5
Estou prestes a correr para o andar de cima quando Elena salta da sala de estar como um boneco de mola assustador de tão animado. Será que ela estava ali à espreita, esperando que eu entrasse em casa? Espero que não ache que eu vá lhe contar o que aconteceu durante a visita de Paul.
– Podemos dar uma palavrinha, senhorita Cate?
– Eu... Sim, claro que sim.
Ela me conduz de volta à sala de estar e faz um gesto para o sofá. Como se a casa fosse sua, não minha. Ela se senta na cadeira de brocado azul e espaldar alto em que Paul se sentara pouco antes, mas enquanto ele se jogou nela com as pernas estendidas, ela se empoleira toda delicada, com as costas bem eretas, a saia rosada formando uma poça ao redor de seus pés.
– Você aparenta não gostar de falsidades, por isso, vou ser direta – diz ela, e cruza as mãos bem direitinho sobre o colo. – Você é a mais velha. Suas irmãs se espelham em você.
Abro a boca para protestar, mas ela detém minhas palavras com um aceno.
– Elas fazem isso, mesmo que não queiram admitir. Para que meu tempo aqui seja proveitoso, vamos ter que nos entender. Imagino que você não queira uma desconhecida qualquer entrando na sua casa e circulando por aí. Mas é óbvio que seu pai está preocupado com o fato de vocês, meninas, crescerem sem uma influência feminina, e suponho que uma governanta seja melhor do que uma madrasta, não é mesmo?
Pelo Senhor, todo mundo está me pegando de surpresa hoje!
– Minha intenção não é mandar em você nem agir como sua mãe. Eu mal completei 18 anos – confidencia. – Não faria sentido fingir que sou muito mais experiente. Mas, se conseguirmos chegar a um entendimento mútuo, acredito que o tempo que eu passar aqui pode ser benéfico para nós duas.
Eu me inclino para a frente, curiosa.
– Como assim?
– Parece que vocês andam isoladas desde a morte de sua mãe. Maura sente falta de companhia. Posso ser amiga dela. Vamos ser honestas? Meu trabalho aqui não é exatamente ensinar francês a vocês... aliás, soube que Tess já é bem fluente... Minha tarefa é ensiná-las a conversar com pessoas maçantes das quais vocês não gostam. Sejam quais forem suas razões para se manterem afastadas... – ela me encara com um olhar que é mais do que um pouco perturbador – ... obviamente estão começando a chamar atenção. A senhora Corbett diz que ganharam a reputação de serem intelectuais demais.
Ela faz uma breve pausa, então continua:
– A Fraternidade é bastante firme em relação ao papel das mulheres. Devemos ser vistas, e não ouvidas. Os homens querem esposas meigas e complacentes, não inteligentes e cheias de opinião. Vocês precisam aprender a ser mais agradáveis, Cate. Para sua própria segurança. Posso ajudá-las.
Estreito os olhos.
– A nos transformar em bonequinhas bonitas?
– A se transformarem em mulheres que sabem quando ficar de boca fechada. – A voz de Elena é igual a um chicote, e me encolho como se ela tivesse me acertado. – Já lhe ocorreu que nem todas as mulheres que se recusam a zombar das convenções são desmioladas? Talvez isso signifique que são inteligentes o bastante para passarem despercebidas.
Será que ela quer dizer que essa nossa reputação é minha culpa? Que cuidei mal das coisas porque não sou inteligente o suficiente? Mantive minhas irmãs longe de Harwood, longe da Fraternidade e dos informantes abelhudos dos Irmãos. Independentemente do que as megeras da cidade possam dizer sobre nós, considero isso um sucesso.
– Foi isso que fez com Regina Corbett? Ensinou-a a ser menos ameaçadora? – provoco, e dou um sorriso afetado.
Elena não morde a isca.
– Regina não tem um cérebro que valha a pena mencionar. A mãe dela me pagou bem para que ela arranjasse um bom casamento. A jovem não tinha mais nenhuma opção. Você e suas irmãs são um caso diferente. Poderiam se virar muito bem sozinhas.
