PABLO ESCOBAR É O dono da mente mais moderna que já conheci. Um verdadeiro expert em geopolítica caribenha, que construiu em menos de uma década a indústria mais rentável de todos os tempos e agora a controla com punho de ferro, como se fosse uma autêntica corporação multinacional. Combina um excepcional talento para visualizar o futuro com uma espécie de sabedoria antiga que permite que resolva em questão de segundos todas as coisas práticas ou urgentes da vida e ter sempre à mão soluções imediatas para cada problema, do tipo que para outro ser humano seriam não só inconcebíveis como quase impossíveis de pôr em prática.
Pablo só sente verdadeira paixão por uma coisa: o exercício do poder em benefício de seus interesses. Tudo em sua vida cumpre essa finalidade, e isso, obviamente, me inclui. Como o amo e o critico nas mesmas proporções — e como nunca me entrego completamente —, sou para ele um desafio permanente, e por isso ensaia comigo no nível individual essa mesma sedução que no nível coletivo começou a botar em prática num país que ele enxerga, trata e pretende utilizar como se fosse só mais uma extensão da sua fazenda Nápoles. Sou não só a única mulher de sua idade que terá em toda a sua existência, como também a única livre-pensadora e educada e, pelos motivos da minha profissão, serei sempre para ele a sua amante por trás das câmeras. Quando precisa medir a possível reação dos outros ao seu discurso político, me utiliza friamente como interlocutora — mistura de advogado de defesa, fiscal, testemunha, juiz e público —, consciente de que, enquanto ele seduz a mulher-troféu, a mulher-câmera o está analisando, questionando, catalogando e quase certamente comparando com outros do mesmo tamanho que ele.
Escobar é um dos homens mais implacáveis que a história de uma nação onde os homens com frequência se alimentam do ódio, da inveja e da vingança já viu; mas, à medida que o tempo passa e o amor vai se transformando, começo a vê-lo como um menino grande que carrega uma cruz cada vez mais pesada, feita das responsabilidades imaginárias e delirantes daqueles cuja ambição conduz à obsessão por controlar absolutamente tudo, suas circunstâncias, seu entorno, seu destino e, inclusive, todos os seres humanos que possam fazer parte de seu passado, seu presente e seu futuro.
Meu amante não é apenas um dos homens mais bem informados do país, mas, como bom filho de professora, é no fundo um moralista e, diante daqueles pelos quais quer ser amado e respeitado, exibe um rigoroso código ético. Cada semana alguém quer marcar um encontro comigo para oferecer a ele, através de mim, as propriedades mais fabulosas pelos preços mais irrisórios; com um sorriso e um carinho, Pablo infalivelmente responde “Não”. Um exemplo claro de suas razões é sua resposta ao intermediário do ministro Carlos Arturo Marulanda:
— Ele pediu para te oferecer 12 mil hectares no sul de Cesar por apenas 12 milhões de dólares. Bellacruz não faz limite exatamente com Nápoles, mas, com algumas compras adicionais de pouco valor aqui e ali — digo, apontando os mapas que me deixaram —, você pode juntá-las e construir no centro do país um corredor gigantesco que te leva até a costa e a Venezuela. Em pouco tempo isso vai ter um valor muito superior, porque todos nós sabemos que, com a demanda de sua corporação, os preços da terra e das propriedades na Colômbia vão chegar às nuvens.
— Muralanda é cunhado de Enrique Sarasola. Diga ao emissário que sei que Bellacruz é a maior fazenda do país depois de algumas do Mexicano nos Llanos, onde a terra não vale nada, mas que não dou nem 1 milhão de dólares por ela porque não sou um desalmado como o pai do ministro. E claro que vai valer o dobro, meu amor! Mas primeiro vai ter que procurar um outro cara sem escrúpulos, como ele e o irmão, para tirar dali os descendentes de toda essa pobre gente a quem o pai dele expulsou dos seus terrenos a sangue e fogo, se aproveitando do caos da Violência.
Ele me explica que em Bellacruz está começando a estourar um barril de pólvora que mais cedo ou mais tarde vai terminar num massacre. O pai do ministro, Alberto Marulanda Grillo, comprou os primeiros 6 mil hectares nos anos 1940 e foi dobrando o tamanho do latifúndio com a ajuda de chulavitas, policiais que incendiavam ranchos, violentavam, torturavam e assassinavam para quem quer que contratasse seus serviços. A irmã de Carlos Arturo Marulanda é casada com Enrique Sarasola, vinculado à sociedade espanhola Ateinsa, de Alberto Cortina, Alberto Alcocer e José Entrecanales. Sarasola, amigo próximo de Felipe González, ganhou 19,6 milhões de dólares de comissão e conseguiu a concessão do chamado “Contrato de engenharia do século”, o metrô de Medellín, o Consórcio Hispano-Alemão Metromed e os seus sócios, entre eles a Ateinsa. Diego Londoño White, gerente do projeto do metrô, grande amigo de Pablo e dono, com seu irmão Santiago, das mansões que ele e Gustavo utilizam como escritórios, foi o encarregado de negociar o contrato e fazer os trâmites das generosas comissões. Segundo uma testemunha da exploração e da voracidade do grupo chefiado por Sarasola, a concessão do metrô — na qual receberam honorários extravagantes desde alguns advogados colombianos de sobrenome Puyo Vasco até o espião alemão Werner Mauss —, “mais do que uma licitação por um contrato de engenharia civil, parecia um filme de gângsteres”, conceito que um social-democrata como Pablo Escobar parece compartilhar plenamente.
