ramos, e em que a poesia de ambos, um mais nos livros talvez, outro na vida mais, era excelente pólo oposto às severidades disciplinares do Reitor José Fontinha […].»
Deste modo passaram as sazões desse ano, com o novel professor a agradecer a vida voluptuosa que lhe dava a matulagem do Alexandre Herculano. Se pouco isto é, ainda punha como milagre os patacos que lhe caíam na conta do banco. Só este homem era capaz de salto tão ágil! E aqui eu dou a orelha a torção: ainda que Agostinho não tivesse cortado uma letra, ainda que não fosse o purista, o criador extraordinário de língua que é, merecia uma biografia que deixasse memória do seu exemplo para os vindouros. Casos destes são tão colossais e invulgares que bem merecem um escriba que os passe a limpo.
Com o aproximar do fim do ano, vieram as hesitações do futuro. Ou continuava nas «delícias» do Alexandre Herculano ou rumava a Lisboa para fazer as cadeiras pedagógicas na Escola Normal Superior e arrumar o estágio. Só depois podia chegar a professor efectivo de liceu. Uma coisa tinha ele como certa: aquela coisa de aturar meninos era com ele. Não só aguentava as feras que os veteranos não queriam como as deixava a balir, mansas e cordatas. Seria pois professor de liceu e dedicaria a vida a modelar o barro humano; sentia-se aos 23 anos um Fídias da alma, feliz com o que a vida tinha para lhe dar. Adorava falar e a vida, parece que preocupada em satisfazer os seus desejos, punha-lhe todos os dias um auditório à disposição só para o ouvir. Como se não bastasse, ainda lhe pagavam. Decidiu pois trocar o Porto por Lisboa. Ficar a gozar as «delícias» do Alexandre Herculano, adiando a ida para Lisboa, não era modo para um feitio determinado e seguro como o dele. Coimbra é que não, devido às invectivas de Homem Cristo e às pressões do Carmona. Uma universidade governada por tradições que teimavam em cavar fosso entre professor e aluno, uma escola que não hesitava em esmagar o que fugia ao seu espírito conservador, parecia-lhe o cárcere horrível da escola industrial do Porto alargado a uma vasta e crucial instituição do País, um perigo real e grave que urgia combater. Coimbra nem vê-la, quando por ela passasse no comboio a caminho de Lisboa.
Entre a experiência lectiva no Alexandre Herculano e o curso na Escola Normal Superior de Lisboa houve ainda o caso do doutoramento em Julho de 1929, que Agostinho referiu sempre — leia-se A Última Conversa (2001: 58-9) ou a entrevista à revista Filosofia (Dispersos, 1988: 49) — em termos de história carnavalesca, sem paralelo nos anais da universidade portuguesa. A ideia de se doutorar nasceu de conversa acidental com António Salgado Júnior, no final da Primavera de 1929 ou no princípio do Verão, numa altura em que ele havia já decidido trocar o Porto por Lisboa, para cursar a Escola Normal Superior. Diz ele que «tive de fazer em quinze dias» (id., 1988: 49) a tese de doutoramento. Segundo Amon Pinho (A. da S. — Pensador do Mundo a Haver, 2007: 393) a dissertação foi apresentada em finais de Julho nas instalações da Faculdade de Letras do Porto — já na Rua do Breyner e não na Quinta Amarela — e defendida com sucesso. Assim sendo o encontro entre Salgado Júnior e Agostinho da Silva tudo leva a crer que tenha acontecido no princípio de Julho (ou no final de Junho) de 1929. Em A Última Conversa, Agostinho precisou o local do encontro, o Rossio de Lisboa. É possível pensar que com o ano lectivo fechado, com a decisão tomada de se mudar para Lisboa, Agostinho tenha ido à capital apalpar terreno, farejar instalação e projectar a mudança. Encontrou então por acaso, no Rossio, o velho e querido amigo do Porto.
Que se passou nessa conversa havida na pombalina praça? Salgado Júnior, que não desistia de sonhar mesmo depois do fecho da escola de Leonardo com um lugar universitário, decidira candidatar-se a doutoramento na Faculdade de Letras do Porto. A instituição fora encerrada em Abril do ano anterior por decreto, reiterado em Agosto, mas fora-lhe dado um curto prazo de sobrevivência, para que pudesse concluir no seu seio as licenciaturas dos alunos matriculados em 1927-1928. Nesse espaço, que durou até Julho de 1931, altura em que a Faculdade foi varrida de vez, abriu-se um período para inscrições e conclusões de doutoramentos. Ora foi esse tempo que Salgado Júnior decidiu aproveitar, pondo o amigo a par da sua decisão e desafiando-o a seguir o exemplo. O rústico de Barca de Alva, que decidia de supetão, num relâmpago, sem receios nem cautelas, às vezes por simples localização da letra no alfabeto, aceitou sem mais a ideia e quando regressou ao Porto foi à escola candidatar-se ao grau de doutor em Filologia Clássica. Improvisara já título e tema, decididos decerto nas longas e sonolentas horas em que no comboio de regresso ao Porto ruminara a sós no caso.
Em A Última Conversa, Agostinho pôs em discurso directo a conversa que teve no Rossio com Salgado Júnior. O momento em que se decide pelo doutoramento é dramatizado do seguinte modo (2001: 59): «Respondi-lhe: — A mim não me interessa muito, porque quem deu cabo da Faculdade do Porto foi a Universidade de Coimbra e a Universidade de Lisboa, de maneira que quando eu puder rebentar com elas, rebento. Carreira também não tenciono seguir, mas sou contra injustiças… De repente pensei melhor e disse para mim: “Quem sabe se um dia realmente um doutoramento até não me vai ser útil.” — E disse-lhe: — “Também vou!”» Assinale-se a virulência contra o tradicionalismo académico de Coimbra e de Lisboa. Agostinho dramatizou ainda, em discurso directo, a conversa com Salgado Júnior na entrevista que deu em 1986 à revista ICALP (Dispersos, 1988: 83).