– O que quer dizer com “se virar muito bem”? – pergunto.
Estou curiosa. A avaliação sincera dela sobre Regina quase faz com que eu goste dela.
– Você também pode se casar se quiser. – Como a Regina, o tom dela parece dizer com desprezo. Como todas as outras tolas de cabeça vazia. – Parece que tem um pretendente. Ou... há a Irmandade. Vocês três são estudiosas, não é verdade?
– Tess e Maura são.
Meu rosto queima quando me lembro da impaciência do Pai. Eu tinha dificuldade para memorizar todos os deuses e deusas e seus feitos, não sabia escolher qual declinação usar, assassinava a pronúncia. Consigo somar, subtrair e multiplicar números na cabeça com mais rapidez do que ele, mas de que isso adianta além de servir para manter as contas da casa em ordem? As mulheres não têm direito a ter o próprio dinheiro.
– Bom. – A expressão de Elena é infeliz, e percebo que me sinto mal por tê-la decepcionado. – As Irmãs iriam permitir que você desse prosseguimento à sua educação. As bibliotecas que elas possuem em Nova Londres são maravilhosas. Os jardins também. E elas admiram mulheres cultas.
– Não somos uma família muito religiosa – observo.
Ela dá de ombros com suas enormes mangas bufantes.
– Existem maneiras de contornar isso. Elas me acolheram quando fiquei órfã. Deram-me um lar e educação. Se estiver interessada, tenho certeza de que posso conseguir uma entrevista para você. Ou para Maura. Até mesmo para Tess. Há meninas que entram para o convento aos 10 anos.
Pela maneira como ela descreve a Irmandade, não parece tão impossível. Nós três poderíamos ficar juntas, pelo menos, e cuidar umas das outras. Mas também não teríamos que ser iniciadas e prometer adotar os ensinamentos da Fraternidade? Estudar escrituras e rezar o dia todo, rodeadas por várias garotas religiosas – garotas que certamente iriam nos condenar se descobrissem o que somos?
– Só faz algumas horas que você está aqui. Acredito que decidir nosso futuro agora seja um pouco prematuro.
– Discordo. É bom que garotas de sua idade levem em consideração as opções de que dispõem. O Senhor bem sabe que não são muitas. – Elena revira os olhos, demonstrando óbvia exasperação. Isso me faz imaginar como ela se encaixa com as Irmãs. Por acaso elas não devem ser modelos de feminilidade? Ela não parece ser exatamente do tipo meigo e subserviente. – Você poderia ser feliz em Nova Londres, tenho certeza.
– Você mal me conhece – digo, irritada. – Como sabe do que posso ou não gostar?
– Bom, você não parece muito feliz aqui – diz ela sem rodeios, e eu me encolho.
Chatham não é o problema; adoro meu jardim, nossa casa e os campos verdejantes que a rodeiam. São os Irmãos e o fim do prazo que está chegando para minha declaração de intenção que me incomodam.
– Apenas pense sobre o assunto, Cate. Não tire conclusões apressadas antes de juntar todos os fatos. É possível que outras pessoas também tenham ideias inteligentes, sabia?
Abro a boca para reclamar, para dar uma bronca nela por sua impertinência, mas Elena apenas sorri e se retira da sala.
Não sei muito a respeito das Irmãs. A Mãe estudou na escola do convento delas quando era menina, mas raramente falava sobre isso. Ela conheceu o Pai quando tinha 16 anos e abandonou a escola um mês depois para se casar com ele. Foi muito rápido, e eu achava que era tudo muito romântico. Agora, por saber como ela confiava pouco nele em relação às coisas realmente importantes, fico imaginando se ela não tinha outras razões para desejar abandonar a Irmandade.
Estou à porta do meu quarto, ansiosa para retornar ao diário da Mãe, quando Maura sobe a escada correndo atrás de mim, agarra meu pulso e me puxa para dentro do quarto dela.
