IV
Regresso a Portugal e Últimos Anos
1. A VIAGEM DE REGRESSO E OS PRIMEIROS TEMPOS
AGOSTINHO DA SILVA REGRESSOU DE AVIÃO A LISBOA no mês de Agosto de 1969 (a indicação do mês, não do dia, está em Pedro Agostinho, Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 377). Vinha como turista estrangeiro, com passaporte brasileiro, sem embolsar renda fixa. Era professor titular da Universidade de Santa Catarina, tinha por lá lugar cativo, mas para tão incerta ausência tivera de pedir licença sem vencimento, pois não tinha idade nem tempo de serviço para se aposentar. A aposentação só chegaria, como chegou, em 1976, no ano dos setenta, na qualidade de professor titular de Santa Catarina (v. Pedro Agostinho, Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 247). Na viagem tinha apenas uma certeza — não ser preso — e mesmo essa vaga, pois a polícia política escapava à vontade dos políticos e actuava a bel-prazer. Um dos que o foi esperar ao aeroporto da Portela, em Lisboa, foi António Telmo, que fora seu dilecto parceiro em digressões vadias pela mata de Brasília e por povoados limítrofes e regressara a Portugal um ano antes, para logo partir, a mando de Agostinho, para Granada. Retornara a Portugal, para se instalar em Sesimbra, onde acabava de tomar posse, a 1 de Junho de 1969, como director da recém-criada biblioteca municipal. Por testemunho de Maria Antónia Braia Vitorino sei que Berta David, a mãe de Pedro Agostinho e Maria Gabriela, também foi ao aeroporto — e com ela por certo iria a irmã Aida, tão da amizade de Agostinho. Neste lote que foi esperar o meu berbere será possível ainda meter, mas sem possibilidade de prova, a filha Gabriela, que casara pouco antes do irmão Pedro e estaria então a viver em Portugal — Pedro Agostinho diz que ela trocou Portugal pelo Brasil só nos finais de 1969 (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 378) —, e a filha Carlota Cortesão, talvez a viver na época com a avó em Lisboa. Atendendo ao que acontecera na visita de 1962, em que Agostinho fora filado no aeroporto, Maria Antónia testemunhou-me que Berta estava com a fezada que o caso se repetia desta vez, chegando a pedir a António Telmo que vigiasse as portas.
Uma coisa é segura, Agostinho vinha limpo de propósitos. A vinda era de passagem, sem compromissos, sem agendas, sem tarefas a cumprir, senão deixar correr a vida e palpar o terreno. Por isso em carta anterior a António Telmo (23 de Junho), quando ainda hesitava no destino a tomar, ele diz que vem a Lisboa e não para Lisboa. Dou-lhe a palavra (Nova Águia, n.º 13, 2014, p. 105): «Várias vezes tenho pensado em ir passar uns tempos a Lisboa e talvez isso se realize breve, embora me pareça que não será fixação pelas Europas; e, já agora, não creio em minha fixação em parte alguma, a não ser lá para bem tarde. Parece que sim, que vou aí a Lisboa dentro de uns tempos, não sei se curtos, se longos.» Chegou pois a Lisboa, com barba crespa e quase branca, queixo destemido de prógnato, sem saber se vinha para delongas ou para brevidades. A vida o guiaria; nada de gusanos na cuca. O que lhe importava de momento era mesmo deitar para trás das costas a dupla mesquinha da reitoria de Brasília e fazer uma cura de ares. Quem o visse na Portela nesse dia gordo e quente de Agosto, diria que ele vinha de mãos a abanar, com o mesmo terno coçado com que tinha partido um quarto de século antes. A mais, só vinha a peruca branca. Brasileiro de mão furada! Nada lhe ficara! Logo trocaria a fatiota por umas camisetas de terilene, baratuchas e fáceis, compradas a retalho nos armazéns da Baixa, que nunca mais tirou. Ao que dou nota, libertou de vez o pescoço da forca em forma de gravata velha.
Outra coisa certa é que ele chegou obrigado a severidades que qualquer outro desconhecia. Caso a primeira estadia corresse de feição e este cidadão baptizado George Agostinho quisesse permanecer mais do que três meses em Portugal, estava obrigado a sair do País e a reentrar de novo — como de resto lhe acontecera no ano de 1967, em que fora laurear para Paris com Lydia Hortélio. As saídas, desta vez compassadas, regulares, umas atrás das outras, em fieira, já que o País lhe interessou e ele se lhe afez, tiveram, ao que sei, por destino o vizinho do lado, em especial a Galiza, que lhe ficava à mão e muito lhe podia interessar por ter convivido em Buenos Aires com um galego tão sonhador como Castelao. Demais, quem como ele tanto se interessava pelo espírito franciscano medieval, não podia deixar de ter na Galiza um íman de atracção. Na correspondência com José Flórido (Cartas a José Flórido, 1997) relativa ao início da década de 70, encontro abundantes alusões às idas ao país natal de Rosalia. Por exemplo na carta de 5 de Setembro de 1972 a morada do remetente é um hostal do centro de Compostela. Um ano depois, em 25 de Agosto, desculpa-se «com todas estas e vindas galegas». De 1971 data por sua vez o folheto Compostela — Carta sem Prazo a Seus Amigos, dado a lume pelo autor em Lisboa mas por certo escrito em Compostela. Aí chega a afirmar que a cidade galega lhe calharia bem por berço, se não fosse o Douro — o que mostra bem quanto Agostinho conviveu e acarinhou o velho burgo galego num período de quatro anos, que vai do final de 1969 ao final de 1973. Dou-lhe a palavra (Dispersos, 1988: 520): «direcção que esteve para ser mesmo a de Santiago de Compostela, cidade que me teria sido boa para nascer, com meus amigos galegos, se o não tivesse feito no Douro e se não houvesse dentro em mim alguma concorrência de Alto Alentejo e Trás-os-Montes». Dois anos depois, em 1973, cria a «Carta chamada Santiago», com uma quadra popular galega por mote, «Santiago de Galicia / espello de Portugal, / axudanos a vencer / esta batalla real», cuja primeira, com data de 25 de Julho de 1973, será enviada de Compostela. Com os Cravos do 25 de Abril de 1974 a necessidade de ir carimbar o passaporte à fronteira caducou e estas saídas pendulares e obrigatórias passaram à história. Mas o interesse pela Galiza ficou, ao menos na memória.
Se este homem não fosse a excepção que foi, sempre ágil em pôr a favor o suão mais fétido, estas saídas obrigatórias do País, em tão curto espaço, teriam sido um massacre. Assim, com o espírito prático de quem vai à caça com gato quando lhe falta perdigueiro, essas saídas foram apenas pretexto para ele se lançar à descoberta de mais novidade. E que novidade! Nada menos do que a verde Galiza, mãe do Minho e do que para baixo fica, que lhe nutriu muito sonho nessa época e lhe deu a comer, o que é mais, muita e saborosa broa de milho migada no caldo de couve. Na entrevista a Tereza Sá Nogueira em 1975 adianta a informação que chegou a pedir apoio recente e oficial ao Brasil, através da Universidade do Mato Grosso (onde estava Carlos Moura, o arquitecto que andara ligado ao CBEP e em casa de quem ficara João Ferreira à chegada, em Janeiro de 1968), para estadia mais demorada, se não permanente, em Compostela. Sei por Aldegice Machado da Rosa que nesta época andava entusiasmado com Prisciliano, amor recente mas veemente. Não veio apoio, o que em nada o incomodou, ou não fosse ele o plantígrado que não sofria desânimos. Cito (Dispersos, 1988: 25): «Mas realmente acontece que de vez em quando há Santiago; lá estaria mais, se a Universidade de Mato Grosso tivesse podido apoiar uma proposta minha; não o fez, porém, e estou mais livre. Todas as negativas me têm dado muito ânimo e vida.»
Não ponho também de lado que neste lustro que vai da chegada à Revolução tivesse havido algum voo para os lados do Brasil, para visitar os amigos de Salvador, que continuavam a teimar nos projectos que vinham dos tempos de Brasília, ou dar um pulo ao Rio ou a Santa Catarina, por onde ainda andariam os restos da família Silva Cortesão. Algum voo, disse eu, não muito, que, neste caso, as viagens eram caras e ele chegara à Portela sem tusto. Pedro Agostinho e Rosa Virgínia, depois dum ano a bolsa em Portugal, desembolsada pelo Instituto de Alta Cultura, estavam de novo no Brasil encoronelado e constituíam outro motivo de monta para Agostinho voar ao outro lado do Atlântico. Rosa deixa este testemunho (In Memoriam de A. da S., 2006: 409): «Em 1981, o Professor Agostinho veio a Salvador. Ficou hospedado em nosso apartamento da Avenida Sete de Setembro. Acordava cedo, ia ler no gabinete e ficava enternecido com a delicadeza de Lianor, então com quatro anos, que também acordava cedo e, cuidadosamente, segundo o Avô, fechava a porta do gabinete para o Avô não ser incomodado.» Ora não tenho razão para julgar que o que aconteceu depois dos Cravos não possa também ter sucedido antes. Nos folhetos publicados após o regresso a Portugal, há muito Brasil e dois deles, Bahia (1970; 1971), se bem que firmados com recurso à pseudonímia, são dedicados em exclusivo, ou quase, à trama brasileira. O primeiro, com bitate extenso de António Augusto Botelho Mourão, dá informações sobre o Museu do Atlântico Sul, a entrar então no derradeiro impasse; o segundo, pela mão de Conceição da Rocha, é crivo de malha fina sobre os centros de investigação criados por Agostinho nas universidades brasileiras, isto numa altura em que o CBEP ainda respirava em Brasília — só seria extinto com a expulsão de Conceição Silva da UnB em 1972 — e o meu mestre-sola continuava a acreditar ser possível substituir o extinto Centro de Estudos Clássicos pelo Centro Brasileiro de Estudos Clássicos. Também o Centro Brasileiro de Estudos Indígenas, um dos derradeiros entusiasmos do seu círculo em Brasília, não é esquecido.
Tenho também por certo que o omnia mea, mecum porto, esse chegar a Lisboa em Agosto de 1969 com o mesmo fatinho coçado com que partira em 1944, de mãos a abanar, teve como consequência muito estender de mão, não para pedir esmola mas para entregar ideias de trabalho. Este homem nasceu numa família pobre, que pouco ou nada tinha de seu; a mãe era doméstica, vivia para o serviço de casa, e o pai um simples funcionário, que acabou demitido com poucos anos de serviço. À morte dos pais nada lhe coube, a não ser a tristeza de os ter perdido e a esperança de viver como quem passa a perna à morte. De seu, só tinha o génio de escritor e a generosidade de se dar aos outros. Não lhe interessou fazer carreira ou aquecer lugar; menos ainda o atraiu ganhar dinheiro, que lhe parecia coisa detestável, se não criminosa. Para não desperdiçar a liberdade, porventura o único sacrifício que nunca faria às boas, teve pois, nos apertos vários em que andou, de estender a mão para não sucumbir de fome. Assim fez com Rau e depois com Vinhas. Assim teve de fazer no regresso a Lisboa, em 1969. Na entrevista a Tereza Sá Nogueira, em momento em que ainda não lhe cabia pensão de reforma, dirá no seu modo de velho soldado da Índia (Dispersos, 1988: 24): «Se quisesse ser dramático, diria que vivo do que me dão; como o não quero, direi que me dão do que viva.»
Quem dava, pergunto eu? Os dois grandes mecenas da sua vida — Rau e Vinhas — ainda estavam vivos e podem por isso ter sido socorro de Agostinho, sobretudo o último, seu aluno no Colégio Infante de Sagres, com quem estreitara relações na década de 60 (fora ele, Vinhas, que dera o dinheiro da viagem de João Ferreira para Brasília, em Janeiro de 1968) e que tinha rijo vento favorável nos negócios. Ao que dou nota, Agostinho só recorreu aos mecenas com projectos de trabalho na mão — como os cadernos culturais nos tempos da Palhavã ou como o Museu do Atlântico Sul e a Casa Reitor Edgard Santos no Recôncavo baiano — e nunca para sacar a seco a pasta. As viagens à Galiza, com as estadias, seguidas por etapas de estudo, justificando o endereço epistolar de Agostinho em Compostela, como se vê na carta para José Flórido, podem pois ter tido provisão de Vinhas, já que é impensável que o meu celtibero tivesse no bolso milho bastante para encher bucho a tanto pombo. Ficar instalado no centro de Compostela, com cama, comida e roupa lavada, limpeza a cargo de governanta de rabicho e tamanco de pau, não era cartucho para a carteira dele. Nem para viagens em segunda classe ele tinha papel, quanto mais para hostal em cidade de turismo.
Dou por certo que o meu biografado, em sazão de Primavera Marcelista, chegou à fala com Vinhas. No prefácio dele ao livro do industrial, Profissão Exilado (1976), passa em revista a relação que com ele teve, desde o momento que o topou no colégio de Pavão Leal, era ele um pitorro de calção e berlinde, até à sua partida precipitada para o exílio, já depois de 1974, por causa das fervuras do PREC. No meio, a fazer boa figura, estão os eventos da chegada de Agostinho à terra dos Tugas em Agosto de 1969. Passo-lhe a palavra (1976: 15-16): «Quando me pareceu a mim próprio que tinha acabado, e já como brasileiro, a minha tarefa, voltei a Portugal, ou vim estar algum tempo a Portugal, seguro de que assistiria a transformações sociais e políticas em que tudo ia ser difícil, em que muita experiência daria errado, em que haveria muita confusão, mas que viriam a abrir para o País perspectivas de acção muito mais importantes para o mundo e muito mais plena como expressão do Povo do que foi a tarefa dos Descobrimentos ou a, para mim mais significativa, de construir o Brasil. / Reencontrei naturalmente o velho Amigo, na sede dos seus impressionantes domínios, onde era pontual, discreto, cortês com um porteiro tanto como com um ministro, mas acho que um pouco mais familiar com o porteiro do que com o ministro, onde o poder se sentia pouco e a humanidade muito e onde não havia pelas paredes gráficos de produção mas quadros de pintura moderna. Ou em sua casa do Estoril, nos intermináveis serões em que reunia gente de todos os matizes, matizes que principiavam nos da família […].» Esteve pois Agostinho com Vinhas na sede da empresa dele, que devia ser cidadela real, e na casa de família do Estoril, para conversas demoradas em torno de projectos e de ideias, e de lá alguma coisa terá trazido, pois o homem além de topar de ginjeira o talento raro daquele Agostinho, que andara metido em meio mundo e só à sua conta publicara uma das mais curiosas bibliotecas que já nesta terra à beira-mar acordada se vira, era ousado e desembaraçado. Demais, o que não era de somenos, ao capitalista da Cuca só lhe sobrava cabedal, e sempre a perder de vista, quando abria a mão a quem pedia.
Aos mecenas individuais, é preciso acrescentar os de ofício, como o Instituto de Alta Cultura, responsável pela bolsa de Pedro Agostinho e de Rosa Virgínia, e a Fundação Calouste Gulbenkian, que dera já em Brasília, ao que lembro de ouvir, mas não posso por ora provar, uma ajuda ao trabalho de Agostinho, porventura naquela biblioteca de 40 mil volumes que chegou a ser a menina fina das Humanidades da Universidade de Brasília. Sobre as relações de Agostinho com a Gulbenkian, nesta primeira fase do regresso português, encontro apoio no texto introdutório de Botelho Mourão ao primeiro folheto de Bahia (1970). Copio (Dispersos, 1988: 453): «Quanto a Agostinho, claro está, nunca se sabe onde pára, e até já uma vez lhe disseram na Fundação Gulbenkian, onde sei que são muito amigos dele, que isso o prejudicava, mas o povo é que ainda tem razão, quem torto nasce tarde ou nunca se endireita.» Eis Botelho Mourão a falar em 1970 da Fundação Gulbenkian — como já antes, em 1965, falara do senhor doutor Prado Coelho, aliás também ele, por via da revista Colóquio, pessoa grada da Fundação. Por Botelho Mourão se sabe que bateu Agostinho à rica porta desta, lá ouvindo um raspanete de viés sobre as vadiagens em que andava, nunca aparecendo nos lugares selectos, nas exposições, nos lançamentos e nas reuniões onde a Fundação gostava de mostrar os macaquinhos da nata mental de Lisboa. Agostinho era finório quanto baste para em ocasiões destas calar, até porque num recanto qualquer do seu íntimo obrigava-se a dar razão aos admoestadores. Depois, com aquela figura de meia dose, pegava no porrete e como quem não quer a coisa desancava sem desmanchar a compostura, sem perder humildade e até, o que é milagre dele, sem deixar de dar razão ao adversário. Bastava ir desencantar à Academia um Botocudo Sénior ou a Timor um Botelho Mourão para desfazer num ápice um Alfredo Pimenta ou um Prado Coelho e retribuir sem mais o acinte em que o haviam pisado na Fundação.
Quer isto dizer que o meu biografado saiu de mãos a abanar da casa do magnata arménio dos petróleos da Pérsia? Não me cheira. Até Mário Cesariny, o terrível, teve a sua conta, em 1963 ou 1964, para ir comer bifes a Londres e a Paris, quanto mais o Agostinho seareiro, de tanta labuta, que estava ligado por admiração velha a alguns funcionários superiores da casa. Abriram-se pois os cordões à bolsa para o velho soldado do Brasil, mesmo com alguma disfarçada reprimenda pelo meio, de que ficou eco no badalo discreto de Botelho Mourão. Mas com raspança ou não, o dinheiro deve ter pingado. Também na falsa ingenuidade do tenente-coronel se adianta que Agostinho tinha bons amigos na Fundação. Bons amigos! Longa foi de resto a amizade, pois ainda em 1982 metia este novo Diogo Couto pedido de apoio à Fundação para logo o meter ao bolso. Dou a palavra a José Blanco, administrador da Fundação (Agostinho, 2000: 208): «Em 1982, por iniciativa da Dr.ª Maria de Lourdes Roque de Aguiar Ribeiro, então leitora de Português na Universidade de Dacar, o professor Agostinho da Silva aceitou ir até ao Senegal ministrar um curso sobre o tema “Fernando Pessoa — Mensagem, História, Ideologia e Projecto”. Para financiar o projecto, foi pedido o apoio da Fundação Gulbenkian, que não teve qualquer hesitação em conceder a Agostinho um subsídio único e global de US$ 3000,00 (270 contos da época) para cobertura dos encargos de estada na capital do Senegal, que se estimava no máximo de dois meses.» De novo aqui digo: se isto aconteceu assim depois de Abril, e numa época em que o meu homem já embolsava a pensãozinha regular de reforma de Santa Catarina, com mais forte razão sucedeu antes, em época que ele, à rasca, sem vencimento, sem reforma, sem nada de seu, senão uma porção de filhos repartidos ao deus-dará pelo mundo, tinha de fazer o frete das idas à fronteira para postar o passaporte.
Sobre a relação do meu Silva com a herança de Calouste Sarkis Gulbenkian encontro ainda em Edson Nery da Fonseca passo ilustrativo. Este Edson tem sido uma preciosa fonte para a vida de Agostinho desde João Pessoa. Aí o conheceu ao lado de Judith, industrioso e diligente, a preparar expedições escutistas ao sertão da seca. Reencontrou-o em Salvador, no momento da separação da mulher e do quarto colóquio. Voltou a cruzar-se com ele em Brasília nos tempos revoltosos da Trapa. É ele o mais directo e importante testemunho do Agostinho nipónico, de quimono, ao lado de dama japonesa — uma das preciosidades desta biografia. Também agora, no momento do regresso à Tugalândia, Edson fornece informação de valor sobre o mecenato da Gulbenkian. Passo-lhe a palavra (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 169): «Com a abertura política do governo de Marcelo Caetano, Agostinho da Silva voltou a Portugal. Estabeleceu-se em Lisboa, onde seu interesse pela confraternização de povos lusófonos obteve decisivo apoio tanto do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa como da benemérita Fundação Calouste Gulbenkian: era fellow permanente dessas instituições, graças à inteligência, sensibilidade e cultura de Fernando Cristóvão e José Blanco.» Conheço outra versão do texto, porventura mais explícita no ponto que aqui toca. Transcrevo (In Memoriam de A. da S., 2006: 117): «O fim do salazarismo [o fim de Salazar, mas não do salazarismo], que o forçara a exilar-se no Brasil com o então seu sogro Jaime Cortesão, possibilitou a volta de Agostinho da Silva a Portugal, onde foi carinhosamente acolhido pelo Instituto de Cultura Portuguesa e pela Fundação Calouste Gulbenkian, graças à clarividência de intelectuais como Fernando de Melo Moser, Fernando Alves Cristóvão e José Blanco.»
Com tanto movimento de passaporte, tanto plano de estadia por Salvador ou por Compostela, de modo a ter crédito solúvel, não me espanto que seja impossível dar um endereço fixo a Agostinho neste período. Já em Brasília sucedia outro tanto e o seu endereço pessoal não era a Trapa, onde nem o giro postal punha pé, nem até o pavilhão do CBEP, mas um apartado postal — C.P. 1180, Rodoviária, Brasília —, que se prestou ainda a endereço de correspondência das extraordinárias Folhas de São Bento. Antes, tanto estava em Brasília como na Baía, como ainda em Goiás ou Santa Catarina; agora, tanto pulava por Lisboa como por Badajoz e Compostela, como ainda por Sesimbra e suas arribas, numa vadiagem sem compasso regular, de resto bem da medida daquele nómada marítimo que fora o seu avô algarvio e que tanto gostava de andar só ao sabor de ventos e de marés, entre a ria de Olhão e a costa de Marrocos.
O 3.º andar direito do n.º 7 da Travessa do Abarracamento de Peniche, hoje com placa evocativa, e tantas vezes apontado como a habitação que o meu biografado tomou no seu regresso do Brasil, só foi ocupado numa época tardia, nunca antes da segunda metade da década de 70. Quando Henrik Siewerski procurou o velho «professor aposentado» por este se querer meter pelos labirintos da língua polaca, o que sucedeu no Outono de 1981 (In Memoriam de A. da S., 2006: 184), foi-lhe bater já à morada do Bairro Alto, ao pé do Jardim do Príncipe Real. Também o prefácio para o livro de Manuel Vinhas, Profissão Exilado (1976), datado do Natal de 1975, é dado já do Bairro Alto, o que permite porventura pensar que em 1975 ele já estaria arrumado na morada do Príncipe Real. Rosa Virgínia, sua nora, que algum crédito merece nos paradeiros de seu sogro, deixou um testemunho sobre a primeira morada de Agostinho em Lisboa. Assim (In Memoriam de A. da S., 2006: 184): «Em 1969, nós já no Brasil, o Professor Agostinho voltou para ficar em Portugal, Lisboa. Isolado numa casa de pedra no alto do Castelo de São Jorge, pensava o mundo.» Esta «casa de pedra no alto do Castelo de São Jorge» não me é estranha. Outros me falaram nela, sem nenhum porém me precisar rua ou número. Eu próprio sonhei com ela, assim como Rosa Virgínia a pinta. Embora! A única alusão concreta que dela recolho está num envelope de carta escrita a António Telmo (8 de Janeiro de 1970): Largo de Santa Cruz do Castelo, 1-A, Lisboa 2. Eis o endereço. Procurem a casa que vale a pena. Foi a primeira morada que Agostinho teve em Lisboa depois de Brasília. Dos arrabaldes de Benfica, onde se arrumara nos tempos das explicações e dos cadernos culturais, passou-se para o coração do burgo medieval. Nessa passagem está tudo o que dentro dele mudou em 25 anos. Só por isso a casa vale a visita. Ainda hoje tem no rosto espelhada a cara de Agostinho.
A propósito desta primeira morada, pergunto-me se não se tratou de mero quarto que Agostinho alugou em casa privada de família, como tanto se via no tempo, e que lhe servia de poiso seguro nas estadias mais demoradas por Lisboa. Seja como for, a «Carta chamada Santiago», que tem seis envios, um de Compostela, com a data de 25 de Julho de 1973, e os restantes cinco de Lisboa, entre 1 de Maio de 1974 e 17 de Agosto do mesmo ano, só apresenta um único endereço lisboeta para Agostinho, o apartado dos correios 2767, o que indica que ele ainda não estaria no Bairro Alto, que passou depois a ser o seu endereço oficial, e não dava a casa de pedra do Castelo, se é que ainda lá estava, por segura para correio postal. De resto o mesmo apartado de correios era já usado na correspondência com António Telmo desde 1972.
Em Almir de Campos Brunetti leio passo que me confirma o que acabo de dizer sobre a vida do velho soldado nos primeiros tempos de regresso a Portugal. Cito (Agostinho, 2000: 45): «Em Portugal teve Agostinho muitos problemas por causa de se ter nacionalizado brasileiro. Muitos de seus conterrâneos, que não partilhavam das ideias ecuménicas que ele sempre defendeu, acusavam-no de traição. Durante muitos desses anos iniciais após o seu retorno, teve ele de ir à Espanha a cada três meses para conseguir novo visto e poder permanecer no país legalmente. Durante todo esse tempo, era sustentado pela generosidade dos amigos, e por uma magra aposentadoria da Universidade Federal de Santa Catarina, que, muitas vezes, ficava mesmo no Brasil.» A pensão de reforma só veio, já se sabe, depois de 1976, ano das 70 primaveras da lei. Até lá, népia. Andou a bater à porta dos amigos e a meter nas mãos das grossas instituições do País ideias que valiam o oiro todo deste mundo e do outro e pelas quais recebeu, quando calhou receber, uns vinténs furados que lhe permitiam saltar até à fronteira para carimbar o passaporte e pagar aqui e ali quarto onde metesse corpo em leito decente e manjedoura modesta mas limpa onde arrumasse dente.
2. MARIA VIOLANTE VIEIRA, SESIMBRA E OS AMIGOS
Disse eu lá para trás que na vinda de Agostinho a Lisboa em Agosto de 1969 houve franguinha metida. O meu meileca quando deu à sola do Brasil dos coronéis tinha 63 anos feitos e muito pêlo branco. Embora! Problema na próstata não lhe conheço. A última doença que lhe rastreio foi a gripezinha em Nova Iorque no gélido Outono de 1968, que se misturou ao trambolhão no gelo. No restante, são e resistente como baga selvagem! Em caso de sexo imagino que seguia um sátiro de pé quebrado, fazendo jus ao que dele disse Edmar Almeida, que o conheceu em tempos de Trapa e o tomou como «arquétipo de Dionísio, que por onde passava acendia o furor das mênades» (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 283). Entre a Trapa e Lisboa há apenas uma curta linha de fronteira, que é o voo que o trouxe até à Portela em Agosto de 1969. De resto, tudo como dantes e quartel-general em Abrantes. Já se sabe que a senhora em que o galo punha olho se chamava Maria Violante Vieira e vinha do paleozóico. Na década de 30, menina adolescente, 10 anos mais nova do que Agostinho, finalista de liceu, amiga de Manuel Vinhas, já ela se deixava encantar pelo jeito do meu mangas, então de olhos postos nas estrelas do céu, mãos juntas ao peito, para não pecar com as flores que abriam em redor. Depois, à solta, já fora da alçada de Judith, nos tempos da pansexualidade de Salvador e Brasília, os fados de novo o puseram na rota da menina, que a família tratava por Tita, talvez naquela parte do ano de 1967 em que esteve com certa delonga em Portugal, primeiro na Primavera, altura em que fez palestra no Porto vigiada pela secreta, e depois no Outono, antes do regresso a Brasília, onde tinha à espera, na chefia provisória do CBEP, Conceição Silva. A abrir, convenço-me, sem que nada porém mo certifique, a não ser a constante vadiagem do velho soldado, as relações dos dois terão sido tímidas e espaçadas. Dê por onde der, curtas ou longas, existiram, já que tenho prova que mo confirma. É fotografia dos dois, um ao lado do outro, no ano de 1969, em local não identificado (Presença de Agostinho da Silva, 2007: 347). É retrato que não me engana nem um pedacinho; aqueles dois tinham olhos e pose de quem transvazava. Agostinho é um varão seguro, espadaúdo, bíceps rijo e teso; Maria Violante, por sua vez, é rouxinol sorridente, de saia curta e perna ao léu, ainda com muito para comer e chupar. Um barba-azul como Agostinho ia lá perder um tal passarinho.
As relações com Maria Violante tiveram ainda outro campo de saída por esta altura. Chamou-se Sesimbra, a piscosa dos versos de Camões. Em Sesimbra e no seu termo estivera Agostinho logo após o regresso de Madrid, nos tempos iniciais do Colégio Infante de Sagres, com Orlando Ribeiro, empenhadíssimo então no estudo da Arrábida; a Sesimbra regressara logo depois, em época de cadernos culturais, a fazer palestra na Sociedade de Recreio Sesimbrense, de que não ficou (segundo informação de Pedro Martins) registo na imprensa da época mas que ainda hoje um octogenário como António Reis Marques recorda. A conversa terá tido lugar depois da intempérie de 15 de Fevereiro de 1941, que produziu uma catástrofe de dimensões inusitadas na vila, e antes da prisão de Agostinho em Junho de 1943, altura em que deixou de ter condições para se deslocar dentro do País e à-vontade para falar sem medo. Se em 1967, já depois de Adriano Moreira o ter visitado em Brasília, as palestras de Agostinho, ainda metiam receio à secreta, imagino o que não terá sido em tempos da polémica com o Múrias do jornal A Voz. Jornal ou cacete? Adiante. Basta o exemplo de Estarreja para se entender a demão. Depois de Julho de 1943 e até à partida para o Brasil, em Novembro de 1944, é inverosímil meter Agostinho em qualquer palestra pública, de que não há, que eu note, registo público ou memória pessoal. É o período em que ele anda de casa às costas, do Minho para o Algarve, das terras de Basto para a praia da Rocha, em Portimão, sempre vigiado pelo mau humor das baratas pretas da polícia política, e em que aproveita para urdir a espantosa trama evasiva do Kertchy Navarro de Sete Cartas a Um Jovem Filósofo.
A Sesimbra estava ligada Maria Violante, por mor das vilegiaturas estivais. A vila, a escassos quilómetros de Lisboa, oferecia condições raras para férias e fins-de-semana. Mostrava tão bom clima como Cascais e não tinha os inconvenientes desta, chegada em demasia à Lisboa das massivas concentrações, que despejavam nuvens de gente nos seus areais. Inaugurara, a nascente da vila, sobre a linha de areia da praia da Califórnia, no final da década de 50, um hotel, Espadarte, que ganhara renome nos certames do turismo internacional. Nada disto pode interessar um terráqueo como o meu Silva, que se estava nas tintas para hotéis e muito mais para o turismo. Era um pedestre que recusava os cocktails e as reuniões mundanas. O dinheiro, quando o havia, era para dar de comer a quem tinha fome, não para gastar em lugares de luxo. A questão é que Maria Violante Vieira não fazia a folha por Agostinho. Embolsara muito dinheiro no comércio do papel e das canetas, gerira como dona duas avantajadas papelarias de Lisboa, a da Moda e a Progresso, recebia juros confortáveis das contas que tinha, habituara-se a viver com comodidade, sem olhar a gastos. Não descartava as boas ideias e punha por isso nome e dinheiro em planos de ajuda social, visando antes de mais os mais fracos. Foi assim que se ligou às Nações Unidas na defesa dos direitos das crianças, criando entre nós uma secção da UNICEF, que a recorda e homenageia ainda hoje. Sesimbra era um dos lugares onde gozava a tranquilidade da vida e esquecia os afazeres lisboetas. Tinha lá dois apartamentos, numa das zonas mais reservadas e caras do lugar, o chamado Bloco do Moinho, um dos primeiros projectos turísticos da vila, da autoria dum qualquer afamado Souto Moura da época.
Ao que me dizem (a fonte é aqui António Reis Marques, sesimbrense ainda vivo no momento em que escrevo e que foi vereador da câmara por volta desta época), as primeiras idas de Agostinho e de Maria Violante a Sesimbra não passaram pelos apartamentos que esta tinha na colina do Moinho, por cima do centro histórico, mas pelo Espadarte, o hotel fronteiro à praia da Califórnia, o que se entende às boas, já que a relação chegada dos dois era recentíssima e haviam estado décadas sem se ver. Mas que Agostinho e Maria Violante não tardaram a fazer uso dos apartamentos, não me sobra dúvida, quer por afirmação de Reis Marques, que disso foi testemunha, quer por fotografia que também o prova (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 349). A fotografia, datando de 1976, mostra-os num dos apartamentos de Maria Violante, na companhia de Maria Gabriela, filha de Agostinho e de Berta David, que fora para o Brasil no final de 1969 e regressara nessa época, ao que Pedro Agostinho diz pela primeira vez, para ver pai e mãe. Um pormenor do retrato me prende sempre que lhe deito o olho: além do mobiliário confortável mas simples, a pintura — talvez um Abel Manta ou um Sebastião Rodrigues — que está na parede, por cima de Maria Violante Vieira e me diz que também na casa desta empresária, à imagem do que sucedia na de Manuel Vinhas, as paredes estavam limpas de gráficos de produção.