O barril de pólvora na fazenda do cunhado de Enrique Sarasola explodiria em 1996, sendo Carlos Alberto Marulanda embaixador da União Europeia durante o governo de Ernesto Samper Pizano. Por ação de esquadrões como os dos chulavitas usados por seu pai meio século antes, quase quatro centenas de famílias camponesas seriam obrigadas a fugir de Bellacruz depois do incêndio de suas casas e da tortura e do assassinato de seus líderes na presença do Exército. Marulanda, acusado de formação de grupos paramilitares e violações dos direitos humanos, seria detido na Espanha em 2001 e extraditado para a Colômbia em 2002. Duas semanas depois, seria libertado com base no fato de que os delitos tinham sido cometidos pelos grupos paramilitares que operavam em Cesar, e não pelo milionário amigo do presidente. Para a Anistia Internacional, o que aconteceu na fazenda Bellacruz constitui um dos episódios de impunidade mais absurdos da história recente da Colômbia. Diego Londoño White, como seu irmão Santiago, seria assassinado posteriormente; e quase todos os demais beneficiários da exploração do metrô e dos crimes de Bellacruz, ou seus descendentes, desfrutam hoje dos mais dourados exílios em Madri e Paris.
— Acho que chegou a hora de te apresentar aos amigos que fizeram o meu contato com os sandinistas — me diz Pablo ao nos despedirmos uns dias depois, antes de minha volta a Bogotá. — Estamos preparando algo muito importante, e quero que você diga qual é a sua opinião sobre eles. Se as coisas acontecerem como o planejado, vamos poder viver em paz. Por segurança, desta vez nem sequer posso te ligar: em uns quinze ou dez dias, nem antes, nem depois, um piloto vai ligar para te chamar para almoçar num restaurante X. Essa é a senha, e você decide quando vai querer viajar dentro dos próximos dois dias.
Em Bogotá, encontro uma carta do canal de televisão de Miami. Desejam realizar um segundo teste e discutir um possível contrato. O salário é de 5 mil dólares mensais, e devo estar todos os dias no estúdio às cinco horas da manhã para me maquiar antes de apresentar várias emissões. Poucos dias depois, Armando de Armas me liga para me dizer que essa oferta é a melhor oportunidade de reiniciar minha carreira por cima, e insiste para eu não perdê-la. Respondo que na Colômbia eu ganhava o mesmo em 1980 no noticiário 24 Horas por uma única apresentação diária às sete da noite. O que não posso confessar — nem a ele nem a ninguém — é o meu medo de que, no momento em que alguém envie a um jornal de Miami minhas fotos com Escobar, meu contrato com o canal norte-americano possa ser cancelado em meio a um enorme escândalo. De volta a Medellín, mostro a Pablo a carta com a oferta e fico horrorizada ao comprovar que ele continua grampeando as minhas ligações.
— Cinco apresentações diárias por 5 mil dólares mensais? Mas o que esses cubanos estão querendo? — E, enquanto começa a queimá-la, acrescenta: — Vamos fazer uma coisa, meu amor: vou te dar 80 mil dólares enquanto você não consegue trabalho com uma emissora que pague quanto você vale, ou com um canal de um país para onde eu possa viajar com frequência. Mas não vou te enviar o dinheiro todo de uma vez, porque assim você foge para Miami com algum milionário venezuelano, e eu não volto a te ver nunca mais. Mesmo que não possamos estar juntos toda semana, agora que voltou, preciso de você mais do que nunca e quero que viva comigo uma série de processos essenciais que vão acontecer nos próximos meses neste país.
O que Armando de Armas disse é, então, verdade: Escobar o colocou para correr! O que descarto completamente, por ser absurda, é a ideia de que tenha tentado sequestrá-lo. Como é evidente que Pablo já descobriu quem estava por trás da oferta do canal cubano, decido não fazer mais perguntas. Prefiro contar a ele sobre o interesse do jornalista italiano em sua história para um possível filme dos produtores Cecchi Gori. Diante da perspectiva de que a sua vida possa ser levada ao cinema, não cabe em si de orgulho; mas, mesmo estando radiante de felicidade, Pablo Escobar é, antes de tudo, um homem de negócios.
— Você se dá conta de que há opções de trabalho muito mais importantes e rentáveis para alguém como você? Diga a esse tal Valerio Riva que, se quer se reunir comigo através de você, deve te pagar 100 mil dólares pela sinopse e como adiantamento pelo roteiro do filme; e que, se ele não escrever o roteiro junto com você, nada feito. Se ele se negar a pagar, é porque os produtores multimilionários italianos não estão por trás do projeto e esse cara só quer te usar para ganhar um dinheirão com uma história que todo mundo quer conhecer e mais ainda com o que vai acontecer a partir de agora, que já não podem me extraditar. Eu e você seremos livres para viajar juntos a praticamente todos os cantos, menos para os Estados Unidos, claro. E, em todo caso, você pode continuar indo para lá sempre que quiser descansar de mim… por uns dias.
Exatamente duas semanas depois, em meados de agosto de 1985, estou de volta a Medellín. No final da tarde, dois rapazes me pegam num carro discreto e durante todo o trajeto da estrada não param de olhar pelo retrovisor para se assegurar de que não estão me seguindo e que alguém, graças à perseverança, possa descobrir o paradeiro de Pablo. Não pergunto para onde vamos e cochilo. Desperto ao escutar as vozes de dois homens avisando o chefe pelo rádio que já estamos quase chegando. Quando nos aproximamos do portão de Nápoles, um automóvel branco e pequeno com três homens sai como uma bala e some na nossa frente no meio das sombras e no silêncio da noite. Os rapazes me dizem que é o carro de Álvaro Fayad, comandante máximo do M-19. Fico muito surpresa — porque eu tinha me convencido de que o grupo guerrilheiro e o MAS se odiavam até a morte — e me viro para tentar vê-lo; o homem que vai na parte de trás do carro também se vira para me ver, e por alguns instantes nossos olhares se cruzam. Entramos na propriedade em alta velocidade e paramos em frente à casa principal. No fundo do corredor, sob uma luz amarela, consigo ver dois ou três homens que saem imediatamente acompanhados dos que chegaram comigo. Como se escondem quando veem Pablo sair, não consigo distingui-los e deduzo que seus convidados não apenas são de total confiança, como exigem discrição nos assuntos de que vão tratar, uma distância prudente dos subalternos e medidas de segurança excepcionais.