– O que foi? – pergunto, aborrecida.
– O que você achou? – sussurra ela, e fecha a porta.
Vou para cima da cama dela e amasso a colcha. Lily já deve ter passado por ali; Maura nunca arruma a cama.
– A respeito do quê?
Ela se ajeita no banco à janela.
– De Elena, tonta.
– Ah. – Dá para ver pela animação em sua voz que ela gostou da moça. – Ainda é muito cedo para dizer. Eu não sairia contando nenhum de nossos segredos a ela por enquanto.
– Então não devo permitir que ela leia o meu diário? – pergunta Maura, com os olhos arregalados.
Eu me levanto com um gesto brusco, sem me dar conta da piada até que ela começa a rir.
– Você não tem diário nenhum, não é? – digo, e suspiro aliviada.
– Não – esclarece ela. – Pelo Senhor, você é assustada como um gato. Sente-se.
Eu me sento, pego uma de suas almofadas e fico girando-a nas mãos. A palavra Família está bordada em letras cor-de-rosa rebuscadas na frente, rodeada de corações e flores. Tenho uma dessas, só que azul.
– Não gosto de ter uma desconhecida por perto – admito.
– É, você já deixou isso bem claro. Mas ela parece simpática, não acha? Não é nem um pouco como eu achava que seria. Eu me lembrava de que ela era bonita, mas você não viu os vestidos dela! Eu a ajudei a desfazer as malas e são todos do mesmo jeito. Todos em brocados elegantes e montes de anáguas de tafetá e seda. Ela tem até – Maura baixa a voz e cora – roupas de baixo de seda. E tem as luvas de pelica mais delicadas para ir à igreja e as sapatilhas verdes de veludo mais lindas que já vi, com rosinhas bordadas! Eu contei a ela que não temos nada novo, e ela disse que ia falar com o Pai a respeito disso, que talvez possamos mandar fazer algo bem rápido, a tempo do chá da senhora Ishida, se ele estiver disposto a pagar um pouco mais.
– Não precisamos de tudo isso – argumento.
– Precisamos, sim. Só porque você se contenta em ficar andando pelo jardim feito uma... espere. Como foi a visita de Paul? Ele estava flertando com você, não estava? Fico imaginando onde aprendeu isso.
Lembro-me do que Paul disse sobre ter enlouquecido em Nova Londres. Não gosto da ideia de ele flertar com outras garotas e acompanhá-las até em casa depois das cerimônias religiosas. Nem um pouquinho. Mas ele voltou para mim, não foi? Penso em sua voz no meu ouvido, em sua respiração fazendo cócegas no meu pescoço, e abraço a almofada de Maura junto ao peito. Imagino como seria dar um beijo decente. Ou indecente, talvez...
Dou uma risadinha.
– Foi bom ver Paul. Eu estava com saudade dele.
– Ele faz você sorrir – comenta Maura. – Você devia retribuir o flerte. Ele deu alguma indicação? Sabe como é... sobre se casar com você?
– Ele disse que teríamos tempo de sobra para voltar a nos conhecer até dezembro.
– Cate! – grita Maura, pulando em cima de mim e me derrubando de lado; parece um cachorrinho em sua animação. – Por que não veio me contar logo?
– Porque ele não fez um pedido oficial, não ainda. Ele nem falou com o Pai. E porque eu não posso... não sei se posso aceitar.
Minha irmã fica me encarando, com o rosto a dois dedos do meu, os olhos cor de safira arregalados de incompreensão. Há uma cicatriz minúscula no queixo dela, de quando teve catapora.
– Por que não?
– Por que ele vai voltar a Nova Londres. O homem de quem foi aprendiz lhe ofereceu uma posição em sua empresa.
Maura se senta ereta e tira o cabelo do rosto.
– Que sorte! Eu daria meu braço direito para morar em Nova Londres. Você não... Ah, Cate, você não recusou só por causa disso, não é? Sei que você não ia gostar muito da ideia de morar em um apartamentozinho em algum lugar sem árvores nem jardim. Mas há parques na cidade. E, com o tempo, ele iria ganhar dinheiro suficiente para comprar uma casa decente e...