Que Agostinho frequentou muito a vila de Sesimbra depois de Agosto de 1969 nenhuma dúvida há. António Telmo, já sabe o leitor, tomou posse a 1 de Junho desse ano como director da Biblioteca Municipal da vila, onde se instalou depois de Brasília e de Granada, já que aí vivia sua velha mãe. Natural é o que o sócio do cerrado não esquecesse o paredro que por lá tanta conversa lhe dera; e que também este não esquecesse o jovem colega que tinha em alta estima. Assim em postal de 3 de Setembro, Agostinho promete aparecer-lhe em Sesimbra para o visitar em família. Tenha-se presente que Anahy, filha de Telmo e de Maria Antónia, era sua afilhada e que ao invés de outros casos tomou-a a peito, enviando-lhe muitas manifestações de carinho. Esteve o velho artilheiro em casa de António Telmo e de Maria Antónia a 8 de Dezembro, dia feriado, onde comeu na companhia da família. Depois, a 13 de Dezembro, fez o meu biografado palestra na Biblioteca Municipal de Sesimbra, então a funcionar na antiga Capela do Espírito Santo, já desafecta a culto religioso, a convite do director e compadre. Estava integrada num conjunto de intervenções, que abrira a 24 de Novembro com uma comunicação de António Quadros. A 20 de Dezembro o jornal O Sesimbrense publicava uma nota anónima, mas saída do punho de António Reis Marques, onde se reportava o que sucedera com Agostinho. Cito: «O Dr. Agostinho da Silva não tratou de qualquer tema especial, mas teve a arte de interessar o auditório, desenvolvendo com a maior clareza e saber diversos aspectos da história, da vida e dos intelectuais.» Mais de 25 anos depois, Agostinho voltava a magnetizar a Piscosa, falando de pé, passeando, gesticulando, discorrendo sempre de improviso, com uma liberdade e um à-vontade de que só ele tinha o segredo. Pedro Martins, que indagou da presença de Agostinho em Sesimbra, comunicou-me que Agostinho falou cerca de hora e meia. Parece-me esta hora e meia aquele mínimo de qualquer conversa do meu biografado. Menos do que isso, era vagido ou aperitivo de pouca substância. António Telmo chegara a Sesimbra, vindo da Arruda dos Vinhos, em 1943 ou em princípios de 1944. O pai, em andanças judiciais, veio ocupar lugar, que não mais largou até à reforma. Tinha então o futuro autor de Arte Poética 16 anos. Não admira pois que tenha sido na roda da vila que despertou para a vida mental. Foi em Sesimbra que ele encontrou os amigos com que pela primeira vez sonhou as letras — Rafael Monteiro, António Reis Marques, José Preto e outros. Dois, Rafael Monteiro e Reis Marques, vieram a ser compinchas de Agostinho, que os conheceu por meio do jovem sócio de Brasília. O caso do primeiro, Rafael Monteiro, que faleceu em 1993, é mesmo excepcional. Convenço-me de que esse investigador da história sesimbrense foi uma das grandes amizades da vida do meu homem. Mais novo do que Agostinho cerca de 15 anos, Rafael tinha tudo para cativar o biógrafo de Francisco de Assis. Era autodidacta, mostrava-se avesso a vaidades e a carreiras, batia com a porta ao poder, fizera estudos de valor sobre o empenho dos sesimbrenses nos Descobrimentos, vivia humildemente uma vida obscura e solitária numa antiga casa paroquial isolada no topo do mundo, como porteiro do altaneiro Castelo de Sesimbra. Tanto bastou para o torna-viagem se ligar a valer a esse homem magro que vivia dentro de portas do castelo, a contemplar, a seus pés, o mar e o serpenteado da vila. Agostinho, que ficava na parte baixa da vila, ou no Espadarte, ou no Bloco do Moinho, batia para os cimos a pé, como era gosto seu, para confraternizar com o castelão. Por lá se deixava ficar horas à conversa, ao passeio e a degustar na companhia do solitário uma bucha seca de pão com um naco de queijo e uma pinga do espesso vinho de Santana. Agostinho deixou sobre este homem um parágrafo que não ludibria. Está lá escarrapachada a admiração que ele sentia por este eremita. Diz assim (carta a José Flórido de 22-6-78; 1997: 139): «[…] Rafael Monteiro, sem dúvida muito acima do nível médio pela inteligência e pelo saber; mas no lugar mais alto pela segurança do carácter, pelo espírito de sacrifício, pela lealdade, que nada apela, a valores essenciais. É um contacto de que o grupo sairá robustecido e ainda mais confiante, se possível, no futuro, que é sempre fabricado — e quantas vezes contra o grande número — por homens como Rafael, firmes no seu isolamento, eloquentes no seu silêncio (o que não quer dizer que o nosso Amigo não grite mesmo quando necessário), pessoa mais que digna de continuar os que levantaram e defenderam aquele castelo e aquela cerca.» Segurança, carácter, espírito, sacrifício, lealdade, valores, firmeza, isolamento, eloquência e silêncio. Nada menos do que isto! Eis o que Agostinho prezava. Era difícil o meu andarilho fazer panegírico mais incisivo. Rafael Alves Monteiro foi o espelho limpo da sua alma nos tempos de Sesimbra.
A propósito de Rafael Monteiro, fale-se de Caetano Veloso. Este baiano, que topara com Agostinho em Salvador nos primeiros tempos do CEAO, partiu para o exílio em Londres no princípio do segundo semestre de 1969, um pouco antes de Agostinho deixar Brasília. Também ele andava às aranhas com a tropa encabulada. Antes de se arrumar em Londres, quis descer em Lisboa, onde parece que estava o escudeiro baiano de Agostinho, Roberto Pinho, talvez em missão do seu cavaleiro, que devia chegar ao terreno dentro de pouco tempo, armado de broquel e lança. Encontraram-se pois em Lisboa, Pinho e Caetano, que se conheciam desde os tempos bem urdidos das primeiras loucuras baianas. Pinho, que conhecera por certo António Telmo em Brasília, já fora a Sesimbra e já lá dera com o guardião do castelo — a que chamava o alquimista. Neste intervalo, pergunto-me se Agostinho já conheceria Rafael quando chegou a Lisboa, em Agosto de 1969. Se sim, só podia ter sido no ano de 1967, o da vigiada palestra no Ateneu Comercial do Porto, por certo por sugestão de Telmo, então em Brasília. Embora! Tanto monta! O que importa é que Pinho e Caetano foram a Sesimbra de visita a Rafael, no momento em que o músico estava a caminho do exílio londrino. No alto do castelo, o mago recebeu-os rodeado de cabras, animais nada urbanos, sua única companhia. Roberto lembrou-se então, debaixo do sol escaldante do Verão português, de pedir a Caetano para cantar o hino do tropicalismo. No fim, o português desfiou o sentido dos versos, onde punha o destino grandioso do Brasil, ao modo de Cortesão e Agostinho, para surpresa do autor, que ficou entre o agastado e o magnetizado.
Dou a palavra a Veloso, que narra assim o episódio (Verdade Tropical, 1997; rep. In Memoriam de A. da S., 2006: 96-7): «Quando cerca de um ano mais tarde, saímos do Brasil rumo ao exílio londrino, passámos antes em Portugal. Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Sesimbra, onde ele tinha um encontro com um senhor português que tomava conta do castelo medieval da colina e era tido como alquimista. Lembro de umas ovelhas de chifre revirado que se punham perto do velho como se fossem animais de estimação. E do mar muito azul rodeando de longe as muralhas de pedra. A uma certa altura, Roberto pediu que eu cantasse “Tropicália” para o alquimista ouvir. […] Ao final este olhou-me com uma expressão exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto, apresentou-me a mais insólita interpretação de “Tropicália” de que eu já tivera notícia. […] Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil, não se mostrou surpreso diante dos meus protestos e, rindo para Roberto e repetindo “eu sei, eu sei…”, arrematou: ”O que sabem as mães sobre os seus filhos?” Entendi que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu.» Magnífico! O grande Caetano Veloso, por causa do meu Agostinho, a cantar o seu hino na cerca do Castelo de Sesimbra no Verão de 1969. É momento à altura da biografia de quem escavacou lá para trás o Pimenta teutónico e deu uns abanões rijos nas orelhas murchas do jovem Soares. O que mais me toca nisto tudo é aquele epíteto de «velho» dado por Caetano a um português de 47 anos. Envelhecia-se tão rápido no Portugal desse tempo! Hoje, com a mesma idade que o Rafael tinha no momento em que recebeu o músico, fazem os homens anúncios galantes de publicidade ao lado de meninas madrugadoras.
De Agostinho com Sesimbra muito ainda se pode dizer. Colaborou na imprensa local, ao menos com quatro textos. Falo dos que deu ao jornal O Sesimbrense em 1971 (20-6, 18-7, 7-11 e 5-12; rep. Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira II, Lisboa, 2001: 181-182; 195-196; 229-230; 253-254), sempre sob o título «Onde a Terra Se Acaba», bem evocativo da situação geográfica das finisterras atlânticas, euro-asiáticas, em que o meu marrano se comprazia por esta época, Sesimbra, Compostela e Sintra (onde Aldegice Machado da Rosa dá conta dele em 1972 ou 1973 em campanhas de alfabetização). E já que de escritos aqui falo, ponha-se nesta conta o texto «Projecto», que se manteve muitos anos inédito — só foi dado em letra redonda em 2004 — e que é profissão de fé na terra cuja beleza Almada Negreiros afiançou que nem uma bomba atómica podia destruir. E junte-se ainda a meia página onde ele deitou as cinco linhas que escreveu aos organizadores do In Memoriam: Ruben Andresen Leitão, seu explicando do tempo dos cadernos, que se fora aos 55 anos num quarto de Londres com um baque no coração. Escreveu-as em 1976, porventura num dos apartamentos de Maria Violante, quiçá na mesma época em que recebeu a filha Maria Gabriela, na primeira visita que esta fez aos pais depois da partida para o Brasil no final de 1969. São palavras que valem oiro. Troco o melhor livro de Agostinho — o Miguel Ângelo por exemplo — por esses três períodos. Não resisto a transcrever: «Sinto-me inibido de escrever seja o que for — e pesam-me hoje as linhas que tracei sobre Casais Monteiro. O que acontece, simplesmente, é que não aceito o desaparecimento de Ruben — e acho apenas que está mais demorado por Carreço, descansando da vida. Pois acho muito bem, claro, que quem aceita escreva — e é grata a lembrança. Do coração, Sesimbra, 10 de Agosto de 1976.»
Casais, o velho e ruidoso Casais da Quinta Amarela, com quem o meu rústico tanto palmilhara Porto e arredores, fora-se em 1972, sempre no Brasil, já o meu Silva se acolhia à sombra do Castelo de Sesimbra e desandava todas as estações para Compostela. Da Piscosa à chuvosa havia a gare de Santa Apolónia e a de São Bento, onde deve ter cogitado um tanto o encómio necrológico que esgalhou para os cadernos de Araraquara, «Alguma Nota sobre Casais», que em 1976 lamenta. Percebe-se porquê. Escrever sobre um morto era aceitar-lhe a morte, o que não era para Agostinho. A morte? Um erro dos sentidos, um engano de perspectiva. Por isso quando Ruben se foi, sem dizer água vai, ele falou não, alto lá aí, isso não pode ser assim! Ruben andava na meia-idade, era brincalhão, escrevia de forma sincera, tinha ainda muita pureza para espremer. A morte não tinha o direito de fazer mossa ali. Havia pois de se arranjar estratagema para Ruben cá ficar. Que o meu sagaz não lhe aceite a partida, julgando-o apenas mais vagaroso por Carreço, no Minho, onde ele ia às temporadas esquecer os fumos da urbe, é de mestre. Nem o melhor humorista se lhe compara. E só ri a sério quem muito sofre.
Para o fim ficam os gatinhos de Sesimbra. Ai, ai! Os gatinhos! Se me penitencio dalguma coisa nesta biografia é de ter faltado tanto a gatinhos, já que a vida deste meu biografado meteu gatos por todo o lado, talvez do princípio ao fim. Já em 1953, no final da noveleta que fecha o livro Herta. Teresinha. Joan, se diz que «na briga secular entre amadores de gatos e amadores de cães, sempre estive do lado dos primeiros; a vida e eu temos sido afinal gatos mesmo, caprichosos, volúveis e razoavelmente preguiçosos» (2002: 153). É Mateus-Maria Guadalupe que o diz mas é como se fosse o amigo Agostinho. Em acordo perfeito estão os dois aqui. Houve gatinhos nos pátios de Barca de Alva; gatinhos houve no soalho pobre da casinha do Porto; outros ainda cresceram nas varandas de Benfica e até nas de Portimão. Houve depois gatinhos e gatarrões no Brasil e no Uruguai até chegarmos àquele tão gostoso como doído que fez corrida de táxi, em Brasília, metido em caixinha de papelão, a caminho do veterinário. Que cheiro, vida minha! É falar de Agostinho e logo me vem ao nariz o odor a gato! Até a Lua cheia dele tem tigrinho a miar em lençóis de azeite, desejoso de lhe pular ao regaço. Venham pois à boca de cena os novos bichanos, em trupe, nas encostas a pique de Sesimbra! Deles me falou Reis Marques, que me confessou que o meu homem vinha a Sesimbra só para alimentar os gatos. Apanhava o carro em Lisboa (talvez na Praça de Espanha), com sacos de comida, desembarcava ao pé do cineteatro, com a ponta bicuda da fortaleza ao fundo, e desenfreava para as arribas que ficavam nas traseiras do Bloco dos Moinhos, à procura da bicheza. Ainda ele ia a subir o Largo Gonçalo Velho e já os bichanos o sentiam. Era uma gritaria de virar a vila. Metiam-se-lhe pelas pernas aos magotes e só serenavam quando o latinista lhes distribuía a ração nos arbustos das traseiras da colina. Nem dava para fazer uma festa, tinha os afazeres à espera em Lisboa, na Gulbenkian, no ICALP, no Bilhar Grande, na Casa do Diabo, tanto faz. Desenfreava para baixo, à volta, para se escapar às vezes ainda na mesma trotineta rançosa que o acabara de trazer. Os condutores já o conheciam, iam à bola com o jeito desembaraçado do velho e até se atrasavam uns minutos para ver se o caçavam. Esta dos condutores que iam à bola com ele, não é da minha testemunha, é minha, só minha. Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar. Deixe o leitor passar, que a imaginação sabe muito. E se não sabe, tem ao menos sabor. Sem tais pontos imaginosos, uma biografia é estéril e sensaborona.
A cena dos gatinhos de Sesimbra, com ida e volta na mesma hora, não me foi só comunicada por Reis Marques. Está escrita, preto no branco, pelo meu biografado, numa carta a José Flórido, a já citada de 22 de Junho de 1978. Cito (1997: 139): «E nos dias de semana, as coisas têm sido tão estreitas, que nem tenho tido possibilidade de visitar Rafael Monteiro ou de o ver no café: é chegar de camioneta, enfiar para os gatos, correr para a camioneta.» Esta do grande homem ir de propósito de Lisboa a Sesimbra dar de comer aos bichanos é de furar o juízo. O que eu admiro no meu patrício não é ter posto em portuguesa língua Catulo, Cícero, Platão, Virgílio, Rilke, Eliot e outros tais. A sua grandeza não é ter pisado sempre a meta à frente dos outros, batendo os recordes todos, nem ter inventado o Guadalupe e os outros, sobretudo o Carriedo que escreveu na língua de Cervantes e foi interceptado pela PIDE, nem ter ressuscitado o cadáver frio do Quinto Império, nem ter democratizado a cultura com o escritório da Palhavã. E que me interessa a mim que ele tenha criado as linhas estruturais da política externa do Brasil no tempo de Jânio Quadros! Fora! Arreda! Uh! O que eu admiro mesmo nele é esta dedicação — fora da carroça, longe da fotografia — ao irmão gato! Ó gigantes trapaceiros, ó grandes homens da treta, vaidosos e aldrabões, fossangas das letras e da política, vinde aqui aprender como se faz, com tão pouco, um homem de génio!
Foram os amigos de Sesimbra os únicos que Agostinho frequentou? Nem de longe. E os de Sesimbra não foram só os da roda de António Telmo, mesmo com esse Rafael Monteiro, que foi talvez o seu dídimo nos tempos empós Brasil. O meu vivaço era homem de muitos pratos e não se queria limitado a uma única mão. Gostava a sério de António Telmo, a ponto de lhe aceitar um laço de parentesco, exigindo-lhe até o tratamento de «compadre», o que nele era sinal de proximidade máxima, mas não era bicho para se ficar por aí. Tinha pedal para muita outra gente, ele que só fechava um olho, quando não meio, por noite, e apenas quatro ou cinco horas. Assim na vila deu-se com outros que por lá passavam a vilegiatura, como Joel Serrão, que tinha casa em Santana, a poucos quilómetros da vila, e que vinha para baixo, passar a tarde ou o serão em casa de João dos Santos, o psicanalista, que também muito se deu por Sesimbra com Agostinho. Joel Serrão fora o crítico que depois da publicação de Vida de William Penn em 1946 apreciara o autor do livro, em estudo ponderado e sério, como «um dos maiores, senão o maior escritor da língua portuguesa contemporânea». O meu biografado não era terráqueo para se deixar arrastar por encómios; era mais certo ranger a temível dentuça a tais tiradas do que sorrir de forma beata, muito contentinho com o talento que Deus lhe dera. Embora! Joel Serrão pesquisava então Fernando Pessoa e tanto bastava para justificar uma boa conversa. João dos Santos, mais fiado na arte de viver com alma do que em bibliotecas arrumadinhas, era por sua vez homem talhado para se medir com quem se fizera a correr à solta por Barca de Alva. Sobre a relação de João dos Santos com Agostinho da Silva em Sesimbra há curioso testemunho de Inácio Fiadeiro, dizendo que o conheceu numa caldeirada na casa sesimbrense do psicanalista (In Memoriam de A. da S., 2006: 189).
Mas os amigos do velho lutador depois do circo de Brasília não se ficaram por Sesimbra. Houve-os também em Lisboa, sobretudo naquele grupo que se reunia à volta de Álvaro Ribeiro e de José Marinho e donde saíra a revista Espiral, na qual Agostinho entrara com tão bons textos. Álvaro e Marinho eram dois sobreviventes da Quinta Amarela, à qual o velho discípulo de Teixeira Rego tanto queria. Quanto mais conhecera as melhores escolas do mundo, da Argentina ao Japão, do Brasil aos Estados Unidos, mais lhe queria! Era milagre de pasmar. Uma escolinha criada na cidade dos morcões batia todas as outras! Não se cansou nesta época de dar a primeira Faculdade de Letras do Porto como modelo de escolas. Em Compostela — Carta sem Prazo a Seus Amigos (1971) encontro a ideia de que a instituição criada por Leonardo Coimbra era «provavelmente o único estabelecimento universitário que jamais houve em Portugal» (Dispersos, 1988: 512). É o que basta para justificar a presença de Agostinho nas reuniões do grupo. Não ia lá por causa da filosofia, com a qual nunca simpatizara, já que era mais da vida do que da especulação, e basta para isso pensar na desfaçatez que sempre teve com Leonardo, menos ainda por causa da filosofia portuguesa, na qual nem sequer parece acreditar, mas pela memória daquela escola de liberdade em que todos os três se haviam formado. E porque o messianismo com que encarava a cultura portuguesa, que lhe chegara do convívio com Cortesão e da leitura de Pessoa, fazia a convergência entre os ideais do grupo e os dele. Ele, avesso à mais pequena mundanidade, lá ia direito aos cafés onde a tertúlia da filosofia portuguesa se reunia, entre a Avenida da Liberdade e os Restauradores. A fotografia em que ele posa com Maria Violante ao lado, rijo que nem atleta depois de prova, tirada pouco depois do seu regresso, é composta por toda, ou quase toda, a roda do grupo. É dos raros retratos em que ele aparece em grupo, o que chega para me firmar a convicção do importante papel dessa roda nas suas relações.
Que Agostinho prezava Marinho e Álvaro nenhuma dúvida me fica. No folheto Barca d’Alva — Educação do Quinto Império di-lo sem lugar para dúvida (Dispersos, 1988; 479), ainda que a mão que assina o parágrafo seja de João Cascudo de Morais. Outro ponto vai a favor desta roda de amigos. É o seguinte. Depois de acompanhar o meu biografado ao longo de sete décadas, uma coisa dou por certa. Este homem, que adorava carnavais, não ia em funerais. Nem aos dos pais foi. Isso diz tudo! Se foi ao da avó, Maria da Cruz Baptista, foi para fazer número; para bem dizer, nem deu pelo caso. Não acreditava na morte, e ponto final! Foi essa a resposta que enviou por carta aos feitores do volume dedicado à memória de Ruben. Ora existe testemunho que não só esteve no funeral de Álvaro Ribeiro, que faleceu a 9 de Outubro de 1981, como isso não se deveu a qualquer acaso. Foi vontade dele, manifestada a Rafael Monteiro, que de caminho, com Luís Paixão, o foi buscar, já então à Travessa do Abarracamento de Peniche. Correu depois no grupo, não sei se com razão, que era essa a primeira cerimónia fúnebre em que Agostinho punha pé. Isto encontro em texto de Luís Paixão («Três Testemunhos Pedagógicos», em Agostinho da Silva e o Espírito Universal, 2007: 41).
A favor do convívio de Agostinho com a tertúlia da filosofia portuguesa depõe ainda a sua presença em sessões do Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing (IADE), que António Quadros acabara de criar na zona do Chiado. Foi lá por exemplo que se deu o seu encontro com José Flórido, em 1970 ou 1971, como este conta na introdução à correspondência que dele publicou. Nesta escola muitos outros o viram e ouviram falar pela primeira vez. Um dos que o topou neste espaço, também nos meses seguintes ao seu regresso de Brasília, e que com ele se encantou para sempre, disso deixando registo escrito, foi Henrique Barrilaro Ruas. É mais um encómio escrito com aparo de oiro, entre tantos outros a que o meu Silva teve direito. Dou-lhe a palavra: «A primeira vez que vi e ouvi Agostinho da Silva foi (chegara ele, pouco antes, do Brasil) num imenso anfiteatro do IADE (a grande escola de António Quadros e Lima de Freitas, escola de símbolos e ansiedades). Falava do Banquete de Platão. Nunca ouvi ninguém falar tão eloquentemente, com tanta propriedade e rigor intelectual, e ao mesmo tempo com tanta inspiração. Era uma revoada de Espírito. Era um clamor de Verdade. Era também uma experiência de Desejo, um Banquete de Amor. Ouvi depois, muitas vezes, o mestre incomparável.»
Além da tertúlia da filosofia portuguesa, havia porém mais vida. Também aqui Agostinho não era fácil de amestrar. Jogava sempre em vários tabuleiros, às vezes até com a mesma mão. Era homem, para sem se enganar, ditar no mesmo momento três missivas diferentes, uma delas em latim. Também assim com os amigos — para já não falar de amigas, que não quero insistir no assunto, não me vá o leitor tomar por perverso. Assim, ao mesmo tempo que batia cartas com o grupo da filosofia portuguesa, não esquecia outros amores. Em carta a José Flórido dou com o seguinte (2-12-1971; 1997: 83): «No meio desta nossa correspondência houve um decreto — o dos estatutos das cooperativas culturais, e creio que será difícil a sobrevivência da do Campo Pequeno.» A missiva mostra como Agostinho não demorou a retomar uma ligação antiga, o movimento cooperativo. Por ele andara em tempos de Seara Nova e mesmo depois, com Sérgio e cadernos culturais. Não era lastro fácil de deitar ao mar. Cooperação era mote geral da vida e nesse sentido uma índole como a de Agostinho, sempre tão dada ao outro, não podia senão ser-lhe fiel. Pelo que leio em Flórido, Agostinho quando regressou do Brasil meteu-se a fazer uma cooperativa, talvez com a ajuda de Maria Violante ou de Vinhas, que se chamou Cooperativa de Educação Permanente. Tinha sede perto do Campo Pequeno, Lisboa; é a ela que alude a epístola do final de 1971 acima transcrita. Sobre o caso diz Flórido (In Memoriam de A. da S., 2006: 264): «Quando regressara a Portugal, antes da Revolução de Abril, procurou imediatamente movimentar as ideias, entrando em contacto com grande diversidade de pessoas. Entre várias iniciativas, pretendeu fundar uma cooperativa de Educação Permanente, tendo eu o privilégio de ser por ele convidado a colaborar nesse projecto.» Agostinho era mais mexido do que Napoleão à frente das tropas. Quando nada tinha para fazer, ou se punha à procura de oiro entre as areias duma praia ou partia a falar com os lobos. Parado é que não! Ainda dizia ele que tinha vocação de contemplativo! A Trapa, em Brasília, só não foi engano, porque foi casa laica, que em vez de missa deu folia.
Numa altura em que o patrono do cooperativismo português, António Sérgio, já se fora (ainda o discípulo andava por Brasília a tentar trocar as voltas à reitoria), algum tanto deve ter ajudado ao reatar deste laço a presença em Portugal do casal Machado da Rosa. Alberto teve um ano sabático em 1970, que veio passar a Portugal, instalando-se perto de Sintra, Cabriz, onde o amigo brasileiro o procurou para conversas à solta e surtidas de alfabetização em zona saloia, com cooperativas de ensino feitas sobre a hora e Paulo Freire de mistura. O caso lembra-me o que se passara em Itatiaia, dessa vez em área cabocla, havia 20 anos ou mais. Vinte anos, vida minha! E já nessa altura ele tinha algum pêlo branco. Este goela de pato não desarma; é animal de sete vidas. E o melhor da sua vida ainda está para chegar. Esperem-se mais vinte e logo se verá.
3. A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS E O ALENTEJO
As escaramuças em África começaram em Angola em 1961 e logo incendiaram Guiné e Moçambique. Em 1964 as três províncias estavam em pé de guerra contra Lisboa. No início da década de 70 o conflito tinha já uma longa história. O esforço do Exército português em três territórios distintos, dois de grandes dimensões, era desmedido. O recrutamento obrigatório fazia-se cada vez mais rigoroso; também o número de anos de serviço militar tendia a subir. Os militares do quadro faziam comissões sucessivas, sem intervalo, nos vários territórios. Mais grave ainda do que este esforço era talvez a frustração relativa aos resultados. Não se vislumbrava, após tanto empenho, em homens e meios, com mortos e feridos diários, qualquer aura de vitória. Ao revés, a situação na Guiné agravara-se. Parte do território passara para a guerrilha, que possuía armamento sofisticado, capaz de impedir acções aéreas de Lisboa. No plano internacional as coisas corriam ainda pior. A ONU reconhecera a libertação da Guiné-Bissau; a opinião pública era muito crítica do que se estava a passar na África controlada pelos portugueses. Para agravar, refractários e desertores cresciam dia a dia. A impopularidade da guerra era grande e o Exército português apanhava por tabela. O desprestígio dos militares de profissão começava a grassar entre a população civil.
Em 1973, o Exército tinha quase cem mil homens distribuídos pelas três regiões de África e mostrava-se cansado dum conflito sem perspectivas de solução à vista. A saída de cena de Salazar, em 1968, e a sua morte posterior, bem como a chegada ao poder de Marcelo Caetano e o seu tímido ensaio de abertura, não estavam a conduzir a qualquer resultado visível no quadro da guerra. O regime continuava apegado às teses que haviam levado ao conflito armado no início da década de 60. Não se passava do «Angola é nossa». No Exército todos lembravam o enxovalho que fora a Índia e o regresso de Vassalo e Silva em 1961. Não só o militar tivera de aguentar no terreno com as ordens insensatas de Lisboa, como no regresso, banido do Exército, pouco faltara para que o metessem numa enxovia. Temia-se agora que este exemplo se repetisse no caso da Guiné. Pouco mais se podia esperar duma classe política empedernida, monolítica, nas mãos da polícia política. Partiram pois dos altos escalões do Exército, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e seu vice, os primeiros apelos sérios a uma solução negociada para os conflitos. Os militares estavam cansados, não o escondiam. Era altura de negociar. Em Fevereiro de 1974, António de Spínola, dando voz a estas preocupações, publica Portugal e o Futuro, onde critica a política africana do Governo. Spínola, vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, acabara de ser substituído no governo militar da Guiné. Tinha experiência no terreno; sabia portanto do que falava. Não tardou a ser demitido, arrastando com ele o seu superior, Costa Gomes. As relações do poder político com o poder militar estavam tensas. Onde é que já ia a galinha dos ovos de oiro do 28 de Maio! Ora, ora. Agora em vez dum Gomes da Costa havia Costa Gomes! Entre um e outro estavam 48 anos de História; todavia dum ao outro apenas caía uma partícula. No restante, de marechal a marechal, era baralhar e dar de novo. A História, quando lhe calha, tem ironias que valem desforras.
Não tardou que o Exército, descontente com as demissões, se revoltasse contra o poder político, primeiro, nas Caldas da Rainha, a 16 de Março, logo, em grande parte do País, a 25 de Abril. O povo encheu as ruas, o Governo caiu, Marcelo e Tomás foram dentro, dissolveu-se a Assembleia, as espingardas floriram, os cravos correram de mão em mão, formou-se uma junta presidida por Spínola e Costa Gomes, libertaram-se os presos políticos, dissolveu-se a polícia secreta, decretaram-se liberdades, aboliu-se a censura, chamaram-se os exilados políticos, amnistiaram-se desertores e refractários, permitiram-se agremiações políticas, suspendeu-se a guerra, encetaram-se negociações visando a independência dos territórios africanos, agendaram-se eleições livres para uma Assembleia Constituinte. Com o acordo de Argel de 26 de Agosto de 1974, Portugal reconheceu o direito à independência da Guiné, que se efectivou em Setembro. Depois, em Junho de 1975, nascia a República Popular de Moçambique e em Novembro a de Angola, sempre com o acordo português. Pelo meio, em Julho, ainda houve a independência de Cabo Verde e a de São Tomé e Príncipe. Bastara um ano ou pouco mais para o País mudar de cara. Estava irreconhecível. De caturra velho e borraçudo passava a moço expedito e promissor.
Como viveu Agostinho da Silva estes acontecimentos? Há muito que ele se batia pela independência dos territórios africanos. Terá sido mesmo um dos primeiros estrategas portugueses a advogar a saída. Ainda os levantamentos armados da década de 60 não haviam estoirado e já ele batia o pé pelas independências. Há testemunho disso no texto que escreveu em 1959 para o colóquio luso-brasileiro que teve lugar na Universidade da Baía. Cito (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 120): «Nenhum território pode estar sujeito a qualquer espécie de metrópole, nenhum traço de colonialismo pode subsistir, por mais ténue que seja, quer se trate dos territórios ultramarinos portugueses, quer, por exemplo, do Nordeste brasileiro em relação aos estados do Sul.» Entende-se pois o embate que nesse espaço se deu entre Agostinho e os membros da comitiva oficial portuguesa, com Marcelo à testa. Sabe-se também o desacordo com Franco Nogueira na visita que fez a Lisboa em 1962. Há muito, pois, que ele esperava estes acontecimentos, que punha por essenciais à renovação do País. Quando os viu, alegria e expectativa não podiam faltar. Basta-me como prova o prefácio que deu ao livro de Manuel Vinhas e que foi escrito ainda no ano de 1975. Quero poupar ao leitor repetir a citação (1976: 15), que já transcrevi, mas recordo que confessa aí que veio a Portugal para assistir «a transformações sociais e políticas que viriam a abrir para o País perspectivas de acção muito mais importantes para o mundo e muito mais plena como expressão do Povo do que foi a tarefa dos Descobrimentos». Eh, pá! A Revolução dos Cravos anda aqui posta acima dos Descobrimentos. Pode achar-se de mais, pouco é que nunca. Não se negue pois que o meu biografado bateu a pala ao 25 de Abril e muito dele esperou.
Para o gosto que aqui teria em falar neste assunto, faltam-me porém dados. Onde estava o autor de Montaigne no dia 25 de Abril, quando a revolta estoirou e Marcelo acabou preso por Salgueiro Maia? Sediava em Lisboa ou não? Que fez? Saiu à rua? Misturou-se à multidão? Subiu ao Largo do Carmo para vitoriar a prisão de Marcelo? Foi à Rua António Maria Cardoso assistir ao esbravejar das baratas? Foi à Penha de França ver o saque da Legião? Sei pouco. Ainda assim encontro um testemunho privilegiado, que me permite inferir que nesse dia Agostinho estava em Lisboa e saltou para a rua, onde se misturou na mole. Passo-lhe a palavra (Dispersos, 1988: 171): «No dia 25 de Abril, encontrei na rua um amigo, outrora director da Vida Mundial, que me disse: “É uma Revolução.” Depois acrescentou: “Essa Revolução não tem horizonte.” Nunca percebi porque é que ele me tinha dito aquilo. Na altura, pensei com os meus botões: vamos ver no que é que isto vai dar.» Para bem dizer, o que sucedeu em Lisboa no dia 25 de Abril foi um golpe militar, com os soldadinhos na rua, a obedecer às ordens dos oficiais, e a multidão atrás a fazer de conta. Nada pois para pasmar que Agostinho tenha dito aos botões dele — vamos lá ver em que é que isto vai dar. Escaldado estava ele com o que lhe sucedera em Maio de 1926 e em Abril de 1964, aqui no Brasil.
As perguntas que se fazem para o dia 25 de Abril de 1974 podem, calhando com mais motivo, ser feitas para o 1.º de Maio. Cunhal, Soares e outros haviam chegado a Lisboa; vislumbrava-se já que o golpe militar se estava a fazer revolução popular. Que fez o meu homem? Subiu a Almirante Reis no meio do povão? Foi a Alvalade ouvir falar os novos cabeças da política? Nada encontro, para tristeza minha, sobre o caso. Sobre o 1.º de Maio de 1974 de Agostinho apenas sei de certeza certa que assinou nesse dia os três parágrafos da segunda «Carta chamada Santiago», que, não tocando nos acontecimentos do dia, ao menos de forma explícita, permitem auscultar uma indesmentível simpatia pelo que estava a ocorrer. «O mundo já olha Portugal de modo diferente e nele redescobre o dos Descobrimentos», diz ele. O resto só por conjectura. Posso pensar que sim, que saiu às pedras da calçada, que gozou o pratinho a ouvir a multidão a gritar «o povo unido», mas nada mo prova. Tenho porém outro dado seguro: nesses inícios, logo ele se aprestou a intervir nos factos, modelando-os com o seu dedo inconfundível. Tinha 68 anos e muito pó nas palmilhas. O luar de Sesimbra acabara de lhe embranquecer o que ainda lhe restara, à chegada, de pêlo grisalho. Não entrava em partidos, não ia em clubes, não punha emblemas na lapela, abominava ícones, sempre se batera pelo indivíduo ciente da sua responsabilidade. Empunhava ideias, não bandeiras. Assim fizera no grupo de António Sérgio, com os cadernos culturais; assim voltara a fazer no Brasil, pondo em sentido generais e Presidentes. O meu pião valia à sua conta uma boa organização. Havia agremiações de dezenas ou centenas de figurantes, que faziam menos obra do que ele sozinho. Não pasmo pois que no rescaldo do 25 de Abril ele tenha ficado fiel a este seu modo de fazer. Com 70 primaveras quase cumpridas, ainda sentiu a energia para se meter numa revolução a despesas suas, sem uma bandeira, sem um emblema, sem um chavão, sem um ícone, sem uma cor, sem um secretário-geral, só a presença e a palavra dele.