Em 15 dias, a informação é dele (Dispersos, 1988: 49), anotou, esboçou e construiu a dissertação que apresentou e defendeu em Julho de 1929. Artur Manso dá o seguinte informe sobre a apresentação das provas (A. da Silva. Aspectos da Sua Vida, Obra e Pensamento, 2000: 28): «[…] preparou as respectivas provas em Filologia Clássica, como o título Sentido Histórico das Civilizações Clássicas, que foram apreciadas e aprovadas previamente na sessão n.º 118 de 20 de Julho de 1929, tendo merecido do professor Canuto Soares as melhores referências, e marcadas para 22 e 23 do mesmo mês. Para discutir as teses é indicado o professor Canuto Soares e, para a dissertação, Teixeira Rego e Aarão de Lacerda. O resultado final foi de aprovação com o “Maior Louvor”.» É o atleta da escala máxima, o colosso dos vintes, que aqui volta a aparecer. Ao génio cerebral, este homem juntava a aplicação regulada, a persistência, o trabalho teimoso, sem desânimos, que o punha a pé de madrugada, noite escura, com a família a chonar, para rememorar as excepções da gramática e fixar no caderno as intermináveis listas de significados. Foi assim que encasquetou o francês, o inglês, o latim, o esperanto, o grego e se meteu ao alemão e ao holandês. Foi assim que alinhou os linguados que pôs a correr em letra impressa desde os 16 anos. Com a mesma contumácia se meteu ao doutoramento. Nenhuma cláusula o sujeitava, malgrado a situação da escola, a apresentar em 15 dias a dissertação. Salgado Júnior, que se candidatou ao grau um pouco antes e se decidiu por um estudo sobre as Conferências do Casino, alinhavado desde a licenciatura, só veio a defender dissertação em finais de Março do ano seguinte, oito meses depois dele (v. Amon Pinho, Agostinho da Silva, Pensador do Mundo a Haver, 2007: 393). Os 15 dias para entregar o estudo foram pois decisão de Agostinho; ninguém o forçou à maratona.
Por que razão correu ele que nem desalmado, sem repouso nem intervalo? Correu, está bem de ver, porque tinha pernas para tal. Fechava as cadeiras a vinte e era o conhecido monstro que incendiava a prima. Mas não era um narciso da Foz e por muita fibra atlética que tivesse faltava-lhe a presunção de a exibir, menos ainda a necessidade. Outra razão pois, exterior, o forçou à corrida. É mister pensar que este homem estava a ponto de abrir um novo capítulo de vida; saía pela primeira vez de casa dos pais e em breve estaria em Lisboa a viver sozinho. Não admira que desejasse arrumar os assuntos que o prendiam à Invicta, que era já passado, de modo a iniciar sem prisões e com abertura ao futuro uma nova vida. Se a única forma de o fazer era ultimar em 15 dias o trabalho que lhe exigiam para selar o grau de doutor, o músculo que tinha, mesmo com pudor de humilde, servia para isso. Não obstante, nunca se ufanou do feito; ao invés, ao longo da vida, insistiu sempre em desvalorizar o estudo, reiterando o que nele havia de circunstancial. Depressa lhe voltou costas, nunca se dando sequer ao esforço de o reler. Na entrevista à revista Filosofia disse (Dispersos, 1988: 49): «É trabalho que não voltei a ler, suspeito que não valha nada, mas que serviu para o único efeito pretendido: ser uma tese apresentada e discutida no Porto.»
Sobre a eleição do tema confessou o meu biografado que foi escolha de ocasião motivada pela leitura de Osvaldo Spengler, A Decadência do Ocidente. Assim seria, não duvido, mas cabe dizer que já no ano anterior, antes mesmo da conclusão da licenciatura, o livro, cuja edição original era de 1918, lhe era familiar o suficiente para sobre ele escrever um longo apontamento que deu à luz na revista Dyónisos (4.ª s., n.os 1-2, Porto, 1928), fundada por um dos mestres da Faculdade Letras do Porto, Aarão de Lacerda. Contrastando esse texto, «Sobre Algumas Páginas de Spengler», e o da tese, Sentido Histórico das Civilizações Clássicas, logo se percebe a relação entre os dois, podendo aceitar-se que o segundo é o desenvolvimento do primeiro. Mesmo com apontamentos de mão na gaveta, não creio que haja outro em Portugal, ou fora dele, que se possa gabar de ter obtido o grau de doutor em 15 dias. Eis mais um caso que nos dá o desmedido arcaboiço deste homem! Pela fúria com que escreveu a sua dissertação, e muito precisou dela para a fechar em tempo tão curto, mais tarde veio a dizer que se doutorou em raiva. Que entendia ele por raiva? A espécie de loucura que inspira a fluência escrita? A repulsa pelo academismo tradicionalista? A defesa da liberdade na escola de Leonardo? A luta pela justiça? Com certeza que isso e mais ainda. Raiva de escrever, raiva de lutar, raiva de viver, raiva de amar.
12. IDA PARA LISBOA E CONCURSO NAS BELAS-ARTES
Seguiu Agostinho no final do Verão de 1929 para Lisboa. Aos 23 anos arrecadara o grau de doutor, vivera com invejável sucesso a primeira experiência como professor de liceu, amealhara uns cobres para tirar a priminha de casa, regressara às páginas de Seara Nova, em Março, com um texto sobre o ensino das humanidades clássicas na universidade, vira outro texto seu, «Latim de Liceu», para a mesma revista, cortado pela censura, estava animado e desejoso de pôr a sua caneta ágil ao serviço da reforma do ensino e das mentalidades na área da filologia clássica. No geral era esse o escopo do grupo da Seara Nova que o herdara da altiva A Águia que se publicava no Porto e na qual Agostinho continuava a colaborar. Tomando à letra a conversa com A. Salgado Júnior no final de Junho ou no princípio de Julho de 1929, em que o jovem licenciado confessa que a sua meta é «rebentar com as Universidades de Coimbra e de Lisboa», o sentido desta época é combativo e bravo, espadana aos borbotões, copioso e sem medos.
