o padre, a moça
1. O padre furtou a moça, fugiu.
Pedras caem no padre, deslizam.
A moça grudou no padre, vira sombra,
aragem matinal soprando no padre.
Ninguém prende aqueles dois,
aquele um
negro amor de rendas brancas.
Lá vai o padre,
atravessa o Piauí, lá vai o padre,
bispos correm atrás, lá vai o padre,
lá vai o padre, a maldição monta cavalos telegráficos,
lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre,
diabo em forma de gente, sagrado.
Na capela ficou a ausência do padre
e celebra missa dentro do arcaz.
Longe o padre vai celebrando vai cantando
todo amor é o amor e ninguém sabe
onde Deus acaba e recomeça.
2. Forças volantes atacam o padre, quem disse
que exércitos vencem o padre? patrulhas
rendem-se.
O helicóptero
desenha no ar o triângulo santíssimo,
o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos
douram a face da moça.
E no alto da serra
o padre
entre as cordas da chuva
o padre
no arcano da moça
o padre.
Vamos cercá-lo, gente, em Goiás,
quem sabe se em Pernambuco?
Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá
[Pelotas
em pé no caminhão da br-15 com seu rosário
na mão
lá vai o padre
lá vai
e a moça vai dentro dele, é reza de padre.
Ai que não podemos
contra vossos poderes
guerrear
ai que não ousamos
contra vossos mistérios
debater
ai que de todo não sentimos
contra vosso pecado
o fecundo terror da religião.
Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.
3. E o padre não perdoa: lá vai
levando o Cristo e o Crime no alforje
e deixa marcas de sola na poeira.
Chagas se fecham, tocando-as,
filhos resultam de ventre estéril
mudos e árvores falam
tudo é testemunho.
Só um anjo de asas secas, voando de Crateús,
senta-se à beira-estrada e chora
porque Deus tomou o partido do padre.
Em cem léguas de sertão
é tudo estalar de joelhos
no chão,
é tudo implorar ao padre
que não leve outras meninas
para seu negro destino
ou que as leve tão de leve
que ninguém lhes sinta a falta,
amortalhadas, dispersas
na escureza da batina.
Quem tem sua filha moça
padece muito vexame;
contempla-se numa poça
de fel em cerca de arame.
Mas se foi Deus quem mandou?
Anhos imolados
não por sete alvas espadas,
mas por um dardo do céu:
que se libere esta presa
à sublime natureza
de Deus com fome de moça.
Padre, levai nossas filhas!
O vosso amor, padre, queima
como fogo de coivara
não saberia queimar.
E o padre, sem se render
ao ofertório das virgens,
lá vai, coisa preta no ar.
Onde pousa o padre
é Amor-de-Padre
onde bebe o padre
é Beijo-de-Padre
onde dorme o padre
é Noite-de-Padre
mil lugares-padre
ungem o Brasil
mapa vela acesa.
4. Mas o padre entristece. Tudo engoiva
em redor. Não, Deus é astúcia,
e, para maior pena, maior pompa.
Deus é espinho. E está fincado
no ponto mais suave deste amor.
Se toda a natureza vem a bodas,
e os homens se prosternam,
e a lei perde o sumo, o padre sabe
o que não sabemos nunca, o padre esgota
o amor humano.
A moça beija a febre do seu rosto.
Há um gládio brilhando na alta nuvem
que eram só carneirinhos há um instante
— Padre, me roubaste a donzelice
ou fui eu que te dei o que era dável?
Não fui eu que te amei como se ama
aquilo que é sublime e vem trazer-me,
rendido,
o que eu não merecia mas amava?
Padre, sou teu pecado, tua angústia?
Tua alma se escraviza à tua escrava?
És meu prisioneiro, estás fechado
em meu cofre de gozo e de extermínio,
e queres libertar-te? Padre, fala!
Ou antes, cala. Padre, não me digas
que no teu peito amor guerreia amor,
e que não escolheste para sempre.
5. Que repórteres são esses
entrevistando um silêncio?
O Correio, Globo, Estado,
Manchete, France-Presse, telef
otografando o invisível?
Quem alça
a cabeça pensa
e nas pupilas rastreia
uma luz de danação,
mas a luz fosforescente
responde não?
Quem roga ao padre que pose
e o padre posa e não sente
que está posando
entre secas oliveiras
de um jardim onde não chega
o retintim deste mundo?
E que vale uma entrevista
se o que não alcança a vista
nem a razão apreende
é a verdadeira notícia?
6. É meia-treva, e o Príncipe baixando
entre cactos
sem mover palavras fita o padre
na menina dos olhos ensombrada.
A um breve clarear,
o Príncipe, em toda a sua púrpura,
como só merecem defrontá-lo
os que ousaram um dia. Os dois se medem
na paisagem de couro e ossos
estudando-se.