Que fez ele, logo nos inícios da queda do salazarismo e que aqui dou por certo? Escreveu aos mais importantes políticos da nova época, quase todos regressados do exílio. Era decisão muito sua. Se não podia falar, escrevia. Mais a mais, conhecia-os a todos dos tempos da Seara Nova e dos cadernos. Desconheço preto no branco a carta mas imagino que saudava nela o Portugal novo, dando como quem não quer a coisa duas ou três biscas sobre o futuro dele. Adiante se porá uma hipótese para este importante texto. A vida para ele fazia-se a conversar, até com os peixinhos do mar, quanto mais com os amigos de longa data. Isto dou eu por certo, porque ele o assim o confessou com as letras todas. Acrescentou que das tantas cartas que mandou, apenas uma recebeu resposta. Álvaro Cunhal! O caturra com quem estivera às cabeçadas na Rua do Carmo por amor dum artigo em que expunha de brinquedos! Nem mais! Pois foi o teimoso da repreensão o único que se dignou agradecer-lhe a missiva. Os outros tinham mais que fazer do que aturá-lo. Nem o Soares, que com ele tanto espevitara as orelhas murchas, perdeu gás a escrever duas linhas. A prova disto está na entrevista que o meu campestre deu ao Diário de Lisboa (1986). Passo-lhe a palavra (Dispersos, 1988: 117): «Quando se deu o 25 de Abril escrevi cartas a todos os exilados que voltaram; aos meus conhecidos… evidentemente. Pois o único que me respondeu foi Cunhal. Se calhar estava tão ocupado como os outros, mas cumpriu o que, do seu ponto de vista, era um dever.»
Assim como assim, o político que Agostinho chamou a si a seguir à queda do salazarismo, falo de Maio-Junho de 1974, não foi nem Cunhal nem Soares. Estava um algemado ao bloco militar soviético, que era um dos poderes do mundo, com o qual não podia simpatizar por índole própria; estava o outro ainda para se ver ao que vinha e que devia ser o outro dos poderes do mundo. A escolha recaiu assim na época em Piteira Santos, que conhecia dos tempos da Seara Nova e que elegeu como o mais probo de todos. Isto não é invenção minha. Está numa carta a José Flórido, com a data de 1 de Junho de 1974. Diz assim (1997: 117): «Gostei imenso do esquema da sua conferência — e acho que era preciso publicá-lo. […] Embora ele seja de orientação materialista, gostava que o mostrasse e sobre ele falasse a Piteira Santos (divulgador de Cultura Popular); suponho ser [este] dos políticos actuais, o melhor como pessoa e o mais aberto como receptividade.» A Piteira Santos regressará mais uma vez na entrevista ao Diário de Lisboa, para de novo o sobrepor e lhe testemunhar uma admiração, que só atitudes humanas raras, nunca aptidões de intelecto, justificavam. Passo-lhe a palavra (Dispersos, 1988: 117): «Enquanto Cunhal, como homem de acção, é incapaz [de] abertura, Piteira Santos vejo-o mais motivado pelo sector ideia, com uma maior amplitude de pensamento… Depois sei de atitudes suas, na juventude, muito bonitas e generosas. Reveladoras de um ingénuo idealismo.» Não tenho a chave destes mistérios em que Piteira Santos andou metido em gaiato mas tanto basta para justificar uma preferência.
Entre os exilados que regressaram a Portugal depois de Abril, chegou um muito caro ao meu soldado, com o qual ele muito acamaradara no período brasileiro, sobretudo depois da saída de Santa Catarina e que voltara a reencontrar já em Portugal. Falo de Alberto Machado da Rosa, o estudioso de Eça, que se escapulira do reino cadaveroso depois de 1945, quando se dera conta que nada mudava por cá, e ficara a fazer vida descansada de universitário na América do Norte. Cruzara-se com Agostinho em Salvador no tempo do CEAO e depois em Porto Alegre, altura em que Agostinho lhe escreve a nota introdutória para o estudo queirosiano que sai em 1964. Volta a apanhá-lo em Los Angeles, no regresso de Nova Iorque, em Janeiro de 1969, e depois, por ocasião duma sabática do açoriano, no Portugal de Marcelo. Andaram então os dois metidos nessa história da «cooperativa de ensino permanente». Tinha quase 20 anos a menos do que Agostinho — nascera em 1924 — e ainda não completara os cinquenta. De volta aos Estados Unidos, em 1971, fora apanhado à má fila por uma trombose que lhe ia dando cabo do canastro. Ficou, mas acabrunhado e diminuído. Com as flores do 25 de Abril animou; quis então regressar a Portugal a ver se a revolução o arrebitava. Veio com a esposa e de novo se instalaram em Cabriz, onde já haviam estado em 1970. Voltou Agostinho a visitá-los debaixo das frondosas árvores que por lá havia. Vendo que o amigo não levantava a crista achou por bem diversificar os planos. Lá para o Outono, quando o Alentejo se começou a mexer por uma reforma agrária a valer, lembrou-se o meu homem que aquilo nas terras de além Tejo é que ia pagar a pena de ver e dizer presente. O despertar do Alentejo tinha força para acordar um morto, quanto mais um vivo como Alberto.
Calhou por esta época falar com o Vinhas e perceber que o homem estava em palpos de aranha por dar saída ao que tinha. Se não se cuidasse, a revolução comia-lhe tudo. Propôs-lhe então Agostinho cuidar do que ele tinha em Monsaraz, levando para lá o casal Machado da Rosa. Tratava-se duma casa no centro da vila, que estava desocupada e que não ia durar muito assim. Não tardava que lhe metessem as portas dentro. Ora Agostinho não só a ocupava como ainda lhe daria um destino favorável aos ventos da revolução. A taxa de analfabetismo na zona era grande; muitas crianças não iam à escola ou, indo, não ficavam lá mais do que dois ou três meses; Agostinho propunha-se assim retomar o que havia feito em Cabriz, agora no quadro duma construção social mais larga. Manuel Vinhas esteve pelos ajustes; desse por onde desse, perdia a casa; mais ganhava então pô-la na mão daquele maduro dos cadernos culturais, que conhecia desde os tempos do calção, do que vê-la esmilhada pelos terrosos ganhões abrutalhados dos reguengos que andavam nos esboços do Ribeiro de Pavia. Para bem dizer, a história de Agostinho em Monsaraz foi uma ocupação às boas. Ele tinha o faro da ocasião e não perdia o virar do vento. A primeira profissão que desejou foi piloto de barco. Tinha então 13 anos. Recorda-se o leitor daquele seu tio, pai da sua primeira menina, Berta David? Pois já nesse tempo o que lhe interessava não eram os galões da farda mas a certeza que punha qualquer barco a salvo de tempestade ou de banco de areia.
A adesão de Alberto e Aldegice veio de forma entusiasta. Em Outubro fizeram a viagem de carro. Naquela época ir de Lisboa a Monsaraz por estrada era diáspora mais demorada do que atravessar hoje os Andes. Perderam um pneu nas solidões de Vendas Novas e viram jeito de não avançarem por dentro das searas nuas. Por fim, quando chegaram, Aldegice reconheceu o lugar, em que nunca pusera os olhos da cara, a partir dum sonho que fizera ainda nos tempos americanos. Foi uma explosão de alegria, logo seguida por muito afã junto daquela gente que tinha a inocência sorridente dos chicos da floresta. A festa não durou muito, pois Alberto veio a quinar logo em Dezembro, com nova apoplexia, desta vez fulminante. Os outros dois perseveraram; ficou registo de Agostinho em Monsaraz até pelo menos 1976, o que não equivale a dizer que por lá se tenha mantido dia a dia, longe disso. Tinha inglês a mais para se ficar pela taberna da aldeia a jogar aos dados e a contar histórias de contrabando. Aldegice Machado da Rosa, apesar do inglês, que também tinha, ficou até 1979, e essa dia a dia, a ensinar meninos e idosos. Nessa altura mexeu-se uns quilómetros para poente, Louredo, em Évora, onde se meteu numa casinha isolada, ao pé duma ribeira de frondes altas, a fazer lembrar as florestas do Wisconsin. Queria deixar os homens e falar com as giestas. Ainda hoje lá está, a conversar com as flores, 40 anos depois da morte de Alberto. Foi lá que ela me contou, numa tarde luminosa de Primavera, isto que agora aqui deixo.
Outra coisa me contou, que aqui quero deixar. Judith Cortesão, com a queda do fascismo e o desenrolar auspicioso da revolução, com o povo nas ruas de braço dado com soldados e marinheiros, veio de escantilhão do Brasil. Queria viver por dentro a transformação social do seu velho berço. Não se esquecia que seu pai, Jaime Cortesão, fora o único preso político que a revolução republicana tirara da prisão. Não perdia também o sentido do que por lá vivera na década de 30, antes da sua partida para Espanha e depois para o Brasil. Foi pois com espírito de missão que veio para Lisboa nos meses que se seguiram ao fim do salazarismo. Tinha 60 anos mas muita raiva jovem no pêlo ruivo. Esteve na ocupação duma casa, com guevaristas que pediam armas para o povo, para dar com o pé no traseiro da reacção. Tomou a sério a ameaça e depois do 11 de Março correu para o Alentejo, na companhia duma amiga. Que foi ela fazer ao Alentejo? Ver Agostinho? Ui! Nem pensar. O meu rústico fugia dela como o demo de algodão azul. Mal sentia Judith por perto, dava corda aos sapatinhos e punha-se a milhas. Só havia um nome que lhe metia medo: Judith! Que foi então fazer a filha de Cortesão ao Alentejo na Primavera de 1975? Nada menos do que pôr o saber médico que tinha ao serviço da revolução. Convencera-se depois do que vira por Lisboa e da fuga de Spínola para a Espanha de Franco que a guerra civil estava aí a rebentar e que o Alentejo das ocupações e da reforma agrária ia ficar debaixo de fogo. Andou pois Judith de aldeia em aldeia a perorar o bê-á-bá da medicina, tal como a ensinara aos palonços do sertão. Esta mulher não desistia; não desistiu nunca. Em abono da verdade é preciso dizer que mais depressa baixava o meu velho do que esta labareda em jeito de mulher. Depois da revolução portuguesa e da desilusão que ela foi, regressou ao Brasil, onde se meteu em novas frentes, dessa vez pela defesa das árvores e dos rios. Foi pioneira das lutas ecologistas junto dos índios brasileiros. Nonagenária ou quase, recebeu das mãos de Lula da Silva e de Gilberto Gil a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural. Nenhuma comenda foi tão bem empregue; lamento só as que por cá, na pátria madrasta, não lhe deram.
Sobre a relação do meu biografado com o Alentejo da reforma agrária encontro ainda um outro testemunho valioso. Está em José Luís Conceição Silva, o homem que ele escolheu para deixar à frente do CBEP em Brasília e que aguentou o barco até 1972, altura em que a ditadura decidiu meter aquilo ao fundo de vez. Ora este homem, que vinha do coração do Alentejo, tinha um interesse raro por questões relativas à propriedade agrícola. Projectou o CBEP como um organismo orientado para a reforma agrária no Brasil. Não tardou, está visto, a ser posto na rua, com o centro feito em cacos. Apesar da revolução, não regressou a Portugal. Naturalizara-se brasileiro, estava em demanda judicial para ser reintegrado na universidade, pensava que a sua missão, se a tinha, estava no Brasil, não em Portugal. Limitou-se pois a acompanhar à distância os acontecimentos que se passavam no outro lado do Atlântico, para isso lhe servindo de interlocutor o velho mestre de Brasília. É uma lástima esta correspondência não estar disponível para consulta. Se não se perdeu de todo, anda algures perdida, no Brasil, nos papéis dos herdeiros de Conceição Silva. É porventura uma das mais importantes que Agostinho escreveu e a única que fornece elementos de grande valia sobre este período alentejano. Para carregar a sua importância, estão lá as opiniões dele sobre as reformas que ocorreram no Alentejo nesta época preciosa. Posso até supor que se encontram lá dados sobre a acção de Agostinho em Monsaraz. Tudo o que dessas cartas hoje se conhece, são duas alusões que o destinatário lhes fez e que transcrevo de seguida.
A primeira, datada de 1997, é como segue (Agostinho, 2000: 226): «Não tenho nenhuma dúvida da concordância do Professor Agostinho da Silva com esta definição [“a terra deixar de ter donos e passar a ser trabalhada por homens livres, sem patrões nem assalariados”] da Reforma Agrária. Ele estava em Portugal em 1974, quando se deu a Revolução dos Cravos. Pouco depois e com surpresa geral, os camponeses do Alentejo resolveram de modo próprio fazer a Reforma Agrária. Em poucos meses foi por eles ocupada a maioria das áreas agrícolas (latifúndios) da região determinada na Constituição como destinada à reforma. Organizaram-se espontaneamente mais de mil “cooperativas de produção agropecuária”. Não se registou um só caso de divisão de áreas para distribuição de lotes individuais. E o povo do Alentejo passou a considerar a terra como um bem comum como o mar, os rios e as florestas. Agostinho da Silva nas cartas que recebi dele e em escritos publicados na época, nunca contestou o verdadeiro interesse e o valor social desta iniciativa dos trabalhadores rurais alentejanos. Mostrou, ao contrário, desilusão e contrariedade quando o Governo Socialista resolveu opor-se à Reforma e usou de todos os meios como cortar o crédito financeiro e proibir a assistência técnica oficial, para fazer voltar o Alentejo às vergonhosas condições tradicionais que o capitalismo defendia e impunha, contrariando até mesmo a Lei das Sesmarias de 1375.»
A segunda alusão à correspondência que Agostinho trocou com Conceição Silva a propósito do Alentejo das mudanças revolucionárias diz assim (In Memoriam de A. da S., 2006: 273): «No início do Governo instalado depois do 25 de Abril, algumas medidas de transformação se verificaram afectando a vida do povo que poderiam ser relacionadas ou estar de acordo com as ideias de Agostinho expostas na Proposição, como por exemplo a Reforma Agrária no Alentejo, prevista na nova Constituição, que ocuparam praticamente todas as fazendas (latifúndios) da área e iniciaram um trabalho de exploração agrícola e pecuária em conjunto, praticado em regime coletivo-comunitário. No entanto, a partir de 1978, o Governo Socialista presidido por Mário Soares, traindo todo espírito revolucionário que defendera no passado, muito preocupado em evitar que “Portugal se transformasse numa Cuba da Europa” (!!), iniciou a destruição da Reforma Agrária e de tudo o mais que lembrasse um avanço na organização do povo rumo ao socialismo democrático. Agostinho referiu-se a tudo isto em cartas que recebi, rematando os comentários aos acontecimentos com a conclusão de ter finalmente compreendido a colocação do ano de 1978 no horóscopo de Portugal, levantado por Fernando Pessoa, como data fatídica semelhante ou correspondente ao 1578 da batalha de Alcácer Quibir.»
Estas duas alusões chegam para dar a medida deste epistolário e para se perceber quanto se lamenta andar perdido. Bastam também para dar a conhecer as ideias gerais de Agostinho neste período diante dum lugar tão crucial como a reforma agrária no Alentejo. Por elas se fica a saber que foi crítico das medidas que contra ela os primeiros Governos constitucionais de Mário Soares tomaram. A questão fez figura de patíbulo a tal ponto que o meu biografado lhe associou, diz o destinatário, a data sinistra, 1978, que aparece no horóscopo de Portugal traçado pelo autor de Mensagem e que António Telmo, seu compadre, popularizou num livro de grande audiência na altura, História Secreta de Portugal. Aldegice Machado da Rosa contou-me uma história que vai com o que diz Conceição Silva. Um dia, numa rasa taberna de Monsaraz, depois das primeiras eleições presidenciais e de Soares ter sido chamado a formar Governo, estavam os dois, Aldegice e Agostinho, a ver as notícias na pantalha, quando o antigo pupilo do homem dos cadernos surgiu em directo a comentar medidas relativas à reforma agrária. Corria o ano de 1977, em que se deram rebuliços graves na região por causa das leis contra a reforma agrária. Foi uma balbúrdia no café, que se levantou em peso contra Soares. Agostinho, após ponderar o caso, voltou-se para a amiga, que lhe sabia bem a história, e bichanou-lhe com ar de desespero:
— Fui eu que alimentei esta cria. Se eu fosse coerente, suicidava-me. Sinto-me responsável por tamanho desastre.
Na segunda citação de Conceição Silva há um passo que chama a minha atenção e merece aqui comentário. É o momento em que ele fala das ideias de Agostinho na «Proposição», daí partindo para a questão da reforma agrária. De que se trata? Está em causa um texto com esse nome, «Proposição», que foi depois recolhido como inédito na colectânea de Dispersos (1987: 601-611). O texto está datado de 1974 e tem uma natureza programática, além duma densidade estilística e duma espessura retórica que é a marca dum poderosíssimo escritor já muito rodado. Só depois do 25 de Abril o texto faz sentido. É constituído por 69 pontos e toca matérias tão diversas como a liberdade, a comunidade lusófona, a propriedade colectiva, o indivíduo, o Estado, o poder, os partidos políticos, os blocos militares, a paz, a agricultura, a saúde, a alimentação, o consumo, o cooperativismo, as relações internacionais, a educação ou a religião, quer dizer, tudo aquilo em que Agostinho vinha reflectindo desde a década de 30. O conjunto, muito denso e concentrado, pode ser tomado como uma proposta de princípios fundamentais, quase um germe de Constituição, numa época em que o País regressara à estaca zero e ia a caminho de se inventar. É uma sinopse riquíssima, em poucas dezenas de parágrafos, do vasto itinerário anterior. Constitui hoje um dos melhores acessos ao seu pensamento geral. No ponto que aqui me vai, reforma agrária, toca-se no artigo 37, que passo a transcrever: «Considerando que a cooperativa, embora não resolva todos os problemas de produção e distribuição que a escassez implica, é de todos os sistemas até agora concebidos o que mais realiza o ideal de pão e liberdade, deverão organizar-se cooperativas agrícolas, quanto possível de produção e consumo.»
Como se percebe, logo no momento da escrita de «Proposição», antes pois do início do processo desencadeado no interior do Alentejo, já Agostinho supunha uma reforma agrária assente no princípio da propriedade colectiva organizada em cooperativa de produção e consumo. Quando alguns meses depois se puseram em acção no latifúndio as ocupações, que levaram às unidades colectivas de produção, o meu sonhador viu no caso um sério ponto de partida daquilo que sempre concebera para o sistema de propriedade. Daí o seu desespero suicidário, quando deu de caras com a política plutocrata dos primeiros Governos constitucionais de Mário Soares. Mais tarde reconciliar-se-ia com o bochechas, mas sem nunca deixar de lhe ir às orelhas, como se verá adiante. Um homem que atraiçoara de forma tão flagrante o eleitorado que punha esperanças no socialismo, não podia merecer senão cautela e chiste. Data porventura deste momento o definitivo divórcio de Agostinho das urnas onde se põe o papelucho. Sabe-se que em 1960, nos tempos do CEAO, ele fez campanha por Teixeira Lott, o candidato da esquerda, não sei se de bandeirinha na mão. Votar, votou nele. Acabou depois a fazer força junto de Jânio, o que em nada lhe fica mal e só prova como este homem tinha ideias, não clubes. Também se sabe que afirmou, preto no branco, no final da vida, que não votava. Em A Última Conversa, quando lhe perguntam se esteve algum dia inscrito num partido, ele responde (2001: 41): «Não, e essa é uma das razões que tenho para não votar. Em consciência não posso votar num partido. A lista é dum partido. Portanto, eu não devo votar, quando não sou de nenhum partido.» Se deu o voto em 1975 e em 1976, para a Constituinte e para a primeira legislativa, o que se aceita, mesmo sabendo que na conversa com o ICALP ele disse que o caso de Lott e o que se lhe seguiu o vacinou contra eleições (Dispersos, 1988: 88), logo o deixou de dar, mal viu o «socialismo» do Soares, já que o único partido em que ele poderá ter votado foi no Socialista. Digo isto porque no acrescento que fez em 1975 à «Proposição», dito «Aditamento um», em 24 pontos, defende um socialismo liberal (artigo 19), capaz de conciliar a socialização da produção e do consumo com a total liberdade de expressão e organização. Ora um tal projecto só o Partido Socialista, que depois passou a perna, estava em condições de cobrir.
O brutal desencanto com o Portugal que saiu da Revolução dos Cravos através dos dois primeiros Governos constitucionais não se ficou só pela política relativa à propriedade colectiva e à reforma agrária. Um ponto crucial de «Proposição» tocava a questão da paz e dos blocos militares, artigo que já muito o preocupara no tempo em que pensara uma teoria geoestratégica para o Brasil. Diz o ponto 25: «Como um mundo aberto à Paz, não entra a comunidade, quer em conjunto, quer por qualquer das suas partes, quer por pontos de seu território, em qualquer aliança ou bloco de Povos que signifique, face a outros, desconfiança, rivalidade ou império de força.» Ora o Portugal de Soares realinhou o País com os compromissos anteriores, incluindo os militares, respeitantes à Organização do Tratado do Atlântico Norte. O desagrado do meu homem diante da geopolítica de Soares terá sido enorme. Ele andava a tentar livrar-se dos dois blocos militares desde o tempo de Juscelino e Jânio. Agora, que Portugal via uma aberta para se escapar do duro jugo das carraças guerreiras, Soares assobiava para o lado e deixava ir na chuva a ocasião. Se o meu biografado não podia alinhar a passada pela de Cunhal, muito por causa do Pacto de Varsóvia, também não a podia ajustar pela de Soares, por via do tio americano. Por isso, no rescaldo do período, em carta a Flórido (26-10-1978), radiografará o País de forma desenganada, se não cáustica. Dou-lhe a palavra (1997: 143): «Provavelmente com os caminhos que as coisas levam, tanto no político como no económico, todo o Portugal que não seja físico, vai tornar-se bastante evanescente, ou do passado. O jeito então é como na comunhão — ausência e presença simultânea de Deus. O Portugal que importa estará sempre presente em quem o assumir, em quem o comungar; e ausente, o que já principia hoje, em que cada vez o País se inclina mais a ser uma espécie de protectorado da NATO, numa posição semelhante ao que Gibraltar era para a Inglaterra imperial!» As epístolas que por esta mesma época enviou a Conceição Silva, e que andam perdidas, não devem andar longe deste passo. Portugal não passa dum rochedo e a NATO vale o Império Britânico! Nem mais! Para quem desejara um Portugal à medida do poema de Fernando Pessoa de 1934 a desilusão não podia ser maior — isto depois de Soares pegar nele com os Governos constitucionais.
Uma derradeira nota sobre o texto «Proposição». Segundo Conceição Silva o conjunto foi passado a escrito no rescaldo da queda do fascismo, cristalizando em 69 pontos as ideias que Agostinho amadurecera ao longo de duas décadas, as que vão da exposição do IV Centenário de São Paulo à revolução portuguesa. O que é novo e vale a pena reter nesta biografia é a notícia de que o texto foi enviado aos novos políticos, tendo recebido apenas resposta de Cunhal. Não me custa pois aceitar que foi com este texto que o meu soldado prático se apresentou aos exilados políticos que chegaram a Portugal nos últimos dias de Abril de 1974. Diz Conceição Silva (In Memoriam de A. da S., 2006: 272-73): «Agostinho certamente acreditou que com aquela mudança política [Revolução dos Cravos], que punha termo aos 48 anos de ditadura, mais ou menos de extrema-direita, o momento seria propício para Portugal entrar num novo caminho de transformações, rumo ao que se almejava desde séculos passados e, segundo ele, deveria ser a organização de uma sociedade baseada na primitiva ideologia cristã, a do Sermão da Montanha, simbolizada nas Festas do Divino Espírito Santo. O Espírito Santo da Terceira Era predita por Joaquim de Flora. Foi de acordo a esta previsão que Agostinho da Silva resolveu redigir e divulgar, entre os Amigos, a célebre “Proposição”. Diga-se, em abono da verdade, que este documento, exprimindo de forma clara e bem compreensível, o pensamento de Agostinho relativo às normas e condições que devem caracterizar uma Sociedade Humana interessada em garantir a paz e a felicidade para todos os seus componentes sem exclusão, seja de quem for, não mereceu qualquer comentário contra ou a favor, por parte dos novos responsáveis pela organização político-social da Nação portuguesa e seu povo, agora supostamente no poder. Que se saiba apenas uma pessoa falou com Agostinho a respeito da “Proposição” e demonstrou concordância com o essencial da doutrina nela defendida: Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português.» Cunhal podia concordar no geral, sobretudo nas questões relativas à propriedade, à educação e à saúde, não podia porém subscrever os pontos relativos à geoestratégia do País, a começar por aqueles que queriam Portugal desligado do bloco de Leste, pronto a encetar um caminho pessoal e autónomo, livre de atilhos, em direcção aos países africanos e da América do Sul. Portugal, no sonho de Agostinho, não podia ser um rochedo do Império Britânico mas também não havia de ser uma aldeia euro-asiática às ordens de Moscovo.
Há outros textos do meu irreverente dos dois primeiros anos da revolução que contêm elementos de valor para aferir as posições que ele tomou ante os eventos. Um deles é a entrevista a Tereza Sá Nogueira, em 1975, e que deu separata para cem amigos. É texto precioso, escrito em momento crucial, onde se formula voto sobre a reconstrução da sociedade portuguesa. Transcrevo passo (Dispersos, 1988: 28): «Quero, porém, um Portugal pobre, sem sociedade de consumo, sem fumaças nos ares, e despojado uma vez por todas da ideia de que é centro de império ou de que seria seu destino ser Casa Grande duma imensa Senzala. Oxalá se ponha modesto e justo, sociável e compreensivo, síntese perfeita de contrários […].» Parágrafo ainda a meter na conta de importante para se perceber a relação do meu biografado com a Revolução dos Cravos, é o dedicado aos novos países africanos de língua portuguesa. Está lá a visão que ele tem da nova África. Diz assim (1988: 29): «Tentarão que se enamore da ciência prática e da técnica e monte fábrica cujas chaminés lancem, pelas cadências, fumo de gente, não de carvão ou óleo. E tentarão que tome como valor supremo o dinheiro e não a vida. Tem, no entanto, a África, no que disseram Amílcar Cabral ou Samora Machel, bastante munição com que resista, se consolide na sua variedade de gente, na sua primacial atenção à terra e à economia de subsistência, numa educação do conjunto do povo que em pessoa alguma destrua o homem e na tarefa primacial de estabelecer com todos os povos irmãos da América Latina e Ásia laços seguros e íntimos.»
Outro escrito de monta é «Pontos para Um Instituto Africano da República Popular de Moçambique», que só aparece dado a lume no segundo volume dos Textos Pedagógicos (2000: 157-58). É texto dactilografado, sem data, mas que tudo indica ter sido elaborado depois de Junho de 1975, momento em que se deu a independência de Moçambique. Agostinho tinha velhas ligações ao país. Em 1935 estivera a ponto de partir para Lourenço Marques com Berta David; a posição que tomou contra a lei de José Cabral impediu o projecto. Depois foi a sua irmã Maria Cecília e o seu cunhado Arnaldo que bateram asa para Moçambique, por lá ficando muitos anos. Foi lá ainda que a sua velha mamã, Georgina do Carmo, que lhe ensinara ao pé do Douro e do Águeda o bê-á-bá das letras, viu os trabalhos desta vida acabarem de vez. Lá deixou os ossos, obrigando o meu biografado a pôr de forma regular o pensamento na terra do Índico. De Moçambique era ainda Maria de Lourdes Ribeiro, a morena flor que lhe perfumou os passeios de Paris no Verão de 1968, antes de se meter a caminho de Nova Iorque com outra flor, mais alva esta, ao menos de nome, Mariana Alvim. Não me admira pois que quando se deu a independência do país tenha sido grande a tentação do meu biografado em sonhar o destino futuro daquela terra que lhe comera a mãe nas entranhas. Que devaneou ele? O texto é apenas um esboço esquemático em três grandes capítulos — «Divisão da República em si própria», «Divisão da República na África», «Divisão da República no Mundo» — mas o fecho do terceiro ponto esclarece os propósitos do autor. Diz ele (2000: 158): «Horizontes planeáveis do mundo, sob o ponto de vista de uma República Popular de Moçambique votada à Fraternidade Humana.»
Esta humana irmandade que Agostinho sonhou sob múltiplas formas encontrou um acelerador na independência dos países africanos de língua portuguesa. Quer a «Proposição» de 1974, quer o seu aditamento do ano seguinte, quer ainda este texto dedicado à República Popular de Moçambique, a colocar no mesmo período, são a chamada ao concreto das altas ideias de comunhão fraterna tal como Agostinho as ideava desde os tempos da Seara Nova e dos encontros com Sérgio. Houve um momento, o que vai da queda do fascismo até ao primeiro Governo constitucional, em que lhe pareceu possível que o domínio vago e etéreo das ideias descesse até ao desenho concreto do real sensível. Portugal, fruto de circunstância favorável, a das independências dos países africanos, estava outra vez em condições de retomar o papel avançado que fora seu na Idade Média. Não foi assim que sucedeu e tudo regressou, sob um sistema na aparência diverso, só num ou outro ponto diferente, à apagada e vil tristeza de que já o épico se queixara. Esmoreceu o meu sonhador? Nada! Tinha 70 primaveras corridas na carcaça ferrugenta mas estava pronto a ajustar couraça e elmo nos arames velhos para partir pelo mundo a fazer as campanhas do sonho.
4. ÚLTIMAS MISSÕES E ENTREVISTAS DOS 80 ANOS
Já referi uma missão de Agostinho na década de 80, a ida ao Senegal, a pedido da leitora de Português que então ensinava na Universidade de Dacar. Segundo José Blanco, administrador da Fundação Gulbenkian, esta professora era a Dr.ª Maria de Lourdes Roque de Aguiar Ribeiro. É hoje público o relatório que Agostinho fez da sua estadia no Senegal em 1982. Foi dado a lume por Blanco (Agostinho, 2000: 208-11), de resto a melhor fonte de informação sobre o episódio. Agostinho trata aí a professora que o convidou por «Dr.ª Maria de Lourdes Ribeiro», o que me leva a pensar que se trata da jovem flor morena que colaborou num dos projectos baianos de Agostinho (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 376) e depois laureou com ele por Paris em 1968. José Blanco no seu texto informa que Agostinho esteve no Senegal entre 6 de Janeiro e 10 de Fevereiro de 1982, ou seja um mês e quatro dias — o mesmo faz Agostinho no relatório. Para custear a dormida e a alimentação em Dacar, deu-lhe a Fundação uma bolsa de 270 contos. Sobre este dinheiro logo se verá o destino que lhe deu.
Que foi o meu vagabundo fazer ao Senegal? Foi ministrar, como noticia José Blanco, um curso sobre o tema «Fernando Pessoa — Mensagem, História, Ideologia, Mitologia e Projecto». Agostinho, no relatório que Blanco anexa à sua nota, confirma. O memorando do padre-mestre abre assim (2000: 209): «O curso sobre Mensagem de Fernando Pessoa foi dado a uma média de 12 alunos da Escola Normal Superior, estagiários de Língua e Cultura Portuguesa no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Dacar e teve a duração de 25 horas.» Pelo relato tira-se que Agostinho leu e comentou os poemas da obra, introduziu biograficamente o autor, contextualizou as suas ideias de acordo com as leituras que vinha fazendo da cultura portuguesa desde que escrevera em Belo Horizonte, em 1956, Reflexão à margem da Cultura Portuguesa, tocou no significado de Alcácer Quibir e na incompreensão que da batalha tiveram Herculano, Antero e Oliveira Martins. Além deste curso de 25 horas, o meu biografado fez ainda intervenções em aulas de Maria de Lourdes Ribeiro, que versaram a noção medieval da realeza e o sentido republicano do foral, deu uma conferência em francês no Centro de Altos Estudos Afro-Ibero-Americanos, fechou a sessão inaugural do Seminário dos Professores de Português, conferenciou com o Presidente Senghor, estudou uólofe, a língua autóctone do país, ou consolidou o que já no Brasil estudara.
Dirá o leitor que tudo o que aqui se reporta são acções a esperar dum professor. Certo! Nada a contraditar! Só que o meu plantígrado vai nesta altura, em 13 de Fevereiro, completar 76 anos, idade em que qualquer sôtor arrumou já as botas. Ora Agostinho não ferra o galho nem enfia as pantufas. Faz o curso, vai às aulas da leitora, dá conferências, estuda uma língua nova, agenda encontros com o Presidente do país, planeia acções futuras e sabe-se lá que mais. Era preciso ser doutra terra e doutra têmpera, para aos 76 anos de idade, no país inclemente do Sol, manter tal aceleração. Aquilo não era brio profissional; o que por ali andava era, crede, o elmo e a couraça do D. Quixote das pedregosas fragas leonesas de Barca de Alva. Só o sonho justifica tanto ânimo. Mesmo um pirata rijo como este, que em tempos de Ruben A. se erguia da cama às três da matina, não havia de suar assim se o não movesse luz doutro mundo. Falar de Mensagem era tratar do Quinto Império e tratar deste era discorrer sobre a sociedade sem classes, o Reino de Deus, a acracia ou a anarquia. Isto disse ele, e no momento o fez, nanja eu. É ver os dois textos que ele então deu a lume — o primeiro em Pensamento em Farmácia de Província, de 1977 (Dispersos, 1988: 665), o segundo no prefácio que escreveu em 1980 para livro de versos de Vasco da Gama Rodrigues (1988: 678). Em ambos se dá o Quinto Império como o equivalente do Reino anunciado nos sinópticos e da Anarquia do velho príncipe de barbas fluviais, o geógrafo Pedro Kropotkine.
