PRINCIPAIS PROCESSOS DE MUDANÇA DE CLASSE:
FORMAÇÃO DE ADJETIVOS
Adjetivos denotam qualidades e propriedades em geral, atribuindo-as aos substantivos a que se referem. Processos de formação de adjetivos servem ao propósito de formar predicadores ou elementos de atribuição de qualidades e propriedades a substantivos[1]. Gramaticalmente, adjetivos derivados funcionam como os demais adjetivos, acompanhando o substantivo a que se referem, com o qual concordam em gênero e número. Diferentes processos de formação produzem adjetivos derivados uniformes, isto é, com apenas uma forma para os dois gêneros, ou biformes, ou seja, apresentando uma forma para cada gênero. Por exemplo, a adição do sufixo -al a substantivos forma adjetivos uniformes; a adição do sufixo -oso forma adjetivos biformes.
Podemos distinguir nos adjetivos uma função denotativa pela qual o adjetivo acrescenta uma propriedade semântica às propriedades do substantivo referido, de tal modo que o conjunto substantivo+adjetivo passa a ser um novo designador; e uma função predicativa, em que o adjetivo atribui uma qualidade ao objeto referido pelo substantivo. Por exemplo, em indústria cultural o adjetivo cultural acrescenta uma especificação semântica a indústria, de tal modo que a expressão indústria cultural designa algo distinto do que é designado por indústria. Já em indústria ultrapassada o adjetivo ultrapassada atribui um juízo de valor a alguma indústria em particular ou à atividade industrial em geral, sem haver diferença de designação.
A essa distinção semântica entre adjetivos de função denotativa e de função predicativa correspondem aspectos sintáticos. Normalmente, os adjetivos de função denotativa não podem ser intensificados, ou seja, não são usados no superlativo ou com expressões adverbiais de intensificação; e não são usados com verbos que indicam avaliação, tais como julgar, achar, considerar etc., como vemos:
(1) *A indústria extremamente cultural está se desenvolvendo.
(2) Muitos consideram a indústria ultrapassada.
(3) *Muitos consideram a indústria cultural.
Em (2) e (3) vemos que o adjetivo ultrapassada, mas não cultural, pode ser usado com o verbo considerar; em (1) verificamos que, como modificador de indústria, cultural também não pode ser usado com extremamente.
FORMAÇÃO DE ADJETIVOS A PARTIR DE SUBSTANTIVOS
Formamos adjetivos a partir de substantivos para que o material semântico contido nos substantivos possa ser usado como instrumento de atribuição de propriedades. Vejamos os exemplos:
(4) A indústria cultural mostrou sinais de recuperação.
(5) Este negócio é vantajoso.
Em (4), a partir de cultura formamos cultural, usado para atribuir à indústria a propriedade de produzir bens relativos à cultura; em (5) vantagem é a base de vantajoso, utilizado para atribuir a propriedade de apresentar vantagem a um negócio específico, sinalizado pelo demonstrativo. No primeiro exemplo, a função é denotativa; no segundo, predicativa.
O processo formador do adjetivo pode adicionar elementos semânticos aos do substantivo base, como acontece em (5), em que a noção “provido de” é veiculada pelo sufixo -oso; ou pode ser semanticamente vazio, como em (4), em que -al, ao formar o adjetivo cultural, apenas coloca cultura como base de uma relação de pertinência[2].
PRINCIPAIS PROCESSOS DE FORMAÇÃO
Nos principais processos de formação de adjetivos a partir de substantivos é importante distinguir os processos semanticamente vazios, mas produtivos em seu conjunto, daqueles que trazem noções adicionais. Dentre os semanticamente vazios, os mais usados são os correspondentes à adição dos sufixos -al, -ico e -ário. Dos que carreiam noções adicionais, os sufixos -oso, -udo e -ado dão a noção de provimento; -ês, -ense e -ano dão noção de origem.