Pablo, especialista em comunicações, é sempre informado em segundos, por rádio ou walkie-talkie, de tudo o que acontece ao seu redor. Imediatamente sai para me receber, abre a portinha do carro e me toma em seus braços; logo me tira de lá com os dois braços e me olha orgulhoso como se eu fosse um Renoir da sua coleção. Seu entusiasmo com algo que evidentemente vem planejando sugere que não vê a hora de me apresentar ao seu convidado, que, agora sei, é apenas um. Ele me pede que adivinhe quem é, e eu pergunto se é o príncipe da família real saudita que transporta para ele grandes quantidades de dinheiro em seu avião diplomático, ou algum revolucionário centro-americano, ou um general mexicano de três estrelas, ou algum dos grandes chefes do tráfico astecas ou cariocas, ou talvez um enviado de Stroessner, o eterno ditador paraguaio. Quando me explica de quem se trata, quase não posso acreditar nos meus ouvidos:
— Queria que conhecesse dois dos fundadores e cabeças do M-19. São grandes amigos meus já há algum tempo, mas eu não podia te dizer antes de estar completamente seguro. Depois do sequestro de Martha Nieves Ochoa, entramos num acordo com eles, um pacto de não agressão. Álvaro Fayad acaba de ir embora, porque me parece que estava receoso de se encontrar com você, mas Iván Marino Ospina, o mais “duro” dos comandantes, está aí dentro. Ele não reagiu ao seu nome porque está há anos vivendo na selva e não vê televisão. Dependendo de como as coisas andem, vamos ver se explicamos a ele quem você é ou se te deixamos incógnita. — Em seguida, com o tonzinho de voz de toureiro que usa comigo quando está feliz, passa um braço pelos meus ombros e acrescenta: — Um pouquinho de anonimato a essas alturas da vida não vai te fazer mal. Não é verdade, amor?
— E qual é a idade do nosso líder do século XIX, Pablo? — pergunto.
Rindo, ele responde que uns 43, e eu digo que os únicos homens colombianos dessa idade que não sabem quem eu sou são os das etnias que vivem nas profundidades da selva que ainda não descobriram a invenção da língua espanhola nem do sutiã.
— Esse aí é um tropeiro do Vale do Cauca que não tem medo nem de mim e não se prende a intelectualismos nem a babaquices! Promete que vai me acompanhar no jogo e, pela primeira vez na vida, vai falar de temas nacionais, autóctones. Jura, pelo que é mais sagrado, que não vai falar com ele de pragas como Pol Pot nem da Revolução Cultural!
— Está insinuando, Pablo, que não posso perguntar ao comandante supremo do grupo guerrilheiro principal deste país pelo modus operandi dos Montoneros e do Sendero Luminoso, do IRA e do ETA, das Brigadas Vermelhas e de Baader Meinhof, dos Panteras Negras e dos Tigres de Liberação do Tamil, do Hamas e do Fatah? — digo, passando a mão no seu cabelo. — Para que você me trouxe, então? Para falar do 9 de Abril, dos sandinistas e de Belisário? Pelo assalto ao Quartel Moncada eu posso perguntar, ou não? Havana fica aqui pertinho, entre Cartagena e Miami…
— Deixe que ele fale de Simón Bolívar ou do que quiser, porque de Fidel Castro não vai falar nada, já aviso… Esse homem é o cara que eu estava precisando para acabar com todos os meus problemas… Não vamos fazê-lo esperar mais. E, pelo amor de Deus, não faça cara de estrela, que com esse vestido você já parece uma! Seja bem simples e encantadora, como se fosse apenas uma menina linda e discreta, o.k.?… Certamente devo te avisar que o meu amigo está muito drogado… mas eu e você já estamos acostumados com… as fraquezas dos outros. Ou não, meu amor?
Imagino que o comandante amazônico deve se vestir como um sargento do Exército em traje camuflado, que vai me olhar como um intruso numa reunião de homens muito machos e vai fazer o humanamente impossível para que eu saia com a finalidade de ficar falando de dinheiro com Pablo. Iván Marino Ospina é um homem de estatura mediana, traços grosseiros, cabelo ralo e bigode, e, ao seu lado, Escobar parece Adonis. Estou com um vestido de seda curto, com sapatos de salto alto, e, quando nos apresenta, Pablo não cabe em si de orgulho. Imediatamente, percebo que aquele lendário chefe guerrilheiro na verdade não tem medo de Pablo nem de ninguém, porque quando coloca os olhos em mim não desgruda do meu rosto, do meu corpo, nem das minhas pernas um olhar inflamado que até o dia de hoje não me lembro de ter visto em nenhum outro homem.
O chefe do M-19 veste roupas de civil e me conta que acaba de passar vários meses na Líbia. Ninguém viaja da América do Sul para a Líbia a passeio, como dizem os turistas da classe média colombiana: ou vai fazer negócios de petróleo ou negócios de armas, e o M-19 não é exatamente a Standard Oil Company. Como sei da fascinação de Pablo pelos ditadores, comento que Muammar Gaddafi tomou a decisão de tirar o rei Idris I da Líbia do trono quando o viu perder, em apenas uma noite, 5 milhões de dólares — cifras de finais dos anos 1970 — no cassino de Montecarlo. Pergunto a Ospina se o conhece, e ele afirma não tê-lo visto porque o M-19 vai para a Líbia unicamente para fazer treinamento de combate. Quando tento verificar se seu grupo tem boas relações com a Liga Árabe, os dois homens cruzam olhares, e Pablo propõe que não falemos mais do distante deserto africano, mas de como é dura a vida na selva colombiana.
Iván Marinho me conta que passou muitos anos nas Planícies Orientais da Colômbia. Os rios de planície, de proporções colossais na estação chuvosa, incluem os duzentos principais afluentes do Orinoco, cuja bacia cobre 1 milhão de quilômetros quadrados de planícies e florestas venezuelanas, brasileiras e colombianas. Olhando fixamente para mim e medindo minha reação a cada palavra dele, começa a me falar dos poraquês.31 Ele me explica que, por culpa deles, aqueles que lutam contra a oligarquia em Bogotá e o imperialismo em Washington devem vagar por aquelas correntes completamente protegidos, principalmente da cintura para baixo, e assim as botas e roupas empapadas se transformaram em motivo adicional de sofrimento e feridas. Pablo e eu escutamos com horror as histórias daqueles animais que, como saca-rolhas cheios de espinhos, descolam a carne da vítima ao serem retirados com uma espécie de fórceps depois de uma luta titânica entre o selvagem médico do dono do “território” e o poraquê que pretende disputá-lo. E caio na armadilha de perguntar se é pela boca ou pelo nariz ou pelas orelhas que esses “benditos” animais entram em alguém.