Que mais se sabe da estadia de Agostinho no Senegal? Que atravessou vezes sem conta o estreito que separa a ilha Gore da costa do Senegal para ir visitar um casal brasileiro, então fugido do Brasil dos coronéis, e que Agostinho frequentara em Brasília. Falo de Nazaré e Fabrício Pedroza. Nazaré era estudante de Psicologia da UnB no momento em que se deu o golpe militar de 1964. Estava implicada em ferezas esquerdistas na escola e viu-se em maus lençóis. Entrou na clandestinidade, fugitiva e disfarçada. Foi então que falou com o meu atlante pela primeira vez, que, tomando nota do entalão em que a menina estava, tudo fez para lho aliviar. Agostinho, coração de oiro, sensível como ninguém a estes e outros apertos, tratou de imediato de lhe resolver parte da angústia, garantindo-lhe as condições para ela frequentar as aulas sem ser aborrecida pela polícia. Agostinho, com a queixada de arreganho, o dedo em riste, calava o procaz mais teso. Era perito em soluções para casos assim. Bastava um «chut» dele e a sala mais ruidosa amansava. Viu-se em São Paulo, na Biblioteca Municipal, no Verão de 1945. Tanto encalacrava um bardino académico aperaltado, como fizera com Fortes no júri das Belas-Artes de Lisboa, como punha em sentido os abades e os peraltas da reitoria. O certo é que a menina acabou os estudos com alguma tranquilidade, formando-se em Psicologia. A história é por ela contada no depoimento que deu para o In Memoriam de A. da S. (2006: 349-51). Como se tira do conto, Nazaré ficou para sempre credora de Agostinho. Não podia ser doutro jeito. O Augusto do Instituto de Letras não só lhe dera refrigério às penas como lhe servira de broquel. Nas palavras dela, «fiquei fascinada com o meu novo amigo»! Já se sabe o que isto quer dizer. Basta lembrar Ruben A., Victor de Sá, Dora e Vicente Ferreira da Silva, Edson Nery da Fonseca, Lírio Zani, Eduardo Lourenço, Roberto Pinho, António Telmo e tantos outros. Enquanto ele esteve em Brasília, não deixou pois a menina de o procurar, nos reservados da Trapa, para com ele se pôr à fala. Um carão assim fascinante não se repetia em todo o Brasil, quanto mais ali na capital. Depois, quando Agostinho se cansou do Brasil do cotim e da espingarda, os contactos mantiveram-se, por carta, à distância, ele em Portugal e a menina ainda no Brasil.
Carta? Agora me lembro que ainda não falei da correspondência epistolar do meu biografado. Que mácula tamanha! Se alguma acção define este homem foi a correspondência escrita que enviou. E eu sem dela dar nota. Que miserável biógrafo! Emparelhar tanta linha sem trazer ao baile as suas cartas é crime de lesa-majestade contra um homem que escreveu milhares e milhares de cartas, numa caligrafia impensável, toda seguida, quase sem paragens, um único traço pontuado por altos e baixos, que só ele sabia decifrar — escrita certa, segura, firme, regularíssima como o bater dum coração vigoroso, escrita dum homem genial, sem pressas de chegar a nenhum lado e apenas tocado pela leve impaciência de apressar a chegada do bem universal. Nunca deixou uma carta por responder, malgrado ter dias de receber dezenas. Despachava a correspondência logo de manhã, depois de acordar — ao menos na época do final da vida. Lydia Hortélio, que andou a vadiar com Agostinho pelas Europas no Verão de 1967, conta que o homem lhe aparecia todas as manhãs ao pequeno-almoço com um giro de cartas prontas à expedição. Diz: (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 211-12): «Convivi com o Prof. Agostinho da Silva ao longo de muitos anos, mais de trinta, por carta e pessoalmente, no Brasil, em Portugal e durante uma viagem pela Europa Central (Suíça, Alemanha, Holanda, Bélgica, França), no Verão de 1967, quando visitámos lugares históricos, Museus de Arte, de História Natural e de Navegação. Tínhamos então que sair todo o dia muito cedo. Não sei a que horas acordava para trazer no café da manhã uma pilha tão grandes de cartas. Assim é que as nossas não ficavam sem resposta.»
Retomo a história de Nazaré Pedrozo. Em 1975, no Governo do general Ernesto Geisel, ao fim de anos de instabilidade, foi obrigada a fugir do Brasil e a procurar um país que a acolhesse. A Costa do Marfim mostrou-se disponível. Formalizou o asilo político e instalou-se com a família. Depois andou por vários países da região até que se fixou por um tempo no Senegal. Quando Agostinho acorre à chamada de Maria de Lourdes Ribeiro, não se esquece da menina que fora a sua flor de estimação no campus de Brasília, a quem com tanto cuidado, na estação seca dos militares, dera duas pingas de água. Estivesse ela no Gana ou na Serra Leoa e Agostinho não deixaria de lá dar um pulo para a abraçar. Mas estava apenas na ilha Gore, a um passo de Dacar. Visitou-a pois amiúde, atravessando de barca o estreito canal que separa a ilha da costa. Havia por lá três miúdos com quem Agostinho se entretinha a palrar. Isto diz Nazaré no seu testemunho (2006: 350). Se o leitor me permite uma curta suposição, deixo o palpite que por lá também havia gatos. Gatos, miúdos e epístolas eram os brinquedos preferidos de Agostinho no fim da vida; valiam os zuavos da sua infância. Às vezes a fortuna consentia que se juntassem os três. Leda Naud, esposa de Santiago Naud, o editor em Porto Alegre do livrinho dedicado ao queridinho da Ofélia Queiroz, deixou sobre isto um ponto irresistível. Diz assim (In Memoriam de A. de S., 2006: 289): «Quando Ludmila, minha neta, veio morar comigo, ele a encomendou a um anjo-da-guarda. […] Escreveu cartas lindas para ela, que, quando aprendeu a ler, apreciou-as muito. Antes porém, ela lhe mandou um bilhete com impressões de patas de gatos. Ele respondeu com outro, com as impressões das patas dos seus gatos. Ludmila o chamava de “o George”.» Gatos, crianças, epístolas! A tríade hipermágica do meu danado! Imagino a alegria naquela alma… Era um fogo-de-vistas que nem noite de S. Silvestre!
Regresso ao Senegal, no mês de Janeiro de 1982. Ana Ribeiro, filha de Maria de Lourdes Ribeiro, no depoimento que deu para o In Memoriam de A. da S. (2006: 30-31) diz que teve por tarefa mostrar a cidade ao marinheiro acabado de chegar do Bairro Alto. E conta que Agostinho em vez dum passeio programado, preferiu ficar com ela sentada nas escadas do hotel a ver as expressões, os penteados, os enfeites, as roupas, o calçado, o jeito de quem passava. Aprendia mais assim dum lugar, dizia ele, que em visita oficial guiada. Esta Ana Ribeiro foi das que recebeu correspondência de Agostinho quando pitorra. Um postal ilustrado dizia assim (2006: 31): «Mando-lhe este postal porque tem um chita e você me faz lembrar um chita.» Agostinho na conversa com as crianças. Não fosse ele o Sócrates do seu tempo, e logo se tomaria o caso por estranho. Assim não.
Está tudo dito sobre a estada de Agostinho no Senegal em 1982? Não. Falta o melhor. Agostinho quando chegou a Lisboa pôs-se a fazer o relambório da viagem para entregar à Fundação. Quando lá foi com o papel para entregar, levava junto dois cheques, um de 90 mil escudos e outro de 55 mil, no conjunto 145 mil escudos. Quer dizer, Agostinho chegou a Lisboa, sentou-se na salinha do Bairro Alto, olhou os telhados de Lisboa e, lá para o fundo, a barra do Tejo; fez depois contas dos gastos e deu-se conta que tinha a devolver dinheiro à Fundação. Só este rústico! Em vez de gastar o dinheiro em guloseimas lá por Dacar ou em lugar de se abotoar com ele à chegada, que a Fundação disso não curava e tinha por sistema «se poupou é dele e se gastou já foi», pôs-se a fazer contas para apurar a dívida. Conclusão: devolveu mais de metade do dinheiro que recebera. Blanco, administrador da Fundação, quando deu com os cheques, arregalou os olhos, incrédulo. Só nesse instante deve ter sopesado a qualidade do bicho. Aquilo era formigão sem réplica; não havia dois a porem pata na Fundação. Foi um alvoroço pegado nos serviços de contabilidade, que não tinham precedente para devolução de dinheiro em décadas de trabalho. Nem sequer sabiam o que fazer. O hábito era sair — um ver se te avias de cheques — e não entrar. Não invento nada, caro leitor. Isto diz Blanco na nota que escreveu sobre o caso. Dou-lhe a palavra (Agostinho, 2000: 208): «Agostinho da Silva esteve em Dacar um mês e quatro dias, mais precisamente de 6 de Janeiro a 10 de Fevereiro. No regresso, apresentou à Fundação um relatório no fim do qual explicava as razões por que nos devolvia a importância de 145 contos, não utilizada, do subsídio que recebera (e de que não tinha que prestar contas!). A atitude do filósofo, por inesperada e inédita, causou problemas ao serviço de contabilidade, que nunca havia sido confrontado com um caso de devolução de dinheiro. Mas tudo se arrumou, e o crédito de 145 contos foi devidamente contabilizado.»
Pergunta-se: não precisava este homem do dinheiro que devolveu à Fundação? Em 1982 já recebia a pensão de reforma que lhe era devida como professor titular da Federal de Santa Catarina. Tinha 20 anos de ensino universitário no Brasil — começara na Fluminense de Niterói em 1949 e terminara em Brasília 20 anos empós — e a pensão algum suco espremia. Nessa época já não era o sem-abrigo que respondera a Tereza de Sá que vivia do que lhe davam (Dispersos, 1988: 24). Agora, no momento do Senegal, havia o el contado todos os meses da reforma. O problema é que a conta ficava no Brasil e ele nem lhe punha olho. Estava-se no ponto de Brasília. Agostinho dava o dinheiro à esquerda e à direita, dormindo no cerrado numa minúscula cela de barracão, em cima duma cama de campanha. Já antes de Brasília a mania de esvaziar os bolsos com os necessitados era grande. Recorde comigo o leitor a historieta de Lírio Zani, o amigo do Piúsca na escola industrial de Florianópolis, que comia uma vez por dia, sempre à custa da bolsa do meu herói (In Memoriam de A. da S., 2006: 293). Agora estava em Lisboa, na casinha do Bairro Alto, ao pé de Maria Violante, num prédio de três andares, modern style, de boa cara, embora simples, a que estava ligado Leitão de Barros, mas a relação com o dinheiro não mudara um milímetro. A sua única alegria com o maganão era desfazer-se dele. Se não houvesse pobres no mundo, pegava-lhe fogo e deixava subir a labareda para nela aquecer as mãos. Dinheiro só era mesmo bom para fazer fogueira e bailar por cima com pandeiro. Como havia paupérrimos, ele empregava neles o papel. Quem o diz não sou eu mas quem viu. Por exemplo Sílvio Coelho dos Santos, que foi seu aluno na Faculdade de Filosofia de Florianópolis, deixou o seguinte passo sobre o assunto da sua pensão de Santa Catarina (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 192): «Menção especial deve ser feita à Prof.ª Aurora Goulart. Ela foi procuradora do mestre Agostinho, desde sua ida para UnB. […] Quando, porém, ele se afastou da UnB, numa digna atitude de rebeldia à intervenção militar, e mais adiante regressa a Portugal, autorizou a Prof.ª Aurora a aplicar seus vencimentos em benefício duma obra educativa de menores pobres. E prosseguiu com tais práticas, até que nos últimos anos de sua vida, seu singelo apartamento no Abarracamento de Peniche, em Lisboa, era referência para inúmeros necessitados.»
Por aqui se fica pois a saber que o dinheiro da reforma de Santa Catarina era deixado por Agostinho no Brasil ao cuidado de Aurora Goulart em Santa Catarina para que servisse de esteio a meninos pobres que queriam estudar. Há pelo menos um outro testemunho que confirma o caso da pensão. Encontro-o em Maria Eduarda Faria da Rosa e diz assim (In Memoriam de A. da S., 2006: 318): «Um dia, no Verão de 1991, estava eu de férias na minha ilha natal, o Faial, escrevi ao Professor Agostinho, dizendo que gostaria de o conhecer pessoalmente. Na volta do correio, tinha a resposta. Que mal chegasse a Lisboa lhe telefonasse para nos encontrarmos. Do nosso primeiro encontro, recordo uma carta que ele me deu de uma amiga do Brasil chamada Aurora. “Leve-a e leia-a na viagem.” Assim fiz. Devo confessar que cheguei a Setúbal com as lágrimas nos olhos. Era uma carta em que essa amiga lhe contava o que tinha feito com o dinheiro que ele lá deixara para ajudar as crianças. A minha comoção tinha a ver com o contraste entre o desperdício que aqui se fazia do material escolar e o deslumbramento por compreender que no Brasil um lápis ou uma borracha podia ser uma prenda muito gratificante para uma criança.»
Se devolvia o dinheiro da Fundação, se só lhe chegavam novas da reforma do Brasil através de cartas idênticas à que Maria Eduarda Rosa reporta, de que vivia afinal o meu Silva neste período? Estou a tratar do homem mais barato que já se viu por estas bandas. Lembra-se o leitor o que António Telmo dele disse? Recordo, citando (Agostinho, 2000:59): «Durante todo o dia, comia apenas pela manhã um pedaço de bolo inglês ou pão com queijo. Se, na hora de vir da Trapa para a Universidade ou de ir da Universidade para a Trapa, distantes uma da outra uns três ou quatro quilómetros, acontecia desabar o céu em águas, por entre trovões e relâmpagos, nós, debaixo das telhas, víamo-lo caminhar num passo certo, o mesmo que teria se o Sol brilhasse benigno.» O meu homem comia uma vez no dia e de forma austera. Demais nem de guarda-chuva precisava. A roupa seguia o mesmo regime; quando o rei fazia anos comprava umas peúgas de feira. O resto não mudava; era sempre igual. Quando o conheci no lançamento de Dispersos, em 1988, usava ainda as camisetas que comprara 20 anos antes, à chegada a Lisboa. O casaco parecia aquele com que se pusera na alheta em 1944. Tinham passado 40 anos e ele sempre a usá-lo. Mudá-lo para quê? Eram todos iguais. O que se diz do casibeque, também calha às solas, mais gastas do que as de Camões em Seca e Meca. Entre os arreios vistosos da gente de charme que estava nos Jerónimos, Agostinho, que era ali o centro da roda, fazia figura de bisonho e sisudo porteiro da festa a quem se esqueceram de levar a farda. Para tudo dizer, o meu biografado só precisava de dinheiro para roer a côdea de manhã e para tratar da gataria que trazia a cargo. Ah! E do dinheiro do passe, para bater para Sesimbra, onde tinha a corte dos gatos. Mas até neste caso não me espanto que em dias de mais síria ele fosse a butes para a Piscosa. Uma vez ou outra há-de ter acontecido. Mais barato do que este homem, só mesmo o poverello de Assis, que nem de comer necessitava e se preciso fosse até nu andava. Para tão pouca despesa, ainda chegava bem a fina e discreta mão de Maria Violante Vieira.
O curso em Dacar não foi caso único na vida deste Agostinho septuagenário. Outras missões houve na sua vida neste período. Com a chegada de Fernando Cristóvão à direcção do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP), a sua colaboração com este estreitou-se. O serviço funcionava num palacete da Praça do Príncipe Real. À praça, onde havia um desses jardins oitocentistas de lago e meio, quiosque e árvores que pareciam estar lá desde o tempo do Paraíso, ia Agostinho todas as manhãs dar milho aos pombos. Uma das árvores, a mais larga, um cedro balsâmico, pintava as suas delícias; sentar-se debaixo era estar sob a asa protectora duma Tágide. O jardim ficava a dois passos da Travessa do Abarracamento de Peniche e é de crer que o director do instituto lá o topasse amiúde. Palavra aqui, palavra ali, Cristóvão passou a querer dele conselhos e orientações. O serviço tinha a cargo os leitorados de língua portuguesa no mundo, matéria que o meu homem, antigo bolseiro da UNESCO em Tóquio e professor visitante do Queens College, conhecia de ginjeira. O director do instituto, formal e assertivo, não seria talvez mais do que um solitário burocrata casado com a folha oficial de 25 linhas; Agostinho, por sua vez, era um gatarrão de sete vidas, que pintara a manta no Brasil e a que nenhum domador punha trela. Deixado à solta era porém meigo como gatinho caseiro. Isto chegou para convencer o apessoado dono do instituto que da fera assustadora só vinha ganho, nunca perda, desde que não lhe mostrasse arreio ou chibata. Arranjou-lhe um gabinete para desenvolver, sem entraves, às horas que entendesse, o trabalho que escolhesse. Ora a maravilha! O ex-assessor de Jânio Quadros com uma sala à disposição num palácio do Príncipe Real! Não se tratava de figurão para se entrincheirar atrás duma secretária e daí disparar ordens como setas ervadas. Usou pois o gabinete para chamar os amigos e conversar na boa. O parlapié era o que de melhor o mundo tinha. Resultaram daí, como quem nada fazia, duas linhas de trabalho valiosas — por um lado, o diálogo com a Galiza, que já vinha de trás, dos tempos do carimbo no passaporte, e muito convinha ao instituto, que tinha por obrigação a promoção da língua, por outro, os contactos com Olivença, que credito em absoluto à conta de Agostinho. Quer num ponto, quer noutro, o meu velho rodou muito trabalho e em ambos distribuiu dividendos. Isto aos 80 anos, atenção! Era um habilidoso que não deixava por alheias mãos o crédito que lhe vinha desde as pautas do Liceu Rodrigues de Freitas.
Sobre os resultados da sua acção no instituto, passo a palavra a Cristóvão, que se outro mérito não tem fica com este, que não lhe tiro, de ter dado ouvidos ao índio de Itatiaia (In Memoriam de A. da S., 2006: 136-37): «A colaboração de Agostinho no ICALP foi preciosa não só internamente pelo acompanhamento e aconselhamento dos seus dirigentes e leitores, mas, sobretudo, no apoio a iniciativas muito concretas, tais como os contactos com a Galiza e o apoio a Olivença. Foi muito estimulante a sua orientação no modo de proceder com a Galiza, próxima do nosso Minho, como “noivos que nunca chegaram a casar” e constituía uma região culturalmente homogénea, o que levou a contactos diversos e profícuos com a Universidade de Compostela e intelectuais galegos, nomeadamente com Carvalho Calero e as Irmandades da Fala, e à sua participação como observadores nas negociações do Rio de Janeiro, para um acordo ortográfico, em 1986. O relacionamento com Olivença foi mais intenso, sem preconceitos revivalistas, muito apostado no ensino da língua e cultura portuguesa, contando com várias viagens e intercâmbio, especialmente pelo envio de um professor de Elvas, e pela difusão do slogan “uma cidade, duas culturas”.»
No quadro das relações com Olivença, o meu sáurio chegou a pular ao burgo oliventino, numa tarde de Outubro de 1987, já ele ia a caminho das 82 primaveras, para assistir ao lançamento das actas relativas aos primeiros Encontros da Ajuda, que haviam acontecido dois anos antes no castelo do povoado e nos quais colaborara enviando texto, já que não pudera estar presente. Desconheço o conjunto mas conheço o texto de Agostinho publicado no livro. Chama-se «Uma Carta de Ajuda» e foi recolhido em Dispersos (1988: 763-66). É um repisar dos tópicos que lhe vinham do convívio com Cortesão nos finais da década de 40 e um ponto sobre o papel dos países peninsulares em hora de entrada na Comunidade Económica Europeia, cujo tratado de adesão Portugal assinara — era Mário Soares primeiro-ministro do IX Governo constitucional — em 12 de Julho de 1985. O fecho do texto é críptico e monumental. Esconde a chave com que trabucou as relações com Olivença neste tempo. Que fez ele? Deslocou-se a Olivença, recebeu em Lisboa os oliventinos, mobilizou instituições portuguesas (Gulbenkian, Imprensa Nacional, Biblioteca Nacional, Casa do Brasil, Instituto Cultural de Macau) para dotarem as bibliotecas de Olivença com livros, cativou uma bolsa para uma investigadora — Maria Cecília Guerreiro de Sousa, que fora sua colaboradora no CBEP de Brasília — com o fito de se catalogar a documentação sobre o burgo fronteiriço existente em Lisboa. Luiz Alfonso L. Píriz, interlocutor de Agostinho nesse período, fez o seguinte balanço (In Memoriam de A. da S., 2006: 298): «Antes de 1985 se puede afirmar que Olivenza estaba casí por completo de espaldas a Portugal. A partir de esta fecha se iniciaron unas relaciones y una amplia serie de contactos, propiciados por los Encuentros de Ajuda. Después de 1985, el profesor Agostinho, el gran idealista y soñador, logró institucionalizar el “espíritu de Ajuda” y materializarlo en un acuerdo concreto e permanente de colaboración.»
A peça-chave deste processo foi o ensino gratuito do português em Olivença — o «professor de Elvas» a que alude Cristóvão. Agostinho cogitou na salinha do Príncipe Real no modo de arranjar uma bolsa do Ministério da Educação que garantisse o ensino da língua portuguesa na cidade da margem esquerda do Guadiana. Conseguiu por fim o apoio financeiro oficial para que todos os anos, de forma gratuita para os oliventinos, seguisse de Portugal um professor disponível para ensinar na terra o português. Tudo isto é exaltante mas o mais extraordinário ainda está para vir. Quando se deu a mudança de Fernando Cristóvão à frente do ICALP, o que aconteceu no final da década, a nova direcção por questões orçamentais cortou o apoio ao município fronteiriço. A questão levantou bruaá na imprensa mas Agostinho não ficou à espera das sopinhas dos políticos. Aquilo que se fizera em Olivença a favor da língua portuguesa não podia amortecer. Pegou no dinheiro que tinha, ou que quotizou entre os amigos, e enviou-o para Olivença. Assim, sem mais! Este gesto é o melhor da história. Dou a palavra a Luiz Alfonso Píriz (id. ): «No me resisto a contar aqui una pequeña anécdota, reflejo de su liberalidad y bonhomie. Algunos años después, cuando el professor Fernando Cristóvão no ocupaba y ala presidência, el ICALP rehusó renovar al Ayuntamiento la subvención recibida en años anteriores alegando los consabidos recortes presupustarios. La amplia difusión de esta noticia en la prensa obligó al ICALP a dar marcha atrás. Pero la reacción del prof. Agostinho fue inmediata: nos envió 100 000 escudos de su proprio bolsillo.» Mais tarde, já depois do passamento do meu homem, o acordo foi extinto. Não obstante a miopia dos lusos politiqueiros, o município de Olivença baptizou o departamento de português da Universidade Popular local com o nome de Agostinho da Silva, que ainda hoje se mantém. Para os de Olivença, o velho de Barca de Alva, raiano e bilingue, criador desse estranho e perseguido José Maria Carriedo, personificava os ideais ibéricos, um furo acima dos interesses particulares das várias nacionalidades peninsulares.
Além da Galiza e de Olivença, em marés de ICALP, houve ainda Moçambique. Cristóvão em 1988, no momento do lançamento do livro Dispersos, ainda se encontrava à frente do serviço e esteve na sala do primeiro andar dos Jerónimos ao lado de Agostinho. Ora o serviço que este foi fazer a Moçambique já andava previsto pelo menos desde a primeira metade do ano de 1987. Numa carta a José Flórido de 8 de Julho de 1987 (1997: 181) dá como certa a viagem a Moçambique, apontando-a para Outubro. Não sei por que voltas, a viagem só se veio a realizar no princípio do ano seguinte, estando Agostinho de volta no final de Abril. Em carta a Flórido de 28 de Abril de 1988 diz que acabou de regressar e dá uma achega sobre os motivos que o levaram ao país africano do Índico. Cito (1997: 197): «Quadrinhas […], que leio só agora na volta de Moçambique, onde fui ver o que se poderá fazer na Ilha. Qualquer coisa que até pudesse ter interessado o Camões, aflito para ver Lisboa. O que se propôs e foi achado bom é uma “asa de estudos Tomás António Gonzaga” que ali morreu desterrado.» Fica esclarecido o motivo que o levou a Moçambique: visitar a ilha de Moçambique, perto de Nampula, no Norte, para se inteirar do estado do Forte e adiantar uma ideia para o seu futuro. Desconheço se chegou a haver casa de estudos como desconheço qualquer outro seguimento para o assunto. Sei que em Maputo, de caminho para o Norte, visitou a campa da mãe, falecida quando ele estava com Judith em Santa Catarina, em 1957. O informe é dele em A Última Conversa (2001: 54): «Sim, estive em Moçambique. Mas foi já depois de ter regressado do Brasil. Estava no ICALP, deparou-se-me algo em Moçambique que era interessante fazer e ofereci-me para ir lá. Em Lourenço Marques, aproveitei até para visitar a campa da minha mãe…»
Com o aproximar do dia 13 de Fevereiro de 1986, em que o meu velho apagava no bolo de aniversário 80 velas, houve uma mão-cheia de entrevistas. Sobrevivia ainda a memória da sua acção pedagógica nas décadas anteriores ao Brasil e a forte impressão que os cadernos culturais, as palestras em sociedades de recreio e em escolas, os programas radiofónicos, os passeios por ele organizados, a polémica com os católicos da cruz e do cacete, a colaboração nos jornais, a prisão no isolamento do Aljube haviam deixado. Sobreveio o interesse por saber o que andara ele a fazer pelo Brasil durante um quarto de século e que continuava uma incógnita. Se havia um retrato perto do nítido para o jovem doutor da Faculdade de Letras do Porto que colaborara com António Sérgio na Seara Nova, já do Agostinho que desandara para o Brasil e de lá voltara americano não se sabia peva. Castelo Branco Chaves e Álvaro Salema, entre outros, estavam vivos e podiam testemunhar do primeiro Agostinho; do segundo, só se sabia das embrulhadas de Brasília, por via de Adriano Moreira, Almerindo Lessa, António Quadros ou António Telmo. O resto era escuridão; estava por aclarar. Demais, apesar das cãs de octogenário, este homem tinha o sangue a saltar na guelra como mostravam as iniciativas no palacete do Príncipe Real e as inúmeras folhinhas dactilografadas que fazia circular entre os amigos e eram agora a sua forma de comunicar com o mundo. Para atiçar a curiosidade apresentava-se como um simplório de província, com camisetas foleiras e sem graça, que todas as manhãs podia ser visto a dar milho aos pombos, debaixo do cedro do Jardim do Príncipe Real.
Vieram pois as entrevistas, umas atrás das outras. Agostinho era uma língua de diamante, que nunca por nunca se escusava a uma boa conversa. A primeira grande entrevista foi feita pela revista Grande Reportagem, pela mão de Joaquim Furtado, e publicada em cinco partes entre 7 de Dezembro de 1984 e 4 de Janeiro de 1985. Antes dela, que me lembre, só a fugaz aparição no programa «Zip-Zip», no final de Agosto de 1969, no momento em que acabava de chegar a Portugal, e a conversa com Tereza Sá Nogueira, em 1975, que nunca chegou a ser estampada em folha de couve e só circulou em carta dactilografada corrida a cem amigos. Veio depois, em Dezembro de 1985, a poucas semanas de lhe cantarem os parabéns dos oitenta, a entrevista da revista Filosofia, da responsabilidade de Joel Serrão e que contou com a colaboração de João Lopes Alves, Nuno Nabais, António Braz Teixeira e José Pedro Serra. É talvez a mais extensa, a mais completa e a mais importante entrevista que deu. São riquíssimas as notícias autobiográficas que aí se avançam. Está hoje recolhida em Dispersos (1988: 45-80) e nenhuma biografia que se queira escrever sobre Agostinho pode passar sem ela. Foi uma das fontes mais profícuas para este meu livro. De seguida, em Março de 1986, veio a entrevista à revista ICALP, com perguntas de Fernando Cristóvão e Maria Idalina Resina Rodrigues, também ela cheia, demorada, intorneável para se falar da biografia deste homem desde os primeiros tempos até aos de Salvador da Baía e de Brasília. Ainda no ano de 1986 houve mais cinco conversas, todas entremeadas de aspectos biográficos. A primeira ao Diário de Lisboa (19-4-1986), de Lurdes Féria; a segunda ao Diário Popular (5-5-1986), de Orlando Raimundo; a terceira ao Correio da Manhã (31-1/5-6-1986), de Victor Mendanha; a quarta ao Diário de Notícias (20-7-1986), de Antónia de Sousa; a quinta ao Jornal de Letras (15-9-1986), de Carlos Câmara Leme. Esta última fez-se acompanhar dum depoimento de Mário Soares, já então Presidente da República — acabara de ser eleito em Março desse ano contra Freitas do Amaral. Para além destas, houve ainda o registo que Henryk Siewierski gravou com Agostinho por esta mesma época, no Outono de 1985, e de que veio a resultar anos mais tarde, já depois do desaparecimento do meu biografado, o livro Vida Conversável (1994), do qual ainda direi adiante algumas palavras.
5. A GRÃ-CRUZ DA ORDEM DE SANTIAGO DA ESPADA
Sobre as relações de Mário Soares e Agostinho da Silva alguma coisa há para dizer. Como primeiro-ministro um dos escaninhos que espantou Mário Soares foi o silêncio do seu velho pedestre das azinhagas de Benfica. O homem batera-se pela liberdade, fizera uma obra educativa sem par, tomara à sua conta partes inteiras da Seara Nova, fora preso e isolado no Aljube, exilara-se no Brasil, ligara-se a Sérgio e ao grande Cortesão, todos o recordavam com o maior respeito e agora, chegado o tempo de todas as desforras, limitara-se a fazer pressão à distância, por meio de circulares batidas à máquina, quando não rascunhadas à mão, a que ninguém ligava, já que não tinham força de partido por detrás. Os outros, mesmo os que pouco ou nada haviam feito, a não ser seguir ordens, tinham ido bater à porta da nova situação a exigirem mundos e fundos; ele, que tirara a obra dos cadernos, que fora demitido por não se submeter a uma das mais execrandas leis do salazarismo, que sofrera prisão e exílio, nunca aparecera por nenhuma secretaria a exigir fosse o que fosse — nem ao menos a reintegração. Mais tarde, em A Última Conversa (2001: 82), o meu biografado dirá que o não fez, ao contrário dos outros, porque não tinha a certeza se o tinham demitido ou se fora ele próprio que se demitira. E caso ele se tivesse demitido, nada tinha a pedir ao Estado português.
Soares, já primeiro-ministro, esperou que o homem lhe falasse. Nem sinal! Agostinho calado. Com o pó que lhe ganhara por causa das leis contra a reforma agrária dava-o de barato. Nada queria com ele. Soares, por seu lado, sabia o que lhe devia; se deixara de ser a mosquinha-morta dos primeiros anos, o crédito era do magíster da Palhavã. Não quis deixar de chegar à fala com o velho mestre. Calculo que foi a primeira conversa entre os dois desde os tempos do Brasil. Telefonou-lhe, marcou-lhe encontro, recebeu-o. O cavaco tocou os afazeres de Agostinho. A certa altura, o primeiro-ministro pergunta (Última Entrevista, 2001: 83): «Em relação ao seu afastamento do ensino, foi demitido e nunca o reintegraram?» Resposta do mestre: «Também nunca pedi isso.» Ao que Soares replica: «Bom, então vou pedir eu!» E pediu. Só que o Presidente da República da época, Ramalho Eanes, vetou a proposta e ficou tudo sem efeito. Quem ficar a pensar que Agostinho amuou, e foi fazer bruxedos contra Eanes, é porque ainda não conhece a alma do meu biografado. O inverso é mais verdadeiro. Deu-se por grato e ficou de bolsos limpos, que era como ele gostava de passear pela Rua de São Marçal. Conta ele (Última Conversa, 2001: 84): «Como já disse, o Soares apressou-se a enviar a proposta ao Eanes, mas ele vetou-a. Nessa altura, quiseram saber se eu tinha ficado contra o Eanes. E eu respondi: eu? Bem pelo contrário, até fiquei foi agradecido.»
Agradecido por que razão, pergunta o leitor? Ter atrapalha, dizia o meu nómada, atrevido e grave, a José Flórido (In Memoriam de A. da S., 2006: 264). Não há melhor legenda para o homem que criou a Trapa de Brasília e deixou a pensão de reforma ao cuidado de Aurora Goulart, para não falar no cacau de Olivença e em tanto mais. Numa carta ao mesmo Flórido desenhou o programa da sua vida desta forma. Diz assim (22-8-1976; 1997: 127): «Viver pobre, viver modesto, viver estudando para mais ter que adorar, viver servindo, viver eliminando os problemas próprios para ter apenas os dos outros, viver com os pés no possível para atingir o impossível, no real para chegar ao irreal e tão plenamente no presente que sempre é ou seja no futuro saudade estimulante ou universalizante.» Se há um segredo na vida de Agostinho, uma chave para aceder ao seu motor interior, um letreiro que justifique por si só toda a sua vida, é só este viver pobre e modesto. Foi isso que lhe permitiu dar com os pés na «lei Cabral» e mandar ao bilhar grande a dupla da reitoria de Brasília. Foi ainda o mesmo princípio que lhe permitiu dar de barato os direitos de autor, isto em época em que os editores lisboetas vendo as parangonas em que a figura dele andava na grande imprensa se lançaram sobre os seus escritos como hienas esfomeadas, reeditando a torto e a direito. Não pediu um chavo pelas reedições, que se sucediam às boas. Quando o interrogavam sobre tal desperdício, limitava-se a dizer que sempre advogara uma propriedade à disposição de todos, em que tudo fosse gratuito. Disto falavam os artigos da «Proposição» e por nada deste ou doutro mundo lhe faltaria. Para tudo dizer, sabia que à tal propriedade colectiva só se chegaria pelo exemplo de cada um, não por decreto-lei. Numa carta a Flórido, do final de 1985, expõe a sua posição neste campo (1997: 167): «Acontece, por outro lado, que considero tudo o que escrevo ou escrevi do domínio público: tudo está à disposição de todos.» Não muito depois, no final de 1986, ou no princípio de 1987, na conversa com Antónia de Sousa, retomou o caso para dar um exemplo concreto, dos muitos em que se viu metido por esta época. Passo-lhe o óculo (O Império Acabou. E agora?, 2001: 153): «Disse-lhe que o Hermínio Monteiro, da Assírio & Alvim, esteve cá? Queria que eu fizesse um prefácio ao livro do Teixeira de Pascoaes, o Regresso ao Paraíso. […] Há uma coisa que eu não quero, disse logo para o Hermínio Monteiro: não quero direitos de autor. E ele perguntou-me: «Porque é que não quer direitos de autor?” Porque não tenho a certeza filosófica de que sou o autor das coisas que escrevo. Ninguém tem. Eu sei lá como é?! Eu não sei como é essa história do reino das ideias! É capaz de ser uma coisa complicada e eu agora apareço a cobrar por uma coisa que eu não sei que é minha?»
Nunca daqui saiu e mesmo neste período em que os prelos gemiam sem parar com os seus livros recusou-se sempre a receber a mais pequena bagatela da mão dos editores. Este folião tinha uma chaveta de meter na ordem qualquer bardino. Era um daqueles portugueses ao modo antigo, anteriores à menina dos cinco olhos da escola pública ou da polé do tribunal da fé; ainda a Europa passeava por casa as chinelas e já eles pintavam a manta pelos mares da China. Mas o que é admirável e exemplar neste meu biografado é o desinteresse olímpico que ele mostra pelo dinheiro. Dinheiro só serve para dar, diz ele. Quando não, lixo ou fogueira com o velhaco!