Levava o meu doutor como destino o Liceu Gil Vicente, onde fora colocado como professor provisório do primeiro grupo. Faltavam-lhe os meios para chegar a Lisboa como menino de oiro, com mesada do papá, dinheiro a rodos e tempo livre, para tertuliar nos cafés, ler livros e revistas na Biblioteca Nacional, frequentar o Dona Maria ou os cinemas dos Restauradores, passear no arvoredo do Campo Grande, ocupar as manhãs com os estudos na Escola Normal Superior, visitar a redacção da Seara Nova, muito amputada pela fuga para o exílio dalguns dos seus primeiros, como Jaime Cortesão e António Sérgio, adversos à ditadura militar e implicados em intentonas militares. Pelo contrário, com o pai metido em aflições de emprego e desejoso de tirar a prima da casa do tio, George Agostinho não tinha outro remédio senão labutar para se sustentar. No caso dele porém a obrigação era de somenos, porque aquilo de ter meninos à volta não era sacrifício nenhum mas prazer. Na verdade, se preciso fosse, para ter um círculo em redor que o escutasse, o meu andante ainda ia pôr moeda na caixinha das esmolas.
Não esquecia de acrescentar às ideias que levava — fazer as cadeiras pedagógicas e estagiar — alguma condescendência para se permitir um ou outro desvio. Queria estar disponível para o imprevisto, já que era a primeira vez que saía de casa dos papás, desfazendo-se das ruas familiares do Porto. Conhecia menos mal Lisboa, até porque o pai nela se criara, aí deixando laços de amizade que não se perderam, mas era a primeira vez que desembarcava na cidade para nela fazer vida. Não sei onde se instalou, mas calculo que procurou uma pensão barata, com refeições incluídas, na zona velha da cidade, apalavrada talvez desde o Verão, altura em que decidira, à sombra do Teatro D. Maria e em conversa com o lento e loiro amigo da escola do Porto, despachar o doutoramento. O liceu, esse, ficava em Santa Clara, nas traseiras da Igreja de São Vicente, onde se arrumava o panteão da deposta casa de Bragança. O eléctrico passava defronte da igreja, vindo da freguesia da Graça e descendo para a Baixa, por Alfama e pela Sé. Nas ruas da Baixa, traçadas a régua e esquadro, na Avenida da Liberdade e nas artérias novas que iam até à Praça do Campo Pequeno, circulavam muitos automóveis, negros e brilhantes, com cláxon estridente, de mistura com bicicletas de cromados vistosos, mas nas vielas de Santa Engrácia, de Santa Clara, de São Vicente, de Alfama ou da Graça tudo era pedestre e pobre como nos tempos da escola primária de São Nicolau, com gente descalça na calçada, cães escanzelados a meter o focinho no lixo das portas, gatos ao peixe das varinas, e muares, apertados nos arreios, a puxar carroças sujas de hortaliças e frutas, com destino aos mercados da Praça da Figueira e da Ribeira, do Cais do Sodré.
A farândola estudantil era pouco melhor do que a do Alexandre Herculano. Ali vinha cair a súcia dos restantes liceus de Lisboa, alguns muito bem cotados, como o Camões ou o Pedro Nunes, e o melhor, dizia-se entre os docentes jovens, era deixar andar. Muito professor provisório vinha ali iniciar como forçado a vida das aulas, a fazer anos de serviço, para na primeira ocasião bater asa para ramada de mais remanso. Não assim o meu colosso pedagógico, que ganhara o gosto destes perigos e que nenhum problema terá tido em domar os pintas dos bairros populares de Lisboa. Não conheço dele nenhuma intenção sobre o arranque do ano lectivo, mas calculo que o discurso nos nichos do velho anexo de São Vicente, com o passadiço suspenso sobre a Feira da Ladra e os meliantes dela, se possa tirar por aquele que ele confessou ter feito nos do portuense Alexandre Herculano. Depois entrou naquela vida deliciosa, de quem já não sabe se está na Terra ou no Céu, com os gaiatos, senão atentos, ao menos prestáveis, não se importando nada de aquecerem ao som duma boa conversa.
Para ajudar havia os dias soalheiros de Lisboa, a cal branca da cidade, a safira sem fim do rio, novidades absolutas para quem chegava de duras cinzas durienses. E, suprema alegria, capaz de adoçar quaisquer torturas do exílio, havia a priminha, menina já adulta, que se metia ao comboio em São Bento e vinha para Lisboa abraçar o noivo. Era de louvar o Sol e cantar o himeneu! Quer-me parecer que vida apetitosa curtiu ele naquele primeiro Outono que passou fora de portas. Assim havia de curtir vida fora, mesmo nos momentos em que a carranca do céu parecia ser mais de rancor do que de cérulo favor. Seja como for, o meu doutor queimava as pestanas a trabalhar. Soubera, porventura no momento em que viera a Lisboa apalpar terreno no início do Verão, que abria concurso para o ensino de geografia e história na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e logo pensou concorrer ao lugar, pois em vez de calcorrear todos os dias as calçadas de Lisboa para assinar o livro de ponto no Liceu Gil Vicente, na parte oriental da cidade, bastava-lhe ir uma vez por semana ao velho edifício do Chiado, que para mais agrado batia paredes meias com a Biblioteca Nacional e por vizinho ficava da sede da redacção da revista Seara Nova, a funcionar no Largo de Camões. Para se apresentar a concurso, precisava redigir trabalho, imprimi-lo, apresentá-lo na secretaria e passar perante um júri, onde estava Agostinho Fortes, filólogo, helenista, pedagogo e professor da Faculdade de Letras de Lisboa.