– Ele disse que podemos alugar uma casa. Não é isso. – Fico olhando para a colcha, para os pontos certinhos e regulares da Mãe. – Não posso simplesmente abandonar você e Tess.
Maura me dá um chute.
– Pode, sim. Iríamos visitar vocês, sua boba.
– Mas fica tão longe... Não é apenas na cidade, nem na cidade seguinte; fica a dois dias inteiros de distância. Eu nunca iria me perdoar se algo acontecesse.
Ficamos em silêncio, e então Maura me empurra com as mãos. Rolo para fora da cama e me levanto desequilibrada, sem jeito.
– Não ouse! – diz ela, por entre os dentes. – Não ouse nos usar como desculpa para não se casar com ele, Cate. Podemos nos cuidar sozinhas.
Aperto os braços ao redor de mim mesma, arrasada. Será que podem mesmo? Eu bem que gostaria de saber.
– Talvez tenhamos precisado de você um pouco, logo depois que a Mãe morreu...
Um pouco? Eu me reteso com a lembrança das noites em que nós três dormíamos em uma cama só, agarradas feito gatinhos. Quando Maura ficou pálida e magra e mal saía do quarto, convenci a Sra. O’Hare a preparar todas as comidas favoritas dela. Depois que ela limpava o prato, como recompensa, eu a levava para praticar magia no jardim. Quando Tess teve escarlatina, eu me recusei a sair de seu lado. Li para ela durante sua convalescença até minha garganta ficar em carne viva. Tentei compensar a ausência da Mãe. Sei que nunca consegui (ninguém seria capaz de fazer isso), mas me esforcei muito.
– Não me importo com o que você prometeu à Mãe – prossegue Maura, franzindo a testa para mim. – Você não é responsável por nós, está entendendo? Se quiser se casar com Paul, é melhor dizer “sim” quando ele pedir sua mão. Ninguém garante que ele vá pedir duas vezes.
O jantar é um acontecimento estranho. A Sra. Corbett está aqui, tagarelando sem parar sobre o casamento vantajoso de Regina. Está absolutamente extasiada com a maravilha da propriedade da filha e com a maneira fantástica com que Regina decorou cada cômodo. Ela olha nossa sala de jantar com claro desgosto. O papel adamascado pesado nas paredes não é trocado desde que o Pai era menino, e o tapete florido começa a mostrar sinais de uso. A mesa e as cadeiras de mogno têm espaldar recurvado, enfeitado com volutas e dragões, no antigo estilo oriental em vez da nova moda árabe. Todas as casas da cidade agora possuem iluminação a gás, mas nós ainda dependemos de velas. O Pai insiste que seja assim.
Ouço o barulho e o chiado da conversa, mas mal absorvo as palavras; em vez disso, me pego observando Elena. Eu gostaria de ser capaz de desvendar as pessoas como Tess faz. Ela é a observadora, é brilhante em enxergar motivos e desejos estampados no rosto das pessoas, nas pausas entre suas palavras. A única coisa que reparo em Elena é sua educação impecável à mesa e seus elogios aduladores à Sra. Corbett.
A sopa está salgada, mas passável; o bacalhau cozido está razoável, apesar de sem sabor. Mas, quando Lily traz o prato principal, faço uma careta para a travessa de assado cinzento que passou do ponto. Não consigo reclamar com a Sra. O’Hare presente, mas é vergonhoso servir às nossas convidadas uma carne mais dura do que couro de sapato.
Só que, quando dou uma mordida... não está dura. Sirvo-me de um pouco de molho de cebola ralo e aguado: está temperado à perfeição. Depois pego uma garfada de purê de batata que derrete amanteigado na minha boca e fico com medo de experimentar qualquer outra coisa. As vagens molengas, a abóbora no vapor historicamente pavorosa... tenho certeza de que está tudo delicioso.