Regresso a Mário Soares. A vitória nas eleições para a presidência, em Março de 1986, coincidiu com a sucessão de entrevistas que vinham do ano de 1985 e se arrastaram até ao final de 1986. Soares, agora Presidente, não quis ficar em terra, a seco, e voltou a chamar Agostinho. Há notícia de telefonema do Presidente em Inácio Fiadeiro — de que também ficou registo na imprensa na época (cf. O Jornal, 10-10-1986). Ao que dou nota no que leio, Soares desta vez fez mesmo questão de visitar Agostinho em casa, não de o sentar nas almofadas do gabinete, como fizera no tempo dos primeiros Governos constitucionais. O meu irreverente aproveitou para demorar a ementa, pois tinha umas somas a liquidar com o antigo pupilo. Fiadeiro conta assim (In Memoriam de A. da S., 2006: 188): «A segunda foi um telefonema do Presidente da República que pretendia aconselhar-se sobre certo problema. Ele disse: “Só no dia 16 à tarde (oito dias depois), pois vêm outros amigos conversar comigo e tenho que ensinar a minha mulher-a-dias a ler. E claro que é assim porque o senhor tem que vir como amigo, pois se vem como Presidente, eu não o posso insultar…”» Era assim que Agostinho se dava ao estipêndio de falar com o Presidente da República. A mulher que o ajudava a fazer a limpeza da casa na parte final da vida passava à frente de Soares. Eis outro momento admirável do meu biografado. Sobre esta senhora deixou Agostinho uma interessante deixa na conversa com a jornalista do Diário de Notícias (O Império Acabou. E agora?, 2001: 19): «Quando ela veio aqui a primeira vez, depois foi-se queixar que eu tinha feito a cama. A ela pareceu uma traição aos seus deveres de funcionária encontrar a cama feita, mas que sujeito extravagante é este.»
Que lhe queria Soares? Simples. Se não podia tratar com ele da reintegração, como fora seu desejo cerca de 1978, podia ao menos condecorá-lo. Sabe-se que em 1986, Soares lhe quis dar a Ordem da Liberdade. O homem batera-se pelo ensino, polemizara com os fachos dos jornais católicos, dera com os ossos no isolamento do Aljube — merecia pois tanto como os dos partidos a distinção. Foi por certo para lhe comunicar a novidade que quis visitá-lo no Bairro Alto. Julgava que lhe ia falar à vaidade e acabou vaiado. A reacção de Agostinho deve ter roçado o brutal. Alto lá com isso — vociferou. — A Ordem da Liberdade? Nem pense, senhor! — Ponto final. Foi contumaz e severo na recusa; nada o demoveu. Soares deu meia-volta meio amuado, meio estupefacto. O velho tinha pedra na tola e ele, Soares, costas fofas para tanta maluquice. De seguida, na conversa que teve com o Jornal de Letras, Agostinho tocou a questão, sempre inflexível. Cito (Dispersos, 1988: 170): «Quando o dr. Mário Soares me quis condecorar com a Ordem da Liberdade recusei, já que sempre defendi a minha liberdade e acho que se cada um defendesse a sua, a liberdade estava garantidíssima.»
Soares não desistiu e voltou a propor-lhe uma comenda, desta vez a Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago da Espada, por serviços de relevo prestados à cultura portuguesa. A obra editorial que saíra do escritório da Palhavã não temia meças. Nenhuma se lhe chegava. Agostinho desta vez não rabiou muito. Disse que sim e passou à frente. Porque não espirrou ele de novo, como pouco antes fizera com a Ordem da Liberdade? É difícil ter certezas. Uma coisa é porém segura: continuava a pensar que a obra feita no passado não justificava a distinção. O que havia feito acontecera por acaso, nenhum esforço especial exigira dele. Nada pois de prémios, para quem tudo fizera com tanta naturalidade e gozo. Isso o diz ele num linguado de guelra viva, «Sant’Iago — Conversa Um de 87», que então escreveu e pôs a correr estampado em folhinha dactilografada, sendo depois recolhido no livro Dispersos (1998: 789-90). Cito o primeiro período do documento, escrito naquela fluência admirável de quem sabia falar a escrever, o que nunca consegue aquele que não sabe escrever a falar: «Decidiu Sua Excelência o Senhor Presidente da República conceder-me a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada, por serviços prestados à Cultura Nacional. Como realmente, e com toda a sinceridade, me não encontro tais méritos, e como, por outro lado, admirou alguns Amigos que eu não tenha, como de outras vezes, embora sempre com todo o agradecimento pela lembrança, pedido escusa, sinto-me naturalmente com a obrigação de explicar por que motivo procedi agora de forma diferente.» Porque decidiu então receber a distinção? Ao que parece, e pelo que diz no mesmo texto, por ela lhe prestar serviço num ponto de grande ajuda — lembrar-lhe momento a momento a necessidade de continuar vigilante no serviço dos outros, protegendo e amparando vidas, sobretudo ínfimas, esquecendo a sua, como outrora os frades faziam ou estavam obrigados a fazer com sacrifício deles. Nesse sentido a Grã-Cruz que o Presidente da República lhe oferecia era cruz de calvário, que, em nome dos fracos, pagava todavia aguentar. Cito de novo o documento: «Neste capítulo da ordem, da obrigação de ser e de fazer, é que vejo minha Grã-Cruz bem pesada, como todas as cruzes que vale a pena suportar e que só se devem suportar se o suportá-las é fonte de íntima alegria. Como ela, ao que considero, veio para todos, de todos espero receber, como sempre, ajuda e ânimo, mesmo que como oposição sejam vistos; e vigilância; e dura reprimenda, se desvios houver.» Quem se humilha, exaltado será! Amém!
Não faço ideia como decorreu a cerimónia, em que compareceram os maiorais do Estado português, Presidente da República, primeiro-ministro, presidente da Assembleia da República, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e outros das Forças Armadas de terra, ar, fogo e mar. A sessão decorreu no salão nobre do Palácio da Ajuda, no dia 9 de Fevereiro de 1987. Pelo Diário de Notícias de 10 de Fevereiro fico a saber que alguns outros foram também agraciados, como Azeredo Perdigão, Sophia de Melo Breyner ou António de Spínola. Num texto de Fernando Dacosta relativo à cerimónia (Jornal de Letras, n.º 199, 16-2-1987, p. 24) dou com o seguinte: «Falando no salão nobre do Palácio da Ajuda ante as forças constituídas do Estado, proferiria uma singularíssima oratória — em subversão, em cumplicidade, para surpresa dos que não o entenderam, e alguns foram que alguns havia cegos, surdos e arrogantes no manifestá-lo. Com a ironia, a vitalidade, o ruralismo, o conhecimento que o caracterizam, Agostinho da Silva foi o admirável imprevisto, o fascinante contraditório do tradicional solene. Ele, o sábio, preferiu ser, divertiu-se em ser menino entre os doutores — e como os havia ali!» Pelo passo, fica-se a saber que o homem dos cadernos discursou e que as palavras desassombradas, improvisadas, nunca lidas, desagradaram a uns quantos, que murmuraram de imediato espanto e queixa. Como não, pergunto eu. O que é que um presidente de tribunal podia ter a ver com um velhadas que falava em libertar os presos da cadeia e em pôr fim ao trabalho. Pior do que a «singularíssima oratória», era porém o ar do bicho. Ninguém acredita que Agostinho se tenha apresentado no Palácio de Ajuda de fraque, ou tão-só de fato e gravata. Foi para lá a butes ou de autocarro, metido na sua camiseta escura e puída. Não pasmava se à entrada os responsáveis pela cerimónia o tivessem querido impedir de entrar. Eh! Alto lá! Quem é você? Que quer daqui? Ponha-se a andar. Tomavam-no por um pedinte, um papa-jantares, não por um agraciado, que tivesse estalão para posar ao lado do durão do monóculo. O meu Silva adorava equívocos destes. Eram enganos assim que justificavam a estopada absurda dos actos oficiais. Nesses momentos tinha qualquer coisa do Charlie Chaplin da sua juventude; era um actor que entrava dolorosamente em cena para fazer explodir uma bomba de riso. Pergunto-me se não terá aceitado a distinção só para se ver metido numa cena burlesca. Ele a querer ir receber o laço e o staff inquieto por causa da presença dele, a mandá-lo embora. Gostava de picar a consciência morta dos acomodados. Perto de morrer, Agostinho manifestou a vontade de que a comenda fosse doada ao Museu de Marinha, em Belém, onde hoje está (v. Pedro Agostinho, Presença de Agostinho da Silva no Brasil, 2007: 381).
Deste período deve ser a historieta que Inácio Fiadeiro conta e que muito bem fica aqui (In Memoriam de A. da S., 2006: 189). Se mais não houvesse, era caso para justificar qualquer comenda a Agostinho. Quem sabe até se o caso não nasceu da medalha. Aquilo era um lembrete para ele vigiar dia e noite, mais atento do que faroleiro em ilha de mar. Um dia alguém lhe bateu à porta. Era um rapazinho novo, cabo-verdiano, a estender a mão à espórtula. Agostinho perguntou de imediato: «Porque é que não vais à escola?» Ao que ele respondeu, que a escola não o queria por ser deficiente mental. Agostinho sai-se então com esta (cf. p. 189): «Se vieres aqui todos os dias às sete da manhã, eu ensino-te a ler e a escrever.» Durante mais dum ano o miúdo bateu-lhe à porta e aprendeu a ler e a escrever tão certo que passou com sucesso nos exames que fez (quarta classe e segundo ano do ciclo preparatório). Isto conta quem viu. Agostinho não se cansava de fazer prendas destas. Duro é deixar o hábito e o dele era bater a butes tais caminhos. Em 1993, a poucos dias do acidente vascular que o obrigou a recolher a hospital e que acabaria por ser a razão directa do seu falecimento poucos meses depois, confessava que se levantava às cinco da matina e que as duas primeiras horas do dia eram dedicadas aos gatos. A palavra é dele (A Última Conversa, 2001: 104): «De manhã, a primeira coisa é tratar dos gatos: lavar as louças deles, ter tudo arrumado e dar-lhes comida. Eles já sabem como é e aceitam tudo, sabem os horários, sabem aquela coisa toda.» Ia a caminho de fazer 88 anos, quando falou deste modo. Ainda tinha a cargo uns tantos gatos, que lhe mereciam as primeiras honras do dia. Lavava-lhes a loiça, mudava-lhes o urinol, punha-lhes a ração, dava-lhes mimo e passeio no terraço. Não estava nada mal para quem recebera uma Grã-Cruz. Se todos os outros que neste mundo têm tido penduricalhos de heróis se preocupassem igual, não eram apenas os miaus que tinham nesta Terra o Paraíso. E não se pense que aquilo de lhes lavar todas as madrugadas as malgas, de lhes mudar a areia das cacas, de lhes ter a comida pronta a horas, de lhes dar terraço e mimo, pesava sobre ele. Nada! Aquilo era do mais leve que imaginar se possa. Por isso num aforismo inédito (Caderno Três) ele disse: «Estou pagando uma dívida humana: meus gatos me domesticaram a mim.» E no mesmo caderno deixou a seguinte quadra: «Minha gatinha João / do jeito que hoje te vi / muito mais tu me proteges / do que te protejo a ti.» Quase aos 90 anos tinha uma trabalheira com os gatos de assustar um novo e ainda achava que aquilo era egoísmo! Quem lucrava era ele, não os gatos. Só mesmo este meu Silva!
6. AS «CONVERSAS VADIAS» E OS NOVOS AMIGOS
A projecção que Agostinho ganhou no momento de chegar à casa dos oitenta foi desmedida. Houve até quem afirmasse que nunca um pensador português alcançara até aí tanto favor junto da opinião pública. Não tardou pois que se erguessem vozes a reclamar a presença de Agostinho na televisão. Já a entrevistadora do Diário de Lisboa, em aparte, dizia que era tempo de o País reparar nele e lhe fixar o nome (Dispersos, 1988: 109).
Em 1987 Agostinho deu luz verde a Paulo Borges, então com 27 anos, para iniciar a recolha dos seus dispersos; recusara já antes, por várias vezes, até ao presidente do instituto do Príncipe Real ou seus emissários, o projecto. Borges chegara ao convívio de Agostinho três ou quatro anos antes, por via de António Quadros, que conhecia o meu biografado dos tempos de Brasília. Paulo Borges, entusiasmado com as primeiras leituras feitas de Agostinho, talvez os livrinhos de capa verde que dele corriam no princípio da década de 80 do século XX na colecção «Filosofia & Ensaios» da editora Guimarães, pede a Quadros cartão de livre-trânsito para dele se aproximar. A resposta foi desarmante: basta que lhe bata à porta e diga que quer falar com ele. Assim fez Paulo Borges, convencido de que o estratagema dava em águas de bacalhau. António Quadros não se quisera chatear e atirara-lhe com aquela senha; o homem ou não lhe abria a porta ou desconfiava. Abriu, mandou-o entrar, cumprimentou-o como se o conhecesse desde a infância, sentou-o à sua frente e desbobinou três ou quatro horas de conversa. Era assim a alma do meu herói! A entrevistadora do Diário de Lisboa, Lurdes Féria, terminou a sua conversa com este aparte (Dispersos, 1988: 119): «Gosto que me batam à porta, disse. Eu bati e ele deixou-me entrar.» O convívio entre os dois deslizou feraz até que o Paulo lhe pediu para juntar em volume a dispersa produção escrita dele. Cabiam lá as recentes entrevistas, os soltos do Brasil e nunca recolhidos em livro, a heteronímia de Folhas Soltas de São Bento, o prefácio ao livro queirosiano de Machado da Rosa e outros prólogos, os folhetos, as cartas de circulação restrita, um ou outro texto da imprensa. Agostinho aceitou, por certo para não magoar o interlocutor, que era jovem e delicado. Por ele aqueles textos ficavam onde estavam e não se falava mais no caso. Também a vastíssima colaboração da adolescência dada ao jornal O Comércio do Porto estava muito bem onde estava, enterrada nos arquivos do Porto antigo, e ninguém tinha nada com o assunto. Havia cumprido no tempo a tarefa de lhe fortalecer o punho e tanto bastava para a justificar. Não a lastimava mas também não admitia por nada borrar mais papel com ela. Nunca dela falou. Calou-se bem calado e só muito depois da sua morte se veio a descobrir, por via de Amon Pinho e de Romana Valente, essa primeira fonte. Em vida dele, dela não ficou cheiro, por mais leve que fosse, em qualquer declaração de Agostinho. E por isso o livro Dispersos não tem lá a mínima pista sobre esse broto.
O volume tratado por Paulo Borges e editado pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa estava pronto para descarregar nas livrarias em Outubro de 1988. Tinha introdução de Fernando Cristóvão, apresentação do organizador, badana de Mário Soares. A apresentação do livro correu nos Jerónimos, a 15 de Novembro. Meteu o Presidente da República, o ministro da educação, Roberto Carneiro, o director do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa e muita etiqueta. Foi aí a primeira vez que vi cara a cara o meu biografado e já disse a impressão que isso me fez. Entre a gente que estava nos Jerónimos toda nos triques, Agostinho, com a camiseta escura que comprara 20 anos antes e o casaco que parecia aquele com que batera asa para o Brasil, fazia figura de porteiro da festa. O volume, com uma tiragem de três mil exemplares, que logo esgotou, e com a pompa da cerimónia nos Jerónimos, voltou a atirar com Agostinho para os jornais. Acentuou-se a pressão para o meter na pantalha. Exigia-se que lhe dessem nova tribuna, com mais vasta audiência. Era a ideia da cronista do Diário de Lisboa a fazer escola. O País inteiro precisava de reparar nele e de lhe fixar o nome. Santa ingenuidade! Adiante. A 13 de Novembro, no Diário de Notícias, Orlando Neves deixa as seguintes palavras (cito de Renato Epifânio, Perspectivas sobre Agostinho da Silva na Imprensa Portuguesa, 2008: 75): «Bem faria a RTP em chamar rapidamente o professor ao seu quadro de colaboradores concedendo-lhe um tempo de charla com os telespectadores, à maneira (informal) das conversas de Nemésio. A RTP tinha a obrigação de arquivar as opiniões, as atitudes polémicas, as posições fecundas de Agostinho da Silva. E conseguiria, com isso, quase seguramente, um momento televisivo cultural de grande impacte público.» Em Abril do ano seguinte, no jornal A Bola, voltam as urgências da televisão. Carlos Miranda numa crónica instante, «Agostinho da Silva na TV, já» diz assim (id., 2008: 78): «Se o professor estivesse de acordo, e mal seria que se negasse, a TV devia promover a sua presença assídua nos pequenos écrans. Quiçá com um interlocutor suficientemente à altura para lhe dar as entradas […].» Nem o direito de se dar ao «não», lhe deixavam. O gladiador tinha de entrar à força na arena.
Menos dum ano depois, em Março de 1990, o autor de Reflexão estava na pantalha, a fazer um programa, «Conversas Vadias». Que se passara entretanto? Joaquim Furtado, que o entrevistara em 1984 para a revista Grande Reportagem, agora na televisão, aceitara o repto e desenhara para ele um espectáculo. As duas ou três vezes que Agostinho aparecera na televisão — a primeira fora logo nos dias do regresso do Brasil, no programa «Zip-Zip» — não se embaraçara e tivera momentos de surpresa. Será porém credulidade alvar acreditar que Agostinho foi à televisão pela craveira moral que tinha. Foi lá porque os livros estavam nas livrarias e vendiam, os ministros compareciam nos lançamentos, as entrevistas não paravam, os caricaturistas trabalhavam sem descanso nos jornais o seu retrato, o Presidente da República falava dele e até o visitara em casa. Por fim, só em último, porque o homem gostava de falar. Logo o ideal era dar-lhe um programa de conversas, com fios soltos no ar para Agostinho pegar e seguir, como de resto propusera o cronista d’A Bola. As únicas condições que o meu homem impôs foi não saber nem o nome do entrevistador nem as perguntas. Só tomava nota de quem tinha pela frente no momento em que entrava pela sala do talk-show e só à medida que as deixas saíam ele as anotava. O imprevisto daquilo era a única coisa que lhe podia interessar. Não invento nada. Isto mesmo confessou Agostinho. Passo-lhe o bule (A Última Conversa, 2001: 110): «Aconteceu quase por acaso, não fiz nada por isso. Um dia, veio aqui a minha casa o Joaquim Furtado, acompanhado por um director da TV, e perguntaram-me se eu estava disposto a falar numa série de programas na televisão que eles tinham pensado produzir […]. Disse-lhes que aceitava, mas impondo duas condições: primeiro, que me fizessem perguntas, e segundo, não queria saber quem é que ia lá aparecer naquele dia para falar comigo. Naturalmente que também não queria conhecer as perguntas que tinham para me fazer.»
Acredito que Agostinho nada tenha feito para se ver na televisão pública. Outros fizeram por ele. Ele aceitou, deixou-se levar, foi tudo. Aconteceram 13 conversas, uma por semana, no chamado horário nobre, logo depois do jantar, todas seguidas, entre 8 de Março de 1990 e 31 de Maio do mesmo ano. Agostinho passou assim pelas mãos de Maria Elisa, de Adelino Gomes, de Joaquim Letria, de Isabel Barreno, de Baptista-Bastos, de Alice Cruz, de Cáceres Monteiro, de Fernando Alves, de Vasco Ramalho/João Carlos, de Herman José, de Miguel Esteves Cardoso, de Manuel António Pina e de Joaquim Vieira. Houve quem tivesse mão leve e o deixasse passar nas pontas, com vénia até, e houve os outros, os de cara ruim, que estavam ali para o comer. Foram estes, mesmo em menor número, que sobressaíram. Ainda o programa estava a abrir com as quatro primeiras conversas e já o jornal Expresso (31-3-1990) punha cá para fora um caderno da «Revista» dedicado quase em exclusivo ao homem da barba branca, com uma caricatura dele a ocupar a capa toda e a seguinte parangona, «Agostinho da Silva — Pronto a Pensar». Era preciso mais? Não! Ficava tudo em pratos limpos. Agostinho, o pronto-a-vestir das ideias. Bravo! Entre os seis textos, o primeiro, esgalhado por uma mão calosa, Inês Pedrosa, titulado «Agostinho da Silva, pop-star», levanta a bisca de Agostinho ser uma fraude, que logo o filotécnico Manuel Maria Carrilho confirma, quando perora que «Agostinho da Silva não é […] autor de nenhuma teoria, nem de nenhuma doutrina, cujas teses […] se possam discutir» (p. 11). O epíteto é porém do melhor. Estrela pop! Só mesmo uma trabalhadora do mar! Um palmípede como este andava por Lisboa à procura do passeio da fama. Que coisa admirável! E isto com 84 invernos! Por mim arrecado o apodo, estrela pop, ao lado dos melhores. Que giro chamar ao meu biografado «estrela pop»!
Estava pois na lógica das coisas que os pintainhos iluminados fossem ao passeio das celebridades para lhe arrancarem o chinó. Só que a minha estrela pop era rija e não lhe punha a mão na grenha quem queria mas quem ele deixava. Tinha idade para muito defunto e fazia pugilato desde o fim da adolescência. Botara abaixo os presumidos doutro tempo, onde um até se chamava Fortes. Estes eram agora mais tenrinhos, mais coloridos, mas tinham a ruindade dos outros. Danadinhos por fazer mal! E que fera dentuça! Aguentou firme no lugar, protegeu a retaguarda, não se deixou ir abaixo. No fim varreu a feira à força de riso e pau. Não me admira que um articulista do Diário de Notícias (cf. 2-6-1990; v. Renato Epifânio, 2008: 90), depois do vendaval, tenha avançado que o menino Esteves Cardoso levara uma tal tosquiadela que nem o Verão o recompunha. Caso Manuel Maria Carrilho tivesse avançado de picador doutoral na mão, tinha apanhado uma senhora ensaboadela. Um tal bailarico televisivo, mais de 20 anos depois de regressar à terra natal, é dos melhores segmentos do meu biografado e o mais memorável desde candomblé e Trapa. Rodeado de vivaços, cheios de manhas, que lhe querem ferrar o dente, não lhe deixando peça sob peça, ludibria-os sem se esforçar muito e leva-os, um a um, à fogueira, onde escaldam o pêlo. Acabaram sombrios e desenganados, maldizendo a vidinha. Que o diga esse patético janota que se meteu a inquisidor de sistemas e está hoje a ser desfeito nas mãos furiosas das Erínias que ele criou ao pé da cama.
Estes apodectas não sabiam com quem lidavam. Pensavam que tinham diante de si o hortelão do Príncipe Real que todas as manhãs ia dar milho ao pombal ou o simplório do Bairro Alto que de quando em quando desandava para Sesimbra com dois sacos de plástico com marmita de gato. Juntavam duas ou três banalidades que então corriam. O homem era pouco menos do que marciano; não tinha nada de seu, nem bilhete de identidade, nem cartão de contribuinte, nem conta bancária. Eis o que no geral dele sabiam. Tiravam-lhe o retrato pelo velho que aparecia no mais recente romance de John Le Carré, A Casa da Rússia (1989), que metia Lisboa e doca do Tejo. Não era aí, porém, que o encontravam; Agostinho não cabia em intriga de romance, menos ainda de espião. Pertencia à vida generosa dos que dão e à escrita de oiro dos que compõem com génio. Onde ele estava em retrato de corpo inteiro era na sublime conversação de Diotima, que a maior parte deles nunca lera, ou no enredo labiríntico das epístolas de Kertchy Navarro, que também desconheciam. Para bem dizer estavam ante um cromo que lia latim e grego como eles liam o portuguesinho dos jornais. Como é que estes aveludados não haviam de acabar presos na ratoeira?! Monumental tosquiadela arquivou o Diário de Notícias. Como não, digo eu. Este homem pusera no lugar o Pimenta da História, fizera os cadernos, tratara tu cá tu lá António Sérgio, alfabetizara Itatiaia, socorrera o sertão, iniciara na Baía as relações modernas entre Brasil e África Ocidental, desenhara a política externa do país de Jânio, fora um dos fundadores da Universidade de Brasília, criara uma Trapa com estudantes baianos, dera-se ao respeito de Adriano Moreira, acabara de ensinar, com êxito, um mocinho cabo-verdiano, que a escola recusara, o que não é de somenos no currículo deste professor titular. Os outros eram quem? Ai, o grande circo da vida, onde é tão bom arranjar um lugar ao sol!
Partir cabeças ou varrer feiras não era porém o que mais calhava a Agostinho — menos ainda octogenário. Gostava dum passe de dança, sempre gostara, mas a sua vocação não era limpar tratantes. Gozou, não se diga que não, com a ensaboadela gigantesca que deu a Esteves Cardoso. O fecho, com aquele ar de quem lambeu o pratinho, não engana ninguém. Cardoso foi despido, esfregado, amarfanhado e deixado cair sem a mais leve complacência como papel no lixo. Por fim, o garoto, ainda teve o desplante de soltar um derradeiro queixume: o senhor é do Mao! Ui! Do que ele se lembrou! Agostinho foi mesmo mau com ele! E o rapazinho acabou atolado. Não digo que Agostinho não tenha dormido uma regalada soneca na tarde seguinte à conta daquilo. Havia um humorista nele que não desdenhava apartes destes. O mesmo fez com Joaquim Vieira, que ficou fulo por não ter conseguido mais do que mostrar as armas brancas que trazia na manga para ver se por fim ia à cara ao leão. Não foi e o bicho mostrou que ainda sabia rugir, arranhar e depois rir. Aquela de ser conservador da sardinha, deitando a lata fora, foi gozo magistral. Que baile! O outro ficou caladinho, a ver navios. Que bela sesta não terá tirado por via da resposta! Mas não era vida continuar a esmurrar daquela forma e a fugir às traiçoeiras tesouradas com que lhe queriam ir à penca. Era pior do que ir à guerra. Fora à televisão fazer avançar ideias, aceitara o convite do Furtado na esperança de popularizar o que lhe parecia basilar, partira para aquele desafio com os olhos postos no futuro, não para se envolver numa briga de inveja e maldade com os novos Pimentinhas da sociedade portuguesa. Todos agora lhe sabiam o nome e não havia vez que saísse à rua sem que o apontassem. «Olha, o Agostinho da Silva!» Não podia pôr o pé em lojeca ou em autocarro sem que lhe falassem da pantalha. Ainda se com o estrelato em que andava os portugueses tivessem enfim a noção da riqueza das Festas do Espírito Santo ou da dimensão universal do Quinto Império. Mas não! Nada disso! Continuavam os mesmos tontos de ontem, a tratar da vidinha e a lixar o parceiro. Futuro? Missões? A CEE tratava do assunto. Das charlas só apanhavam que havia um velho cercado por uma matilha de lobinhos que lhe queria ir ao pescoço para ferrar o dente. O velho defendia-se, tinha jogo de cintura e pata larga, acabava em geral a esfolá-los vivos. O caso valia alguma atenção e uma boa risada, não mais. Aquela gente debruçava-se sobre o programa como se estivesse à roda dum ringue de boxe. Gostavam de ver o velho a trabalhar com a esquerda e puxavam por ele nos ganchos inesperados que pregava. Mais do que isso não lhes pedissem; não eram capazes e não queriam. Estavam ali para ver o murro, não para acertar o passo pelo país ideal. Eis no que deram as conversas do professor na televisão portuguesa.
O assunto não podia convir ao meu aposentado. Aquilo era pantomina rasteira. Amigos vetustos, doutros tempos, como Álvaro Salema e Castelo Branco Chaves, ainda vivos, estavam consternados. Como é que um homem que fora o discípulo dilecto de Sérgio, que discutira com ele questões metafísicas, que fizera a soberba obra dos cadernos, que tinha uma inteligência prodigiosa, acabava em semelhante circo?! Impossível. Havia engano. Outros, mais recentes, como António Telmo, andavam aflitos. Em vez de circo, tomavam o caso por massacre. E o homem do Bairro Alto, como se sentia ele? Gostava da folia e por aí soltou talvez algumas gargalhadas bem-dispostas. No geral, porém, estava farto. Não é suposição minha; quem o afirma é Antónia de Sousa, que pensou nessa época, com sentido oportuno, publicar os diálogos completos que com ele tivera em 1986 e de que só uma pequena parcela aparecera no Diário de Notícias (20-7-1986). Cito (O Império Acabou. E agora? 2001: 8): «Finalmente, na altura em que Agostinho da Silva manteve na televisão as chamadas “Conversas Vadias”, que não o mostraram na sua verdadeira estatura e lhe deram uma notoriedade que muito contribuiu para o fragilizar, admiti a possibilidade de publicar os diálogos e cheguei até a ter editor. Mas foi então o professor que me pediu para não o fazer, pois “estou enjoado de mim”, conforme desabafou.» Para toureiro não servia; tinha respeito a mais pelo bicho. Todos os dias se via ao espelho e todos os dias tinha dificuldade em se reconhecer. Era agora um bandarilheiro, um gladiador, um mercenário, que todas as semanas tinha de ir à arena lidar a fera. Sempre vivera como homem livre; estava agora condenado a ser um escravo que divertia a multidão. Teve por certo saudade do bonito anonimato em que se resguardara tantos anos. Sair à rua, entrar na loja da esquina, tomar o eléctrico, sentar-se no Jardim do Príncipe Real, comprar no quiosque o jornal, descer a Rua D. Pedro V, ir à Politécnica ou ao miradouro de São Pedro de Alcântara, sem mais do que uma saudação leve, de passagem, sem logo ser empalado. Que rica fábula! Estava na moda? Pois deixava de estar. Isto o disse ele, bem alto e bem cedo. Ainda o mês de Abril não acabara e já ele tomara a decisão de deixar o estrelato, recusando entrevistas (TV Guia, 20-4-1990; v. R. Epifânio, 2008: 89). O circo mediático era para feras de bolso, sedentas de cacau, não para um índio como ele que se estava nas tintas para o galardão. Ausentar-se para longe, voltar ao inusitado da vida, dar de vaia, foi o seu último acto de homem livre. Se o número de circo o debilitou, se o sangue da arena o agoniou, não chegou a dar cabo dele.
Voltou pois à sua vida pacata, entre o andar onde tinha os gatos e o jardim onde dava de comer aos pombos, recebendo nas horas livres os amigos do Brasil que passavam por Lisboa e os que entretanto se tinham ao longo da última década habituado às suas cadeiras. Entre estes, singularizo Manuel Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim que lhe reeditou algumas obras das pretéritas décadas e lhe bateu muito à porta. Do convívio dos dois resultou uma conversa gravada em três horas, numa manhã de 1987, que meteu ainda Gil de Carvalho, e que só foi passada a livro depois da morte do meu feraz, Ir à Índia sem Abandonar Portugal (1994). Que Agostinho se deixou embeiçar por este transmontano de tineta arrojada e sortuda nenhuma dúvida me fica, pois o cita com adesão na conversa com a jornalista do Diário de Notícias (O Império Acabou. E agora?, 2001: 153). Outro que paga a pena singularizar é João Maria de Freitas Branco, neto de Pedro Nascimento, pelo lado da mãe. Também ele é citado no livro (id. 2001: 165) com deferência. Dele diz que é «um menino extraordinário, um sujeito inteligente e capaz». Como e quando chegaram à fala? Ainda na década de 60, talvez pouco depois do regresso do meu biografado do Brasil, num concerto musical na vila de Sintra. João Maria estava na companhia da mãe, que conhecia Agostinho desde as reuniões sergianas. As relações aprofundaram-se de forma decisiva na segunda metade da década de 80, altura em que João Maria andava em trabalhos de doutoramento sobre António Sérgio. Nesse convívio Agostinho julgou retomar o convívio antigo com a roda da razão e o jovem Freitas Branco encontrou um interlocutor que lhe lembrava Sérgio. Dedicou-lhe mais tarde um livro, Agostinho da Silva — Um Perfil Filosófico (2006), onde no texto final deixou frases que, embora temperadas, me parecem vizinhas daquelas outras que fui ao longo das décadas coleccionando e arrumando no mostruário das taças e das medalhas do meu biografado. Algumas não ficam nada mal em prateleira vistosa. Além de homenagens lavradas em boa prata, são ainda pontos a favor dum retrato mais inteiro do meu peixe. Respeitam ao período final da sua vida mas ainda assim fazem falta. Demais não me parece que o que aí é dito não possa ser transposto para as primeiras idades, que não controvertem as últimas. Se a velhice o amansou, arredondando-lhe a letra, nunca lhe tirou o vigor nem o entusiasmo de compartir e de criar, que nele fazia a vez de impulso ingénito. De igual modo a serenidade equidistante que salta do retrato que dele traçou o neto de Pedro Nascimento não é privilégio da senectude mas qualidade constante dum homem amável, fraterno mas firme. Dou a palavra a João Maria de Freitas Branco (Agostinho da Silva — Um Perfil Filosófico, 2006: 104-05): «Nunca lhe ouvi uma sentença professoral, um reparo arrogante. Cultivava uma atitude de radical aceitação do outro. Algo a que, no uso do significado actualizado do termo “tolerância”, podíamos hoje chamar absoluta tolerância ideológica ou tolerância intelectual. Uma aceitação fundada no pressuposto de que uma ideia, uma opinião, uma mera afirmação contém valor potencial, mesmo quando se nos apresenta com a aparência de erro, de puro dislate, de asserção inconsistente. […] Perante uma afirmação supostamente pouco acertada, Agostinho da Silva nunca ripostava com nada que se parecesse com um “Cale-se! Não diga disparates”. Em vez disso dizia em tom afável: “Pois é… vamos lá pensar nisso, para ver onde nos leva.”» Era assim Agostinho no tempo das «Conversas Vadias». Muito amigo, muito aberto, muito atencioso! Sem dúvida! Mas também pronto a gozar o pagode quando via que lhe queriam comer as papas na cabeça. Já assim fora no tempo em que se cruzara com Álvaro Cunhal no Chiado e assim continuava a ser no tempo em que se teve de cruzar com um talentoso finório de lacinho azul e orelhas de abano que tocava piano e falava inglês.