Escolheu George Agostinho como tema o poeta latino Pérsio, com quem decerto se familiarizara o seu tanto nas aulas de Torrinha e de Canuto. Voltou a levantar-se de madrugada, se é que alguma vez deixou o hábito, aqueceu o bico da caneta e pôs mão ao papel. Cresceram as laudas tatuadas com a caligrafia que mais parecia registo da pulsação cardíaca do que combinação das letras do alfabeto. Em poucos dias completou o estudo e correu com ele à tipografia para o imprimir. Não havia tipógrafo, por mais idóneo e experiente, que lhe decifrasse a letra; era preciso aguardar com paciência e fazer a leitura cara a cara para o operário lhe passar o linguado ao caixotim. Foi porventura nesta época, picado pelo tempo que os meninos lhe tomavam no liceu, que ele se decidiu pelos rudimentos da dactilografia, adquirindo uma máquina de escrever portátil. Desse modo não havia tipógrafo, por mais novato, que não lhe dispensasse presença para lhe passar a letra impressa os parágrafos que escrevia. Como não era homem para procrastinar um passo, a máquina e o saber dela logo devem ter chegado. Impressa a obra, Ensaio sobre Pérsio, depositou-a na secretaria do vetusto edifício das Belas-Artes de Lisboa. Voltou à santa vidinha das aulas e dos passeios, de braço dado com a noivazinha, a descobrir Lisboa e arredores, com muitas idas à Outra Banda e ao Alfeite, onde ficava a escola da Marinha, e não pensou mais no caso. Um dia chamaram-no para se apresentar diante do júri. Ao que parece os candidatos eram três, um deles Vieira de Almeida, que viria a ser catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, e um rapaz, de que não me chegou nome, que se dedicava nos cafés a estudar todos os pormenores estatísticos e estratégicos da Grande Guerra. É a época em que o meu atleta cava trincheira decidida nas publicações em que colabora contra os métodos de ensino na Filologia e contra o espírito retrógrado e balofo das academias. Habituado às liberalidades da Faculdade de Letras do Porto, em que estudara gramática comparada com um autodidacta que pouco mais tinha do que a instrução primária, Teixeira Rego, não se conformava com os narizes de cera, as caturrices enfáticas, as moralidades falsas de Coimbra e de Lisboa. E como tinha sangue no pulmão a rebentar com fartura, não se ficava por umas leves cominações; repreendia a matar. Assim se explica a bojarda a Salgado Júnior — «quando eu puder rebentar com elas [Universidade de Coimbra e Universidade de Lisboa], rebento» (A Última Conversa, 2001: 59) — e a guerrilha severa que abriu nessa altura nas páginas de Seara Nova contra o velho padre José Joaquim Nunes, filólogo, gramático, antigo director da Faculdade de Letras de Lisboa, sócio da Academia de Ciências de Lisboa e sumidade nos estudos medievais portugueses. Ora apanhar pela frente, cara a cara, em conversa limpa, de pergunta e resposta, um Agostinho Fortes, helenista, académico e professor na Faculdade de Letras de Lisboa, era um brinco que Agostinho não desperdiçava. Foi trigo limpo! Agostinho deu de barato o concurso — estava na disposição de deixar o lugar ao rapaz que era doido pelas historietas da Guerra (A Última Conversa, 2001: 55) — e planeou uma valente macacada que arrancasse em público a máscara de impertinência e vaidade dos enfatuados do júri. Que se cozesse o lugar e o concurso! Uma boa pândega à custa de dois ou três académicos valia bem uma carreira fácil à sombra das Belas-Artes!
No dia aprazado apresentou-se o meu doutor a exame. Era aquele elegante baixote de carão lavado e grenha forte, nariz severo de águia e orelhas largas, boca torta do prognatismo e olhos cintilantes a fuzilarem certezas. A sala abarrotava, com gente em pé, que as provas eram públicas e aos actos acorria muito transeunte do Chiado, a fazer horas para o serão musical do São Carlos. A mesa do júri, diante das senhoras, impava de fedúncia. Chegou a vez do meu George se sentar no banco do examinado e para lá foi, de olhos colados ao chão, como o covilheiro à procura da presa. O semblante de prógnato, visto de frente, com as maxilas estiradas, metia respeito; era a fácies dum comodoro que não recuava diante do tufão nem que viesse nele o Diabo. Bastava olhar aquela boca para se perceber que estava ali um trasmontano de alto lá com ele; de varapau na mão, preferia dar o traque a largar a presa. Com tal carão calara pouco antes os 31 matulões do Alexandre Herculano que haviam jurado esfolá-lo vivo. O catedrático de Lisboa, quando o viu enfiado e timorato, não hesitou. Desferiu, impiedoso e cortante, os relâmpagos da prosápia. O candidato, no momento da resposta, ergueu a focinheira, afivelou o dente, calibrou o tiro e desferiu o golpe. Em vez dos gaguejos amedrontados que Fortes esperava, vinha um estrondo malcriado e irreverente, que fez a sala explodir de estupefacção. Depois, aguentou o passo, bateu, virou e voltou a virar, tratando o júri sem a menor consideração. Que bailinho! Atrás a sala explodia, incapaz de se conter; o público partia a moca de riso. Nunca tal se vira nos exames dos obsoletos casarões da Baixa lisboeta. No fim, o júri, já sem pio, só rezava a Deus que a farsola acabasse depressa e aquele Demónio desaparecesse dali. Naquela escola é que ele não punha pé. Muito embora! O Mafarrico dava de barato as Belas-Artes; as Malas-Artes é que não pensassem que ele deixava.
A fonte do relato encontra-se em A Última Conversa (2001: 54-8). É notável a capacidade de reconstituição dramática do caso, com recurso ao discurso directo. Transcrevo apenas o momento do confronto entre os dois Agostinhos (2001: 56): «[…] o Agostinho Fortes pegou então na minha tese e disse com um ar professoral: — Ora temos então aqui uma tese sobre um poeta pérsio ou latino que ninguém conhece. É curioso, sabe, mas olhe que não se percebe nada da sua pontuação, está tudo barafustado. — O senhor professor dá-me licença? — E ele disse: — Com certeza! — Já sei que é um velho costume seu: quando o senhor não sabe das coisas, pega pela pontuação. Veja lá se hoje passa a outra coisa mais concreta, porque isso não adianta nada. — Bom, como deve calcular, o efeito de uma resposta destas, para além de pôr a rir a assistência, liquidou o nosso amigo». O passo relativo ao concurso de Belas-Artes tem ainda o proveito de esclarecer a instalação de Agostinho nessa época, a da chegada a Lisboa, no ano lectivo de 1929-1930. Diz ele (id.): «[…] nessa altura vivia numa pensão, porque não tinha casa em Lisboa […]». Confessa ainda que na noite anterior ao exame lhe irrompeu pelo «quarto da pensão» um colega, não se sabe se do liceu, se da Escola de Belas-Artes, com informações sobre as questões que os examinadores tinham por hábito colocar aos candidatos. O gandulo que dera água pela barba ao pai no tempo da escola industrial do jardim da Cordoaria estava de volta. E desta vez trazia funda na mão e pedra no covilhete. E que pontaria tinha cada vez que arremessava palavra! Nunca esqueço que este Dídimo português festejava aniversário em Fevereiro, o mês mais maroto do ano, que como dizia o povo, quando povo havia, até a mãe enganou ao soalheiro. E de Fevereiro, ainda hoje os galegos dizem, que caso não o tivessem encurtado à força de tesoura não havia mundo que aguentasse. E não lhe chegava o mês, ainda escolheu para vir à luz o número fatídico da bruxaria. Como não havia este homem de ser o solitário anho que se atrevia a morder o lobo?