— Muito mais abaixo. Eles entram por todos os orifícios do corpo, principalmente os que ficam beeemmm embaixo! E para as companheiras o problema é duplo! — diz Ospina me devorando com os olhos, como se quisesse me fazer uma demonstração que me deixasse convencida.
Como Gloria Gaitán me acusou de sempre exibir doses anormais de candura para uma mulher lúcida da minha idade, ironizando pergunto ao comandante supremo do M-19, com os olhos bem abertos:
— E você, Iván Marino, quantos poraquês já tiveram que arrancar do seu corpo em todos esses anos de luta revolucionária?
Olhando a parede da frente com certa tristeza, como se subitamente tivesse se lembrado de algum obscuro e doloroso capítulo que achava que tinha esquecido, responde que “alguns, alguns”. Pablo me fulmina com o olhar, e eu me levanto para ir ao lavabo e não submeter seu amigo a mais perguntas sobre o assunto selecionado por ele para me vender o ideário da revolução.
Ao voltar, fico atrás da porta entreaberta porque escuto o chefe guerrilheiro exigindo algo a Escobar nos termos mais definitivos:
— Não, meu irmão, não e não. Eu quero como esta. Não quero nenhuma outra, e ponto. Igualzinha, sem nenhuma diferença. De onde você tirou essa, tão perfeitinha? Ahhh, companheiro, como cruza e descruza as pernas… e como cheira bem… e como se movimenta! É assim na cama? Que boneca divina! Essa é o tipo de mulher, tão bonita quanto uma estrela de cinema, com que sempre sonhei! Não… pensando bem… quero duas iguais a ela! Sim, duas na minha jacuzzi, e você pode me descontar do milhão se quiser!
— Do milhão?… Então deixa eu pensar, meu irmão… porque isso sim me interessa… Mas temos dois problemas: um é que… Virginia é a apresentadora mais famosa da Colômbia… ela diz que “isso é ser como uma estrela de cinema num país sem indústria cinematográfica”… Veja ela aqui, em todas essas revistas, se não acredita em mim. E dois, que, como sabe de tudo e conversa sobre tudo… ela é o meu tesouro. O que eu não daria para ter duas dela!
— Mas por que você não me avisou, companheiro? Bem, bem, bem… então me desculpe, homem!… Pensando melhor, então… duas bem parecidas com Sophia Loren você pode conseguir para mim, não é? Não importa que sejam mudas… e quanto mais burras, melhor! — exclama Ospina às gargalhadas.
— Claro, homem! Dessas, eu posso conseguir quantas você quiser: uma Sophia Loren morena, outra loira e até uma ruiva se couber na jacuzzi! — afirma Pablo com um imenso alívio. — E não se preocupe, que para você ninguém vai descontar nada, irmão.
Fico tentada a deixar aqueles dois homens sozinhos e ir dormir, mas decido entrar. Ao empurrar a porta, meu olhar se encontra com o do criminoso mais procurado no mundo, que observa com terror o do guerrilheiro mais procurado da Colômbia, como implorando que ele se cale. Pablo faz um gesto carinhoso para que eu me sente ao seu lado, mas eu ignoro e me coloco junto à mesa onde ambos deixaram suas metralhadoras. Como vejo que Ospina ficou olhando a minha capa do Al Día — na qual estou ajoelhada e pareço nua, quando na realidade uso um biquíni pequeníssimo cor de pele —, pergunto se quer que a autografe para levar de recordação.
— Nem de brincadeira! — esbraveja Pablo, recolhendo todas as revistas, guardando numa caixa e fechando à chave. — E se o Exército chega a encontrá-las em alguma batida e depois interroga você para saber do paradeiro desse bandido? E depois do meu?!
Pergunto a Iván Marino por que entrou na luta revolucionária. Olhando agora para aquele lugar do espaço onde guardamos as memórias dolorosas da infância, começa a me contar como, depois do assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, em 1948, em Tulúa, sua terra natal, os “pássaros” conservadores do Vale do Cauca assassinaram seus três tios, um deles usando uma machete diante de seus onze filhos. Depois de uma pausa, e com profunda tristeza, também começo a lhe contar como foi que minha família perdeu todas as terra em Catargo — muito próxima a Tulúa — por culpa daqueles “pássaros”: durante os primeiros anos da Violência, meu avô — um ministro liberal casado com uma proprietária de terras conservadora — chegava a cada semana em suas fazendas e encontrava um mordomo morto, com as orelhas, a língua e os genitais cortados e a barriga de sua jovem esposa, empalada ou aberta, caso estivesse grávida — e as jovens camponesas sempre estão; não era raro encontrar o feto na boca do marido morto ou nas outras cavidades rasgadas do corpo da pobre mulher.
— O senhor e eu sabemos que a única forma de depravação que todos aqueles “pássaros” conservadores não praticaram com as mulheres camponesas foi o canibalismo. Os homens da minha família nunca empunharam armas, não sei se porque são covardes ou católicos e preferiram vender suas terras por centavos à família açucareira multimilionária dos Caicedo, que financiava aqueles monstros que eram, dizem, seus amigos e vizinhos.
— Mas como você pode comparar a sua situação com a nossa! — exclama Ospina. — Em sua família de oligarcas, “os pássaros” matavam os empregados na ausência do patrão. Na minha, de camponeses, despedaçavam as pessoas diante de seus filhos!