Não digo adeus a este período relativo ao final da década de 80 sem falar dos jantares na Varina, um restaurante situado na Lisboa velha, no bairro da Madragoa. Sempre que tinha amigos do Brasil de passagem por Lisboa, lá ia ele à manjedoura da Madragoa mostrar aos irmãos brasileiros como se morfava ao pé do Tejo. Os jantares eram longos, a comida caseira, o peixe fresco, o vinho apaladado, a hospitalidade buliçosa. Ouviam-se bater sinos na Igreja de Santos; de quando em quando a buzina dum barco varava o ar; na rua as vizinhas conversavam de porta para porta. O meu velho terminava sempre o repasto a beberricar uma cachaça do Minho. Falava-se de tudo, do Senegal, da China, passando pelas mulheres de Ovar, as canastras, o bacalhau, o arroz, o carapau limado. O meu ibero ia tanto à bola com o lugar que o rebaptizou; em vez de Varina, Convento. Temos Convento hoje? — perguntava ele. Sim — respondiam todos. Ao que lembro, quando deixou Santa Catarina e chegou à Baía, Agostinho, metido em dilemas tormentosos por causa de Judith, quis fazer-se frade. Puxa para aqui, puxa para ali, acabou por deixar cair. Em Lisboa acabou por realizar o sonho. Fez-se frade e topou convento. Quer dizer, recebeu o laço da ordem monástica de Santiago e deu com o conventículo que sempre ansiara. E que casa! Uma daquelas de meter inveja a qualquer abade! Tinha vinho verde e arroz-doce à discrição. Era o mosteiro ideal deste monge!
Marcelo Carvalho Ferraz, que encontrou o meu biografado em 1987 por dica de Roberto Pinho, fala destes conciliábulos na Varina da Madragoa. Dou-lhe a palavra (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 304): «A partir daí [1987], voltei a Portugal todos os anos, às vezes mais duma vez, para estar nem que fosse por um dia, ou por um encontro, na Varina da Madragoa, com o casal de amigos [Agostinho e Maria Violante] e todos os amigos do casal: Purificação e Manuel Pina, Teresa Duarte, Manuel Giraldes, Luiz Caloca e tantos outros.» É preciso pôr alto nesta biografia a relação destes dois. Agostinho aos 30 anos entusiasmara a juventude lisboeta, deixando um Ruben A. para sempre estupefacto. Cinquenta anos depois continuava em forma, fazendo com que um paulistano viesse de propósito todos os anos à cidade, nem que fosse para um jantar na Varina. Que obra! Quando o brasileiro publicou em livro, Arquitetura Rural na Serra da Mantiqueira (1992), foi Agostinho que lhe escreveu o prólogo — como 50 anos antes sucedera a Victor de Sá, com A Juventude de Antero.
Luiz Caloca Fernandes, jornalista de Salvador, veio um dia, na década de 80, a Lisboa. À partida, uma amiga baiana, Maria Amélia Pereira, pôs-lhe nas mãos uma encomenda para Agostinho. Maria Amélia fizera-se próxima do mestre de Barca de Alva no início da década de 60 por via também de Roberto Pinho, e estivera empenhada nas andanças de São Félix da Cachoeira. Quando Caloca desembarca, telefona a Agostinho e combina encontro. Vai ao Bairro Alto, bate para a Travessa do Abarracamento de Peniche, sobe ao terceiro piso. É recebido de braços abertos por um velho e sem nada dizer, sem nada pedir, fica a ouvi-lo durante horas. A encomenda ficara arrumada num canto. No fim, Caloca sai dali como se estivesse novo. Tinha renascido. Não sou eu que o digo. É ele que o diz, assim (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 309): «Nunca ouvira nada tão novo, tão fascinante, tão próximo da utopia e, ao mesmo tempo, tão perto do real. De repente, eu, de origem portuguesa, nascido no Brasil, tive a noção do privilégio de estar vivo, com o mundo à minha mão, se quisesse. E nem tinha direito de largá-lo. O mundo era meu e eu era responsável por ele. Portugal pobrezinho passava a ter dimensões imensuráveis. O Brasil, ridicularizado como o país do futuro, era mesmo o país do futuro. De verdade. Com lógica. Com alma. Sentia em mim a paciência chinesa, a tradição portuguesa, a alegria africana, a juventude brasileira. Estava novo. Era um cidadão do Planeta Terra.» Se isto não é renascer, vou ali e volto já. Está-se a ver que Caloca nunca mais largou a porta do Bairro Alto. Assim foi. Chegou a vir viver para Lisboa e aí se tornou um assíduo do convívio de Agostinho. Deixou um relato pormenorizado do que acontecia na casa de pasto da Madragoa. Paga a pena registá-lo aqui (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 310): «Todos os domingos tínhamos um jantar marcado na Varina da Madragoa, os dois e mais o Manuel Giraldes, o Luís, o Manuel Gonçalves e a Teresa Duarte. Mais tarde, a Lu Rodrigues, amiga brasileira de rosto iluminado. Eram encontros sagrados, esperados toda a semana, o compromisso para onde deixava-me correr, a descer as rampas do Bairro Alto, atravessar a D. Carlos a caminho da Rua das Madres. Ali corriam as nossas reuniões, chamadas por ele de «O Convento», por ter a palavra convento o significado de reunião. Falava-se de tudo, mas principalmente das pataniscas de bacalhau ou do arroz de pato da Varina. O vinho era escolhido pelo Manuel, sempre aprovado pelo professor que, ao final, não dispensava um bagaço branco do Minho.»
Vem aqui a calhar falar doutra relação de Agostinho na década de 80, sem a qual qualquer biografia dele fica defeituosa. Falo de Henryk Siewierski, que conviveu em Lisboa quatro ou cinco anos com o meu biografado e lhe fez uma importante entrevista na época dos 80 anos, Vida Conversável, elemento autobiográfico de grande valia. Quem era Siewierski? Um docente polaco colocado na Faculdade de Letras de Lisboa para ensinar a língua natal. Vinha da Universidade de Cracóvia e chegou a Portugal pouco antes do início do ano lectivo de 1981-1982. Quando ensaiava os primeiros passos por Lisboa, soube que havia um professor aposentado interessado em aprender polaco. Sabia 15 línguas mas desejava aprender mais uma. Quem lhe terá falado no professor? No testemunho que deixou sobre o caso (v. In Memoriam de A. da S., 2006: 184) Siewierski não esclarece. Não é difícil porém calcular que o assunto lhe tenha vindo a ouvido nos corredores ou nas salas da Faculdade de Letras, onde este recém-chegado devia na altura gastar parte boa do tempo. Sim, na Faculdade, decerto, mas quem? Avento dois nomes possíveis: Fernando Cristóvão, a orientar então mestrados na área das Literaturas de Expressão Portuguesa, e Maria Idalina Resina Rodrigues, docente na mesma escola. Estavam ambos em contacto quase diário com Agostinho no vetusto edifício do Instituto de Cultura e Língua e Portuguesa, na Praça do Príncipe Real. Terá sido um deles então o mediador da informação, primeiro levando ao gabinete de Agostinho a nova da chegada dum rapaz polaco à Faculdade, coisa rara na altura, ainda com o Muro de pé, depois transportando para a Faculdade o interesse do velho poliglota em aprender ou em consolidar mais uma língua.
Desta ou doutra maneira, está vista a razão que levou Siewierski a dirigir-se num dia do Outono de 1981 ao Bairro Alto, à procura do terceiro piso da Travessa do Abarracamento de Peniche. Aí se aboletava o professor que queria meter dente ao polaco. Foi recebido por Agostinho com a franqueza de sempre e ali combinaram começar as lições na semana seguinte. Ou porque a língua polaca já fosse mais ou menos familiar a Agostinho ou porque Siewierski se debatesse então na quase total ignorância do falar do país em que desembarcara, depressa perceberam que mais precisava o polaco de aprender a língua portuguesa do que o português estudar a polaca. Inverteram-se as pintas e passou o mestre a aluno e o aluno a mestre. Como ponto de partida tomou Agostinho o poema Mensagem de Fernando Pessoa, que bem conhecia e que andava então a reler, por via daquele curso que não muito depois foi dar ao Senegal. Mesmo sem curso e sem Senegal, Mensagem era o poema de cabeceira de Agostinho, ao menos desde 1952. Aprendeu pois o polaco a soletrar o português pela galeria das figuras e dos sonhos que atravessam o poema pessoano. Depressa se familiarizou com a História do país através das personagens que ali comparecem, a que o mestre acrescentava uma mala cheia de comentários. O trabalho foi tão regular, tão empenhado, tão profícuo que da estreita colaboração dos dois resultou nada menos do que a primeira tradução em polaco do poema de Pessoa.
Siewierski não tinha porém a mais pequena ideia de quem era o professor que o acolhia todas as semanas na salinha de entrada do andar da travessa do Bairro Alto. Sabia o seu nome, era tudo. Pensava ele que seria um velho e apagado senhor que passara a vida a ensinar língua, gramática, literatura e História pelo País. Agostinho não falava de si e o polaco também não puxava por ele, até porque não havia nada para saber. A vida dum escolar é igual e monótona em todo o lado — aulas, alunos, livros, didáctica. Um dia foi almoçar com um amigo recente, um jornalista, Henrique Antunes Ferreira (v. In Memoriam de A. da S., 2006: 185), e falou do seu professor, que tanto o ajudava a evoluir na língua. Quando lhe disse o nome, o amigo deitou as mãos à cabeça e arregalou os olhos. Logo ali lhe revelou parte da grandeza do homem que tivera a taluda de encontrar. A partir daí Siewierski fez pesquisa na Biblioteca Nacional e foi seguindo o filão sem fim que tinha nas mãos. Descobriu as edições do mestre com a marca da Seara Nova, chegou à obra dos cadernos culturais nas suas três versões («Iniciação», «Antologia», «Juventude»). Era uma linha que chegava ao término em 1944 — tinha Agostinho 38 anos. Que se passara afinal ao longo de quase 40 anos, entre 1944 e 1982? Está bem de ver que o hiato se chamava Brasil. Isso o soubera ele logo no almoço com o amigo. O que lhe convinha saber eram as coisas mirabolantes que teriam acontecido no Brasil durante um quarto de século a homem tão anormal. Que houvera por lá? Ninguém ao certo lhe sabia dizer. Soletravam um nome, Brasil, sem fazer grande ideia do que se escondia por trás. Nasceu assim no espírito de Siewierski a ideia de gravar com Agostinho uma longa conversa sobre a vida dele, dedicando especial atenção ao período brasileiro. Tenha-se em conta que estou a falar dum período anterior às entrevistas do ano de 1986. Nasceu assim o livro Vida Conversável, resultado dum plano cogitado logo nos primeiros anos da relação de Siewierski com Agostinho. A gravação só teve lugar mais tarde, ao longo do Outono de 1985, numa altura em que o polaco já dominava a língua do entrevistado e sabia de antemão o que lhe havia para perguntar. O livro só veio a lume quase uma década depois, em 1994. Encadernam-se nele as mais vivas sequências autobiográficas relativas ao Brasil do meu viageiro.
Da relação do polaco e do português não nasceu apenas a tradução do poema pessoano e o livro Vida Conversável. Estes dois eram filão de boa pederneira e juntos davam lume. Não lhes bastava fazer livros. Houve mais. Quando Siewierski chegou a Portugal, acabara de rebentar meses antes a revolta operária nos estaleiros polacos de Gdansk contra a ditadura do Partido Comunista. A revolta tivera o apoio crescente da população mas a situação estava bicuda. Os militares contavam fuzis, prontos a intervir. Siewierski, em Lisboa, frequentava as aulas do velho matuto do Bairro Alto e em vez da «Cartilha Maternal» tinha como compêndio o poema pessoano. À medida que as aulas do mestre iam desbravando a selva daquelas regiões, começava a ficar para trás o passado de Portugal. Passava-se à terceira parte do poema, «O Encoberto», onde se tratava do futuro. É lá que se topa com o poema «Quinto Império», sobre o qual escreveu Agostinho, em 1986, um curioso ponto (Caderno de Lembranças, 2006: 58), a partir do qual não é difícil calcular o que, pouco antes, dizia de viva voz ao pupilo de Cracóvia. Que diz o parágrafo de 1986? Que é preciso apurar a ideia de Quinto Império, trazendo-a da hermenêutica bíblica de Vieira ou da «bem hesitante política» de Pessoa até à «consideração dos meios práticos pelos quais» seja possível alargar a todos os povos a saúde, o saber e a liberdade do imaginar. Já se sabe o protagonismo que nesta tarefa prática cabia ao Brasil. Deu o jovem pupilo em sonhar com este país do Novo Mundo. À medida que corria o discurso do velho soldado sobre o Quinto Império, via-se no quadrado da janela da sala de Agostinho o Sol cair nas águas esmeraldas do Atlântico. De quando em quando, chegava a casa do meu soldado, ou por correio postal, ou por mediadores em trânsito, ou ainda por mão própria, uma encomenda de caju saboroso, de doce de manga, de maracujá, ou outro pitéu brasílico. O destinatário não era menino que os açambarcasse; eram pois degustados em conjunto (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 299-300). Quando chegou ao fim do contrato de quatro anos, em 1985, o polaco recusou voltar para Cracóvia; já só sonhava com o país dos pitéus e do Quinto Império. Agostinho secundou-lhe o desejo; se estivesse no lugar dele fazia mesmo. Deixava para trás a Europa fria, dividida a Muro, e pulava até ao país do Carnaval. Sacou-lhe um convite da Fundação Nacional Pró Memória de Brasília, que depois o encaminharia para a UnB. O Governo polaco não gostou da volta e Siewierski perdeu pensão e passaporte. Dos proventos do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, que era os que lhe vinham à mão, o mestre garantiu ao polónio uma bolsa de sobrevivência e ficou de lhe resolver os papéis.
Para entreter, o polaco consolou-se a fazer uma revista, Aproximações: Europa de Leste em Língua Portuguesa. Tirava o título do livrinho de Agostinho publicado em 1960, com a nata dos textos dados a lume em O Estado de S. Paulo entre 1947 e 1960 (o livro comporta textos publicados entre 2-10-1955 e 23-02-1958). O primeiro número apareceu em 1986 e o editorial lá referia a importância que o mestre do Príncipe Real tinha junto do editor. Resolveram-se os papéis e no final de 1986 Siewierski estava em condições de voar para Brasília. Novo problema se ergueu. Não havia dinheiro para os voos. Mais uma vez o meu homem resolveu o berbicacho. Recorreu a um dos seus mecenas, desta vez Manuel Boullosa, que despachou bilhetes para toda a gente, Siewierski, mulher e filho (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 300). A revista Aproximações continuou a ser publicada do outro lado do Atlântico, até 2001, registando a queda do Muro e o naufrágio da União Soviética. O polaco deu-se com as cores de Brasília, passou aos quadros do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, onde ainda hoje está. Por iniciativa dele foi criado no Departamento de Teoria Literária e Literaturas o Laboratório de Estudos Luso-Afro-Brasileiros Agostinho da Silva (v. Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 388). Mais tarde, em 2006, quando passavam cem anos sobre o momento em que Agostinho viu a luz numa viela do velho Porto oriental, foi instituída, por empenho seu e doutros que ainda lembravam Agostinho na capital do Planalto, uma cátedra Agostinho da Silva na UnB, inaugurada no dia 2 de Outubro com a presença do embaixador de Portugal, Francisco Seixas da Costa (v. Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 389). Não sei em que estado está hoje em Brasília a memória dum dos pais fundadores da UnB mas há sinais animadores de que a sua história não se perdeu. Oxalá seja possível consolidá-la, que este homem é um dos que faz falta. Siewierski é só mais um ponto dos tantos sem fim que o meu biografado arranjou ao longo da vida, muitos dos quais nem sequer são hoje conhecidos nem aqui estão. Este homem saltava da cama às três ou às quatro da noite e assobiava logo um trinado de louvor à vida, quando não dava aquele passo de dança, ao som de Beethoven, que Ruben A. testemunhou boquiaberto. Depois ia escrever livros, tratar dos meninos, dar palestras. Quando não havia livros, nem meninos, nem palestras, havia gatos e pombos para tratar.
7. A CRIAÇÃO ESCRITA DESTE PERÍODO
A criação escrita de Agostinho no arco temporal que vai de 1969 até ao início da década de 90, momento que sucede às conversas televisivas e corresponde ao desaparecimento físico do meu biografado, pode ser arrumada em duas gavetas distintas. A primeira compreende toda a produção relativa ao período que vai do regresso de Brasília até ao final da década de 70. Lá se encontra o conjunto de textos já atrás referidos a propósito da pseudonímia de Folhas Soltas de São Bento. Falo dos folhetos em edição do autor publicados entre 1970 e 1971, onde voltam a surgir algumas das personagens das Folhas. Enumero: Bahia — Colecção de Folhetos 1 (1970), com palavras iniciais de Botelho Mourão e uma tradução inédita de Cícero, «O Sonho de Cipião», por Agostinho; Bahia — Colecção de Folhetos 2 (1971), com texto único, sobre centros de investigação em universidades brasileiras, da autoria de J.J. Conceição da Rocha, acrónimo que surgira em 1965 na segunda folha de São Bento, apresentado por Guadalupe, com a tradução portuguesa de A Germânia de Tácito; Vitória para a Quinta Classe (1970), da responsabilidade de Agostinho e que é um voo sobre a sua experiência didáctica e geográfica; Goa — Cadernos Teológicos (1971), com um único texto assinado por Frei G.H., personagem que João Cascudo de Morais apresentara na penúltima das Folhas Soltas de São Bento (1968); Barca d’Alva — Educação do Quinto Império 1 e 2 (1971), dois folhetos assinados na íntegra por João Cascudo de Morais, que retomam os Fragmenta Pharmaceutica publicados no n.º 6 de Folhas Soltas de São Bento (1968) da autoria do mesmo Cascudo, farmacêutico em Figueira de Castelo Rodrigo; Beira. Moçambique — Clássicos do Mundo Português (1971) da autoria de J.J. Conceição da Rocha, agora em diálogo com Agostinho mas sempre versando os centros de investigação brasileiros; Compostela — Carta sem Prazo a Seus Amigos (1971), folheto preenchido por um texto de Agostinho autobiográfico, de grande valor para a reconstituição do seu itinerário como professor e conferencista, com ricas informações sobre a escola de Edmond Emm Riley no Porto, onde o jovem Agostinho pela primeira vez leccionou, a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra e a Universidade Popular de Lisboa, em Campo de Ourique, onde o mestre dos cadernos ainda passou; O Baldio do Povo — 1 (1971), também ortónimo e com três glosas ao melhor estilo das suas fulgurantes considerações do período da Seara Nova e cadernos («Inglaterra e Mercado Comum»; «Inflação»; «Prémio Nobel da Paz»). Este último folheto tirou segundo número, O Baldio do Povo — 2 (1972), com idêntico figurino do primeiro e três novas aproximações («Tradicionalismo», «Guerra oculta por guerra», «Caridade»), de condensado traço como o género pede. Aponte-se ainda um folheto desgarrado, Celebrando Maria Montessori (1970), também integrado em Bahia — Colecção de Folhetos, mas sem número, que lembra o centenário de nascimento duma das suas biografadas da década de 30 e com a qual muito se identificava. Há ainda notícia, na bibliografia do trabalho de Artur Manso (Agostinho da Silva — Aspectos da Sua Vida, Obra e Pensamento, 2000: 240-241), de quatro outros cadernos, que desconheço, Beira. Moçambique — Clássicos do Mundo Português (1971), com traduções latinas (Teofrasto, Caracteres Morais e Salústio, Guerra contra Jugurta) assinadas por nova pseudonímia, Dr. A. da Costa Muller e Prof. A. Edgard Carneiro.
Junto ao conjunto, todo com edição tipográfica, custeada pelo autor e distribuída aos amigos, o que de resto fora já o modelo de Folhas Soltas de São Bento, junto, dizia, «Carta Chamada Santiago», ortónima esta, que não viu tipografia, sendo só dactilografada pelo próprio, fotocopiada e enviada por correio postal aos próximos, em oito tiragens (25-7-1973; 1-5-1974; 21-5-1974; 17-6-1974; 1-7-1974; 2-7-1974; 17-8-1974; 18-8-1974), recolhidas hoje em Dispersos (1988: 585-591) e que tem o valor de testemunhar o estado de ânimo de Agostinho no momento da Revolução dos Cravos, em especial no dia 1.º de Maio, data do segundo envio, três parágrafos já comentados a propósito da relação vivencial do meu biografado com o 25 de Abril. É momento de enfileirar aqui «Proposição», um texto de 1974, também já tratado como representativo do estado de espírito do meu biografado diante dos eventos que abalaram o País depois do golpe militar, e o seu «Aditamento» do ano seguinte, que alarga a simpatia revolucionária, aí se falando, a propósito da Península e da Europa, duma «Federação de Regiões Socialistas Liberais» (Dispersos, 1988: 617). Na linha destes textos, ponha-se a entrevista que deu a Tereza Sá Nogueira, em 1975, nunca publicada em jornal, e de que houve texto dactilografado, distribuído pelo próprio a cem amigos, e que disponibiliza relevantes dados autobiográficos relativos ao Brasil (Dispersos, 1988: 23-30), além de facultar o seu decisivo apoio à independência das regiões africanas submetidas a Lisboa, que para ser verdadeira independência, sem outras formas de submissão, necessitava pôr de lado os modelos produtivos, bélicos e consumistas das antigas metrópoles coloniais.
A pseudonímia de muitos dos folhetos publicados entre 1970 e 1972, que parece um solilóquio a várias vozes, um teatro de ficções com um único representante, o que de resto é a impressão que fica de Folhas Soltas de São Bento depois de se saber que há um só autor para aquela polifonia dispersa, tem seguimento num texto de 1977, «Pensamento em Farmácia de Província», onde a par de Conceição da Rocha, José Felix Damatta (tradutor de poesia japonesa), de Frei G.H., de Cascudo de Morais (editor do conjunto) e de Mateus-Maria Guadalupe, todos eles autores dos cadernos feitos no Brasil, aparece uma nova personalidade, Curt Mueller, tradutor do Lísis de Platão, que aí se estampa no meio de muita paródia vicentina. Neste novo conjunto de folhetos da década de 70, só dados a lume na edição dos Dispersos (1988: 623-675), até uma personalidade feminina aflora, muito bem desenhada, por intermédio duma carta escrita a João Cascudo de Morais. Um amigo meu que a leu disse-me outrora que só ela, na época em que foi escrita, isto é na segunda metade da década de 70 do século XX, se candidatava a valer toda a literatura portuguesa do período, de Maria Velho da Costa a Almeida Faria. Não entro por aí mas que tal carta, datada de Maio de 1977, me parece, ao relê-la agora, talhada na melhor substância vocabular e na mais plástica sintaxe verbal nenhuma dúvida. Conseguiu-se aí de forma certeira e ilusoriamente simples o propósito de dar voz aos que a não têm — e tanto assim é que nem pelo nome se conhecem e dão a conhecer, como sucede com a anónima subscritora da muito notável epístola que viu luz no capítulo nono de «Pensamento em Farmácia de Província», dado com a data de Maio de 1977.
Neste período, sobretudo até à queda do Estado Novo, além dos folhetos que imprimia em tipografia e distribuía pelos amigos, ou das missivas dactilografadas que depois os substituíram, com visível economia, Agostinho forneceu muito texto à imprensa, seguindo uma linha sua, que vinha desde as entregas de adolescência a O Comércio do Porto e tivera depois momento alto nas muitas dezenas de textos publicados no jornal O Estado de S. Paulo entre 1947 e 1960. Artur Manso na bibliografia do seu trabalho (2000: 236-37) aponta 30 peças publicadas na revista lisboeta Vida Mundial entre o Verão de 1971 (23-6-1971) e o final do Verão do ano seguinte (29-9-1972), o que representa cerca de dois textos por mês. Muitas das peças são assinadas pelos acrónimos (João Cascudo de Morais, Arnold R. Middlebee, Frei G.H.) já presentes em Folhas Soltas de São Bento e que na altura se espraiavam nos folhetos impressos que o escritor distribuía pelos amigos portugueses e brasileiros. Há nova pseudonímia nesse conjunto. A colaboração na revista Vida Mundial, ao menos no período relativo ao ano de 1972, era muito complexa, pois Agostinho era responsável duma página «Fontes e Pontes do Futuro», que se desdobrava em quatro secções distintas — tema, antologia, apontamento e ficha de leitura. Agostinho, responsável geral, distribuiu muitas vezes aos pseudónimos a tarefa de completarem estas secções. Aparecem assim um Carlos S. Ficalho, uma Palmira Sanches, um Engenheiro Paulo Soares e outros que só assinam por iniciais (como por exemplo H.L.S. ou F. de L.I.). Como acontecera em O Comércio do Porto, a pseudonímia parece surgir neste Agostinho como um estratagema para dar vazão a um volume desmedido de textos, que doutro modo, sempre com a mesma assinatura, se tornaria muito mais monótono.
Sobre a colaboração na imprensa neste período, Agostinho adiantou o seguinte informe, na abertura do folheto O Baldio do Povo — 1 (1971; Dispersos, 1988: 523): «Graças à amabilidade de Hugo Auler para o Correio Brasiliense, de Humberto Alves e Luís Gonzaga para o Jornal de São Félix, de Carlos Ferrão para a Vida Mundial, de Natércia Freire para o Diário de Notícias, de Cupertino de Miranda e António Luís Vaz para O Arauto, de Reis Marques e Rafael Monteiro para O Sesimbrense, de Manuel Vinhas e João Fernandes para Notícia, tenho nestes últimos dois anos escrito para imprensa periódica muito mais que em todos os anos passados.» Por aqui se vêem as publicações em que Agostinho então colaborava. Diz ele que ia então muito mais aos jornais do que em todos os idos. Não sei se assim é, que não fiz contas. Dê por onde der, a soma neste período é de feito gigantesca. A colaboração em Vida Mundial vai muito além das três dezenas antes apontadas e entre 21 de Agosto de 1970 e 11 de Junho de 1971 dou conta de mais 22 artigos, alguns deles recolhidos hoje nos volumes das «Obras de Agostinho da Silva» (Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira e Textos e Ensaios Filosóficos). No jornal Notícia de Luanda dou nota de 23 textos, numa secção autónoma, «Leia, Ouça, Veja, Pense», rebaptizada mais tarde «Cinco Dias da Semana», entre 5 de Setembro de 1970 e 26 de Junho de 1971, muitos recolhidos nos já citados volumes das «Obras de Agostinho da Silva» (Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira e Textos e Ensaios Filosóficos). Em Correio Brasiliense aponto seis textos dados a lume entre 23 de Outubro de 1970 e 11 de Dezembro do mesmo ano, numa secção chamada «É preciso avisar», e mais três, entre 27 de Agosto de 1971 e 5 de Outubro do mesmo ano, numa outra secção, «Três notas de quando em quando», também recolhidos em parte no volume Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira das «Obras de Agostinho da Silva». Em Correio de São Félix, publicado no estado da Baía, dou conta de mais 12 linguados, em secção autónoma, «Cartas a São Félix», dados à estampa entre 1 de Maio de 1971 e 8 de Novembro do mesmo ano e recolhidos no volume atrás referido. Todos estes textos, em forma de missivas, trazem como endereço do remetente Largo de Santa Cruz do Castelo, 1-A, o que parece provar que em 1971 ainda Agostinho não se tinha mudado para o andar do Bairro Alto. No Diário de Notícias, suplemento de «Artes e Letras», há, pelo menos, 16 textos publicados entre 4 de Janeiro de 1972 e 8 de Março de 1974, muitos também recolhidos nos dois volumes antes apontados. No jornal Arauto, de Santo Tirso, numa secção chamada «É preciso avisar», dou nota de mais quatro textos, entre 1 de Julho de 1971 e 20 de Janeiro de 1972. Em O Sesimbrense, numa secção chamada «Onde a terra se acaba», mais quatro textos, entre 20 de Junho de 1971 e 5 de Dezembro do mesmo ano. Ao todo, nessas seis publicações, Agostinho tem entre Agosto de 1970 e Março de 1974 cerca de 120 textos. A recolha que aqui deixo, fundada em pesquisa ainda inédita de Rui Lopo, Ricardo Ventura e Renato Epifânio, está longe de exaustiva e muito haverá ainda para exumar. Este homem, metido em trabalhos de escrita, pede meças a Hércules no desembaraço do impossível.
Há ainda neste primeiro período, que vai de 1969 até ao final da década seguinte, um conjunto importante de traduções — Artur Manso na sua bibliografia (id., 2000: 244) aponta para Salústio, Obra Completa (1974); Tácito, Obras Menores; Diálogo dos Oradores; Vida Agrícola; A Germânia (1974); Suetónio, O Divino Augusto (1975) e ainda uma selecção de contos russos (1973) — e um texto maior, Educação de Portugal, talvez o mais significativo do período, ainda muito criativo, como se vê pela colaboração na imprensa, com um vasto conjunto de textos hoje por apurar e recolher em livro. Escreveu-o em 1970, ao que parece para satisfazer um editor, que depois veio a recusar a obra, que acabaria por ver a luz quase 20 anos depois, em 1989, na vaga de reedições que se seguiram às entrevistas dos 80 anos. Sobre a recusa da edição da obra, encontro o seguinte testemunho de J. Cascudo de Morais no primeiro folheto de Barca d’Alva — Educação do Quinto Império (1971): «Li com a maior atenção um trabalho que Agostinho da Silva escreveu, a pedido de uma das nossas mais consideradas editoras e decerto das que merecem maior consideração, pelo menos ao que penso, e que a editora lhe recusou por ser filosófico de mais, para o que lá teria suas razões. Creio, porém, que não foi excesso de filosofia, porque nem o autor é filósofo, apenas escreve sobre ideias, nem percebo como pode haver excesso de alguma coisa que seja realmente filosófica. O que houve foi falta das estatísticas, das tabelas, das percentagens de que hoje todos são tão ávidos ao examinar, ou analisar, como gostam mais de dizer, as estruturas vigentes, e a recusa, voluntária ou involuntária, das receitas baratas e fáceis, de haver ou não haver ensino infantil ou co-educação, de tirar daqui uma cadeira e de introduzir além uma disciplina, de haver mais salas ou menos salas, mais engenheiros ou menos engenheiros.» Eis Agostinho tirando desforra duma editora ignorante através do seu farmacêutico de Figueira de Castelo Rodrigo. Aquela tirada sobre «uma das nossas mais consideradas editoras», é para sorrir e a dos «engenheiros», que fecha o parágrafo, deita abaixo o alvo e tira o capachinho à seriedade. Estatísticas de mesas e engenheiros! Que graça! É de novo a pantomina carnavalesca do «senhor doutor Coelho» de Botelho Mourão no segundo caderno de Folhas Soltas de São Bento. E escrevia este homem em 1970. Que escalpes não sangrariam hoje em que na educação só há números!
De que fala o livro escrito em 1970? De Portugal e de educação, dois assuntos bem à medida do meu biografado e nos quais muito já havia entrado. À educação se dedicara ele, com larguíssima atenção, no tempo da Seara Nova, das biografias e dos cadernos culturais. Portugal, que o interessara só medianamente no tempo da colaboração com a Renascença Portuguesa, veio a ser tópico de primeira linha depois do volta-face da Paraíba, por volta de 1952, quando se meteu com Judith pela erva queimada do sertão. Dera aí de caras com os caboclos a contarem a história da carochinha. Surpresa! Afinal havia sebastianistas no mundo que não escolhiam gravatas de pintinha nas melhores lojas da Baixa lisboeta, não punham bota lustrosa, nem bebiam com estrépito nos cafés do Rossio as zurrapas do Maurras. Eram até gente simples e genuína, da melhor que o mundo tinha. Ao tempo que isto assim ia, cogitava ele os poemas de Mensagem de Fernando Pessoa. Logo chegou a exposição da cidade de São Paulo, em 1954, com muita conversa com Jaime Cortesão, um dos chefes dela. Assentaram aí os ideais do Espírito Santo e sua importância na cultura portuguesa medieval. Do cruzamento dos três pontos, nasceram na segunda metade da década, dois livros capitais, Reflexão à margem da Literatura Portuguesa e Um Fernando Pessoa. O livro de 1970 é um retomar dos pontos que atravessam estes dois livros, desta vez com atenção à educação, que tanto mexera com ele antes de ir para o Brasil. Educação de Portugal parece assim uma síntese feliz, em 12 pontos, que ocupam sete ou oito dezenas de páginas, da vasta obra escrita do meu biografado nas décadas anteriores.
Registem-se as seguintes ideias do livro. A educação, quando vale, passa ao largo da escola, que em geral aperta, distorce, deforma e corrompe, mais parecendo empenhada em fazer esquecer o que há de criativo e de harmonioso no ser humano do que em incentivá-lo. Para a escola inverter a situação, é preciso reformá-la, tornando-a criativa e socialmente inovadora. Aqui o autor retoma as ideias que vinham do tempo da Seara Nova, em que a escola era encarada como a célula elementar daquilo que seria a vida modelar dos adultos, centrada na cooperação, no apoio mútuo, na participação, no jogo, na santidade, nunca na concorrência, na disputa, na hierarquia, no castigo. É a escola como cooperativa de produção e de consumo, como município autogerido, local de gozo e de autogoverno, tão presente no trabalho de Agostinho no colégio de Pavão Leal, a que se junta a ideia da criança como exemplo modelar da Humanidade, que já existia num recanto do pensamento do primeiro Agostinho, o biógrafo de Pestalozzi e de Montessori, o atento comentador de Baden-Powell, mas que se alarga e aprofunda no segundo, o das Festas do Espírito Santo, o do cristianismo heterodoxo medieval, superior à reforma protestante, e cujos valores, no futuro, antes de mais a coroação da criança como dona do mundo, devem ser retidos e desenvolvidos, mesmo que o nome seja substituído. Em vez da Idade do Espírito Santo, baptizada por Joaquim de Flora no século XII, chame-se-lhe Idade Internacionalista, Idade da Paz, Idade da Justiça ou outro qualquer nome de idêntica direcção. O que decide tudo são os valores — cooperação, apoio mútuo, participação, brincadeira, em lugar de concorrência, disputa, hierarquia, obediência, prémio, guerra e canibalismo moral e económico.