Os dois primeiros livros dados à luz por Agostinho — Sentido Histórico das Civilizações Clássicas e Ensaio sobre Pérsio — foram assim dois trabalhos de apresentação a concurso. Não os publicou com o fito de passar por escritor, mas por obrigação legal. Terão sido redigidos pela mesma época, um para obtenção do grau de doutor na Faculdade de Letras do Porto e outro para arrecadar o lugar de assistente na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, com a pagodeira que se sabe. Duas certezas balizam as publicações: o doutoramento foi apresentado em final de Julho de 1929 no Porto e o Ensaio sobre Pérsio discutiu-se em Lisboa, numa sala das Belas-Artes, em época de hospedagem do meu biografado numa pensão lisbonense. O estudo apresentado na Faculdade mostra um Agostinho interessado em contrariar as ideias feitas — Spengler defendera que os greco-romanos não tinham sentido do tempo e viviam só o presente — com determinação, intrepidez, espírito argumentativo e sentido do confronto. Mas além dos aspectos reactivos, que foram aqueles que Agostinho mais reteve, mostrando pouca simpatia pelo trabalho, que nunca quis reeditar, o estudo revela o uso dum vocabulário crítico erudito — anistoricismo, anistórico, hipóstase (Obras de A. da S., vol. VII, 2002: 61), logógrafos (2002: 64), logografia, arte hierática (2002: 70), vasos canópicos (2002: 71), estátuas criselefantinas (2002: 74), nascer helíaco e ano sotíaco (2002: 83) — e uma capacidade descritiva de opulentos recursos verbais. Cito o seguinte passo, que surpreende pela expressividade do léxico e a pureza da sintaxe (2002: 75): «Depois da fundição, no retoque a cinzel, os golpes podiam ser mais confiados, sem o temor e o perigo dos planos de clivagem que existiam em quase todos os mármores; os pormenores podiam ser tratados pelos artistas com maior segurança: e assim, ao passo que se nota nas cabeleiras das estátuas de mármore um certo empastelamento, os anéis destacam-se uns dos outros, arqueiam-se, entreabrem-se, nas cabeças de bronze.»
O Ensaio sobre Pérsio, que passa por ser a estreia em livro do meu irrequieto, é decerto um trabalho que dá continuidade a estudo anterior, escolar ou não, de que não ficou rasto, ao contrário do que sucedeu com o apontamento sobre Spengler. Além das qualidades de linguagem, com uma sintaxe complexa e intrincada, mas sempre clara, e um léxico rico, por vezes pessoal («a cadeira imperatória», 2002: 21), recursos visíveis logo nos primeiros parágrafos do opúsculo, interessa destacar o apuro e a empatia com que o autor estuda o estilo deste satírico, contemporâneo de Nero. É o estilo estóico — e Pérsio pertenceu à oposição estóica e republicana — que Agostinho define através duma comparação, que é todo um programa de vida. Diz ele (2002: 27): tal como a túnica do filósofo não precisa de enfeites, também o estilo do poeta não necessita de adornos. Valoriza-se a sobriedade, a contenção, a simplicidade austera, por contraste com o preciosismo literário, preocupado em exclusivo em apresentar palavras elegantes, versos ofuscantes, parágrafos bem construídos. Era preferível, segundo o estilo estóico, o refreio, com economia de recursos, parcimónia de resultados, e até mesmo «um certo ar de descuido», a qualquer tentação de requinte linguístico. Diga-se desde já que faz figura estranha o interesse de Agostinho da Silva por um estilo assim pobre, quase avaro. Falo dum homem que possuía um poderoso instrumento linguístico, que construía os períodos com uma opulência de palavras e um requinte de frases de meter inveja a qualquer purista forte da língua. O estilo parco não parece forma para o pé dele. Embora! Falo outrossim dum homem inquieto, incapaz de se conformar com injustiças, menos ainda com dotes mal distribuídos. Pouco lhe iam os favores que o destino lhe prodigalizara se ao parceiro do lado não havia santo que lhe valesse. Por isso o recato, o ar de desleixo voluntário, em nenhum caso se dispensa para compreender a natureza deste homem e, com ela, o estilo da sua escrita. Tinha o armamento necessário para fazer com a expressão verbal o brilharete mais estrondoso, refinando em estesia o efeito da frase, mas preferia conter os dons, diluindo a raridade e o preciosismo, em função da probidade. Preferia provocar uma impressão de desleixo na obra, nivelando-a ao comum, que requintar nela as altitudes raras das himalaicas regiões. O apagamento acabava porém por ser menos descuido do que tropo retórico, quer dizer, o descuido não era nele desleixo mas artifício deliberado e por linha artística desenvolvido.
Daí o interesse que o estilo dum poeta como Pérsio lhe desperta — um Catão serôdio que procura fazer vingar os valores antigos em tempo adverso. Daí ainda o conjunto de soltos que por então o meu pugilista publicou, antes de mais na revista Seara Nova, e que visando com inusitada contundência o academismo podre acaba porém por formar libelos contra os foguetes de linguagem. É assim que se entende um dos mais curiosos textos do período, «Da Imitação da França» (Seara Nova, 23-1-1930), em que o que interessa é menos o estrangeirismo do que a ética da eloquência. Se a regra desta é a clareza e o justo equilíbrio, o seu princípio ético é a superação do verbalismo fátuo; a diferença é entre a fatuidade das palavras balofas, mero exercício de pirotecnia, e a expressão em que há ideias e realidades. E quem diz esse texto, contemporâneo da redacção e da apresentação pública de Pérsio, diz outros da mesma época, como «Carta aos Patriotas sobre o Patriotismo» (Seara Nova, Junho, 1930) e «Zola» (O Comércio do Porto, 13-8-1931). Uma linguagem que não sirva para indagar e perceber a realidade, única forma de preparar a sua alteração, é um desperdício inútil, que só pode merecer o desinteresse dum homem empenhado em contribuir para minorar a injustiça do mundo. Eis a razão pela qual o filósofo não se interessa em dispor elegantemente o umbo da toga e o escritor, em nome da equidade, apaga por alvitre próprio o brilho capitoso do seu verbo. Em vez de fósforo e impaciência, reflexão e serenidade.
