EM MEADOS DE 1982, havia vários grupos guerrilheiros na Colômbia. Todos eram marxistas ou maoístas e admiradores ferrenhos do modelo cubano. Viviam de subvenções da União Soviética, do sequestro daqueles que consideravam ricos e do roubo de gado dos fazendeiros. O grupo mais importante era o das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), nascido na Violência dos anos 1950, época de crueldade sem limites e de tamanha selvageria que é impossível descrevê-la sem se sentir envergonhado de pertencer à espécie humana. Menores em número de integrantes eram o ELN (Exército da Libertação Nacional) e o EPL (Exército Popular da Libertação), que posteriormente se desmobilizaria para se transformar em partido político. Em 1984 nasceria o “Quintín Lame”, inspirado no corajoso lutador de mesmo nome, pela causa das reservas indígenas.
E tinha também o M-19; o movimento dos golpes espetaculares, cinematográficos, formado por uma combinação eclética de universitários e profissionais, intelectuais e artistas, filhos de burgueses e de militares e aqueles combatentes linha-dura que os grupos armados chamam pela gíria “tropeiros”. Ao contrário das outras oposições armadas — que operavam no campo e nas matas que cobrem quase a metade do território colombiano —, “o Eme” era eminentemente urbano e contava com mulheres notáveis nos quadros de chefia e tão amantes da publicidade como os seus companheiros.
Nos anos seguintes à Operação Condor no sul do continente, as regras de combate na Colômbia eram preto no branco: quando qualquer integrante de algum desses grupos caía nas mãos dos militares e dos serviços de segurança do Estado era preso e, com frequência, torturado até a morte sem julgamentos ou ponderações. Da mesma maneira, quando uma pessoa rica caía nas mãos da guerrilha não era liberada até que a família arcasse com o resgate, muitas vezes depois de anos de negociações; aquele que não pagava morria, e raras vezes seus restos mortais eram encontrados, situação que com poucas exceções continua tão válida hoje quanto antes. Todo colombiano que se preze conta entre seus amigos, familiares e empregados com mais de uma dúzia de conhecidos que foram sequestrados, dividida entre os que voltaram sãos e salvos e os que nunca voltaram. Estes últimos, por sua vez, se subdividem entre aqueles cujas famílias não tiveram como satisfazer as pretensões dos sequestradores, aqueles pelos quais uma recompensa substancial foi paga mas nunca foram devolvidos e aqueles por cuja existência ninguém quis entregar o patrimônio acumulado ao longo de várias gerações ou simplesmente de uma vida de trabalho honrado.
Caí no sono com a cabeça encostada no ombro do Aníbal e acabo acordando por causa desse saltinho duplo que as aeronaves leves dão ao tocarem no solo. Ele acaricia meu rosto e, quando tento me levantar, puxa suavemente meu braço como me indicando que devo permanecer sentada. Mostra a janela, e não posso acreditar no que vejo: lado a lado na pista de aterrissagem, duas dezenas de jovens, uns com óculos escuros e outros franzindo o cenho por causa do sol da tarde, cercam o pequeno avião apontando metralhadoras para nós, com aquela expressão de que estão acostumados a disparar primeiro e perguntar depois. Outros estão semiocultos no matagal, e dois deles inclusive brincam com suas MiniUzis como qualquer um de nós faria com as chaves do carro; eu não paro de pensar no que aconteceria se alguma delas caísse no chão, disparando seiscentos tiros por minuto. Os rapazes, todos muito jovens, vestem roupas confortáveis e modernas, camisas polo coloridas, jeans e tênis importados. Nenhum deles usa uniforme ou roupa camuflada.
Enquanto o avião se desloca pela pista, chego a calcular o valor que poderíamos ter para um grupo guerrilheiro. Meu namorado é sobrinho do último presidente, Julio César Turbay, cujo governo (1978-1982) se caracterizou por uma violenta repressão militar aos grupos insurgentes, especialmente o M-19, cuja grande parte das cúpulas foi parar na cadeia; mas Belisario Betancur, o presidente que acaba de tomar posse, prometeu libertar e anistiar todos os rebeldes que se beneficiem do seu Processo de Paz. Olho os filhos de Aníbal, e meu coração se aperta: Juan Pablo, de onze anos, e Adriana, de nove, são agora enteados do segundo homem mais rico da Colômbia, Carlos Ardila Lülle, dono de todas as engarrafadoras de refrigerante do país. Quanto aos amigos que nos acompanham, Olguita Suárez, que em poucas semanas vai se casar com o simpático compositor espanhol Rafael Urraza, organizador do passeio, é filha de um fazendeiro milionário da Costa Atlântica, e sua irmã está comprometida com Felipe Echavarría Rocha, membro de uma das dinastias industriais mais importantes da Colômbia; Nano e Ethel são decoradores e marchands, Ángela é uma top model e eu sou uma das apresentadoras de televisão mais famosas do país. Sei perfeitamente que todos os integrantes deste avião, se caíssem nas mãos da guerrilha, entrariam em sua definição particular de oligarcas e, em consequência, de pessoas “sequestráveis”, adjetivo tão colombiano como o prefixo e substantivo “narco”, do qual falaremos mais adiante.