O sufixo -al se adiciona sobretudo a substantivos de origem latina, primitivos ou derivados. O teor de utilização de -al é significativo tanto na língua formal quanto na língua coloquial. Usado com bases que contenham /l, muitas vezes -al assume o alomorfe -ar,[3] como:
(6) a. individual, industrial, caricatural, central, hexagonal, adicional.
b. familiar, similar, disciplinar, linear, angular, crepuscular, polar.
O sufixo -ico se adiciona a radicais gregos, constituindo-se num caso peculiar na medida em que opera basicamente sobre formas presas, sobretudo compostas, embora também possa se adicionar a bases livres não derivadas. É característico da língua culta, sobretudo formal e acadêmica. Alguns exemplos tradicionais e de formação recente são dados em (7), em que a. contém formações a partir de radicais:
(7) a. psíquico, anárquico, estético, lógico, enérgico, elétrico.
b. simbólico, patriótico, poético, histórico, alcoólico, cênico, lírico.
c. genômico, ecológico, talibânico.
O sufixo -oso se adiciona a substantivos latinos primitivos ou derivados e acrescenta a idéia de posse ou provimento em relação ao significado da base. Alguns exemplos:
(8) valoroso, montanhoso, perigoso, preguiçoso, oleoso, rochoso, brilhoso.
Os sufixos -ês e -ense formam adjetivos pátrios e correlatos, adicionando-se, portanto, a nomes próprios de locais ou nomes comuns de tipos de locais, conforme ilustramos:
(9) a. camponês, montanhês, japonês, português, francês, javanês.
b. fluminense, angrense, cearense, amazonense, paraense.
O sufixo -ano também forma adjetivos pátrios e correlatos além de indicar outros tipos de origem, como autoria, ou mesmo outros tipos de pertinência. Vejam os exemplos:
(10) a. serrano, tijucano, suburbano, peruano, boliviano, americano.
b. saussureano, kantiano, hegeliano, laboviano.
O sufixo -ário forma adjetivos de base latina a partir de bases presas e formas livres primitivas ou derivadas. É utilizado sobretudo numa linguagem mais formal. Alguns exemplos:
(11) universitário, monetário, bancário, inflacionário, autoritário, prioritário.
FORMAÇÃO DE ADJETIVOS A PARTIR DE VERBOS
Tanto o verbo quanto o adjetivo são predicadores, mas o verbo denota eventos e relações representados no tempo enquanto o adjetivo denota qualidades e propriedades tidas como estáveis. Formamos adjetivos a partir de verbos sobretudo para usar a noção verbal de evento ou seu efeito para a atribuição de propriedades a substantivos. Vejamos os seguintes exemplos:
(12) a. O vestido rasgou.
b. O vestido rasgado.
(13) a. Aquele filme me emocionou muito.
b. Certos filmes são emocionantes.
Em (12)a., rasgou constitui o predicado, representando no tempo um evento que afeta vestido; em (12)b., rasgado indica uma propriedade que identifica vestido. Em (13)a., emocionou se refere a um evento específico de causação de sentimento ao falante por um filme específico num dado momento no passado; em (13)b., fala-se da propriedade genérica de certos filmes de causar emoções.
MOTIVAÇÃO GRAMATICAL
Mas a formação de adjetivos a partir de verbos também pode ter função gramatical. Nesse ponto, a construção mais importante é o Particípio Passado, formado a partir do verbo para a expressão da voz passiva, cujo mecanismo requer, do ponto de vista estrutural, a conjunção do verbo auxiliar com a forma adjetivada do verbo semanticamente pleno, a qual concorda em gênero e número com o sujeito, como vemos em (14) a (16)
(14) A roupa foi lavada às pressas.
(15) Os livros foram vendidos ontem.
(16) As fotografias já tinham sido recolhidas na parte da manhã.
Como a forma do particípio passado é necessária para a formação canônica da passiva, podemos dizer que há uma motivação gramatical na formação de adjetivos de verbais[4]. Isso, entretanto, não impede a utilização de adjetivos deverbais em -do independentemente dessa motivação gramatical, como podemos ver a seguir:
(17) Ele quer casa, comida e roupa lavada.