Fico olhando para a porcelana azul-clara da Bisavó, horrorizada. Tess prometeu! Melhorar o jantar para o prazer do Pai é uma coisa – ainda é perigoso, mas é improvável que ele fosse reparar na discrepância –, mas correr esse risco na frente das visitas...
Olho bem feio para ela, mas ela balança a cabeça de um lado para outro, com os olhos arregalados. Nós duas nos voltamos para Maura. Ela está escutando a conversa entre a Sra. Corbett e Elena, sem olhar para nós de propósito.
Eu me concentro no jantar, lutando contra o encanto até que ele cede. A mordida seguinte exige uma boa quantidade de mastigação, por isso deixo que o encanto volte a tomar conta de mim.
Ninguém que tem a cabeça no lugar iria escolher saborear essa comida.
Dou mais uma olhada ao redor da mesa. O Pai come suas batatas com gosto; a Sra. Corbett limpa os lábios delicadamente com o guardanapo. Até Elena come porções pequenas da abóbora. Foi uma atitude arriscada, mas parece que não causou mal nenhum. Dessa vez.
Assim que terminamos de comer a compota de frutas com torta de maçã de Tess, peço licença e digo que estou com dor de cabeça. Maura, que sabe que minha constituição é bem forte, se oferece para me fazer companhia. Eu recuso. Preciso ler o diário da Mãe a sós. Meu coração canta, esperançoso, no peito. Seja quem for minha correspondente misteriosa, ela não teria me mandado procurar o diário a menos que ele contivesse algo que pudesse me ajudar. Houve momentos em que me ressenti da Mãe por me deixar com tanta responsabilidade e tão pouca orientação. Mas ela sempre deve ter tido a intenção de que eu o encontrasse. Eu me sinto uma boba por não ter procurado antes. Talvez assim eu pudesse ter me poupado de muitas preocupações.
A Sra. O’Hare acendeu a lareira no meu quarto para espantar o frio. Chuto as sapatilhas para longe e pego a colcha no pé da cama. A Mãe a costurou especialmente para mim, bordada com lírios azuis, que eram minha flor preferida quando criança.
Eu me jogo no sofazinho violeta desbotado com o diário da Mãe na mão. Peguei algumas coisas da sala de estar dela quando ela morreu: este sofazinho, o tapete com estampa de rosas que está ao lado da minha cama, a pequena aquarela do jardim que ela pintou. Se enfio o rosto no braço do sofazinho e respiro fundo, às vezes ainda acho que sou capaz de sentir o cheiro de água de rosas que ela sempre usava.
O vento de setembro assobia pelas vidraças e a vela dança na mesa, lançando sombras fantasmagóricas nas paredes. Se eu acreditasse em fantasmas, esta noite seria perfeita para uma aparição.
Se o espírito da Mãe pudesse me dar respostas, eu o receberia de bom grado.
Você tem que cuidar das suas irmãs para mim. Faça com que fiquem em segurança. Há tanta coisa que eu queria dizer a você. E agora não tenho tempo, a Mãe se lamentou na última vez que a vi. Ela estava pálida e lutava a cada respiração. Seus olhos cor de safira, tão parecidos com os de Maura, estavam sem brilho, como se parte dela já tivesse partido para o mundo do além.
Prometi que cuidaria, é claro. O que mais eu poderia fazer? Mas foi uma promessa árdua para uma menina de 13 anos.
Abro o diário, ansiosa por orientações. Começa no meu décimo segundo ano. A primeira menção direta a mim aparece depois que minha magia já se manifestou:
Eu me preocupo com Cate. Não é nada fácil ser mulher, muito menos com poderes como os nossos, e ela é uma criança corajosa e expressiva. Essa combinação será perigosa se ela não aprender a esconder seu verdadeiro eu. Quando estiver um pouco mais velha, vou ensinar-lhe tudo o que sei, para que não sofra a mesma sina de sua madrinha. Preciso ir à cidade assim que puder, antes que minha condição comece a aparecer, e me consultar com Marianne. Talvez ela tenha notícias de Zara.