Expresso o meu espanto por todos aqueles horrores, minha compaixão por todo aquele sofrimento e o meu profundo respeito pelas origens da luta armada na Colômbia, e comento quanto é estranho que três histórias tão diferentes como as nossas estejam reunidas ali nessa noite na fazenda mais valiosa do país: a do chefe da guerrilha, a do chefe do narcotráfico e a da mulher sem um centímetro de terra, mas aparentada de toda a oligarquia do país e amiga da outra metade. Faço com que ele veja que a vida dá muitas voltas e que Pablo, seu amigo, é agora um proprietário de terras muito mais poderoso do que foram meu bisavô e todos os seus irmãos juntos e, também, que as dimensões das propriedades de um de seus sócios superam amplamente as de Pepe Sierra, o senhor de terras mais rico de toda a história da Colômbia e amigo dos meus antepassados. Como ele e Pablo estão em silêncio, pergunto a Iván Marino por que o M-19 quebrou em junho o cessar-fogo acordado com o governo de Betancur. Ele me explica que, quando foram desmobilizados, seus membros e os de outros grupos insurgentes abrigados pela anistia começaram a ser assassinados por forças obscuras de extrema-direita. Pergunto a ele se está se referindo ao MAS.
— Não, não, não. Graças a esse homem — diz, apontando para Pablo — nem nós nos metemos com eles, nem eles se metem conosco. Ele e eu temos um inimigo em comum, que é o governo… e a senhora sabe que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”… O ministro da Defesa — o general Miguel Vega Uribe — e o chefe do Estado Maior Conjunto, Rafael Samudio Molina, juraram acabar com a esquerda. Se no governo de Turbay nos prendiam e nos torturavam, no de Betancur não vai sobrar nenhum de nós vivo. A Colômbia continua sendo administrada pelos “pássaros” de Laureano e seu filho Álvaro Gómez, só que agora são militares que acreditam que esses países podem ser organizados com o modelo de Pinochet: exterminando os membros da esquerda desarmada como se fossem baratas.
— Sim, no meu núcleo social quase ninguém esconde sua admiração pelo modelo chileno, mas Álvaro Gómez não é Laureano, comandante… Por certo, e mesmo que o senhor custe a acreditar, em 1981 renunciei ao cargo mais bem pago da televisão por me negar, dia após dia, a me referir a vocês como “um bando de canalhas” no noticiário 24 Horas, dirigido por Mauricio Gómez, o filho de Álvaro e neto de Laureano.
Ospina parece se surpreender de que alguém como eu possa assumir uma posição política tão complicada, e explico que, como agora pertenço aos que não têm nada, também não tenho nada a perder. Pablo nos interrompe para lhe dizer:
— Virginia já foi demitida de outro noticiário por apoiar a criação do sindicato dos técnicos… e acaba de recusar uma oferta para um canal em Miami porque eu a convenci a ficar aqui na Colômbia, apesar de todos os nossos inimigos a deixarem sem trabalho. Como você pode ver, meu irmão, esta mulher é mais corajosa que todos nós juntos. Por isso ela é tão especial; e por isso queria que vocês se conhecessem.
Pablo se levanta e vem na minha direção. O chefe guerrilheiro se levanta para se despedir e parece que agora me olha com novos olhos; está bastante drogado e lembra ao seu anfitrião que não esqueça o favor prometido. Escobar sugere que ele vá jantar, e ficam de se ver depois da meia-noite. Antes de dizer adeus, desejo a ele muito êxito em sua luta pelos direitos dos mais fracos:
— Tente se cuidar bastante e conte comigo quando precisar de um microfone… se é que voltam a me dar um… algum dia.
— Qual a impressão que você teve do meu amigo? — me pergunta Pablo quando estamos sozinhos.
Digo a ele que Iván Marino me pareceu um homem corajoso, audaz e convencido da sua causa, mas que, de fato, aparenta não ter medo de nada.
— Aqueles que não têm medo de absolutamente nada têm uma personalidade suicida… e acho que lhe falta grandeza, Pablo. Eu não consigo imaginar Lenin pedindo prostitutas a Armand Hammer diante de uma jornalista, nem Mao Tsé-Tung, nem Fidel Castro, nem Ho Chi Minh, que falava uma dúzia de idiomas, drogados. E esse milhão é para quê?
— Para recuperar meus registros e organizá-los. E sem registros não há jeito de me extraditar — me confessa com um sorriso triunfante.
— Mas não é assim que você vai recuperar sua inocência, Pablo! A Justiça e os gringos podem reconstruí-los! Iván Marino meteu isso na sua cabeça?
— Você sabe que ninguém mete nada na minha cabeça. Essa é a única forma; não há outra. Vão demorar anos para juntá-los… E você acredita que algum voluntário vai se apresentar e testemunhar contra nós? De onde vão tirá-lo: do Suicidas Anônimos?
Ele me explica que tanto os seus processos quanto os de seus sócios estão no Palácio da Justiça e que de nada serviram as advertências que fizeram chegar à Suprema Corte: em questão de semanas, o Tribunal Constitucional iniciará seu estudo com a finalidade de atender aos requerimentos da Justiça norte-americana para a extradição de todos eles.
— E para tirar um maço de papéis de um único lugar você vai pagar a eles 1 milhão de dólares?
— Não é um maço, meu amorzinho: são 6 mil registros. Digamos que são… algumas caixinhas.
— Eu pensava que o seu passado era de uns quantos registros telefônicos, não um monte deles, pelo amor de Deus!
— Não me subestime tanto, meu amor… Você está nos braços do maior criminoso do mundo, e eu queria que você soubesse que em alguns meses vou ser um homem sem passado judicial. Não com passado, como você… — Ri e, antes que eu possa responder, me silencia com um beijo.
Ele está colocando seus tênis e me diz que vai fazer o tal favor ao seu amigo antes que ele o enlouqueça.