A estes dois trabalhos, acrescente-se aqueloutro que ele publicou na Imprensa da Universidade de Coimbra, a convite de Joaquim de Carvalho, A Religião Grega (1930). Joaquim de Carvalho, professor de Coimbra, era um velho parceiro de jogo da Renascença Portuguesa e o meu biografado ressalva-o como amigo. As relações entre os dois começaram porventura no dia das provas de doutoramento do jovem. Carvalho, a convite de Canuto ou de Aarão, compareceu à sessão, misturando-se na assistência. No final saudou o novo doutor, convidando-o a colaborar na editora que então dirigia, a Imprensa da Universidade de Coimbra, que o Governo não tardou a mandar fechar — Agostinho confessa (A Última Conversa, 2001: 62) que este a encerrou «porque publicou algo sobre o Islão que foi considerado subversivo». O coimbrão não era um arregimentado, menos ainda um fraldiqueiro disposto a lamber o chão para o dono lhe deixar o osso. Teve por isso um destino azarado, numa época em que quem não vergava ao chefe não provava mel. Sobre Joaquim de Carvalho diz o meu biografado (A Última Conversa, 2001: 59): «Na cerimónia [de doutoramento], entre a assistência, estava o Doutor Joaquim de Carvalho, que apesar de ser um homem da Universidade de Coimbra não se confundia com o resto da universidade, porque estava à parte; por isso conservei relações com Joaquim de Carvalho.» Também no derradeiro parágrafo de Caderno de Lembranças (2006: 75) existe informação sobre a relação de Agostinho com Carvalho e das edições que com ele fez na Imprensa da Universidade.
O livro publicado em Coimbra, sendo uma crítica à apologética cristã que velou a sadia beleza da religião grega por baixo de pesados reposteiros de preconceitos, corrobora porém aquilo que se disse do estilo austero e cáustico dos derradeiros republicanos de Roma. Mesmo numa religião natural que acreditava que o simples amor da Beleza limpava a alma de qualquer pecado, a forma não pode surgir como meta; ela é apenas o meio de atingir a Ideia, onde reside a justiça do mundo. A religião grega, sendo natural, é criadora de arte e a arte é a forma que se dirige para a Ideia, o outro nome da justiça. O papel daquele que conhece a religião do mundo grego é diminuir a distância que separa o mundo humano dessa esfera ideal que é a Ideia — ou como mais tarde dirá o ponto sem dimensão.
Uma última palavra sobre a ética da eloquência tal como o meu biografado a começa a desfiar no estudo sobre o poeta latino Pérsio. Não sobra dúvida que está nessa primeira reflexão o caroço em volta do qual se desenvolverão os vários círculos da sua actividade escrita ulterior; sem ela, é quase impossível perceber a natureza da sua acção nas duas décadas seguintes. Ainda assim, num homem multímodo como ele era, capaz ainda adolescente de baralhar a realidade, criando uma polémica em torno da língua universal em que se escolhe a si mesmo para contraditor, é difícil aceitar a unilateralidade da sua posição diante da retórica. No fundo é como se essa sua toga severa, sem graça nem elegância, não fosse mais do que uma possibilidade entre outras. Se a elege, não é porque esteja convencido de que ela seja única, mas porque lhe parece a mais adaptada à circunstância do momento. Mude ela e pode a toga ir aos cabazes.
13. A ESCOLA NORMAL SUPERIOR DE LISBOA E O CASAMENTO
O ano lectivo passado no Liceu Gil Vicente terá sido o ano em que frequentou a Escola Normal Superior para fazer as cadeiras pedagógicas que lhe permitiam passar a estágio e efectivar-se como professor de liceu. Não tenho qualquer certeza sobre o lugar onde funcionaria a Escola Normal mas ponho como possível uma dependência da antiga Faculdade de Letras de Lisboa, na Rua da Academia das Ciências, nas traseiras da Calçada do Combro, cerca do Liceu Passos Manuel, já que muitos dos responsáveis das cadeiras pedagógicas ensinavam também nessa Faculdade. Fosse como fosse, com o passivo que trazia do Porto, actualizado com aquelas frechas ervadas que ia desfechando da revista Seara Nova, muito lida em Lisboa nos meios cultos, a sua chegada às carteiras dos mestres da Faculdade de Letras não pode ter sido nem fácil nem agradável. Os mestres, quando perceberam que se tratava do fundibulário que abrira fogo nas páginas da Seara contra o padre Nunes, um respeitado ancião que era o pé-direito da Faculdade, olharam-no de revés, com acre desconfiança, senão reprovação, a medir o palmo daquele carão menineiro mas empertigado.
Foi pois George Agostinho recebido com amuo certo da parte dos lentes, se não mesmo com algum descoco mais atrevido e malcriado. Não sendo bicho para se pôr de cócoras, o meu rapaz era no entanto ingénuo e desenfastiado; desde que não o descalçassem, dava com gosto travo às conversas em que se metia. Engrossara o cangote a falar e raro era o interlocutor que não aquecia o coração ao calor daquela língua. Um bater de palavras com ele valia uma festa, uma tarde sem fim de boa e franca disposição. Bem podia ele, por humilde e generoso escrúpulo para com o semelhante, sair em defesa da modéstia de expressão, defendendo em país de palavroso génio a imitação da França, que no uso do dia-a-dia não havia palavra mais engenhosa e jubilosa do que a dele. Era regalo que a vida lhe dera e que ele logo temperara no verbo castiço de gente sem letras como a mãe do Pereira de Barca de Alva, essa Maria Labroste que vigiava comboios e estrelas, ou de gente letrada, como Vieira e Bernardes, em cuja selecta velha a sua língua amealhou os primeiros dobrões. Dessa guisa, mais perrexil que linguarudo, lá se aguentou nas salas de aula dos martelões da Escola Normal Superior, enganando a má impressão com que lá entrou.