Desvio os olhos da página por um instante. Sinto minha pulsação na ponta dos dedos à medida que as perguntas vão me inundando.
Zara? Será que Z. R. era minha madrinha? Será que também era bruxa? O que terá acontecido com ela? Não me lembro dela; não me lembro de a Mãe jamais tê-la mencionado. Mais para a frente, em outra anotação:
Fui visitar Marianne. Juntas, lemos o registro dos julgamentos. Nem o meu conhecimento sobre a história da magia nem todo o estudo de Marianne conseguem encontrar sentido nas sentenças dos Irmãos. Algumas garotas são condenadas por bruxaria e a passar o resto da vida em Harwood sem quase nenhuma prova, ao passo que outras são inocentadas e simplesmente desaparecem. Temo que tenham sido assassinadas; não encontramos mais vestígios delas depois que deixam Chatham e ouvimos falar de desaparecimentos semelhantes por todo o país. Não consigo encontrar absolutamente nenhuma razão para isso. Acho que nunca mais vou ver Zara. Mas e quanto à pesquisa que ela realizava sobre a profecia? É vital para o nosso futuro e o de todas as bruxas que ainda existem na Nova Inglaterra.
Leio superficialmente os relatos cheios de alegria que a Mãe fez da gravidez, suas esperanças fervorosas e fúteis de que a criança nascesse saudável e fosse menino. Três semanas depois:
Hoje foi minha última visita à cidade; talvez eu não devesse mais estar sacolejando pelas estradas, mas não posso confiar nem em John nem em Brendan [o Pai!] para devolver o livro de Zara a Marianne. Eu me preocupo com minhas filhas. Que concessões elas precisarão fazer para se manter em segurança? E se Emily Carruthers estiver certa e eu não puder sobreviver a este confinamento – quem vai ensiná-las? Cate já é capaz de fazer magia mental, um dom tão raro e assustador que eu não ia querer que ninguém além de Zara ou eu mesma a orientasse em relação a isso. Tentei fazer com que ela tomasse consciência de como pode ser muito, muito errado invadir a mente dos outros. Isso a coloca em grande perigo: em relação aos Irmãos e àqueles que quiserem usá-la como arma.
Mordo o lábio. Então minha madrinha era bruxa... e era capaz de fazer magia mental. Eu me lembro de como a Mãe ficou horrorizada quando descobriu do que eu era capaz. Ela me obrigou a jurar sobre a Bíblia da família (e depois pela vida das minhas irmãs) que eu nunca a usaria a não ser para protegê-las e que nunca contaria para ninguém que era capaz de fazer aquilo. A Mãe alegava que esse tipo de magia deixava as mulheres tão sedentas por poder e equivocadas quanto os Irmãos e que foi por isso, de acordo com ela, que as bruxas sucumbiram.
Então, dois meses depois:
Maura descobriu seu poder da noite para o dia. Ela não é tão cuidadosa quanto Cate. Já avisei a ela que ninguém pode vê-la, nem seu pai, nem a Sra. O’Hare. Tentei incutir nela a ideia de que só pode confiar em Cate. Espero que me obedeça. Mas estou cansada demais para ser rígida com a menina. Não tenho o vigor dos confinamentos anteriores. Emily está preocupada com o meu parto, mas eu me preocupo apenas com minhas meninas. E se Tess também for amaldiçoada com esta magia? Não consigo parar de pensar naquela profecia desgraçada. Emily diz que fui abençoada três vezes com filhas. Como ela sabe pouco a respeito de bênçãos e maldições... Gostaria que Zara estivesse aqui.
Quando chego ao fim, a vela já queimou completamente. Do fogo na lareira só restam cinzas; estou trêmula, encolhida embaixo da colcha. Fiquei tão concentrada que mal registrei o barulho da carruagem da Sra. Corbett se afastando ou de Tess me chamando do outro lado da porta. Eu a ignorei e ela acabou indo embora.