Aníbal emudeceu e está excepcionalmente pálido. Sem me dar ao trabalho de esperar por suas respostas, disparo um monte de perguntas seguidas:
— Como você soube que este era realmente o avião que mandaram para nós embarcarmos? Você não percebe que é bem possível que estejam nos sequestrando?… Por quantos meses vão nos manter presos quando souberem quem é a mãe dos seus filhos?… E estes não são guerrilheiros pobres: olha o tipo de armas e de tênis! Por que você não me disse para trazer os meus tênis? Esses sequestradores vão me obrigar a caminhar pelo mato com sandálias italianas e sem o meu chapéu de palha! Por que você não me deixou colocar na mala a minha jungle-wear?… E por que você aceita convites de gente que não conhece? Os guarda-costas das pessoas que conheço não apontam metralhadoras para os convidados! Nós caímos numa armadilha porque você, por viver cheirando cocaína, já não sabe nada da realidade! Se sairmos vivos dessa não me caso contigo, porque você vai enfartar e não quero ficar viúva!
Aníbal Turbay é um cara grande, bonito e livre, muito carinhoso e generoso com suas palavras, seu tempo e seu dinheiro, apesar de não ser multimilionário, como todos os meus ex-namorados. É também adorado pela sua eclética coleção de amigos — como Manolito de Arnaude, um caçador de tesouros — e por centenas de mulheres que dividem sua vida entre “antes de Aníbal” e “depois de Aníbal”. Seu único defeito é um irremediável vício em pó; eu o abomino, mas ele o adora mais que a seus filhos, a mim, ao dinheiro, a tudo. Antes que o coitado possa responder à minha enxurrada de perguntas, a portinha do avião se abre e entra aquele vapor dos trópicos que nos convida a usufruir do que no meu país sem estações chamamos de Tierra Caliente. Dois homens armados entram e, depois de observarem nossos rostos assustados, exclamam:
— Ai, meu Deus! Os senhores não vão acreditar: esperávamos algumas jaulas com uma pantera e várias tigresas, e parece que as enviaram em outro avião! Mil desculpas, senhores! Que vergonha pelas damas e as crianças! Quando o chefe souber, vai nos matar!
Explicam que a propriedade tem um zoológico enorme e, evidentemente, aconteceu um problema de coordenação entre o voo que trazia os convidados e o que trazia as feras. E enquanto os homens armados se derretem em desculpas, os pilotos descem do avião com a cara mais indiferente do mundo, de quem não tem que dar explicações a estranhos porque sua responsabilidade é a de respeitar planos de voo e não de verificar as cargas.
Três jipes esperam para nos levar até a casa da fazenda. Coloco os óculos escuros e o chapéu de safári, desembarcando do avião e, sem saber ou me dar conta, ponho os pés no lugar que vai mudar a minha vida. Entramos nos carros, e quando Aníbal me abraça pelos ombros fico tranquila e me disponho a curtir cada minuto do resto do passeio.
— Que lugar mais lindo! E parece enorme. Acho que esta viagem vai valer a pena… — comento com ele em voz baixa, mostrando duas garças que levantam voo de uma costa distante.
Absortos e em completo silêncio, contemplamos aquele cenário magnífico de terra, água e céu que parece se estender para muito além do horizonte. Sinto uma lufada de felicidade dessas que não são anunciadas, que te invadem de repente e te envolvem toda e, em seguida, vão embora sem se despedir. De uma cabana distante, chegam algumas notas de “Caballo Viejo”, de Simón Díaz, na voz inconfundível de Roberto Torres, esse hino das planícies venezuelanas que os homens mais velhos adotaram como próprio em todo o continente e cantam no ouvido das éguas alazãs quando querem soltar as rédeas na esperança que elas também soltem as suas. “Quando o amor chega assim, dessa maneira, a gente nem sequer percebe…”, avisa o cantor enquanto vai narrando as aventuras de um velho garanhão. “Quando o amor chega assim, dessa maneira, não temos culpa…”, justifica-se o vaqueiro para levar a espécie humana a seguir seu exemplo “porque depois dessa vida não existe outra oportunidade”, num tom tão cheio de sabedoria popular como de cadência rítmica, cúmplice de um ar morno carregado de promessas.
Estou feliz demais e inebriada por aquele espetáculo para começar a perguntar sobre o nome, ou a vida e os milagres, de nosso anfitrião.
— O dono de tudo isso deve ser assim: um desses políticos trapaceiros e velhos, cheio de dinheiro e éguas, que se acha o rei do mundo — falo, encostando outra vez a cabeça no ombro de Aníbal, um macho hedonista cujo amor pela aventura morreu junto com ele algumas semanas antes que eu pudesse reunir forças para começar a contar esta história, tecida com os instantes congelados em hiatos da minha memória povoada de mitos e monstros que nunca deveriam ser ressuscitados.
Mesmo sendo uma casa enorme, carece de todos os refinamentos das grandes fazendas tradicionais da Colômbia: não se vê a capela, o picadeiro dos cavalos ou a quadra de tênis; os cavalos, as botas inglesas de montaria ou os cachorros de raça; a prataria antiga ou as obras de arte dos séculos XVIII, XIX e XX; os óleos sobre tela de virgens e santos ou os frisos de madeira dourada sobre as portas; as colunas coloniais ou as figuras esmaltadas dos presépios pertencentes aos antepassados; as enormes arcas cravejadas ou os tapetes persas de todos os tamanhos; a porcelana francesa pintada à mão e as toalhas de mesa bordadas por freirinhas, nem as rosas ou orquídeas da orgulhosa dona da casa.