Quanto a Portugal, aquilo que magnetiza passa à margem do Portugal histórico, o que fez a Inquisição, o despotismo, o capitalismo, o colonialismo, o que montou os espectáculos sinistros dos autos-de-fé, acantonou em bairros miseráveis as populações rurais e foi fazer contra as independências as guerras de África. Este Portugal histórico não tem qualquer interesse. Tal como a escola actual, esse país só distorce e deforma. É de fugir a sete pés! Só o Portugal de alma franciscana, valorizando a criança e o Espírito Santo, o Portugal no fundo ideal ou absoluto, o Portugal sonhado, pode cativar interesse. Com ele vão os portugueses que ao longo dos séculos partiram descontentes com o Portugal empírico, insatisfeitos com a Inquisição e com o capitalismo, e foram criando no mundo parcelas novas, que são como que aproximações — o meu Plutarco diz heterónimos — ao Portugal ideal. Destarte o que importa é a comunidade ou união dos povos independentes de língua portuguesa e não o Portugal que sobreviveu sem chama nem alma num recanto da Península. A ideia duma tal união acompanha Agostinho desde a década de 50, decerto em correspondência com a sua própria experiência de exilado e do que via no Brasil, e foi nos anos seguintes, em Folhas Soltas de São Bento, com José Maria Carriedo, enquadrada e aprofundada numa recomposição federal da realidade ibérica, com idênticas repercussões na América do Sul. Este iberismo tem lugar de destaque no livro de 1970 e parece mesmo o ponto alto da nova idade, que concretiza, mesmo com nome diverso, as esperanças joaquimitas medievas.
No caso deste livro, como de resto em todos os outros do autor, o estilo nunca é um anónimo zé-ninguém. Tenho mesmo a impressão de que as voltas estilísticas em que o livro rodopia são ainda mais importantes do que o conteúdo das suas ideias. O que faz o brilho deste livro, ouso dizer, não é o pensamento mas a palavra. Nele se admira ainda mais o escritor do que o pensador, por muito singular e profundo que este seja. Aliás é o que se passa em livros tidos por cruciais no pensamento de Agostinho. Refiro-me a trabalhos como Conversação com Diotima, Apólogo de Pródico de Céos, Parábola da Mulher de Loth ou Sete Cartas a Um Jovem Filósofo. Todos eles têm sido encarados do ponto de vista das ideias, como se fossem apenas produto dum espírito filosófico, quando, em qualquer deles, o trabalho criador do poeta é estupendo. O mesmo se passa com Educação de Portugal, embora neste caso não se encontre qualquer vestígio de dramatização poética e de construção narrativa, tão relevantes nos trabalhos citados da primeira metade da década de 40. No livro de 1970 não há personagens, não há diálogos, não há construção narrativa ou dramática: há apenas um fio contínuo de discurso indirecto, de tipo ensaístico, afim do género didáctico, o menos poético de todos os géneros. A natureza engenhosa dos conceitos, o virtuosismo da composição, a complexidade da sintaxe, a intensidade de certos paradoxos, a ironia, o estilo sentencioso, que não dispensa a linguagem coloquial e familiar, compensam porém largamente a ausência do discurso directo, das personagens e das acções, bastando para fazer do texto um caso linguístico invulgar. É no boleio caprichoso destas frases que se encontra talvez o maior à-vontade verbal de Agostinho como escritor. Nada há nesse momento da sua vida que não possa ser dito pelo seu verbo admirável.
Esse estilo final desenvolveu-se no seio daquilo que o Brasil tem de barroco e de feraz, de excêntrico e de recreativo, de misturado e de único, porque o único é aí o que tem tudo, vindo a culminar em Portugal no livro de 1970. Sobre um tal estilo pronunciou-se um dos pseudónimos de Agostinho, porventura um dos que mais próximo está de ser heterónimo, J.J. Conceição da Rocha, em texto do primeiro número de Folhas Soltas de São Bento (1965). Cabendo-lhe aí a apresentação de Agostinho, não se furtou em se pronunciar sobre os giros da sua expressão. É um passo de grande proveito para se perceber o que o autor pensava da sua própria escrita, ainda que o diga por interposta pessoa, o brasileiro Conceição da Rocha, numa alteridade que favorece o humor, a ironia, a ficção e o gozo premeditado. Cito (Dispersos, 1988: 296): «Além disso seu estilo é muito de través; disse um Amigo nosso comum, muito justamente, que só consegue ler o que ele escreve pondo os dedos nas conjunções; acho que deve haver aqui influência do Sr. George Bryan Mallard, tanto mais que a característica é recente: os seus Cadernos de Iniciação e outros escritos de que tomei conhecimento são em linguagem mais escorreita.»
Este George Bryan Mallard é um próximo do primeiro alter ego de Agostinho, Mateus-Maria Guadalupe, autor textual de Herta. Teresinha. Joan (1953). Ao que dou conta, Mallard aparece pela primeira vez referido na «nota prévia» de Macaco-Prego, em 1955. Antes disso não tem existência para o leitor de Agostinho. A vida que ganha nesse momento é porém curta: sabe-se apenas que a novela foi composta na «casa e na companhia de George Bryan Mallard». Em 1957 volta a surgir, desta vez no pórtico de Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe, que só seriam publicadas em livro em 1989. A nota de abertura é datada da casa de Mallard no ilhéu do Baleal, concelho de Peniche. Guadalupe trata aí Mallard por «amigo tão querido». O mesmo Mallard regressa como colaborador de Folhas Soltas de São Bento. Um texto seu aparece logo no primeiro caderno (1965), «Reflexões sobre a ciência», antecedido por uma auto-apresentação do próprio, momento em que ele ganha o escopo duma história. Mallard e Guadalupe conheceram-se em Paris, antes da guerra, quando o segundo, fazendo um interregno na parasitologia, ficou lá a estudar filologia clássica. Fez parte do grupo de Andrew Casterwell, Joy Virionik e Joan, que estão todos, mas não Mallard, na terceira novela do livro de 1953. Com a guerra, Mallard veio ao Baleal, conduziu um submarino nas águas do Atlântico, foi atingido por torpedo alemão, sobreviveu aos ferimentos e ficou com pensão vitalícia do Governo inglês. Decidiu isolar-se numa casa do Baleal, onde se passou a entregar ao devaneio do ócio. Detesta Newton e gosta de Shelley; é inglês mas não se toma por superior a um pescador do ilhéu onde vive. Do ponto de vista de Conceição da Rocha, outro do grupo de Paris, a mudança no estilo de Agostinho, do enxuto ao palavroso, do comunicativo ao ilegível, dos cadernos culturais aos livros publicados no Brasil, deveu-se ao convívio com este cromo de olho azul. Há muita brincadeira carnavalesca neste processo de auto-avaliação, que parece mais uma estratégia para alimentar a fabricação verosímil das máscaras despersonalizantes e até grotescas do que qualquer estímulo a uma apreciação sincera da escrita do autor.
Resta falar da criação final de Agostinho no período que vai de 1980 a 1994. É nesse período que se sucedem as grandes entrevistas de imprensa, como aquelas que deu à revista Filosofia, à publicação do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa ou ao seu explicando polaco. Resultaram daí textos de acentuado sentido autobiográfico, nos quais se pode incluir um monólogo tão singular como Caderno de Lembranças, escrito pela mesma época, em 1986, e dado a lume em 2006. De qualquer modo será sempre muito pouco avaliar este conjunto de textos como meramente informativos. Há neles toda uma componente narrativa, que só no domínio da criação poética se entende. Agostinho não se limita a reviver as situações através da interposição do discurso indirecto e do contacto à distância com as sombras fantasmáticas do passado. Ele deita agora mão aos recursos dum narrador poético, ressuscitando o passado, através do discurso directo das personagens. Sem cenários para pintar, sem descrições para rolar, o biógrafo de Francisco de Assis, de Lamennais ou de Miguel Ângelo reaparece aqui, mas tomando agora a narração da sua própria vida como peça de trabalho. Chega mais descarnado e nu, sem quadros descritivos, sem pausas reflexivas, mas também mais poético, se por poesia se entender a possibilidade de dar voz e vida a personagens de papel. Há passagens das entrevistas dos 80 anos que fazem figura de autênticas dramatizações narrativas. São quadros poéticos vivíssimos, embutidos em conversas. O livro Última Entrevista, já do final de 1993, está repleto de sequências deste tipo. A conversa com Álvaro Cunhal, que aconteceu antes da saída do meu biografado para o Brasil, num ponto do Chiado, não é um acontecimento morto, relatado à distância de meio século. É antes uma cena viva, que qualquer momento de leitura actualiza. O diálogo, aí dramatizado, fixou-a para sempre. Relata assim (2001: 43): «Disse-me: — Não gostei do seu artigo no jornal tal. […] — Naturalmente que lhe perguntei o porquê […]. E ele, muito frontalmente, disse-me: — Porque você no seu artigo trata das relações que se estabelecem entre a criança e o brinquedo, e não devia fazer isso. Você o que devia era ter escrito um artigo sobre as crianças que não têm brinquedos. — Delicadamente, respondi-lhe: — Pois é, até podia ter escrito, mas na ocasião não foi isso que me interessou escrever […].» Manobrando a fala das personagens, mostrando com elas o palco da vida, o narrador dá novo sangue ao passado morto. As sombras voltam a ganhar corpo e desta vez para dele não mais se desfazerem. O Cunhal da reprimenda «não gostei do seu artigo no jornal tal» durará tanto quanto os momentos de leitura que tiver.
Os exemplos do livro nesse aspecto são intermináveis. A cena do concurso para professor da Escola Superior de Belas-Artes, em 1929, que esteve na origem da estreia em livro do meu jovem poliglota com Pérsio, sofre idêntico processo de reconstituição. Um evento que aconteceu num ano tão recuado, e que não passa por certo duma vaga lembrança, torna-se uma realidade viva mediante o recurso ao discurso directo entre os vários intervenientes (funcionário da secretaria da escola, candidato do café, Agostinho Fortes e segundo examinador). A conversa entre candidato e o primeiro examinador, Agostinho Fortes, mostra um poeta que domina de forma exímia a técnica do diálogo e manobra a seu bel-prazer os títeres que põe no tablado. Assim (2001: 55-56): «Mas voltando ao exame: o Agostinho Fortes pegou então na minha tese e disse com um ar professoral: — Ora então temos aqui uma tese sobre um poeta pérsio ou latino que ninguém conhece. É curioso, sabe, mas olhe que não se percebe nada da sua pontuação; está tudo barafustado. — O senhor professor dá-me licença? — E ele disse: — Com certeza! — Já sei que é um velho costume seu: quando o senhor não sabe das coisas, pega pela pontuação. Veja lá se hoje passa a outra coisa mais concreta, porque isso não adiante nada.» O mesmo processo, com o mesmo efeito, tem lugar no ponto que diz respeito ao encontro no Rossio com António Salgado Júnior, também no ano de 1929, e que acabou por determinar o doutoramento de Agostinho aos 23 anos (2001: 58-59). É um diálogo suculento, cheio de polpa, que mais parece fazer parte duma comédia de costumes do que duma inócua recordação com mais de 60 anos. O mesmo se passa na palestra de Aveiro que esteve na origem imediata da sua prisão em Junho de 1943; é o diálogo que lhe serve para dar vida e nitidez à cena (2001: 68). Idêntico caso sucede no momento da saída de Agostinho de Madrid, no final da Primavera de 1936, quando põe fim à bolsa que Joaquim de Carvalho lhe arranjara. Em vez de nos dar em discurso indirecto um vislumbre dessa despedida, Agostinho prefere recriar todo um demorado diálogo entre ele e António Sérgio, que permite ao leitor ter uma ideia de pormenor do que se passou (2001: 62). O processo ilumina ainda certos recantos de Sérgio que doutro modo ficariam na sombra. Noutra entrevista, dada a A. Campos Matos uns anos antes, o episódio é restituído através duma sinopse do narrador em discurso indirecto, com uma única e insignificante excepção (Agostinho da Silva e Vasco Magalhães-Vilhena Entrevistados sobre António Sérgio, 2007: 18). Está aí a versatilidade de Agostinho como narrador.
O processo da dramatização autobiográfica não tem apenas lugar na conversa deste livro; atravessa em geral todas as entrevistas do período. Em Vida Conversável (1994: 152-153) encontra-se todo um demorado segmento relativo a Brasília, o da fundação do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, que é restituído pela focalização dos diálogos havidos entre Darcy Ribeiro e Agostinho da Silva. Recorri a eles, quando tive de biografar o ponto. Idêntico processo é usado no livro para restituir a mediação que fez nos conflitos em que a reitoria de Brasília se viu envolvida, primeiro com os assistentes (1994: 151-152), depois com os funcionários (1994: 159-161). Até o encontro que teve em Lisboa em 1962 com Franco Nogueira, depois de se ver livre da polícia política, recorre ao mesmo tipo de desenvolvimento (1994: 155-156). Muitos outros passos do livro ilustram este gosto recorrente pela dramatização. Dou só mais um exemplo: a seca do sertão da Paraíba de 1952-1953 é restituída através de dois diálogos, o primeiro com a juventude de João Pessoa que Agostinho mobilizou para ajudar os retirantes e o segundo com um sargento do Regimento de Caçadores da cidade (1994: 105-106). Na entrevista dada à revista do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, ICALP, a que várias vezes recorri para recompor sequências de vida do meu biografado, deparo com o mesmo recurso. O discurso directo tem uma presença forte na primeira parte da entrevista, que serve momento a momento para reconstituir o passado. É através de diálogos que o entrevistado restitui os episódios do seu doutoramento em 1929 (Dispersos, 1988: 83-84), da sua passagem da Paraíba a Santa Catarina em 1955 (Dispersos, 1988: 85), da sua saída de Santa Catarina e chegada a Salvador da Baía em 1959 (Dispersos, 1988: 87) e ainda a relação com Edgard Santos (Dispersos, 1988: 87-89) e Darcy Ribeiro (Dispersos, 1988: 91-92). Nessa entrevista, o meu biografado atreve-se até a dramatizar numa rua de Lisboa um diálogo entre Vasco da Gama e um amigo (Dispersos, 1988: 100), isto para ilustrar a teoria da política de transporte sergiano. Arrojo semelhante se encontra na entrevista da mesma época à revista Filosofia, muito mais moderada no uso deste processo, em que se imagina um diálogo em Atenas entre Sócrates e um seu discípulo, a propósito do casamento (Dispersos, 1988: 78). Até no monólogo autobiográfico desta época, Caderno de Lembranças, riquíssimo do ponto de vista estilístico, com marcas de oralidade que revelam um escritor muito hábil a manobrar os vários registos escritos, se encontra o mesmo processo. Veja-se por exemplo a reconstituição do conflito com Hernâni Cidade na Quinta Amarela (2006: 63), que está na origem da troca do curso de Românicas pelo de Clássicas. Apreciava o herói da Grande Guerra e não o queria destoutiçar, o que mais tarde ou mais cedo havia de acontecer caso ficasse com a disciplina.
Não se julgue porém que o processo apenas tem lugar no momento em que Agostinho precisa de recuperar as parcelas mais apagadas da sua biografia, as que vão da adolescência aos eventos do Brasil. Longe disso. Mesmo casos recentes são restituídos de idêntico modo, através do discurso directo, da voz das personagens, do diálogo cheio, entrecortado por intervenções rápidas do narrador, de apoio aos factos ou de introdução às personagens e suas falas. Já referi exemplos em Vida Conversável relativos à década de 60. Aspectos da viagem ao Japão são recriados em A Última Conversa pela restituição da fala dos intervenientes (Agostinho em diálogo com o presidente da Escola Normal de Tóquio; 2001: 70-71). Pontos importantes de Brasília são tratados através da restituição de diálogos na conversa com a revista do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Mas não só esses casos mais recentes são restituídos através do discurso directo das personagens. Há até casos presentes, quase a acontecer no momento em que Agostinho está a dar a sua entrevista, que aparecem dramatizados através do diálogo das personagens. São casos extremos mas de grande importância num livro como A Última Conversa. O de maior envergadura, o mais complexo, desdobrando-se em várias sequências, caprichoso e solto, diz respeito a Cavaco Silva, então primeiro-ministro. Agostinho da Silva acabara de readquirir, a 12 de Março de 1992, por iniciativa deste, a nacionalidade portuguesa, logo seguida, em Junho, pela reintegração na função pública portuguesa, como professor universitário. O processo meteu o Ministério da Educação, o primeiro-ministro, o Presidente da República e vários funcionários. A matéria, nos vários momentos pelos quais passou, é restituída através de diálogos (com Cavaco Silva, com o funcionário Souto Tomé e com Deus Pinheiro; 2001: 80-87). De toda a dramatização relativa ao ponto, o mais interessante é o diálogo com o funcionário. Parece uma repetição daquilo que se passou em 1982, na secretaria da Fundação Calouste Gulbenkian, com Agostinho a querer devolver o dinheiro que lhe querem dar e a instituição a abrir a boca de estupefacção. Aos cofres do Estado, desde o tempo da pimenta, ninguém dá, só paga e tira! Registo este passo, relativo ao momento em que lhe disseram que lhe garantiam uma pensão vitalícia: «E eu disse: — […] Mas isso é demasiado dinheiro para mim! Não será melhor repartir esse dinheiro com o Ministério? Eu podia devolver uma parte e com ela talvez fizessem coisas para as quais não têm verba. Portanto, apenas me davam aquilo que entendessem que eu precisava para viver, do modo mais restrito possível. E o Souto Tomé, que era o funcionário que estava a tratar do assunto comigo, respondeu-me: — Mas o Ministério não pode fazer uma coisa dessas, porque o que propõe não é legal!»
O que dali resultou foi a criação do Fundo D. Dinis, uma iniciativa que envolveu a Caixa Geral de Pensões e o Montepio, que canalizou o dinheiro de Agostinho para obras sociais. Mais uma vez, como sucedera há pouco na bolsa da Gulbenkian para ir ao Senegal, o meu biografado nada queria de seu. Ter atrapalha muito, dizia ele em tais situações. Sabe-o já o leitor. O que foi afinal o Fundo D. Dinis, a que ele chamou, no momento de o planear, «Fundo Comum del Rey Dom Dinis» (v. Uma Folhinha de quando em quando, Março, 1991)? É a Trapa brasílica, agora no país de Cavaco. Queriam meter-lhe dinheiro ao bolso, por causa da reintegração na função pública portuguesa? Pois muito bem ficasse o cavaquistão com ele, que ele não precisava de papel. Não o queriam? Viesse então buscá-lo quem precisava. Notável, não é? Nascesse cada ano um batalhão de homens desta fibra e o mundo seria melhor do que o Jardim do Éden que o Criador em momento de desatino criou.
Ponho de lado as entrevistas, que como se vê são textos marcantes no domínio da criação poética, ou do recurso aos processos que esta usa, para passar a apontar os outros segmentos da criação escrita de Agostinho entre 1980, início da década de 80, e o ano de 1994. Há um primeiro lote de textos, uns curtos, dalgumas linhas, outros cheios, de muitas páginas, divididos em capítulos, e de que aqui isolo um texto, «Fantasia Portuguesa para Orquestra da História», inicialmente dado à luz em folha dactilografada e depois republicado, em 1982, na revista Cultura Portuguesa (v. Dispersos, 1988: 689-705) e que retoma aquilo que faz a surpresa de Reflexão à margem da Literatura Portuguesa — a pureza da linguagem, a sintaxe castigada, a originalidade da perspectiva, a largueza e a generosidade da visão. O conjunto foi dado a lume em revistas, podendo um ou outro texto ter ficado inédito até à recolha de Dispersos. Um deles, publicado em 1980, serviu de prefácio ao livro de Vasco da Gama Rodrigues, As Três Taças — Os Atlantes, e nele se retoma uma reflexão em torno do Quinto Império, que à falta de outra designação se pode chamar de esquerda, de esquerda bem vincada, sem ambiguidade, que já vinha afinal dos dois grandes livros da segunda metade da década de 50. Essa reflexão consolidara-se nos folhetos das duas décadas seguintes, d’As Folhas Soltas de São Bento a Barca d’Alva — Educação do Quinto Império e «Pensamento em Farmácia de Província», onde se equipara, neste último (Dispersos, 1988: 665), o Quinto Império à sociedade sem classes, à acracia ou anarquia, o que se retoma no texto dedicado à poesia de Vasco da Gama Rodrigues, com referência desta vez ao nome de Pedro Kropotkine (1988: 678).
Assinale-se neste período uma folha de publicação regular, dactilografada, copiada e distribuída aos amigos em correio postal, ao modo do que já fizera em 1974 com Compostela — Carta sem Prazo a Seus Amigos, chamada Carta Vária, cujo primeiro envio data de 13 de Fevereiro de 1986, dia em que o meu íncola completou 80 anos, e que veio a ter, em conjunto, recolha em livro autónomo (1988), no período que se seguiu às grandes entrevistas do octogésimo aniversário do meu biografado. Foram também recolhidas no livro Dispersos (1988: 795-846). Constam de 58 cartas, enviadas entre o dia do aniversário dos 80 anos e o dia 7 de Outubro de 1987. É uma actividade regular que o escritor mantém ao longo de quase dois anos, com cerca de dois envios mensais. Que dizem as cartas? São um escoadouro da sua escrita poderosa, naquele registo de crónica solta e reflexiva, que vem pelo menos das glosas publicadas em Seara Nova. Encontram-se assim notas e apontamentos sobre a geografia portuguesa (XII, XXXIX), sobre o acordo ortográfico de 1986 (XIV), sobre a Humanidade (XVII), sobre a História portuguesa (XX, XXVI), sobre a obra de António Vieira (XXIV), sobre a Teologia da Libertação (XXXI), sobre José Saramago (XXXIV), sobre os estudos clássicos (XL), sobre o cooperativismo (XLIV), sobre o Império Romano e os seus avatares modernos (XLI). Há ainda cartas quase autobiográficas (XVI, XIX, XXV, XXXVI, XLIX) e outras integralmente escritas em verso (XXVIII, XXXII, XLII, XLVI), sendo a última tradução dum poema de Cavafis e a penúltima, poema de Ofélia Queiroz comunicado a Agostinho.
Estas cartas tiveram seguimento imediato num conjunto de 13 folhas, «É a Hora», publicadas entre Dezembro de 1987 e Dezembro do ano seguinte. No final da década e no início da seguinte, houve novas folhas dactilografadas, copiadas e enviadas por correio postal em envelope selado a uns tantos amigos, sempre muito acima da centena, e que acabaram por ganhar título de Uma Folhinha de quando em quando. Tais folhinhas ainda tiveram ocasião de mudar nome para Cadernos de Ermitão Associado e Folhinhas do Convento, sem perder a linha, mesmo quando aparecem manuscritas. Conheço exemplares de Fevereiro de 1990 a Setembro de 1993; com raras excepções, nenhum foi compilado em livro. Entre as excepções está o exemplar de Janeiro de 1991, em três páginas de cerrada dactilografia, com bastos elementos autobiográficos, relatando a ida de Eduardo Lourenço a Santa Catarina nos inícios de 1959 e que Pedro Agostinho recolheu no volume Presença de A. da S. no Brasil (2007: 65-68). O mesmo para a folhinha imediatamente anterior, de Dezembro de 1990, arrumada também no mesmo sítio (2007: 61-63).
De que falam as folhinhas? Do mesmo que se viu para as cartas anteriores, desta vez com mais autobiografia de mistura, quer relativa ao Brasil, quer a Portugal, e até ao Portugal recente, com a reintegração na função pública e a criação do Fundo D. Dinis (Março, Junho, Agosto, Dezembro, 1991). Até nova tradução do grego Cavafis lá se topa (Março, 1991). A novidade das folhinhas é porém o regresso, embora discreto, da pseudonímia. Na folhinha de Abril de 1991 vem uma carta de Agostinho a Bryan Mallard, o inglês do Baleal, amigo chegado de Mateus-Maria Guadalupe, com biografia no segundo caderno de Folhas Soltas de São Bento (1965) e de que há notícia desde a nota prévia de Macaco-Prego. De acordo com a nota da folhinha de Abril, Mateus-Maria estaria por então a inclinar-se para o islão, o que Agostinho rebate. Em Novembro de 1991 Mateus-Maria aparece em pessoa a assinar um parágrafo sobre «política interna portuguesa» e em Dezembro uma estrofe de nove versos para o autor da Eneida. Isto quer dizer que em 1991 volta a haver notícias desta gente de ficção. Mallard continua pacientemente agarrado à sua casa do Baleal como lapa a rocha de mar, vivendo por certo daquela pensão vitalícia que lhe coube em sorte ou azar depois do naufrágio do seu submarino, e Guadalupe sonha com uma nova bandeira para Portugal, é verdade que verde e branca como a do islão, e medita nas ruínas das grandes cidades clássicas de Eneias, de Tróia a Roma. Estes dois, que nasceram para a vida do papel entre 1953 e 1955, só morreriam mesmo para tal existência quando o seu criador se decidisse a deixar a casa do mundo. Dos outros, mesmo dum Botelho Mourão, tão graduado que chegou a ter direito a abrir o primeiro caderno de Folhas Soltas de São Bento, já nesta época nada se sabe. Vivem? Escrevem? Calaram-se? Partiram? Tiveram exéquias? Deixaram espólio? Nada. Só Mateus-Maria Guadalupe e Bryan Mallard continuam a dar notícias. Foram os primeiros a nascer e serão os últimos a partir.
Antes de passar adiante não quero deixar em branco a relação de Agostinho e Saramago. Desconheço se houve relacionamento pessoal entre os dois. Uma coisa é segura, o meu biografado leu com gosto a ficção de Saramago. «Carta Vária» de 5 de Fevereiro de 1987 é dedicada ao romance Jangada de Pedra, saído pouco antes e cuja geopolítica não-europeia parece ser tão do agrado de Agostinho que chega a desejar o aparecimento dum segundo livro, que em vez duma só Península a livrar-se da Europa tivesse duas, a primeira a do hemisfério boreal, e a segunda, a austral, a fugir da Europa dela, esses Estados Unidos, sempre a meter à força o pé na porta da casa dos outros. Esta paráfrase criativa em volta da ficção de Saramago não tem sequer aqui o seu primeiro momento. Na conversa que pouco antes tivera com a entrevistadora do Diário de Notícias, já ele pegara na ficção de Saramago para brincar, estendendo-a a regiões inusitadas. Cito (O Império Acabou. E agora?, 2001: 191-92): «Suponha a senhora que milagre seria se o Álvaro de Campos tivesse tido corpo ou o Ricardo Reis. O Álvaro de Campos viajando pelo mundo e o Ricardo Reis. Quando saiu o livro do Saramago estive para lhe escrever uma coisa a dizer: esse homem que veio a Lisboa não era nada o Ricardo Reis. O Ricardo Reis eu conheci-o na fronteira da Bolívia. Estava lá. Ele também não se queria denunciar, mas quando eu lhe falei de várias coisas do Fernando Pessoa, aí então se descaiu e mostrou umas coisas e eu percebi que era o Ricardo Reis. Inteiramente afastado seguiu a sua carreira de médico. De maneira que esse tipo aí foi um sujeito que, naturalmente, também o encontrou na fronteira da Bolívia, aprendeu com ele essas coisas e veio aqui enganar você e você caiu no logro.» Como se vê, depois de ler O Ano da Morte de Ricardo de Reis, romance de José Saramago, Agostinho concebeu toda uma extraordinária ficção em volta da figura de Ricardo Reis e do Brasil, que metia a fronteira com a Bolívia — mas onde, no estado do Mato Grosso, no estado do Acre ou na Rondónia? — e muito sabiá em folha verde. O fragmento parece um curioso e rico desenvolvimento da sua veia de narrador que deu novelas tão bem ambientadas ao Brasil como Macaco-Prego ou «Dona Rolinha». Só se lamenta que Agostinho não tenha passado a limpo a ideia em mais uma novelesca lembrança sul-americana de Mateus-Maria Guadalupe. Sobre Saramago há ainda o testemunho de Maria Julieta Sebastiani Ormastroni, sua amiga da Rua José Clemente, em São Paulo, dos velhos tempos de Itatiaia, dizendo que uma vez que passou em Lisboa, o meu biografado lhe ofereceu o romance O Ano da Morte de Ricardo de Reis (v. Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 147).
Além das folhas, cartas e folhinhas, há a assinalar neste período a reunião em livro das histórias de Mateus-Maria Guadalupe ainda inéditas, todas posteriores a Herta. Teresinha. Joan, e que surgem em 1989 com o título de Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe. Lá figura também Macaco-Prego, dada a lume em 1956 na revista Cadernos Sul, dirigida por Salim Miguel, e Clara Sombra a das Faias, esta surgida em dois números de Folhas Soltas de São Bento (n.º 6/7, 1968). Só estas duas memórias, ao que dou conta, andavam já publicadas. O resto faz figura inédita, conquanto de composição anterior. Estão nesse caso as lembranças propriamente ditas — dois textos, «Dona Rolinha» e «Ada Carlo», fechados em 1957, isto indica a nota introdutória, e «Tumulto Seis», tocando a fundo Buenos Aires, a que Agostinho conheceu em 1945, e de composição mais tardia, já da década de 60. Trata-se dum notável conjunto, até do ponto de vista linguístico, com uma coloquialidade assente numa rede eficaz de brasileirismos, que ombreia com os grandes picos da escrita de Agostinho da Silva, em geral dramáticos, Conversação com Diotima, Policlés, Apólogo de Pródico de Céos, Parábola da Mulher de Loth, Vida de Miguel Ângelo, Vida de Lamennais, Cinco Falas de Gente Pastoril e Sete Cartas a Um Jovem Filósofo. Também alguns dos poemas dispersos do meu biografado foram neste período, que coincidiu com a projecção jornalística e televisiva, recolhidos em livro, primeiro Uns Poemas de Agostinho (1989), depois Quadras Inéditas (1990) e por fim Do Agostinho em torno de Pessoa (1990), recolhas da responsabilidade dos editores, não do autor. A derradeira, Do Agostinho em torno de Pessoa, recolheu o poema de «Carta Vária» (XLII), com título distinto, «Poema de Caeiro a fingir-se de Ofélia». Há ainda textos deste período que ficaram inéditos como os aforismos ou os parágrafos do Caderno Três (com edição parcial na revista Mealibra, n.º 20, 2006), que me chegaram a prestar serviço em pelo menos um ponto. Ao conjunto, é preciso juntar os prefácios que escreveu para livros de Teixeira de Pascoaes (1986), este a pedido, já se sabe, do editor Manuel Hermínio Monteiro, de Dalila Pereira da Costa (1989) e de João Carlos Raposo Nunes (1990) e ainda as traduções do latim das três obras de Virgílio, Bucólicas, Geórgicas e Eneida, dadas à estampa em 1993. O volume de trabalho para este período final não é nada desprezível para um jovem na força da idade, quanto mais para homem que dobrava o cabo dos 80 anos. Só o Virgílio inteiro, dos três títulos, pode ser, para um paulatino sem pressas, obra para uma vida! Só o anormal que escreveu em pouco mais de quatro anos os milhares de páginas dos cadernos culturais que saíram do escritório da Palhavã, seria capaz de lhe meter o dente com sucesso na casa dos 80 anos.
Uma última nota para um rápido comento em torno dum passo de Uma Folhinha de quando em quando. Trata-se do primeiro parágrafo da folhinha de Dezembro de 1990, que abre assim: «Há alguns, e dos melhores, para os quais sou todo do que chamam nacionalismo anarquista.» O texto, escrito ainda como cidadão brasileiro, é uma glosa da classificação, alargando-a ao internacionalismo («Nacionalista para o internacionalismo o sou eu, ao que penso e quero»). Graça mesmo é que o parágrafo é resposta, sem nunca levantar ponta ao véu, a texto de Eduardo Prado Coelho sobre ele («Vale tudo», Público, 21-5-1990). Percebe-se pela data que o texto deste Coelho novinho foi mais munição de dinamite contra Agostinho, numa altura em que o semanário da Rua Duque de Palmela atirava a bravata da pop-star e Esteves Cardoso tentava correr, no ecrã, um sossegado velho de barba branca. O braço-de-ferro traz-me à lembrança o que o meu biografado disse numa das entrevistas dos 80 anos. Passo-lhe o chá (O Império Acabou. E agora?, 2001: 186): «Quando hoje os nossos intelectuais não sabem escrever um artigo sem citar trinta idiotas franceses, que eles julgam que são pensadores, que é Portugal? Uma colónia de França, nesses intelectuais. […] Eu prefiro em tudo o que escrevo — e só não faço isso mais vezes, porque parecia pedantismo — citar os analfabetos de Portugal a citar qualquer dessas sumidades francesas ou inglesas ou alemãs […].» Agostinho começou a sua vida de escritor como jovem erudito que se doutorou aos 23 anos com um trabalho sobre a época clássica, logo seguido por um estudo sobre Pérsio e traduções de Montaigne e Catulo. Cinquenta anos depois — ia ele a caminho de ser um glorioso nonagenário — fechou a vida a traduzir as obras de Virgílio e a escrever umas notinhas para os amigos. No início encontrou um Alfredo Pimenta, que lhe tentou fazer a vida negra. No fim teve de gramar umas tantas investidas, mas levou aquilo com jeito e saiu-se a tempo. Ainda assim ficou moído de tanta corrida e teria preferido uma cavaqueira mais proba. Não admira que antepusesse sempre os analfabetos aos intelectuais de diploma. Certa vez, alguém, seu contubernal, contou-me a seguinte história. Perguntaram a Agostinho da Silva: — Oiça lá, o que é o que gatos têm, para você lhes andar sempre na companhia? — Agostinho, com sorriso garoto, respondeu: — Os gatos têm uma enorme vantagem sobre os humanos, sabe?! Não podem ser alfabetizados.
O conto, se não é verdadeiro, é bem encontrado. Agostinho gostava da pilhéria e dava tudo por um dito. Um erudito como Agostinho Fortes era o suficiente para o pôr de costas voltadas ao Chiado e um trauliteiro como Pimenta chegava para lhe dar uma real saudade do perna-de-pau de Barca de Alva. Por sua vez os novos capatazes da Europa bastavam para ele se querer mais com os gatos do que com os homens. Assim como assim, tudo isto é precário, pois Agostinho foi dos que mais fez em Portugal e no Brasil pelos humanos e até, pasme-se, pela alfabetização deles. E não o fez só no tempo dos cadernos culturais que lhe saiam do escritório da Palhavã ou nos tempos míticos de Itatiaia e do sertão. Ainda na época final (In Memoriam de A. da S., 2006: 189) recebeu em casa durante vários anos, todas as manhãs, sem lhe cobrar vintém, um menino cabo-verdiano, dado por atrasado, que preparou para sucessivos exames, ensinando-o a ler, a escrever e a fazer contas. O menino fora recusado na escola por deficiência mental insanável. Basta isto para este homem ter autoridade para imprecar a escola e se ir aos gatos.