— Pablo, é verdade que o M-19 costuma dar golpes espetaculares, mas o Palácio da Justiça não é a embaixada dominicana… Essa invasão foi um sucesso porque a residência está localizada numa rua tranquila, com amplas vias de acesso e de saída. Mas o Palácio da Justiça dá para a praça Bolívar, que é gigantesca e a céu aberto. As duas únicas vias de saída são estreitas e vivem engarrafadas, e o Batalhão da Guarda Presidencial está bem perto. O que acontece se atiram e matam alguma pobre secretária mãe de três filhos ou um dos policiais que ficam na entrada? Esse edifício está exposto a tudo, meu amor. Entrar no palácio deve ser facílimo. Roubar os papéis, um pouco mais complicado. Mas sair dali vai ser impossível! Eu não sei como vão fazer… e, bom… a verdade é que também não quero saber…
Ele se senta na beira da cama e toma meu rosto em suas mãos. Durante um tempo que parece uma eternidade, o percorre com os dedos como na tentativa de memorizá-lo. Olha fixamente para mim, buscando em meus olhos para comprovar que na minha evidente desaprovação do golpe não está escondido o risco de alguma futura indiscrição, e me avisa:
— Nunca, nunca você deve falar com ninguém sobre o que aconteceu aqui esta noite, entendeu? Jamais conheceu Ospina nem viu Fayad sair. E se te perguntarem por mim, você não voltou a me ver. Não esqueça nem por um instante que as pessoas interrogam até a morte para obter informação sobre o paradeiro desses caras… e aquele que não sabe nada é o que mais sofre… porque o que sabe “canta” tudo nos primeiros dez minutos! Meu amigo é um estrategista hábil, e o seu valor no combate é conhecido por todos. Não se preocupe mais, porque vai ser um golpe rápido e limpo. Eles são muito profissionais nessas coisas, e até agora nunca falharam. Eu sei escolher a minha gente, e por isso também te escolhi… entre 10 milhões de mulheres! — diz beijando minha testa.
— Mas quantas… E para que você queria que eu conhecesse Iván Marino, Pablo? — pergunto.
— Porque é um líder muito importante e só alguém como ele pode me fazer esse favor. E você precisa ter outra visão da realidade, diferente dessa da alta sociedade superficial e falsa em que vive… Também tem outras coisas… mas não posso compartilhá-las com ninguém. Posso te falar das minhas, para que entenda por que não posso te ligar nem te ver com a frequência que eu gostaria, mas não posso fazer o mesmo com os segredos dos meus associados. Agora trate de descansar, que em algumas horas virão buscá-la para levar ao hotel antes que amanheça. E você verá que em poucas semanas celebraremos o sucesso da operação com o seu champanhe rosé.
Ele me envolve num abraço reconfortante e me beija várias vezes no cabelo, como fazem os homens com as mulheres que não querem perder quando sabem que elas estão tristes. Acaricia as minhas bochechas em silêncio e se levanta.
— Te ligo em alguns dias. E, pelo amor de Deus, mantenha a Beretta no seu bolso, não no cofre, porque eu tenho muitos inimigos, meu amor.
Nunca sabemos se voltaremos a nos ver, mas sempre tive o cuidado de não falar sobre isso porque seria como colocar em questão sua absoluta convicção de que em matéria de sobrevivência ele também está acima dos demais mortais. Quando abre a porta, vira por um instante para me mandar um último beijo, e eu consigo dizer:
— Pablo, o M-19 sempre nos trouxe azar, para você e para mim. Acho que vocês vão cometer uma loucura…
E mais uma vez o vejo partir, carregando no silêncio das sombras essa cruz que só eu conheço. Escuto seu assobio e, minutos depois, da minha janela o vejo se afastar entre um pequeno grupo de homens. Eu me pergunto se haverá alguém mais que conheça as dimensões do pavor à extradição que esse homem, tão rico e poderoso, mas tão impotente diante do poder legítimo, arrasta na alma. Sei que ninguém mais poderia sentir compaixão por ele e sei também que eu não poderia confessar a ninguém no mundo os temores que me absorvem. Fico ali sozinha, pensando nas causas daqueles dois amigos, o que luta pelos mais pobres e o que luta pelos mais ricos, e nas dores embutidas e nos terrores inconfessáveis que os homens e os corajosos carregam em seus corações de carne, chumbo, pedra e ouro. Fico triste e preocupada, me perguntando se é Pablo quem manipula Iván Marino com seu dinheiro, ou se é o chefe guerrilheiro que manipula o multimilionário com sua capacidade única de prestar-lhe o serviço do qual, possivelmente, Escobar vai depender pelo resto de sua vida. E o da minha com ele…
Em 29 de agosto de 1985, cerca de dez dias depois dessa noite, a última que passarei na fazenda Nápoles, abro o jornal e leio que Iván Marino Ospina foi morto em Cali em combate com o Exército. Por um lado, sinto uma dor sincera pela perda daquele lutador; por outro, um profundo alívio porque imagino que sem seu espírito temerário aquele plano absurdo foi cancelado ou, pelo menos, adiado. Como Pablo, eu também adoro Simón Bolívar, que morreu na Colômbia com o coração dilacerado pela ingratidão dos povos que libertou, e elevo uma prece ao Libertador pela alma do comandante guerrilheiro cuja vida se cruzou com a minha por poucas horas. Eu me pergunto quanto tempo o Exército levou seguindo Iván Marino e, com um arrepio, me dou conta de que o morto poderia ter sido Pablo. Penso no que ele estará sentindo com a perda de seu amigo, e sei que a partir desse instante reforçará até o limite as medidas de segurança e que certamente não vamos poder nos ver por semanas.
Em meados de setembro me surpreende com uma serenata com os meus tangos preferidos, entre eles “Ninguna” e “Rondando tu esquina”. Penso que aquela canção, que sempre adorei, agora só me faz lembrar quanto sou vigiada. No dia seguinte, Pablo liga para dizer que sente a minha falta o tempo inteiro e para me pedir que trabalhe seriamente na sinopse do filme porque, se os italianos não o produzirem, ele tem condições de fazê-lo. Em princípios de outubro me anuncia que, diante da eventualidade de que a Corte aprove sua extradição, deverá ir embora por um tempo; me dá a entender que o plano do Palácio da Justiça foi abortado e me explica que não pode me levar com ele porque não quer me colocar numa posição de risco. Com a ilusão de nos vermos tão logo seja seguro e possível, ele se despede com uma serenata de mariachis e as românticas promessas de “Si nos dejan” e “Luna de octubre”.
Coração que soube sofrer e soube gostar desafiando a dor…
Se vou embora, nunca pense, jamais, que é com a única finalidade de estar longe de ti.
Viverei com a eterna paixão que senti desde o dia em que te vi,
Desde o dia em que sonhei que serias minha.