O que um não diz outro pressente.
Nem desafio nem malícia
nem arrogância ou medo encouraçado:
o surdo entendimento dos poderes.
O padre já não pode ser tentado.
Há um solene torpor no tempo morto,
e, para além do pecado,
uma zona em que o ato é duramente
ato.
Em toda a sua púrpura
o Príncipe desintegra-se no ar.
7. Quando lhe falta o demônio
e Deus não o socorre;
quando o homem é apenas homem
por si mesmo limitado,
em si mesmo refletido;
e flutua
vazio de julgamento
no espaço sem raízes;
e perde o eco
de seu passado,
a companhia de seu presente,
a semente de seu futuro;
quando está propriamente nu;
e o jogo, feito
até a última cartada da última jogada.
Quando. Quando.
Quando.
8. Ao relento, no sílex da noite,
os corpos entrançados transfundidos
sorvem o mesmo sono de raízes
e é como se de sempre se soubessem
uma unidade errante a convocar-se
e a diluir-se mudamente.
Espaço sombra espaço infância espaço
e difusa nos dois a prima virgindade,
oclusa graça.
Mas de rompante a mão do padre sente
o vazio do ar onde boiava
a confiada morna ondulação.
A moça, madrugada, não existe.
O padre agarra a ausência e eis que um soluço
humano desumano e longiperto
trespassa a noitidão a céu aberto.
A chama galopante vai cobrindo
um tinido de freios mastigados
e de patas ferradas,
e em sete freguesias
passa e repassa a grande mula aflita.
Urro
de fera
fúria
de burrinha
grito
de remorso
choro de criança?
Por que Deus se diverte castigando?
Por que degrada o amor sem destruí-lo?
e a cabeça da mula sem cabeça
ainda é rosto de amor, onde em sigilo
a ternura defesa vai flutuando?
Um rosto de besta
e entre as ciências do padre
entre as poderosas rezas do padre
nenhuma para resgatá-lo.
Resta deitar a febre na pedra
e aguardar
o terceiro canto do galo.
No barro vermelho da alva
a mão descobre
o dormir de moça misturado
ao dormir de padre.
9. E já sem rumo prosseguem
na descrença de pousar,
clandestinos de navio
que deitou âncora no ar.
Já não se curvam fiéis
vendo o réprobo passar,
mas antes dedos em susto
implantam a cruz no ar.
A moça, o padre se fartam
da própria gula de amar.
O amor se vinga, consome-os,
laranja cortada no ar.
Ao fim da rota poeirenta
ouve-se a igreja cantar.
Mas cerraram-se-lhe as portas
e o sino entristece no ar.
O senhor bispo, chamado
com voz rouca de implorar,
trancou-se na sua Roma
de rocha, castelo de ar.
Entre pecado e pecado
há muito que epilogar.
Que venha o padre sozinho,
o resto se esfume no ar.
Padre e moça de tão juntos
não sabem se separar.
Passa o tempo do distinguo
entre duas nuvens no ar.
10. E de tanto fugir já fogem não dos outros
mas de sua mesma fuga a distraí-los.
Para mais longe, aonde não chegue
a ambição de chegar:
área vazia
no espaço vazio
sem uma linha
uma coroa
um D.
A gruta é grande
e chama por todos os ecos
organizados.
A gruta nem é negra
de tantos negrumes que se fundem
nos ângulos agudos:
a gruta é branca, e chama.
Entram curvos, como numa igreja
feita para fiéis ajoelhados.
Entram baixos
terreais
na posição dos mortos, quase.
A gruta é funda
a gruta é mais extensa do que a gruta
o padre sente a gruta e a gruta invade
a moça
a gruta se esparrama
sobre pena e universo e carnes frouxas
à maneira católica do sono.
Prismas de luz primeira despertando
de uma dobra qualquer de rocha mansa.
Cantar angélico subindo
em meio à cega fauna cavernícola
e dizendo de céus mais que cristãos
sobre o musgo, o calcário, o úmido medo
da condição vivente.
Que coros tão ardentes se desatam
em feixes de inefável claridade?
Que perdão mais solene se humaniza
e chega à aprovação e paira em bênção?
Que festiva paixão lança seu carro
de ouro e glória imperial para levá-los
à presença de Deus feita sorriso?
Que fumo de suave sacrifício
lhes afaga as narinas?
Que santidade súbita lhes corta
a respiração, com visitá-los?
Que esvair-se de males, que desfal
ecimentos teresinos?
Que sensação de vida triunfante
no empalidecer de humano sopro contingente?
Fora
ao crepitar da lenha pura
e medindo das chamas o declínio,
eis que perseguidores se persignam.