(18) Maria ficou emocionada/cansada/esgotada/assustada/deprimida.
(19) Pode tirar da lista os livros esgotados/manchados/descosidos/rasgados.
(20) João é atrevido/ousado/educado/organizado/viajado.
Em (17) a (20), vemos que a formação de adjetivos correspondentes a Particípios Passados vai além da utilização da voz passiva, tanto porque se estende a verbos que não têm voz passiva quanto porque, mesmo nos que a têm, a utilização não é necessariamente de motivação gramatical.
PRINCIPAIS PROCESSOS DE FORMAÇÃO
Os principais processos de formação de adjetivos a partir de verbos correspondem à adição dos sufixos -nte, -(t)ivo, -(t)ório, -vel e -do.
O sufixo -nte, que fazia parte da flexão verbal no latim, correspondendo ao Particípio Presente, passou a ser no português atual tanto um formador de nomes de agente como um sufixo produtivo formador de adjetivos[5].
Como formador de adjetivos, o sufixo -nte se adiciona, sobretudo, a verbos (a) de causação de sentimento; (b) de movimento ou reação fisiológica; e (c) indicadores de estado, conforme exemplificado:
(21) a. comovente, fascinante, edificante, neurotizante, deprimente, instigante.
b. rastejante, bruxuleante, ofegante, arquejante, resfolegante.
c. diferente, ocorrente, coincidente, aparente, distante, condizente [6].
Os sufixos -tivo e -tório se adicionam sobretudo a verbos de ação com a finalidade de qualificarem substantivos através da noção veiculada pelo verbo base, conforme exemplificado:
(22) a. teor repetitivo, efeito predicativo, sentença declarativa, partícula interrogativa.
b. manobras protelatórias, atitudes reivindicatórias, instância decisória, período pré-operatório.
O sufixo -vel se adiciona a verbos, sobretudo transitivos, para formar adjetivos que qualificam substantivos como possíveis pacientes ou afetados pelo processo representado pelo verbo. Assim, por exemplo, a partir do verbo negociar se forma o adjetivo negociável, que pode ser usado para qualificar um substantivo qualquer como representando algo que pode ser paciente ou afetado pelo ato ou processo de negociar, ou seja, algo que possa ser negociado. Mas -vel também pode se adicionar a verbos não necessariamente transitivos. Quando usado com verbos mediais, o adjetivo produzido mantém a semântica de qualificar o substantivo referido como objeto potencial de afetação pelo processo verbal. Alguns exemplos estão em (23)
(23) a. roupa lavável, problema contornável, doença curável.
b. alimentos perecíveis, substâncias inflamáveis, metais oxidáveis.
Adjetivos deverbais formados com o sufixo -vel apresentam uma peculiaridade de uso. Tais adjetivos são usados frequentemente com o prefixo negativo, porque a negação da potencialidade do ato verbal, realizada através do adjetivo em -vel negado pelo prefixo, constitui um mecanismo enfático, conforme vemos em (24)
(24) filme imperdível, aula interminável, pessoa incansável, compromissos inadiáveis, coisas impensáveis[7].
O sufixo -do se adiciona virtualmente a qualquer verbo para a formação do Particípio Passado que, na forma variável, pode ser utilizado quer na formação da voz passiva, como vimos em (14) a (16), quer na adjetivação pura e simples, como nos exemplos (17) a (20).
VESTÍGIOS CATEGORIAIS EM ADJETIVOS FORMADOS DE VERBOS
Os adjetivos formados a partir de verbos mantêm alguns traços remanescentes de categorias verbais, formando uma teia de oposições que pode ser resumida como se segue:
(25) a. oposição de aspecto inconcluso/concluso: formações em -do (concluso)/formações em -vel,-nte etc.
b. oposição ativo/passivo: formações em -do e -vel (passivo)/formações em -nte, -tivo, tório
c. oposição de modo potencial/real: formações em -vel (potencial)/formações em -do,-nte etc.