Nas próximas semanas trato de esquecer os acontecimentos dessa cálida noite de agosto, mas a lembrança da ousadia de Iván Marino e o tom triunfal de Pablo esvoaçam de tempos em tempos em minha memória como uma borboleta de asas negras. Várias vezes, os jornalistas escutam rumores sobre ameaças dos Extraditáveis e do M-19 aos magistrados da Suprema Corte da Justiça, mas quase ninguém presta atenção porque quase todos nós que trabalhamos nos meios de comunicação estamos acostumados a escutar ameaças e convencidos de que, na Colômbia, “cão que ladra raramente morde”.
É 6 de novembro de 1985, e estou com uma companheira de trabalho no lobby do hotel Hilton para a transmissão de rádio do Reinado Nacional da Beleza, evento que ano após ano reúne em Cartagena a maioria das jornalistas colombianas, centenas de personalidades e todos os que são conhecidos no mundo da indústria cosmética e da moda. As rainhas fazem sua chegada com a comitiva de seu departamento — nome que se dá na Colômbia aos estados —, a qual inclui sempre as esposas do governador e do prefeito da capital regional. No dia anterior à “Noite de coroação” — que é feita no Centro de Convenções e seguida de um luxuoso baile black tie no Club Cartagena — chegam o governador, seus familiares e os dignitários de cada departamento, junto com muitos diretores de meios de comunicação de todo o país que querem entrevistar tantos personagens da política e aproveitar para admirar tantas mulheres bonitas. Nessa época a penetração do narcotráfico nos reinados é vox populi, e todo mundo sabe que, sem o apoio do chefe do tráfico do departamento, o governo não poderia nem sonhar em custear as despesas da comitiva da rainha, integrada por cem ou duzentas pessoas entre familiares e amigos íntimos, duas dezenas de senhoras da alta sociedade, as ex-rainhas com seus maridos e toda a burocracia regional. Também não é difícil que a própria miss esteja namorando o chefe do tráfico — ou o filho dele — e que a relação dos comandantes da polícia e da Brigada do Exército com o rei local da coca ou da maconha seja muito mais íntima, estável, duradoura e rentável que a que sustenta o empresário de êxito com a soberana da vez.
Quem tem alguma dúvida de que a mulher-objeto existe só tem que assistir a um Reinado Nacional da Beleza em Cartagena: as roupas e os enfeites de cabeça são similares aos das mulatas das escolas de samba no Carnaval do Rio de Janeiro, só que as primeiras vão dançando e cantando seminuas e felizes, enquanto as pobres rainhas arrastam capas de plumas e relampejantes caudas de sereia de cinquenta quilos numa temperatura de quarenta graus sobre saltos de doze centímetros de altura. Os desfiles em carruagens e embarcações temáticas, que duram toda a semana, deixam cansado até o mais resistente dos oficiais de Marinha que escoltam as moças.
São onze horas da manhã, faltam cinco dias para a eleição e a coroação, e o enorme lobby ferve de excitação com a presença de jornalistas do rádio, fotógrafos, cantores, atores, estilistas, ex-Senhoritas Colômbia cada vez mais belas, agora de braços dados com seus orgulhosos maridos, e os presidentes das empresas patrocinadoras do concurso. Os jurados, personalidades de outros países, são os únicos que se escondem de todo mundo para que depois ninguém possa dizer que foram manipulados pela comitiva ou comprados pelo futuro sogro da miss. As rainhas estão em seus quartos, se preparando para o primeiro desfile em roupa de banho, e os corredores dos andares reservados para elas estão infestados de homens feios uniformizados de verde e homens belos uniformizados de branco que observam com absoluto desprezo toda aquela população gay de maquiadores e cabeleireiros que, por sua vez, olham com ódio feroz para os primeiros enquanto suspiram com absoluta adoração pelos segundos.
Às 11h40 estoura uma confusão, e todas as entrevistas e transmissões de rádio se interrompem. O M-19 tomou o Palácio da Justiça e parece que pegou os magistrados da Suprema Corte como reféns! Eu e minha colega voamos para minha suíte e sentamos juntas em frente ao televisor. Num primeiro momento descarto a possibilidade de que o que estamos vendo tenha algo a ver com Pablo, porque me convenci de que ele está fora do país. A última coisa que iria passar pela cabeça da minha amiga é que eu seja amante de Pablo Escobar, ou que um dos chefes mais visados do MAS possa ter financiado uma invasão guerrilheira. E a última coisa que passaria pela minha cabeça é que minha companheira seja namorada de um dos líderes do M-19.
A praça Bolívar é uma grande extensão, com a estátua de Simón Bolívar no centro olhando para a catedral Primada, que está a leste. Em frente à igreja está a prefeitura, com o Senado do lado norte e o Palácio da Justiça no sul. E atrás do Senado está o Palácio Presidencial — a Casa de Nariño —, guardado pelo Batalhão da Guarda Presidencial.
Dois dias antes, a vigilância do Palácio da Justiça, sede da Suprema Corte e do Conselho do Estado, foi entregue a uma empresa privada, e justamente nesse dia o Tribunal Constitucional da Corte iniciara os estudos dos processos de extradição de Pablo Escobar Gaviria e Gonzalo Rodríguez Gacha, entre outros. A invasão foi executada ao “comando de Iván Marino Ospina” do M-19, por conta da “Operação Antonio Nariño pelos Direitos do Homem”. A mando dos comandantes Luis Otero e Andrés Almarales, 35 insurgentes entraram no Palácio, sete deles pela porta principal como qualquer cidadão e o resto de forma violenta em dois pequenos caminhões pela porta do subsolo, que fica num dos lados do edifício, perto de uma das estreitas e movimentadas ruas do centro de Bogotá. O grupo guerrilheiro já assassinou dois vigias e o administrador do Palácio e agora, depois de tomar como reféns mais de trezentas pessoas entre magistrados, empregados e visitantes, exige a transmissão via rádio de uma manifestação para denunciar as injustiças cometidas contra aqueles que foram acolhidos pela anistia e pela inoperância da Justiça na Colômbia, que contribui para a extradição de colombianos para serem julgados em outros países. Eles exigem, também, que os jornais publiquem seu programa, que o governo entregue à oposição espaços diários nas rádios e que a Suprema Corte atenda ao seu direito de demanda consagrado pela Constituição para obrigar o presidente da República a comparecer, ou ao seu advogado, com a finalidade de submetê-lo a julgamento por traição aos acordos de paz com os grupos desarmados: o M-19, o EPL e o Quintín Lame.