Também não vemos em parte alguma os humildes empregados das propriedades rurais dos ricos do meu país, quase sempre herdados com a propriedade, gente sofrida, resignada e com enorme doçura, que ao longo de muitas gerações escolheu a segurança acima da libertação. Aqueles camponeses vestidos com ruanas — uma espécie de poncho curto de lã marrom —, desdentados, mas sempre sorridentes, que a qualquer pedido respondiam sem vacilar, tirando o chapeuzinho velho com um aceno grave de cabeça: “Vou fazer voando, sua graça!”, “Eleuterio González às suas ordens, para servir em tudo o que puder!” — e nunca souberam que existiam gorjetas no resto do mundo — hoje estão quase extintos, porque os guerrilheiros ensinaram a eles que se a Revolução tivesse êxito, num dia não muito distante, eles também poderiam ter terras e gado, armas, bebidas e mulheres como as de seus chefes, bonitas e sem varizes.
Os quartos da casa da fazenda dão para um corredor longo e são decorados de forma espartana: duas camas, uma mesa de cabeceira com um cinzeiro feito da cerâmica local, um abajur qualquer e fotos da propriedade. Graças a Deus, o banheiro privativo do nosso quarto tem água fria e quente, e não só fria, como em quase todas as propriedades rurais de Tierra Caliente. O terraço, interminável, é cheio de mesas com guarda-sóis e centenas de cadeiras brancas e resistentes ao tempo. As dimensões da área social — as mesmas de qualquer clube particular — não deixam a menor dúvida de que a casa foi planejada para atender em grande escala e receber centenas de pessoas, e, pelo número de quartos de hóspedes, deduzimos que nos finais de semana devem vir dezenas de convidados.
— Como serão as festas! — comentamos entre nós. — Devem trazer o Rey Vallenato com autênticos acordeonistas de Valledupar!
— Nããão, trazem a Sonora Matancera e Los Melódicos juntos! — corrige alguém em tom abafado que deixa transparecer um pouco de inveja.
O administrador da propriedade nos avisa que o dono da fazenda está demorando porque teve um problema de última hora e só chegará no dia seguinte. É claro que os empregados receberam instruções para satisfazer todas as nossas demandas para que a estadia seja cômoda e prazerosa, mas desde o primeiro momento deixam claro que o tour pela propriedade exclui o segundo andar, onde estão as acomodações particulares da família. A equipe é toda formada por homens que parecem sentir uma grande admiração pelo patrão. Seu nível de vida, superior ao dos empregados de outras famílias ricas, fica evidente nas atitudes seguras e numa total falta de humildade; esses camponeses parecem ser homens de família e vestem roupa de trabalho nova, de boa qualidade e mais discreta que a dos jovens que estavam na pista de aterrissagem. Ao contrário do primeiro grupo, não portam nenhum tipo de arma. Fomos até a sala de jantar para comer. A mesa principal, de madeira, é enorme.
— É para um batalhão! — comentamos.
Os guardanapos são de papel branco e a comida é servida numa louça típica da região por duas mulheres eficientes e silenciosas, as únicas que vimos desde a nossa chegada. Tal qual tínhamos previsto, o cardápio consiste numa deliciosa bandeja paisa, prato típico da região de Antioquia e o mais básico da cozinha colombiana: feijão, arroz, carne moída e ovo frito, acompanhados de um pedaço de abacate, ou palta. Nessa propriedade, não parece haver um só elemento que denote a preocupação de conseguir ter um ambiente particularmente acolhedor, refinado ou luxuoso: tudo nessa fazenda de quase 3 mil hectares localizada entre Doradal e Puerto Triunfo, no escaldante vale colombiano de Magdalena Medio, parece ter sido planejado com o senso prático e impessoal de um enorme hotel de Tierra Caliente, e não para ter o estilo de uma grande casa de campo.
Nada naquela noite tropical quente e tranquila — a minha primeira noite na fazenda Nápoles — poderia ter me preparado para o mundo de proporções colossais que eu descobriria no dia seguinte, nem para as dimensões daquele reino diferente de todos os que eu já tivera oportunidade de conhecer até então. E ninguém poderia ter me advertido das ambições descomunais do homem que o havia construído com o pó das estrelas e com aquele espírito de que são feitos os mitos que mudam para sempre a história das nações e o destino dos seus povos.