Assim como assim, o lugar era vespeiro nada meigo — no modo inimitável que era seu, ele dirá «que nunca tantos se juntaram para saberem tão pouco de coisa alguma» (Dispersos, 1988: 512) — e não se conseguiu safar sem pegar no estadulho e ir às do diabo com um manda-chuva do sítio. Foi ele Matos Romão, professor de filosofia, que, além de tomar de ponta o garotinho da perigosa Seara Nova que andava a brincar às reformas da filologia — e o chatim nenhuma simpatia nutria por seareiros e outros hortelões de canhotice reformadora —, ainda mais se inimizou com o fedelho quando o soube acabado de chegar da Faculdade de Letras do Porto, que detestava por via de desacato velho com Leonardo. E não havia pedaço de sala em que Agostinho pudesse poisar o cu sem que o zangão lho viesse picar, às risadas mesquinhas, aos zumbidos irritantes, lembrando com desaforo velhas picardias. O meu biografado, que era bravo quando lhe chegavam o vinagre às ventas, viu a qualidade do mariola, pensou no velho mestre portuense que se recusava a reprovar uma formiga que fosse, e decidiu afiar o varapau para o descarregar no toutiço do pernóstico. Se dera lição pública a Agostinho Fortes, que até nem se portava mal nas aulas da Escola Normal, com mais razão ensaboava aquele caruncho escolástico numa barrela vigorosa. E um dia, enquanto ele se entretinha com as charadas do costume, levantou-se, mandou-o calar e passou-lhe um raspanço firme, daqueles que cortam o pio ao mais presunçoso biltre doutoral. O pobre ficou que nem fósforo depois da lixa! Não havia silogismo que lhe chegasse à boca! Ardera que nem palito rendado de pinho! Nem pingo de combustível lhe ficara!
Depois disso, petrificado em carvão, o lente amansou; nem se atrevia a pôr os olhos na fera que se chamava George Agostinho Baptista da Silva. Fazia de conta que o tigre não estava na aula, ou na jaula, porque já sabia que em lhe chegando com o olhar ouvia rosnadela certa. Assim andaram o ano lectivo — as pedagógicas cumpriam-se num ano — e assim se separaram. Quando chegou o momento de fechar as pautas, reuniram-se os magísteres para avaliarem os alunos. Romão, que levava guardada no bolso a coima, com juros de mora, trazia cara de caso. Havia de cortar as pernas à fera que o humilhara na sala de aula. Aquele gaiatola, que andava a brincar às reformas e tinha alma de bandido, ficaria impedido de dar passo; se quisesse progredir na vida havia de fossar nas semeaduras da Seara, que andava por aquele tempo sequinha como um pedregal. O Zorro sem mascarilha que amargasse e partisse os dentes a trincar pedra! Era o destino fatal de quem se metia com um Escoto como ele! Ah! Ah!
Foi coisa de vulto aquela reunião. Por um lado a massa dos mestres a elogiarem o trabalho, a responsabilidade, o empenho, o sentido inovador do aluno, mesmo que lhe varejassem as orelhas por causa dalguma irreverência, tomada à conta de verdura, e do outro, entrincheirado na desforra, o professor de filosofia, dando negas a tudo e recusando-lhe a mão para o tirar do tremedal. Não era verdura, era má-criação, e danosa, afiançava ele! Foi preciso o senescal do curso, Faria de Vasconcelos, que se formara com ideias avançadas e reconhecera no jovem um dente excepcional, daqueles que só nascem de quartel a quartel, se não de século a século, meter-se no caso e tomar a peito a defesa do aluno. Romão ao lado de Vasconcelos era um chibinho descosido. Por fim, ao cabo de trabalhos inenarráveis, por receio ao padre bode, dispôs-se o doutor a dar ao aluno o raso dez para que ele pudesse passar ao estágio. Era mais uma epopeia de teimosia que o gaiato da escola industrial do Porto arrecadava sem qualquer aflição. Nascera em dia de azar mas não havia má sorte que entrasse com ele. Estou em crer que se alguém lhe perguntou «Oiça lá, ó George Agostinho, você não se amofina de ter nascido num dia 13, aziago e fatídico?», logo teve como resposta: « Saiba que não; fica resolvido de vez o problema da sorte e do azar.»
Encontro na entrevista do meu Silva à revista Filosofia uma sinopse do tempo passado na Escola Normal Superior, com o gelatinoso Matos Romão em primeiro plano. Mesmo sem dramatização em discurso directo, o caso fica esclarecido. Leia-se (Dispersos, 1988: 47-8): «A agravar as coisas, era professor de filosofia o Matos Romão, que, entre outros atributos, hostilizava por princípio qualquer estudante que viesse do Porto. Como logo de entrada tive lhe explicar que as suas parlengas me não interessavam absolutamente nada — eu estava ali apenas para tirar o diploma a fim de ser professor de liceu, já que fora impedido de ser professor universitário — aquele nem o dez me queria dar. E ali estava eu mais uma vez marcado por essa coisa da filosofia. Valeram-me de novo as altas classificações com outros professores que forçaram, é o termo, o Matos Romão a dar-me a nota mínima de passagem. Enfim, entre toda aquela gente só de Faria de Vasconcelos guardo uma recordação de grande estatura intelectual.» Outra fonte para o período da Escola Normal Superior está no folheto Compostela — Carta sem Prazo a Seus Amigos (1971; recolhido em Dispersos, 1988: 511-521). Ressalva aí, ao lado de Faria de Vasconcelos, Agostinho Fortes e Queirós Veloso (p. 512).
Para suavizar as asperezas da vida prática, lá estava a noiva que chegava de comboio a Lisboa e lhe aveludava as tardes de sábado e as horas de domingo. Não é mister puxar muito pelo bestunto para imaginar os dois — já que fotografias ou documentos desse tempo não dou fé deles. Iam talvez a Sintra e Cascais passear na serra, admirar a Pena e o Castelo dos Mouros, beber o azul manso das águas e do céu, ou outra coisa do género. O passeio preferido seria porventura a Outra Banda, com os lugres do Alfeite e o círculo ameado do Bugio a cintilar nas faúlhas do Sol e da areia. Outras vezes, por via da chuva ou do frio, ficavam recolhidos na pensão e limitavam os passos ao Miradouro de Santa Luzia ou às alturas do castelo, donde podiam contemplar o lençol sereno da baía com os lugres de velas recolhidas, as fragatas ancoradas ou os vapores em movimento. Em dias especiais, apanhavam talvez o eléctrico no Terreiro do Paço e iam de mão dada na plataforma até Belém, onde visitavam com delongas de arte e basófia a igreja e a torre; antes do regresso, no mesmo eléctrico, iam ao pasteleiro saborear os bolinhos de nata e canela, cuja fama chegava ao Douro. Eram dois namoradinhos da Lisboa da década de 20, ele vestido de fatinho coçado e jibóia preta e fina passada ao pescoço e ela, cabelo cortado à garçonne, que era a moda das meninas insubmergíveis, saia leve por baixo do joelho, sapatinho preto, de salto alto, cachené de pele ao pescoço e sombrinha azul na mão, uma Ofélia de pitão coleante e linha delgada.