A letra da Mãe vai ficando mais fraca à medida que seu confinamento progride, como se não tivesse mais forças para apertar a pena contra o papel. Ela começa a escrever todos os dias: são anotações meio soltas, cheias de preocupação e dúvida. Ela se aflige sempre que Maura e eu brigamos; apavora-se com a possibilidade de Tess, que só tinha 9 anos na época, também se revelar uma bruxa. Mas não há nada aqui para mim. Nenhuma mensagem para me orientar, nenhuma palavra útil a respeito do que ela gostaria que eu fizesse quando chegasse à idade de escolher.
Finalmente chego à última página, datada do dia anterior à sua morte, depois que o último túmulo pequenino foi escavado na encosta da colina. Sua caligrafia muda aqui: são apenas rabiscos escuros. Há pedaços em que o papel está rasgado, como se ela tivesse usado toda a sua energia para transmitir aquela última mensagem veemente.
Para o meu alívio, está endereçada a mim.
Minha querida e corajosa Cate,
Desculpe-me. Eu não queria sobrecarregá-la enquanto ainda é tão nova, mas parece que, ao contrário, esperei demais. Não lhe ensinei o suficiente a respeito da sua magia – sobre o que você é capaz de fazer e do que deve se proteger.
Antes de o Grande Templo de Nova Londres cair, o oráculo anunciou uma última profecia. Ela previu que, antes do alvorecer do século XX, um trio de irmãs chegará à idade adulta, todas bruxas. Uma delas, que terá o dom da magia mental, será a bruxa mais poderosa a nascer em muitos séculos: ela terá poder suficiente para mudar o rumo da história, para suscitar o ressurgimento do poder das bruxas ou um segundo Terror.
Cate, estou muito preocupada com você. É raro existirem três bruxas em uma mesma geração. Se Tess também manifestar poder, parece bastante provável que vocês sejam as bruxas da profecia. Vocês serão...
Não. Por favor, Senhor, não.
Escorrego do sofazinho para o chão. Fico deitada ali por um momento, em uma pilha de anáguas, com minha mente parecendo um turbilhão. Isso é loucura. É impossível.
Só que... nós somos três, todas bruxas. Sou capaz de fazer magia mental. Tess vai chegar à idade adulta logo antes da virada do século. Nós nos encaixamos exatamente na descrição.
O Senhor não escuta as súplicas de meninas perversas.
Não me sinto corajosa. Eu me sinto pequena, assustada e furiosa. Carrego um fardo que já é pesado o bastante sem ter que me preocupar com alguma profecia maldita feita há cem anos. Peguei este diário procurando ajuda, orientação; em vez disso, a Mãe jogou mais responsabilidade nos meus ombros.
Mas havia mais coisas. Talvez uma parte de fato seja útil. Algo para me dizer o que devo fazer além de ficar encolhida aqui no canto.
Volto a pegar o diário.
Vocês serão caçadas por aqueles que as usariam para seus propósitos pessoais. Precisam ter muito, muito cuidado. Não podem confiar seus segredos a ninguém.
Há mais em jogo, e é ainda pior. Fiquei com medo de escrever tudo aqui, para o caso de cair em mãos erradas. Você deve buscar as respostas. Aqueles que amam o conhecimento por si só vão ajudar. Até que você conheça toda a verdade da profecia, não deve compartilhá-la com ninguém. Sinto muito por não estar presente para protegê-las, mas confio em você para tomar conta de Maura e de Tess por mim.
Com amor, sempre,
Sua Mãe
Jogo o diário para o outro lado do quarto. Ele bate na parede com um barulho gratificante.
É raro eu me permitir ficar irritada com a Mãe. Ela está morta; não pode se defender. Mas agora estou tremendo de tanta raiva. Como ela pôde fazer isso? Como pôde morrer e me deixar aqui para dar conta de tudo sozinha?
Minha magia se eleva, atiçada pela fúria. Faz anos que não perco o controle, desde o episódio com a Sra. Corbett e a ovelha, mas agora sinto a tentação de deixá-la correr solta.