***
Na hora do café da manhã, nos avisam que nosso anfitrião chegará por volta de meio-dia, para ter o prazer de nos mostrar o seu zoológico pessoalmente. Enquanto isso, vamos percorrer a fazenda nos buggies, carros projetados para que gente jovem e irresponsável possa andar pela areia em alta velocidade. Eles têm uma carroceria muito baixa, quase no nível do solo e resistente a tudo, dois lugares, um volante, um câmbio, um tanque de combustível e um motor que produz um barulho infernal. Por onde esses carros passam vão deixando uma nuvenzinha de fumaça e poeira e um rastro de inveja, porque todos que dirigem um buggy parecem felizes e bronzeados, vestem um short e usam óculos escuros e têm ao seu lado uma garota linda e um pouco assustada com o cabelo ao vento ou um amigo meio bêbado que não trocam por ninguém. O buggy é o único carro possível de dirigir na praia com alto grau de embriaguez sem que aconteça algo grave aos passageiros, sem que ele vire e, principalmente, sem que a polícia prenda o louco que está ao volante, porque tem uma vantagem adicional: freia a seco.
A primeira manhã daquele fim de semana transcorreu dentro da mais completa normalidade; mas logo começaram a acontecer coisas estranhas, como se um anjo da guarda tentasse me dizer que os prazeres presentes e as aventuras inocentes são quase sempre as máscaras com as quais os futuros castigos cobrem o rosto.
Aníbal está entre os seres mais loucos que já pisaram no planeta, característica que excita muito o meu espírito de aventura, e todas as minhas amigas preveem que esse namoro não terminará no altar, mas no fundo de um precipício. Mesmo acostumado a dirigir sua Mercedes pelas estreitas e sinuosas estradas de montanha que só têm duas pistas, a de ida e a de volta, a quase duzentos quilômetros por hora com um copo de uísque numa mão e um sanduíche pela metade na outra, a verdade é que Aníbal nunca sofreu um acidente. E eu vou feliz dentro do buggy com sua filhinha no meu colo, a brisa no rosto e o cabelo ao vento, aproveitando o puro prazer, a alegria indescritível que se sente ao percorrer quilômetros e quilômetros de terra plana e virgem a toda velocidade sem que nada nos detenha ou imponha limites, porque em qualquer outra fazenda colombiana aquelas extensões incomensuráveis seriam usadas para a criação de gado zebu e estariam cheias de porteiras com trancas e ferrolhos para guardar milhares de vacas com olhar abobado e dezenas de touros em eterno estado de alerta.
Durante quase três horas percorremos muitos quilômetros de planície em todos os tons de verde, interrompidas apenas por uma ou outra lagoa ou por um rio de baixo fluxo, com uma colina suave como veludo de cor mostarda aqui ou uma leve ondulação acolá, parecidas com as esplanadas que vi, anos depois, Meryl Streep e Robert Redford percorrerem no filme Entre dois amores, mas sem os baobás. Todo o lugar é povoado apenas por árvores e plantas, aves e pequenos animais nativos do trópico americano, impossíveis de descrever em detalhes porque cada nova cena começa quando a anterior termina de desfilar diante dos nossos olhos, em paisagens que primeiro se sucederam às dezenas e agora às centenas.
A uma velocidade vertiginosa, nos dirigimos para um vale de vegetação densa e meio selvagem, com meio quilômetro de largura, para nos refrescar por alguns minutos do sol ardente do meio-dia embaixo dos leques de folhas gigantes de um bosquezinho de bambus. Segundos depois, uma revoada de pássaros de todas as cores alça voo em meio a uma cacofonia estridente, o buggy dá um salto sobre um buraco no solo oculto pela folhagem, uma vara de dois metros de comprimento e quase cinco centímetros de espessura entra como uma bala pela parte dianteira do carro, atravessa roçando a cem quilômetros por hora o estreito espaço que separa o joelho de Adriana do meu e para exatamente a um milímetro da minha bochecha e a três centímetros do meu olho. Não acontece nada mais grave, porque os buggies freiam a seco e porque, ao que parece, Deus reservou para mim um destino bem singular.
Apesar das distâncias percorridas e graças a essa invenção chamada walkie-talkie, que eu sempre classifiquei como esnobe, supérflua e completamente inútil, em cerca de vinte minutos vários jipes chegam para nos resgatar e recuperar o “cadáver” do primeiro buggy quebrado e inutilizado em toda a história da humanidade. Meia hora depois estamos no pequeno hospital da fazenda, recebendo uma injeção antitetânica e passando mercurocromo nos machucados dos joelhos e no meu rosto, enquanto todo mundo suspira aliviado porque Adriana e eu estamos vivas e com os quatro olhos intactos. Aníbal, com cara de criança arrependida, resmunga algo sobre o custo de ter que mandar consertar o bendito veículo e a eventualidade de ter que substituí-lo por um novo; para isso precisa, antes de tudo, verificar quanto custa trazê-lo por barco dos Estados Unidos.
Avisam que o helicóptero do dono da fazenda chegou há pouco tempo, embora nenhum de nós se lembre de ter escutado seu barulho. Um pouco inquietos, meu namorado e eu nos preparamos para pedir desculpas pelo estrago que causamos e perguntar sobre as possibilidades de ressarcimento. Minutos depois, nosso anfitrião entra pelo salãozinho onde nos reunimos com o restante dos convidados. Seu rosto se ilumina ao ver a nossa surpresa quando constatamos sua juventude. Acho que adivinha o alívio que eu e meu namorado “buguicida” sentimos ao comprovar que tem a média de idade dos integrantes do grupo, porque um traço de grande travessura atravessa seu rosto e a sua expressão parece lutar para não soltar uma dessas gargalhadas reprimidas que são as precursoras de ataques de riso.