No Verão, mesmo atendendo ao incidente com o escolar de filosofia, Agostinho estava diplomado pela Escola Normal Superior. Em consequência, no ano seguinte ingressava no Liceu Pedro Nunes, vizinho do Largo do Rato e do Jardim da Estrela, como professor estagiário, com estágio remunerado. Tinha a carreira no papo e num fósforo estava professor efectivo do liceu. Zé Maria como era, tudo lhe servia; logo, o carcanhol que recebia era dinheiro em caixa, a render. Chegara a altura de tirar a priminha de casa e de a segurar ao pé de si; já o aborreciam as despedidas no domingo ao fim do dia como se estivesse a despachar uma encomenda. Berta, por seu lado, era indefectível e só pedia aos manes que a juntassem de vez ao atleta dos vintes. Nas unhas dela até os fatinhos dele haviam de se fazer novos. No Porto, o homem da Armada, de olho na menina, mirava com benevolência a situação e deixava correr. O sobrinho conquistara uma carreira decente para ganhar a vida e com aquele puxavante que tinha na língua havia de chegar longe. Dentro de 10 anos, dava os olhos por penhor, não haveria homem culto em Portugal que não se enciumasse com o nome dele. Estava ali o maior publicista das futuras décadas.
Decidiu-se pois o casamento entre os dois, sem cerimónia religiosa e só com a presença dos familiares chegados, que poucos seriam, pois primos coirmãos já eles eram. Deram o nó a 1 de Outubro de 1930, em Lisboa, nas vésperas de Agostinho se apresentar no liceu para abrir o estágio, que nesses tempos, e saudosos vão eles para todos os que hoje têm de malhar o trigo nas escolas à torreira do final de Agosto, que isto anda que nem nos tempos do senhor D. Miguel, o ano lectivo só abria depois da festa da República. Em lua-de-mel andavam os dois, pelo menos, desde a época em que Berta vinha do Porto visitar o primo a Lisboa. E haviam passado o Verão juntos, à procura duma casarupa para enfiarem os trapos. Pelo meio, presumo, muitos passeios às praias da Outra Banda para meter os pés na água rasa da vazante e correrem abraçados por entre as redes que os pescadores alavam no areal. Não sei onde ficava o casulo que alugaram mas calculo que seria para Campo de Ourique, bairro populoso e com oferta copiosa e acessível. Demais, as ruas do bairro ficavam à mão do liceu; com o passo estugado do andarilho de Barca de Alva nem cinco minutos eram precisos.
Que casal foi este? Nesta época e por um período que durou mais dum lustro parece ser aquilo que se chama na época um casal moderno, quer dizer, um casal disposto a curtir a vida; nada de filhos, o máximo de liberdade para os dois. Em vez de arrumarem a tarecada, enraizando hábitos seguros, passaram ao de leve pela arrumação, preferindo uma impressão de provisório, que escancarasse a porta à mudança. Terão preferido a fuga e a aventura à mania dos trastes no sítio certo, que é o tique ridículo dos matrimónios. E pela mão nos filhos que tiveram — estes só nasceram alguns anos depois, no fim da década — posso eu ver, porventura com vista curta, que passou por aqui algum neomaltusianismo assumido, acção talvez do tio anarco-sindicalista do Porto, já que o anarquismo fazia nesta época junto do bloco operário a defesa do controle da natalidade.
De qualquer modo não se pode conceber esta primeira fase da vida dos dois sem pensar que o meu biografado tinha de ir todos os dias para o liceu cumprir horário junto de orientadores e alunos e que Berta tinha a cargo as compras, a cozinha, a loiça, as limpezas, as roupas, o sabão, a pia, o chão, o lixo, os remédios e mais despacho doméstico. Era trabalho para ciclope — só a roupa, na barrela do tanque de cimento, era para estafar os braços da caserna de Campo de Ourique — e não para uma menina delicada com mãos de gardénia, que gostava de ler ao serão, à luz da lâmpada eléctrica, versos e prosas. Na casa do pai, no Porto hortelão, havia com certeza gente para passar a ferro, gente para ensaboar e bater os lençóis, gente para matar o galo, gente para raspar e encerar as tábuas do chão, gente para fazer o arroz de moela, gente para tratar do borralho, gente para vazar os penicos, gente para defumar a carne, gente para preparar o banho de assento, gente para arear as candeias, gente para enrubescer os ferros de vincar a roupa do senhor oficial, gente para ir de cesta ao Bolhão, pelotões de gente a desfilar de manhã à noite, em cotim e tamancos de pau, para ajudar à lide. Que baile de caretos! Ora o ordenado do senhor estagiário havia de chegar ao menos para pagar uma virago beiroa de buço grosso, barbada até, que pusesse ordem nas roupas, nas loiças e nos cartuchos de papel pardo que vinham da mercearia com os víveres. É suposição minha, que as fontes sobre o casamento são sequinhas; sobre o enlace com Berta David nunca o meu bardino, que eu saiba, se pronunciou. Há porém resposta sua a inquérito da revista Eva (Março, 1944; texto nunca recolhido em livro) com abundante notícia sobre o que pensava do lugar da mulher. Cito: «[…] só pelo trabalho, digamos, pela entrada numa profissão, poderá a mulher garantir-se possibilidades de realização como ser humano». E ainda: «A execução do trabalho da casa e a educação dos filhos impedem a mulher de ter uma profissão, de ser livre economicamente, de se realizar como ser humano.» Percebe-se o neomaltusianismo.