Eu poderia destroçar tudo neste quarto e sentir prazer com a destruição.
Mas não faço isso.
Eu só ia ter que consertar tudo antes que o Pai ou a Sra. O’Hare vissem os estragos.
Fecho os olhos. Respiro fundo várias vezes, como a Mãe me ensinou.
Quando me asseguro de que estou calma, apanho o diário. Volto e releio a última página. É loucura. Talvez a Mãe estivesse delirante quando escreveu. Mesmo que esteja certa, mesmo que essa profecia exista, deve haver outras irmãs bruxas. Outras meninas capazes de fazer magia mental além de mim. E não sou assim tão poderosa.
Uma voz desconfortável me importuna. Como você sabe? Você não sabe do que outras bruxas são capazes, observa ela de maneira lógica. Você nem conhece outras bruxas. Eu sempre soube que devem existir outras além de minhas irmãs e eu, mas nunca conheci nenhuma. Pelo menos, nunca conheci ninguém que admitisse o que era. Frequentei a escola dominical com Brenna Elliott, Marguerite, Gwen e Betsy. Mas nunca vi nenhum sinal de magia nelas, e a maior parte das alegações dos Irmãos parece bem duvidosa.
O medo deixa a pele do meu braço arrepiada. E se for verdade? E se for mesmo eu?
Se eu estivesse destinada a causar o ressurgimento do poder das bruxas e os Irmãos descobrissem, iriam me matar. Imediatamente e sem julgamento. Acreditariam estar fazendo isso pelo bem da Nova Inglaterra. Talvez usassem nós três como exemplo: fariam com que fôssemos queimadas na fogueira ou mandariam nos enforcar na praça principal da cidade, como faziam no tempo da Bisavó. Pararam com isso porque as pessoas normais começaram a contestar tamanha brutalidade. Mas iriam trazer esses métodos de volta para demonstrar sua força, para amedrontar bruxas e garotas normais também, a fim de que se tornassem submissas. Não tenho dúvidas de que eles sejam capazes disso.
Como posso viver com esse peso na cabeça?
Eu me encolho toda, desejando que houvesse outra pessoa que pudesse assumir esse fardo por mim.
A Mãe devia ter escrito mais. Ela não podia me deixar assim, sem me dizer o que fazer! Percebo a magia comprimida em meu peito como uma mola enrolada, esperando para se soltar.
– Acclaro – sussurro.
Viro as páginas em frenesi, na esperança de que mais palavras apareçam.
Nada acontece. Repito, mais alto, e empurro para longe a onda de pânico que vai crescendo dentro de mim. Examino cada página com atenção, esperando que alguma mensagem surja. Mas não há mais nada nas páginas em branco do começo nem do fim, nenhuma palavra secreta atravessando outras anotações, nada circulado ou sublinhado em código. Absolutamente nada.
Tento sentir algum vestígio da magia dela, mas não capto nada. Será que sua força falhou antes que tivesse tempo de escrever mais?
Tento sem parar. Experimento feitiços diferentes. Fico tentando até ficar exausta e meu poder parecer fraco e distante. Lágrimas começam a embaçar as palavras dela. Enxugo os olhos irritada, jogo o diário na cama, vou até a janela e deixo a colcha cair atrás de mim.
A lua quase cheia me observa através das cortinas salpicadas de lírios. Olho para baixo, na direção da estátua de Atenas no jardim, brilhante ao luar. A deusa da sabedoria e da guerra.
A Mãe não confiou no Pai para lutar por nós. Para dizer a verdade, ela mesma não fez um trabalho muito bom nesse sentido. Ela me deixou com um diário cheio de alertas enigmáticos e uma responsabilidade que devia ter sido dela.
Vou manter minhas irmãs em segurança. Seja lá o que tenha acontecido com Zara, a amiga da Mãe, seja lá o que tenha acontecido com Brenna Elliott, não vou permitir que aconteça com Maura e Tess. Não enquanto eu viver.