Alguns anos antes, em Hong Kong, o admirável e elegante capitão Chang tinha me dito, sobre seu Rolls-Royce Silver Ghost com chofer de boina, uniforme cinza e botas pretas, estacionado na porta do meu hotel 24 horas por dia: “Não se preocupe, senhora, que temos outros sete só para nossos convidados, e este é o seu!”.
No mesmo tom, nosso jovem e sorridente anfitrião exclama com um gesto desdenhoso:
— Não se preocupem mais com o buggy, porque temos vários! — eliminando de uma só vez nossas preocupações e, com elas, qualquer dúvida sobre seus recursos, sua hospitalidade e sua total disposição de dividir conosco, a partir de então e durante cada minuto do resto do fim de semana, as ilimitadas opções de diversão que o paraíso de sua propriedade promete. Em seguida, com um tom que primeiro nos tranquiliza, depois nos desarma e finalmente seduz mulheres, crianças e homens por igual — acompanhado de um sorriso que faz com que cada um se sinta um cúmplice eleito para uma piada cuidadosamente planejada que só ele conhece —, o orgulhoso proprietário da fazenda Nápoles vai nos cumprimentando: — Encantado em te conhecer pessoalmente, por fim! Como vão os machucados? Prometemos compensar essas crianças com atrações pelo tempo que perderam: não vão se entediar nem um minuto! Muito prazer, Pablo Escobar.
Embora seja um homem de baixa estatura — menos de 1,70 metro —, tenho absoluta certeza de que nunca se importou com isso. Seu corpo é parrudo e do tipo que em alguns anos terá tendência a engordar. Sua papada, precoce e evidente, num pescoço grosso e anormalmente curto, diminui um pouco da juventude de sua expressão, mas transmite certa autoridade, um ar respeitável de senhor de idade, como as palavras cuidadosamente medidas que saem de sua boca reta e firme, porque fala com uma voz serena, nem alta nem grave, educada e realmente agradável, com a absoluta certeza de que seus desejos são ordens e de seu domínio total sobre os assuntos que lhe dizem respeito. Exibe um bigode sob um nariz que é quase grego de perfil e, junto com a voz, é o único traço especial da presença física de um homem que em outro âmbito seria descrito como perfeitamente comum, mais feio do que bonito, que se confundiria com milhões de outros nas ruas de qualquer país latino-americano. O cabelo é escuro e bastante cacheado, com uma onda rebelde que cai em sua testa e que ele afasta, de vez em quando, com um gesto rápido; sua pele é muito clara, e ele não está bronzeado como nós, queimados de sol o ano inteiro apesar de vivermos na Tierra Fría. Os olhos são muito próximos e particularmente fugidios; quando não se sente observado, parecem voltar a lugares insondáveis sob as sobrancelhas não muito cheias, para vasculhar gestos que possam detectar os pensamentos daqueles que estão à sua volta. Observo que, quase o tempo todo, esses olhos se dirigem para Ángela, que o observa com um desdém civilizado do alto de seu 1,75 metro de altura, seus 23 anos e sua beleza estonteante.
Pegamos os jipes para ir até a parte da fazenda Nápoles dedicada ao zoológico. Escobar dirige um dos carros e está acompanhado por duas garotas brasileiras vestidas com biquíni, cariocas lindas e pequeninas, com quadris perfeitos, que nunca falam e que se acariciam, embora cada vez mais discretas porque notam a presença das crianças e das mulheres belas e elegantes que agora prendem toda a atenção do anfitrião. Aníbal observa a indiferença total de ambas pelo que acontece ao seu redor, o que para uma autoridade em seu campo é um sintoma indiscutível de aspiração repetida e em grandes quantidades de alguma Samarian Platinum, porque nessa luxuosa propriedade a Samarian Gold deve ser só a versão popular da maconha. Observamos que as duas meninas, realmente meigas, como anjinhos que estão a ponto de adormecer, ostentam cada uma no dedo indicador da mão direita um diamante de um quilate.
Lá longe aparecem três elefantes, talvez a primeira atração de todo circo ou zoológico que se preze. Embora eu nunca tenha conseguido distinguir entre os asiáticos e os africanos, Escobar os descreve como asiáticos. Ele nos explica que os machos das espécies principais e em vias de extinção de seu zoológico têm duas ou mais fêmeas e que, no caso das zebras, dos camelos, dos cangurus, dos cavalos appaloosa e outros menos onerosos, muitas mais. E acrescenta com um sorriso malicioso:
— Por isso estão sempre tão felizes e não atacam, nem são violentos.
— Não, Pablo, não estão assim pelo superávit de fêmeas. É por essas paisagens sublimes que parecem planícies da África. Olha como correm esses hipopótamos e aqueles rinocerontes em direção ao rio: felizes como se estivessem em casa! — comento apontando os bichos, porque adoro contrariar os homens que superestimam o sexo e porque, para dizer a verdade, o melhor do zoológico de Pablo é a total liberdade com que aqueles enormes animais correm em espaços abertos ou se escondem entre pastagens altas de onde, num momento inesperado, poderiam saltar também a pantera e as tigresas esperadas no dia anterior.