8. O FIM E O PRINCÍPIO
O programa «Conversas Vadias» deixou marcas e desgastou Agostinho. Já se sabe que Antónia de Sousa, jornalista do Diário de Notícias, lhe falou nessa época na publicação das entrevistas que com ele fizera anos antes e teve como resposta «estou enjoado de mim». De seguida, em Agosto, veio um inesperado percalço de saúde, grave o bastante para o levar ao hospital. Que se passou? Teve uma inflamação do peritoneu, a membrana serosa que reveste por dentro a cavidade do abdómen. A coisa foi tão aflitiva que o obrigou à faca de urgência no Hospital de São Francisco de Xavier. Leio o seguinte em Renato Epifânio (Agostinho da Silva na Imprensa Portuguesa, 2008: 92): «Em Agosto […] Agostinho da Silva é operado de urgência a uma peritonite no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, o que por si só motiva uma série de pequenas notícias sobre ele — vide edição de Público, bem como de Diário de Notícias e de Correio da Manhã. Numa dessas notícias faz-se referência a uma eventual visita de Mário Soares, então ainda Presidente da República, bem como de Maria Cavaco Silva, esposa do então primeiro-ministro.» A prodigiosa organização deste Sansão começava a abrir fissuras. A que se deveu a peritonite que o levou à maca? A nora, Rosa Virgínia Mattos e Silva, dá a entender que tudo começou com infecção intestinal causada por marisco. Marisco, em vegetariano? Parece que sim. Bastou um deslize e apanhou com a ripa! Dou a palavra a Rosa (In Memoriam de A. da S., 2006: 410): «Embora, desde 1991, a saúde do Professor Agostinho já não fosse a mesma — depois de uma infecção intestinal, devida a mariscos […].» A organização fisiológica deste homem era desde remota idade vegetariana. Qualquer excepção, qualquer fuga ao regime espartano dos vegetais e dos lacticínios, por vezes quase inevitável, como quando estava fora de casa, era ressentida como estranha. Além da estranheza, havia os repelões do circo mediático. Mesmo sem o decapitarem, chamuscado o deixaram. A peritonite pode ter sido um rescaldo deste resfriado dos nervos.
Recorde comigo o leitor que raras vezes este homem foi à cama por doença. Numa longa vida, a única doença grave de que o seu biógrafo se dá conta é aquela que teve lugar no ano de 1953, no Recife, e de que ficou aquela história que António Telmo conta (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 270). Diante da vida ou da morte, em coma, o meu socorrista do sertão vê dentro de si, movendo-se velozmente em círculos concêntricos, ígneos e coloridos, uma roda a girar. Teve então a certeza de que se salvaria se parasse a roda que se movimentava de forma cada vez mais veloz. Concentrou-se na tarefa e a roda parou. Salvou-se e retomou a vida em pleno. Vieram as exigentíssimas acções da exposição do IV Centenário de São Paulo e ele não vacilou. Chegaram, de seguida, os anos de Santa Catarina, da Baía e de Brasília, com viagens ao Japão, aos Estados Unidos e à Europa, e ele na maior. Veio para Portugal sem reforma, com passaporte brasileiro e a obrigação de pular de três em três meses à fronteira. Nem um beliscão. Passou a Revolução dos Cravos a apoiar a reforma agrária e chegou aos 80 anos a trabalhar duro. Fez missões no Senegal e em Moçambique; meteu meninos em casa a ler; tinha a seu cargo bicharada exigente, que não deixava em branco a hora da refeição ou da cagada; ia para o gabinete do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa despachar serviço e orientar decisões com o padre Cristóvão. Já com mais de 85 anos ainda teve pachorra para igualar em fama as estrelas da cultura rock e pop. Em tudo só dou nota de duas quebras, a primeira, ligeiríssima, em Nova Iorque, no Outono de 1968, com gripe e queda no gelo, e depois em 1985, quase a chegar aos oitenta, com um problema de insuficiência cardíaca, seguido duma febre alta, tudo perfunctório, já que depois disso ainda se meteu a bailar em muito carnaval.
Dessa insuficiência cardíaca deixou ele registo na conversa que teve no Outono de 1985 com o colaborador polaco. Respigo o seguinte (Vida Conversável, 1994: 75-76): «No outro dia, como sabe, tive aquele acesso de febre. Estranho, que o médico não entendeu, e eu também não, bom… E anteriormente tive a tal história da insuficiência cardíaca. Até hoje estou convencido de que foram sinais visíveis de um estado psicológico. Quer dizer, se eu quiser, posso relacionar inquietações, digamos, inquietações mentais, com aqueles resultados que o electrocardiograma ou o termómetro mostra. […] Eu do segundo acidente, o da febre, ainda não vi com clareza, mas do primeiro suponho que sim. Eu estava a entrar numa vida que me obrigaria a jantares ou a almoços, uma vida social que nunca quis ter. Variadíssimas vezes estive à beira dela — dar-me com o Presidente da República, ministros, embaixadores — mas sempre a recusei. Mas aquilo em que estava ocupado ia levar-me para essa vida. Então há algo que diz: esse cavalheiro não vai bem, dá-lhe, dá-lhe um coração insuficiente, porque isso pode curar-se com digitalina e depois até volta a ser suficiente, ou uma febre, que se cura em duas ou três horas.» A doença para o meu biografado não era nenhum daqueles dissabores que levam o mais humilde a amaldiçoar a vida; ao invés, era companhia benévola e até desejada, que aparecia para dar uma mão nalgum problema. A insuficiência cardíaca resolveu-lhe a questão da vida social em que a primeira vaga de entrevistas o estava a engavetar; a inflamação do Verão de 1990 que o levou à faca pode ter sido uma forma de o ajudar a cumprir o que parece ter sido a sua obstinação maior depois do circo televisivo, «sair de moda».
Embora o restabelecimento haja sido demorado — em carta a José Flórido do final de Outubro de 1990 ele diz (1997: 215): «parece que lá vou convalescendo mais ou menos bem, embora lento» — e nunca definitivo, ainda Agostinho se entusiasmou com o chão e o Sol. Logo em Novembro de 1990 faz sair a primeira Uma Folhinha de quando em quando e em Janeiro de 1991 dá a lume a memorável folhinha relatando a estada de Eduardo Lourenço em Santa Catarina nos inícios de 1959 e que Pedro Agostinho recolheu no volume Presença de A. da S. no Brasil (2008: 65-68) como um das torrinhas da sua escrita. Quem ler a sua prosa e os seus casos de então, sempre acurados e saborosos, não dirá que aquilo saía dum punho engelhado por 85 invernias, algumas bem cruas, como a que se seguiu ao Aljube. A agilidade da palavra, a graça dos contos, a segurança dos versos, as voltas da frase, mais parecem dum homem teso do que dum velho que acabava de dar o abdómen à faca dos hospitais. Dois dos seus velhos amigos — Castelo Branco Chaves e Álvaro Salema — despediram-se da vida por essa época. Eram duas folhas secas que caíam à terra fria do Inverno. A árvore da sua geração estava nua e seca. Sobrevivia apenas lá longe, no Porto natal, Sant’Anna Dionísio, o do dia primeiro em que houve Quinta Amarela; os outros haviam já caído. Ele porém ainda estava de pé, agarrado à árvore, disposto a servir. Foi assim que em Junho de 1991, quando o caso das Forças Populares 25 de Abril apertava, que ele se lembrou de que ainda se podia oferecer naquele caso como moeda de troca. Se o Presidente da República o quisera condecorar, também agora havia de querer ouvi-lo. O meu velho ofereceu-se então como caução dos presos que estavam em greve da fome, escrevendo a Mário Soares e pedindo solução para o caso. Se já não podia recolher os estudantes baianos na Trapa, ao menos havia de tirar uns tantos presos da cadeia. E tirou! A tal ponto que um jornal da época, O Independente (30-8-1991), o deu como promotor dum golpe de Estado esquerdista.
No início de 1992 veio segundo tropeção de saúde, que o levou de novo a internamento hospitalar. A nora tinha razão. Depois do segundo semestre de 1990, nunca o vigor de Agostinho voltou a ser o mesmo. Em carta a Teresa Sabugosa de 10 de Fevereiro de 1992 diz ele (Viva a República! Viva o Rei!, 2006: 20): «Tive há pouco, e estive internado no São Francisco Xavier, um edema pulmonar que deixou consequências. Quase não posso falar (tudo irá mesmo sem eu falar) e de modo algum me poderei deslocar ao Porto (ali sendo minha terra).» Ao Porto fora dois anos antes, em Fevereiro de 1990, a convite da Cooperativa Árvore, abrir um colóquio na companhia de José Rodrigues e de José Mattoso. Quedou-se desta vez por Lisboa, no apartamento do Príncipe Real, a recuperar do susto. Está visto que se restabeleceu, pois a reaquisição da nacionalidade portuguesa, a readmissão na função pública, a criação do Fundo D. Dinis, a ida com Marcelo Ferraz ao almoço de José Aparecido de Oliveira em que se reconciliou com Jorge Amado, são posteriores à macacoa de 1992. Também as grandes mascaradas da Varina da Madragoa, com aquela boa gente que vinha do Brasil sambar com ele, Caloca Fernandes, Marcelo Ferraz ou Lu Rodrigues, tiveram o seu apogeu em período ulterior. Grande parte das fotografias que ficaram dos grupos da Varina data da primeira metade de 1993. Mesmo que se dê notícia de Agostinho e Maria Violante no lugar muito antes disso (In Memoriam de A. da S., 2006: 409), o que marcou, pelos testemunhos escritos que ficaram, pelas fotografias que foram tiradas, foi o início da década de 90.
Na Primavera de 1993 veio de Salvador da Baía o seu neto, João Rodrigo Mattos e Silva, filho de Pedro Agostinho e Rosa Virgínia, que não tinha do avô lembrança, já que era criança de colo no momento em que ele estivera pela última vez na casa do filho e da nora. Agostinho logo o convidou para jantarada no estaminé da Madragoa. João Rodrigo deixou do momento a seguinte memória: «A noite e a lua lisboetas estavam belíssimas, e lá estávamos nós; eu, o professor e um grupo de amigos a jantar na Varina da Madragoa, a convite dele. A Varina é um pequeno e aconchegante restaurante tradicional, onde poemas manuscritos de portugueses ilustres adornam as paredes. Agostinho lá ia todos os domingos, chamava-a de convento. […] Durante o jantar quase não falou. Degustando uma de suas bebidas predilectas — a cachaça de bagaço de uva — só fez pensar. A impressão que tive é que Agostinho da Silva estava sempre se perguntando sobre tudo que acontecia a sua volta e à volta do mundo — e para essas perguntas sempre encontrava respostas brilhantes. Só pensava o futuro, não mais lhe interessava o que já havia passado. — “Está com algum novo projecto? — Vários. — Qual deles é o mais importante? — Mudar o mundo — respondeu convicto. — Não acredito que haja projecto meu mais importante do que este.” Aos meus olhos, estava ao lado de uma criança de 88 anos, a personalidade mais surpreendente e interessante que conheci ao longo dos meus 20 anos de existência.» Era assim Agostinho aos 88 anos. Bebia cachaça e levava a peito mudar o mundo. Não perdera o dom de pegar o diabo pelo traseiro e ficar com ele bem preso na mão. Se preciso fosse dava-lhe umas voltas no ar e voltava a poisá-lo no chão. Surpreendera assim Ruben A. e Eduardo Lourenço. Este último afirmara com pasmo e maravilha que ele tornara o mal inofensivo e domesticara o caos. Era assim que encantava agora João Rodrigo.
Posterior ao edema é ainda a conversa com Luís Machado num sábado chuvoso do princípio de Outubro de 1993 e que deu o livro A Última Conversa (2001: 8). Agostinho apresenta aí um vigor inesperado para um homem que tivera um problema grave no abdómen e estava a sair da história do edema. Demais, daí a quatro meses ia soprar 88 velas no bolo de aniversário. Falou cinco horas seguidas, sem interrupções, contou a história da vida duma ponta à outra, dramatizou em discurso directo com gozo juvenil a cena do concurso da Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1929, reconstituiu a conversa com Salgado Júnior no mesmo ano na praça do Rossio, divertiu-se com as recordações que tinha de Cunhal e de Soares, gozou o seu tanto com Cavaco, não deu mostras de cansaço ou de arrelia. Começou por volta das nove horas e terminou depois das duas da tarde. A certa altura descreveu o seu dia-a-dia naquela época. Diz assim (2001: 104-105): «De manhã, a primeira coisa é tratar dos gatos: lavar as louças deles, ter tudo arrumado e dar-lhes comida. […] Só então, depois disso tudo, que acaba lá pelas sete, é que vou fazer aquilo que não teria paciência para fazer durante o resto do dia: umas cartas que é preciso pôr em ordem, traduzir o Virgílio (olhe, aqueles textos ali foram todos traduzidos de manhã), o Horácio também, e não tenho muito mais paciência para outras coisas.» Estava pois nessa altura a traduzir Virgílio, que viria a lume no ano seguinte. É nessa conversa que ele se sai com a história de já não madrugar às três ou às quatro da manhã, como fizera a vida toda; agora dava-se ao luxo de preguiçar na cama e só se levantar às cinco (2001: 65). Ou estava a gozar o pagode ou mantinha a fibra, o que vem dar ao mesmo!
Uma semana depois, a 17 de Outubro, o meu biografado foi porém outra vez ao chão. O nervo já não era o mesmo, nem podia ser, o desfrute é que sim! Agostinho gozava de palanque consigo próprio. Sentiu-se tonto, agoniado, pastoso. Estava a braços com uma dor que às vezes o tomava. Há notícia duma, no testemunho dum dos amigos de Sesimbra, António Reis Marques. Conta ele assim (Agostinho da Silva em Sesimbra, 2014: 140): «A última vez que o visitei, já ele não estava bem de saúde. Toquei à campainha e a porta abriu-se […]. Qual não é o meu espanto quando o vejo, sozinho, encostado à parede do patamar do segundo piso. Ele morava no terceiro. Não respondendo ao meu bom-dia, reparei então que estava de olhos fechados e, pouco depois, fez-me sinal para esperar. Durante alguns momentos, daqueles que em certas circunstâncias nos parecem uma eternidade, entre surpreso e preocupado, esperei que me dissesse alguma coisa. De repente, abre os olhos, cumprimenta-me e diz-me: “Sabe, fui aqui surpreendido por uma dor, que me obrigou a parar. Quando você chegou, estava já na fase de conseguir que eu estivesse aqui e a dor ali, lá consegui afastar-me da dor.”»
Desta vez não foi possível afastar a dor e a roda continuou a girar, cada vez mais veloz, em círculos concêntricos, numa imparável explosão ígnea de faúlhas velozes e irisadas. Paralisou e perdeu a tramontana. Levaram-no para o Hospital de São Francisco de Xavier, que ficava na parte ocidental da cidade, onde ele já estivera por duas vezes. Perdera fala e movimento; dava pouco acordo de si; o olho enublava-se-lhe. Diagnosticaram-lhe um acidente vascular cerebral grave. Ao fim de tantas décadas, tinha as artérias rígidas e entupidas; o sangue já não irrigava os vasos; congelava, não avançava, deixava vazios. O estado era comatoso. Os médicos fugiam a dar prognósticos. Os mais próximos — estou a falar, ao menos, de Maria Violante Vieira, de Carlota Cortesão que vivia em Lisboa e de Pedro Agostinho que deve ter vindo de escantilhão do Brasil quando lhe falaram do coma em que o pai Joginha entrara — sabiam que a grande roda da Fortuna continuava a girar dentro daquele homem excepcional e que num recanto qualquer do seu pensar ele estava à coca, a ver se lhe armava um sarilho dos grandes. Se já não conseguia meter a trave de outrora na roda dentada, havia de lhe deitar um grão de areia capaz de parar o maquinismo. Não era rústico que desistisse, mesmo quando a luta era desigual. Naquele momento ele estava cada vez mais apagado, enquanto a roda crescia, cada vez mais veloz, sólida, sinistra, a cuspir fogo.
A situação era preocupante mas o que restava de Agostinho ainda dava água para muita barba. Sempre que se vira numa enrascada nunca se ficara. Descobriu o caminho de regresso e a 25 de Outubro houve melhorias. Abriu o olho, saiu do estado pastoso, recomeçou a falar. Os próximos rejubilaram. Agostinho estava de volta, com custo, com demora, mas de volta. Voltara a deixar a dor lá no lugar dela, sozinha, afastando-se ele, a pé, por terreno seco e seguro. Aparecia agora, com riso fino e garoto, ao pé dos seus. Houve vozes de alívio. Pouco depois, a 9 de Novembro, Agostinho regressou a casa. Estava desejoso de retomar a vida anterior. Em cima da mesa tinha os papéis e os livros. A tradução do Virgílio estava ainda por acabar. Não se queria ir embora sem a fechar. Meteu-se ao trabalho mas os passos eram pequenos. Avançava aos soluços. A sua capacidade diminuíra muito. Passava longas horas na cama, de olhos fechados, a repousar, ou então enfiado no sofá, embrulhado num casaco de lã, uma manta pelas pernas, para onde um dos gatos lhe saltava, os olhos perdidos no vazio. O Inverno chegava frio e cortante, disposto a levar as derradeiras folhas. Dentro de si soprava outrossim um frio gelado que o paralisava. Tinha febre e falava-se numa pneumonia que o não largava. Deixou de tratar do correio e de enviar as folhas aos amigos. Concentrou as derradeiras forças no seu Virgílio, que tanto ainda o exaltava e comovia. Aquela língua era ordenada como o caos dum céu estrelado. Continuava curioso pelo estado do mundo, antes de mais a África, que acabara de nascer na década de 60 para a idade moderna e na qual ele teimava em pôr o futuro. Também a velha Europa, com os terrores a rodarem à solta no antigo torreão jugoslavo, puxava por ele. Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética em 1991, a dissensão punha uma incógnita no horizonte. Folheava os jornais — antes de mais o Público, o preferido (A Última Conversa, 2001: 109) — e via de quando em quando um telejornal.
Todos os dias havia gente para o visitar e todos os dias ele se dispunha a abrir a porta aos visitantes. Faltavam-lhe porém as forças para se levantar. Foi necessário protegê-lo. Aceitava-se quanto muito a chegada dum amigo brasileiro, que vinha de longe para o ver, como o foi o caso de Darcy Ribeiro, que o conhecera em São Paulo em 1954 e que fora o responsável da sua ida para Brasília em 1962. Darcy chegou com José Aparecido de Oliveira, que vivia em Lisboa e era visita regular de Agostinho. Parece que não se viam desde os tempos do golpe militar de 1964, altura em que Darcy teve de se pirar para o Uruguai. Andavam nessa época de costas voltadas, por causa do rumo do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses e ao que deduzo só voltaram ao bom entendimento nesse derradeiro encontro. Pedro Agostinho comenta assim a fotografia que dele ficou (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 360 e 381): «Darcy Ribeiro e o Embaixador José Aparecido de Oliveira visitam Agostinho da Silva. Passadas as divergências, conflitos e ruptura entre os dois amigos, quanto à condução da Universidade de Brasília, os caminhos de Darcy e Agostinho se reencontraram: na doença e em boa paz.» José Aparecido de Oliveira passou a escrito o caso. Passo-lhe o discurso (In Memoriam de A. da S., 2006: 251): «Mas a imagem mais forte de nossos últimos encontros é a da visita que lhe fizemos, Darcy Ribeiro e eu, em Dezembro último. Ele ainda estava em seu apartamento modesto de Lisboa, em um terceiro andar sem elevador. Subimos as escadas e o encontrámos, entre seus livros. […] Darcy, com a efusividade de afecto que todos conhecemos, dele se despediu com um beijo na testa. E ele, em sua dolorida sobriedade, com o gato de estimação na sua poltrona, sorriu, como se nos dissesse: continuem a luta em favor da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.»
Este registo dá a ver quanto Agostinho já estava debilitado em Dezembro de 1993. Ele que de tudo fizera frase e epicédio, mal podia já mexer a goela. Era com os olhos que agora falava. Não tardou Agostinho a regressar ao Hospital de São Francisco de Xavier, no Restelo. A febre continuava, os pulmões estoiravam, as forças baixavam. Estava porém consciente. Fernando Dacosta, que lhe escreveu o necrológio, revela o seguinte sobre o momento do internamento (Presença de A. da S. no Brasil, 2007: 324): «Autodomina-se, na ambulância que o leva para o hospital, no seu jeito de dar a volta a tudo — sobretudo ao medo. Consente em ficar internado.» Já não saiu do hospital. Ficou acamado, entremeando momentos lúcidos e de delírio. Pedro Agostinho veio do Brasil para estar com ele. Percebia-se que o gigante das matas do Douro e dos cerrados do Planalto Central tinha os dias por um fio. Mas até na morte este macróbio dava um espectáculo monumental. Era um castanheiro centenário, cujas raízes já não tinham forças para chupar a terra. Já as partes baixas estavam secas e ainda as folhas teimavam em despontar. A agonia foi prolongada e dolorosa. Era bicho de larga envergadura que não se fazia às boas à cama. Querer Agostinho deitado e quieto, na horizontal, era tarefa tão ingrata como prender um touro com um atilho de cordel. Desde criança que passara pela cama a correr, sem se deter. Sofria pois. Acabou por abrir feridas no corpo, que lhe davam o aspecto dum lázaro. Alternava as horas lúcidas, em que sofregamente se abria aos próximos, e as desvairadas, alucinantes, em que perdia consciência dos apoios e mergulhava numa realidade delirante, muito mais aflitiva.
Paulo Borges inquiriu Pedro Agostinho sobre estes estados alterados e obteve como resposta que Agostinho via horrorizado o mundo a consumir-se em fogo, cruzando no delírio mental recordações recentes, como a guerra na Jugoslávia, colhidas na televisão ou nos jornais, e as suas próprias previsões. Ele, que a torto e a direito fora mimoseado com o epíteto de profeta, tomava agora por reais as suas fantasias. Paulo Borges pôde construir com as informações uma sequência sobre os momentos finais de Agostinho da Silva. É um testemunho privilegiado sobre um dos momentos mais difíceis de restituir da vida do meu biografado. Passo-lhe a palavra (Línguas Fogo — Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva, 2006: 19-20): «2 de Abril de 1994. Sábado da Paixão. Lisboa envolta num céu acastelado de nuvens negras, pelas quais se filtram fortuitos raios de luz doirada. Hospital de São Francisco Xavier. Agostinho da Silva no leito de morte. Faces encovadas e lívidas. Cabelos brancos em desalinho, perlados de suor. Olhos muito abertos, extáticos, a trespassar o tecto do quarto. Como num quadro de El Greco. O rosto e o corpo agitados por violentas convulsões. Em grande sofrimento. Apenas os filhos e Maria Violante recolhidos em seu torno. […] Um turbilhão de sensações, pensamentos e imagens, um tumulto de vozes interiores, de que só fragmentos trespassam a fronteira da vida em colapso, ganhando uma expressão dolorosa, filtrada a custo pelos lábios trementes, pela voz cava. — […] A Bósnia! Tanto sofrimento! É preciso fazer alguma coisa!… […] Oh, o que é isto!? Que estrondos! Tudo a arder! Porque é que está tudo a arder!? Vocês não vêem que estão todos a arder!? Porque é que não fazem nada!? Pedro! Pedro! Olha, também eu estou em chamas! Em chamas!!! Está tudo em chamas!»
No meio dos delírios, Agostinho continuava a chamar pelo Piúsca. Entende-se? Sim! O filho, nascido em 1937, era produto da mesma febre que dera ao mundo as biografias. Crescera depois junto ao pai em Itatiaia, em São Paulo, em João Pessoa, em Santa Catarina. Fizera-se adulto em Salvador e em Brasília. Ocupara durante anos o apartamento do pai na colina de Brasília, já que este preferia o barracão no cerrado à oca académica. Estivera sempre ao seu lado. Agora, no febrão da agonia, lá estava o filho. Era o moço de cego que Agostinho pedia. Chamava por ele com a energia de outrora; voltavam os tempos do escuteiro-chefe de Florianópolis, à volta da fogueira, com sentenças determinadas. O filho dava-lhe a mão, falava-lhe com doçura, assentia aos pedidos. Rosa Virgínia, a nora, testemunhou esta privilegiada relação. Pelo passo, tiro que o filho mais velho era o único que, na agonia, o meu biografado reconhecia. Passo-lhe a palavra (In Memoriam de A. da S., 2006: 405): «Fui a Lisboa na segunda quinzena de Março de 1994 para um congresso sobre a língua portuguesa, realizado na Universidade de Lisboa. Pedro Agostinho, meu marido, já se encontrava nessa cidade para acompanhar o pai, que já não estava bem e fora hospitalizado. Pedro e eu, todas as manhãs, íamos visitá-lo, no horário previsto. Não sei se o Professor Agostinho me reconheceu, contudo tentava, com enorme esforço, se comunicar com Pedro. Às vezes tinha sucesso.»
O rústico castanheiro das serranias beirãs acabou por vir abaixo na madrugada do domingo de Páscoa de 1994, 3 de Abril. Depois do incêndio que fora a sua agonia de temores e de visões, ficavam as cinzas frias e serenas. Não vi o corpo deste herói no leito da morte mas imagino que o seu efeito era mais forte do que o de Heitor no arraial troiano. Metia respeito e fazia tremer. Era pequeno de estatura física mas imenso no tamanho moral. Um homem desta craveira até morto inspira admiração. É um desses gigantes que só de século a século vêm ao mundo. Se num país aparecer um de cem em cem anos é já uma benesse. As rádios e as televisões começaram a transmitir a notícia da sua morte. Anunciavam para essa noite o velório do corpo numa das capelas externas do Mosteiros dos Jerónimos (In Memoriam de A. da S., 2006: 411), seguido na manhã seguinte de missa de corpo presente. Morria no Restelo, onde outrora um velho apontara o dedo aos que zarpavam para o Oriente, e despedia-se da luz do firmamento nas pedras dos Jerónimos. Depois disso só a escuridão da fria terra. Se alguém não conspurcava o local, era ele, que soubera amar como ninguém o torrão em que nascera, porque nunca nada pedira e tudo dera. Quando o País o maltratou, com a bravata dos Pimentinhas e o curro do Aljube, o meu rústico não o insultou com sarcasmo e raiva; limitou-se a voltar costas com decência ao País, para noutro lugar o reinventar de forma mais digna e pura. Quando por fim uns tantos se lembraram de ressarcir Agostinho das injustiças descaradas que lhe fizeram, premiando-o pelos serviços entretanto prestados à cultura portuguesa com tanto sacrifício, ele preferiu dar aos outros o que a ele voltava, modo discreto de dizer que tudo fizera de forma gratuita e voluntária, com muito gozo, nunca a pensar no prémio. Se querem as pedras dos Jerónimos sagradas e limpas, guardem-nas para homens honestos e simples como este, mesmo de poucas letras e nenhum prestígio, e não para os fura-vidas da política, que de grande só têm o crédito no banco e a manha.
No dia seguinte os jornais noticiaram o acontecimento. O Diário de Notícias trazia uma curta lateral na primeira página, à esquerda, de 13 linhas. No interior (p. 34), recolhiam-se testemunhos de Fernando Gil, de António Telmo, de José Hermano Saraiva e de José Cardoso Pires. O Público deu-lhe a primeira página: «Agostinho da Silva — a morte de um visionário.» O jornal preferido de Agostinho era também o que no momento do desaparecimento mais probamente o lembrava. No interior textos de Fernando Dacosta (pp. 9-10), ilustrado este por cartoon de Vasco, de Carlos Câmara Leme (pp. 10-11) e de Mário Soares, na última página. Nesta uma nota lateral dizia o seguinte: «O funeral do professor Agostinho da Silva, ontem falecido no Hospital de São Francisco de Xavier, de Lisboa, realiza-se esta tarde do Mosteiro dos Jerónimos para o Cemitério do Alto de São João. O corpo chega à igreja às 15 horas. A seguir, seguirá para o cemitério, para uma sepultura junto às de outros familiares como a primeira mulher.» Um vespertino como A Capital retirava informação dos jornais da manhã e dava esta notícia sobre o seu falecimento (p. 5): «Agostinho da Silva […] faleceu no Hospital de São Francisco de Xavier, em Lisboa, onde se encontrava internado, devido a um acidente cerebral, desde 17 de Outubro de 1993. Hoje às 15 e 30 o funeral de Agostinho da Silva sai do Mosteiro dos Jerónimos para o Cemitério do Alto São João, esperando-se a presença do Presidente da República.» Na foz do Douro, O Comércio do Porto, destacava na primeira página o desaparecimento de Agostinho e retomava informação dos jornais lisboetas da manhã. O jornal da Invicta perdeu uma ocasião de oiro. Que página única não davam as primícias do meu biografado publicadas no jornal meio século antes!
De manhã o Presidente da República passou a correr pelos Jerónimos. Tinha a «Presidência Aberta» e partia todo catita para o Sul do País. Não podia perder tempo; Agostinho interessava-lhe, mas comedidamente. A missa de corpo presente foi de manhã, talvez devido à pressa do passeante. A nave central recebeu o féretro e a multidão aglomerou-se no centro e nas alas. Celebrava a cerimónia o padre Vítor Melícias. Fez uma homilia à altura. O jornal Público do dia seguinte, pela mão de Fernando Dacosta, anotou assim («Funeral de um português singular», p. 25): «Na sentida evocação que fez nos Jerónimos, o padre Melícias situou Agostinho da Silva entre Camões e Vasco da Gama — cujos túmulos ladeavam o caixão —, comparando-o, pela postura na vida, a S. Francisco de Assis. “Homem do ser, não do ter, estendeu a toalha do pão da cultura para que os portugueses se servissem”, destacou.» Fica bem, sim senhor, lembrar a grandeza franciscana de Agostinho; este homem tudo deu e nada teve de seu. Está certo, pois. O que peço é que isso não seja pano que acabe a esconder o gigante da escrita. É que além de franciscano, ele foi o melhor biógrafo português de Francisco de Assis. Desta vez não havia porém modo de apagar o escritor. Estava em boa companhia, a meio caminho entre Camões e o Gama, lembrando-nos com insistência que numa mão também ele tivera a pena e noutra, sem anfractuosidades de espécie alguma, não a espada mas a energia. Deste momento ficou ainda o testemunho de Rosa Virgínia, que nas fotografias dos jornais aparece sempre ao lado do marido, Pedro Agostinho. Passo-lhe a palavra (In Memoriam de A. da S., 2006: 411): «[…] na segunda-feira fui ver o professor no velório que se realizava em uma das capelas externas do Mosteiro dos Jerónimos; pelas dez horas houve a missa de corpo presente, na nave central do mosteiro. Fez o sermão, antes um discurso político, o padre Vítor Melícias, que era amigo do professor Agostinho. A igreja do mosteiro se encontrava cheia: parentes, amigos, curiosos e a RTP.»
Fez-se depois uma paragem para almoço. A multidão dos curiosos que ali viera à notícia da morte do grande homem não debandou. Eram os simples que ele passara a vida a resguardar, esses mesmos que nada entendiam do Portugal franciscano, nem queriam entender, mas haviam gozado a agilidade do seu gancho. Estavam desejosos de engrossar o mealheiro com as sobras de Bruxelas mas reconheciam naquele velho barbado que se vestia como um pobre do antigamente, mais por vaga intuição que por qualquer ordenada dedução, um ser de excepção. Contavam-se pelos dedos de duas mãos os que ali estavam e que eram ainda contemporâneos da obra saída do escritório da Palhavã; tal giro pertencia a uma outra vida, que um sismo engolira para sempre, sem deixar o mais pequeno vestígio, a não ser uma recordação tão vaga como a do outro sismo que engolira Lisboa no tempo do senhor D. José. O motivo que ali os levava era a televisão, as entrevistas dos jornais, as curtas sobre o milho que o velho castiço ia dar aos pombos no Jardim da Príncipe Real, os gatos que nutria à sua conta e que apareciam com ar eléctrico em todas as suas fotografias. Chegava, porém. Vinham pois abeirar-se do féretro com a natural vontade de se juntarem ao que lhes era familiar. Segundo testemunha ocular que esteve presente na cerimónia, depois da missa, os espaçosos jardins fronteiros ao mosteiro encheram-se de gente, que estendeu na relva o farnel e ali comeu, bebeu e se repimpou ao quente e luminoso sol de Abril, enquanto esperava a saída do corpo para o Alto de São João. Quando o ataúde se fechou e o carro funerário se pôs em lento andamento, a maioria seguiu atrás, voltando-se a reunir no átrio do campo santo para acompanhar em mole à última morada o que restava daquele incêndio de generosidade e génio.
No dia seguinte, o jornalista do Público relatava assim o momento («Funeral de um português singular», Público, 5-4-1994): «Centenas de pessoas acompanharam ontem à tarde o corpo de Agostinho da Silva ao Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, onde ficou em campa rasa, próximo de familiares ali sepultados.» Campa rasa, próximo de familiares? Já no dia anterior, na curta não assinada, na última página, o jornal noticiara que o professor ia dormir o último sono numa sepultura «junto às de outros familiares como a primeira mulher». A prima Berta, a menina de franjinha que o espicaçava na Foz do Porto, a mãe do Pedro e da Manine Gabiéu, a que apanhou um banho de água gelada em Montevideu, e que entretanto já se fora, estava à espera dele. Aquilo que a vida não unira senão de forma fugaz não seria porém a morte a juntar de forma definitiva. Agostinho nunca chegara a aquecer lençóis; deitava-se para logo se levantar. Desconfio que desta vez fez o mesmo. Homens como este não dormem nem morrem; mesmo na morte, têm sempre meio olho aberto. Basta a Primavera chamar por eles ou um pobre estender a mão e logo se levantam do meio dos mortos para irem bater à porta da vida. Um rústico como Agostinho nunca se ficaria a dormir o sono eterno — e logo em túmulo frio de terra — com tanta vida para viver, tanta gente para ajudar, tanto ânimo para levantar! Quem crê em tal patranha? Ninguém! A esta hora já a lura do Alto de São João está vazia e o meu plantígrado anda a bater, satisfeito até mais não, de calção e alpergata, as floridas encostas doutra Barca de Alva.