Os exemplos seguintes ilustram as oposições:
(26) roupa lavável/lavada; água fervente/fervida; procedimentos legislativos/matéria legislada.
(27) manobras protelatórias/votação protelada; doença curável/procedimentos curativos; cenas chocantes/expectadores chocados.
(28) atitude impensável/impensada; meta atingível/atingida.
Além das oposições de traços categoriais, vamos encontrar também como vestígios nos adjetivos derivados de verbos a possibilidade de manterem a explicitação do agente da passiva, conforme ilustrado em (29)
(29) A votação protelada pelos partidos da esquerda foi agendada para hoje.
Vemos, portanto, que adjetivos formados a partir de verbos mantêm algumas características de suas origens verbais.[8]
EXERCÍCIOS
1. Explique, através de exemplos, a diferença entre função denotativa e função predicativa de adjetivos.
2. Assinale, nos dados abaixo, os adjetivos de função denotativa e os de função predicativa:
a. João vai escrever um livro didático muito interessante.
b. O sistema de folga semanal pode ser contraproducente.
c. As medidas disciplinares foram severas demais.
3. Aponte, nos dados abaixo, os adjetivos que adicionam elementos semânticos à base substantiva no processo de formação:
atividade comercial – música barulhenta – renda familiar – dedos – ossudos – nível simbólico – doce saboroso – vinho francês – conta bancária – região montanhosa
4. Por que formamos adjetivos a partir de verbos? Dê um exemplo da diferença entre verbo e adjetivo como predicadores.
5. Nos dados abaixo, determine a motivação (gramatical ou semântica) e a função (denotativa ou predicativa) do adjetivo deverbal:
(a) Este livro já foi publicado.
(b) João é muito viajado.
(c) Há vários tipos de frase declarativa.
(d) Este filme é imperdível.
6. Dentre as seguintes formas, identifique os adjetivos deverbais:
amante – pedinte – amável – estante – ousado – desgastante – frequente – corante delirante – terrível – ditado – demente – levado – preservativo – crível – guisado resultado – lavatório.
7. Podemos dizer que os adjetivos em –do não dependem da voz passiva para existirem? Justifique e exemplifique.
8. Discrimine, nos dados abaixo, os adjetivos em –vel (a) de uso enfático; (b) formados de verbos mediais; e (c) formados de verbos transitivos:
doença incurável – texto ilegível – verdade insofismável – cólon – irritável – situação estável – elementos variáveis – fenômeno – controlável – entulho removível
9. Podemos dizer que as formas [in[X]vel] dependem da voz passiva para existirem?
10. Construa exemplos de adjetivos deverbais ilustrando as seguintes oposições: concluso/inconcluso; real/potencial; ativo/passivo.
NOTAS
[1] Ou expressões substantivas. Adjetivos podem predicar orações substantivas ou expressões lexicalizadas de tamanhos variados.
[2] A idéia de produzir bens, mencionada anteriormente, faz parte da semântica de indústria, não sendo, portanto, vinculada à do adjetivo. A noção de relação de pertinência pode ser considerada uma noção semântica, mas é uma noção derivada do adjetivo como classe, e não de um sufixo específico.
[3] Alomorfe é uma forma alternativa de um morfema. Todos os afixos são morfemas.
[4] De acordo com abordagens tradicionais. Diferentes teorias linguísticas podem analisar a passiva de diferentes maneiras, inclusive considerando-a do ponto de vista discursivo e semântico e não propriamente gramatical.
[5] Aqui só trataremos do -nte formador de adjetivos. Para a formação de nomes de agente em -nte, v. o capítulo anterior.
[6] A produtividade de -nte é clara nos exemplos em a., mas precária nos casos b. e c.
[7] É de se observar que a forma não prefixada nem sempre é viável. Podemos falar em compromissos adiáveis, por exemplo, mas não em *pessoas cansáveis. Para uma análise dessas construções, v. Basilio (1992).
[8] Para a análise de diferentes aspectos da formação de adjetivos, v. Basilio e Gamarski (1999), Gamarski (1996 a e b), Lobato (1999).