Em alguma parte do trajeto, nos damos conta de que as brasileiras evaporaram por obra e graça das prestativas “escoltas”, nome que se dá na Colômbia aos guarda-costas armados. Observamos que Ángela agora ocupa o lugar de honra junto ao nosso anfitrião, que parece mais radiante do que todos nós juntos. Aníbal também está feliz, porque se propôs a colocar à disposição de Pablo os helicópteros feitos pelo conde Agusta, seu amigo, e porque Escobar acaba de comentar com ele que nossa amiga é a criatura mais bonita que ele já viu nos últimos tempos.
Chegamos aonde está o trio de girafas, e não resisto à tentação de perguntar ao seu dono como ele faz para importar das planícies do Quênia animais daquele tamanho e com aqueles pescoços quilométricos: eles são encomendados para quem, quanto custam, como é possível colocá-los num barco, como são tirados dos armazéns, em que tipo de caminhão viajam até a fazenda sem despertar a curiosidade e quanto tempo levam para se adaptar à mudança de continente.
— Como você traria esses bichos? — me pergunta num tom desafiador.
— Bem, pelo tamanho do pescoço, e dado que estão em vias de extinção, trazê-las pela Europa seria… um pouco arriscado. Teriam que viajar por terra através da África subsaariana até um lugar como a Libéria. Da Costa do Marfim à costa do Brasil, ou talvez das Guianas, imagino que chegariam sem maiores problemas à Colômbia atravessando a Amazônia, sempre e quando você for deixando… alguns maços de notas em cada parada e centenas de policiais felizes ao longo de toda a rota de Manaus até Puerto Triunfo. Nem é tãão complicado assim!
— Estou totalmente escandalizado com a sua capacidade para o crime multinacional, Virginia! Quando você vai me dar umas aulas? O que você está sugerindo? As minhas girafas são importadas legalmente! Vêm do Quênia, via Cairo-Paris-Miami-Medellín, até a estrada da fazenda Nápoles, com os seus certificados de importação e todas as vacinas em ordem! Seria impossível, inconcebível, trazer girafas em contrabando porque seus pescoços não são muito resistentes, sabia? Ou você acha que podem se deitar e dormir tranquilas como crianças de cinco anos? Eu tenho, por acaso, cara de contrabandista de girafas? — E, antes que eu possa dizer que sim, exclama feliz: — E agora, vamos tomar banho de rio, para que todos possam ver um pedaço do paraíso na Terra antes do almoço!
Se tem uma coisa da qual uma pessoa civilizada que vive em Tierra Fría tem vontade de sair correndo é a perspectiva de fazer um passeio a um rio de Tierra Caliente e depois almoçar sancocho — uma nutritiva sopa de galinha ou peixe acompanhada de aipim, arroz e batata, e cada região da Colômbia tem sua própria receita. Como, desde a minha mais tenra infância, só me lembro de ter submergido em águas de cor turquesa, sinto um grande alívio quando comprovo que as águas de reflexo esverdeado deste rio Claro, mantido por dezenas de nascentes da propriedade, são cristalinas. Fluem suavemente entre as enormes pedras redondas, sua profundidade parece ser ideal para o banho e em nenhum lugar vemos aquela nuvem de mosquitos que costumam confundir o meu sangue com mel.
Na margem, alguns familiares e amigos de nosso anfitrião nos esperam junto com algumas dezenas de guarda-costas com vários speed boats. Feitas para as corridas que, agora sei, são a paixão de Escobar e de seu primo Gustavo Gaviria, essas embarcações com casco de aço atingem velocidades impressionantes e podem levar mais de dez pessoas protegidas com capacetes, coletes salva-vidas e protetores auriculares para abafar o barulho estrondoso do motor, preso em uma gaiola de metal na parte posterior da embarcação.
Partimos como um raio com Escobar no volante do nosso barco. Hipnotizado de prazer, nosso condutor voa sobre aquele rio se esquivando dos obstáculos como se conhecesse cada recanto e cada pedra, cada redemoinho grande ou pequeno, cada árvore caída ou tronco que boia, e quisesse nos impressionar com sua habilidade de nos salvar dos perigos que só avistamos quando passam ao nosso lado como flechas e desaparecem em instantes como frutos da nossa imaginação. O turbilhão dura quase uma hora, e, ao chegar ao nosso destino, sentimos como se tivéssemos mergulhado nas cataratas do Niágara. Fascinada, me dou conta de que cada segundo da última hora de nossa vida dependeu do senso milimétrico de cálculo desse homem que parece ter nascido para desafiar os limites da própria sobrevivência e resgatar os outros e, ao fazer isso, receber sua admiração, sua gratidão e seus aplausos. E como a intensidade compartilhada é um dos presentes mais maravilhosos que se pode dar àqueles que também vivem sua vida em busca de aventura, me pergunto se nosso anfitrião colocou toda a sua capacidade teatral a serviço de um espetáculo emocionante e impossível de repetir, obedecendo apenas à sua paixão pela conquista do perigo, à necessidade de exibir o tempo todo as múltiplas formas de que se reveste sua generosidade ou ao que poderia ser, talvez, um excesso de amor-próprio.
Chegamos ao lugar onde vamos almoçar, e estou feliz de descansar na água enquanto o sancocho e o churrasco estão sendo feitos. Nado de costas e, distraída em meus pensamentos e na beleza do céu, não noto que os círculos concêntricos de um redemoinho estão se fechando em torno de mim. Quando sinto a força de um parafuso de metal que paralisa as minhas pernas e me arrasta para o fundo, movimento os braços e chamo meu namorado e meus amigos que estão na margem, a cerca de oitenta metros; mas, pensando que os estou convidando para entrar na água, todos riem, porque só querem celebrar com uma boa bebida a aventura que viveram e recuperar o calor do corpo com uma deliciosa comida quente. Estou a ponto de morrer na presença de cerca de quarenta pessoas entre amigos e seguranças que não querem ver nada além de seu próprio conforto, suas metralhadoras e seus copos quando, já quase desfalecida, faço um contato visual com Pablo Escobar. Só ele, que está mais ocupado dirigindo o espetáculo e dando as ordens, o maestro da orquestra, “o dono do passeio” — de acordo com a expressão tipicamente colombiana —, percebe que estou num liquidificador do qual talvez não consiga sair viva. Sem pensar duas vezes, se joga na água e em segundos chega aonde estou. Usando primeiro palavras para me tranquilizar, depois movimentos tão precisos que chegam a ser coreografados e, finalmente, uma força de alicate que parece ser o dobro da do redemoinho, aquele homem seguro e corajoso começa a me arrancar do abraço da morte como se eu fosse uma pena, como se essa ação fosse apenas mais uma entre as suas responsabilidades de gentil anfitrião. E, como se ele fosse imune a um perigo que vai deixando de lado, sai comigo agarrada primeiro à mão, em seguida ao seu antebraço e depois ao seu corpo, enquanto Aníbal nos olha a distância, se perguntando por que diabos não me desgrudo de alguém que nós conhecemos há apenas algumas horas e cinco minutos antes conversava com ele.
Quando Escobar e eu conseguimos pisar no fundo do rio, nos dirigimos cambaleantes até a margem. Ele segura firme o meu braço, e eu lhe pergunto por que, entre tantas pessoas, ele foi o único que se deu conta de que eu estava a ponto de morrer.
— Porque vi o desespero em seus olhos. Seus amigos e meus homens só conseguiam ver seus braços se agitando.
Olho para ele e digo que não foi apenas o único que viu minha angústia como também o único que se importou com a minha vida. Ele parece se surpreender, mais ainda quando acrescento com o primeiro sorriso que sou capaz de esboçar depois do susto:
— Pois agora você será responsável pela minha vida enquanto você viver, Pablo…
Coloca um braço protetor em volta dos meus ombros, que não param de tremer. Logo, com uma expressão risonha, pergunta:
— Enquanto eu viver? E o que te faz pensar que vou morrer primeiro?
— Bem, você sabe que é apenas um dito popular… mas vamos deixar então como “enquanto eu viver”, para que ambos fiquemos tranquilos e para que você pague as despesas do meu enterro!
Ele ri e diz que vai acontecer dentro de um século, porque os acontecimentos das últimas horas parecem indicar que tenho mais vidas que um gato. Ao chegar à margem, me deixo envolver com a toalha que os braços amorosos de Aníbal me estendem; está morna e, como é enorme, me impede de ver nos seus olhos o que ele não quer que eu descubra.
O churrasco não deixa nada a desejar comparado ao de uma fazenda argentina, e o lugar do almoço é, na verdade, um sonho. Um pouco afastada do resto do grupo, contemplo em silêncio aquela sombra frondosa com os olhos de uma Eva perdoada diante de sua segunda visão do Paraíso. Nos anos seguintes vou revivê-la em minha memória várias vezes, com a bela construção de madeira de teca olhando da parte mais calma daquele rio Claro transformado para mim num lago de esmeraldas e da folhagem da margem oposta com o sol brilhando em cada folha e nas asas das borboletas. Muitos meses depois, pedirei a Pablo que voltemos a esse lugar, mas ele dirá que não é possível porque está cheio de guerrilhas. Mais tarde, num dia qualquer depois de duas décadas, vou compreender ou aceitar, finalmente, que nunca se deve voltar aos lugares de beleza esplendorosa onde algum dia fomos extremamente felizes por algumas horas, porque já não são os mesmos e só nos resta a nostalgia das cores e, acima de tudo, dos sorrisos.
Tudo na fazenda Nápoles parece ser de um tamanho colossal. Estamos agora passeando no Rolligon, um trator gigantesco com rodas de quase dois metros de diâmetro, uma cabine nas alturas onde cabem por volta de quinze pessoas e uma força comparável à de três elefantes.
— Você não consegue aquela, Pablo! — gritamos, apontando uma árvore de estatura mediana.
— Essa também nós derrubamos! — grita Escobar orgulhoso, destruindo sem compaixão o pobre arbusto com o argumento de que tudo aquilo que não resiste ao confronto com ele não merece viver e deve voltar para a terra para se transformar em nutriente.
No caminho de volta para casa, passamos perto de um carro baleado que parece um Ford do final dos anos 1920.
— É o de Bonnie e Clyde! — anuncia orgulhoso.
Pergunto a ele se é o carro do casal ou o do filme, e ele me responde que é o original, porque não compra falsificações. Quando todos nós comentamos que o carro parece ter sido metralhado, Escobar nos explica que os seis policiais que prenderam os amantes para ganhar a recompensa atiraram com rifles automáticos por mais de uma hora, deixando em volta do carro mais de cem cartuchos de bala.
Clyde Barrow, “o Robin Hood americano”, era em 1934 o inimigo público número um do governo americano. Roubava bancos e quatro meses antes da sua morte orquestrou com sucesso a fuga de vários membros de seu bando. Bonnie Parker o acompanhava nos assaltos, mas nunca participou dos assassinatos de policiais, que foram aumentando à medida que a perseguição ao casal se estendia por novos estados e o valor da recompensa crescia. Bonnie tinha 24 anos e ele 23 quando morreram. Os corpos nus do casal foram exibidos diante de centenas de fotógrafos no chão do necrotério, num espetáculo que gerou protestos revoltados não só pela morbidez como pelas dezenas de balas que exibia o corpo da jovem cujo único crime e destino foi amar um eterno fugitivo da justiça. Bonnie e Clyde formaram o primeiro casal do submundo imortalizado na literatura e no cinema, e sua lenda transformou-os numa autêntica versão moderna de Romeu e Julieta. Vinte mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre de Bonnie, que, por decisão de sua mãe, não pôde ser enterrada ao lado de Clyde, como gostaria.
Ao nos aproximarmos da entrada da fazenda Nápoles, vemos estacionado perto do enorme portão, como se fosse uma enorme borboleta equilibrista, um aviãozinho monomotor pintado de branco. Escobar diminui a marcha e em seguida para. Começo a sentir que uma comporta se abre sobre nós e, pelo rabo do olho, observo que meus amigos se encostam nas laterais e na parte de trás do Rolligon. Em uma fração de segundo, recipientes e mais recipientes derramam água gelada aos montes sobre mim, me deixando surpresa, sem fôlego e meio afogada. Quando consigo recuperar a fala, só penso em perguntar a ele, tiritando:
— E esta lata-velha do princípio do século, Pablo, era o aeroplano de Lindbergh ou de Amelia Earhart?
— Este sim é meu e me deu muita sorte, a mesma que você teve hoje quando salvei sua vida! Hahahahahaha! Eu sempre cobro os favores que faço, e você já está “batizada”! Agora sim estamos quites, minha querida Virginia! — exclama gargalhando, enquanto seus cúmplices não param de comemorar o ocorrido.
Nessa noite, quando estou terminando de me arrumar para o jantar, alguém bate bem de leve à porta do meu quarto. Pensando que é a filha de Aníbal, peço que entre; mas quem mostra timidamente o rosto sem soltar o trinco é o dono da casa. Com um tom de preocupação que parece ser sincero, me pede desculpas e pergunta como estou. Respondo que mais limpa do que nunca, porque nas últimas doze horas me vi obrigada a tomar cinco banhos em temperaturas variadas. Ele ri aliviado e eu pergunto pelas feras, que não vimos em nenhuma parte do trajeto durante o dia.
— Ahhh… essas feras. Bom… confesso que no meu zoológico não existem animais de presa: uns comeriam os outros e são dificílimos de importar… legalmente. Mas agora me lembro, me pareceu ter visto por aí uma pantera furiosa tiritando de frio e empapada de água sob um avião e três tigresas na sala de jantar, há dez minutos. Hahaha!
E desaparece. Quando me dou conta de que todo o cenário da pista de aterrissagem foi uma encenação, não posso deixar de pensar com ingênua incredulidade que a capacidade que esse homem tem de tramar brincadeiras só pode ser comparada ao seu valor. Quando entro na sala de jantar usando, dourada e radiante, minha túnica de seda turquesa, Aníbal me elogia e declara diante de todos:
— Esta é a única mulher do mundo que acorda sempre parecendo uma rosa… É como ver um milagre da Criação a cada manhã…
— Olhe para eles! — diz o Compositor a Escobar. — Os dois símbolos sexuais juntos…
Pablo nos observa com um sorriso. Em seguida me olha fixamente. Eu baixo o olhar.
Já de volta ao nosso quarto, Aníbal comenta em voz baixa:
— Realmente, um cara que é capaz de trazer três girafas contrabandeadas do Quênia para cá também é capaz de colocar toneladas de qualquer coisa nos Estados Unidos!
— Toneladas de quê, amor?
— De coca. Pablo é o Rei da Cocaína, e a demanda é tão grande que está no caminho de se tornar o homem mais rico do mundo! — exclama, levantando as sobrancelhas com admiração.
Comento que tinha certeza de que ele financiava esse estilo de vida às custas de política.
— Não, não, meu amorzinho, pelo contrário: ele financia toda essa política às custas de cocaína!
E semicerrando os olhos, extasiado de prazer depois do seu quadragésimo teco do dia, me mostra uma pedra de cocaína de cinquenta gramas que Pablo lhe deu de presente.
Estou cansada e durmo profundamente. Quando acordo no dia seguinte, ele continua lá, mas a “pedra” não está. Tem os olhos injetados e me observa com grande ternura. Eu só sei que o amo.