Ao meio-dia o edifício está completamente cercado pelo Exército, a quem “o Presidente Poeta” ordenou recuperar o Palácio da Justiça a qualquer preço. Às duas da tarde os tanques de guerra já entraram pelo subsolo, os helicópteros do GOES, Grupo Operativo Antiextorsão e Sequestro, descarregaram grupos de homens no terraço do prédio e um tanque cascavel entra derrubando as portas do palácio que dão para a praça para entrar no prédio seguido de outros dois levando homens do Batalhão da Guarda Presidencial e da Escola de Artilharia. Belisario Betancur, reunido com os ex-presidentes, os candidatos à presidência, congressistas e o presidente do Senado, se nega a escutar os magistrados ou os guerrilheiros. As ofertas de nações estrangeiras para mediar o embate entre o governo e o grupo armado nem sequer chegam aos ouvidos de um presidente que não perdoa o M-19 pelo rompimento do Processo de Paz que foi a base de sua campanha presidencial, nem o seu respaldo aos Extraditáveis, representado pela manifestação de Iván Marino Ospina no começo daquele ano e censurada pelos demais comandantes do M-19.
— Para cada extraditado colombiano, teremos que matar um cidadão norte-americano!
Os tanques começam a disparar, e as emissoras de rádio a transmitir a voz do magistrado Reyes Echandía, presidente da Suprema Corte de Justiça — e também do Tribunal Penal que aprovou a extradição de colombianos para os Estados Unidos alguns anos antes —, suplicando ao presidente da República que cesse o fogo porque vão acabar matando todo mundo, mas suas ligações são atendidas pelo chefe de polícia. As palavras históricas do jovem coronel Alfonso Plazas da Escola de Artilharia, ditas a um jornalista ali presente, definem o momento:
— Estamos aqui defendendo a democracia, mestre!
E na América Latina, quando um chefe de Estado dá carta branca aos militares para que defendam a democracia, eles sabem exatamente o que têm que fazer. E o que podem fazer: retaliar à vontade usando todo o ódio visceral acumulado durante lustros ou décadas de luta contrainsurgente, deixando de lado — finalmente! — todas as restrições que as leis projetadas pelos homens civilizados pretendiam lhes impor para a proteção dos cidadãos desarmados. E com mais razão quando no Palácio da Justiça colombiano, ao lado de todos os registros como listas de telefones que contêm o passado judicial de Escobar e de seus sócios, repousam outras muitas caixinhas com 1.800 processos contra o Exército e os órgãos de segurança do Estado por violações dos direitos humanos. O incêndio voraz que, de maneira inexplicável, desata no palácio às seis da tarde acaba de uma vez com o problema de uma dúzia de extraditáveis, mas, sobretudo, com os de milhares de militares.
As temperaturas infernais obrigam agora os guerrilheiros e seus reféns a retroceder para os banheiros e o quarto andar, e Andrés Almarales libera a saída das mulheres e dos feridos. No final da tarde, os telefones pelos quais o magistrado Reyes e o comandante Otero se comunicavam com o Palácio Presidencial ficam mudos. Quando Betancur decide dialogar com o presidente da Corte, já é impossível: tecnicamente, os militares deram um golpe de Estado. A programação do Reinado Nacional da Beleza não é cancelada nem adiada, com o argumento de que o espírito alegre e forte do povo colombiano não vai se deixar contagiar por uma tragédia, nem os cartagenenses vão estragar a festa com algo que está acontecendo “lá em Bogotá”.
Os combates continuam durante toda a noite, e, quando nas primeiras horas do dia seguinte o representante do presidente da República e o diretor da Cruz Vermelha chegam para negociar com os guerrilheiros, os militares não permitem que eles entrem no palácio e os colocam na histórica Casa del Florero junto com duzentos reféns liberados por Almarales ou resgatados pelos uniformizados, entre os quais está o conselheiro de Estado Jaime Betancur Cuartas, irmão do presidente da República. Cada pessoa é rigorosamente registrada e interrogada pelo diretor do B-2, inteligência militar, coronel Edilberto Sánchez Rubiano, com a ajuda de oficiais de artilharia e do F2 da polícia. Vários deles confundem inocentes com guerrilheiros, e dezenas de funcionários judiciais, incluindo magistrados e conselheiros, se salvam da detenção apenas graças às súplicas de seus companheiros de trabalho. Qualquer um que desperte a menor suspeita é colocado num caminhão militar com destino à Escola de Cavalaria de Usaquén, no Norte de Bogotá, e só os estudantes de direito, abandonados numa estrada distante depois de serem torturados, são liberados posteriormente.
Às duas horas da manhã, o mundo inteiro observa pela televisão com olhos incrédulos o momento em que um tanque cascavel, com um tiro de canhão certeiro, abre uma enorme fenda na parede do quarto andar, onde estão refugiados os últimos grupos de guerrilheiros e reféns. Em seguida, através dele, franco-atiradores da polícia localizados no telhado dos edifícios que circulam o Palácio disparam indiscriminadamente para o interior por ordem do seu diretor, o general Víctor Delgado Mallarino, enquanto o Exército joga granadas e os helicópteros sobrevoam o lugar. Apesar de suas munições estarem se esgotando, os guerrilheiros se negam a se entregar a uma comissão humanitária para um posterior julgamento cheio de garantias, e, à medida que a chuva de artilharia vai acabando com sua resistência, o fogo vai terminando de consumir o que resta do palácio. A ordem dos militares foi a de não deixar com vida ninguém daquele último grupo de sessenta pessoas, e todos, incluindo os magistrados que são testemunhas dos delitos e da carnificina, morrem. Entre estes últimos estão o presidente da Suprema Corte e os quatro que deveriam se pronunciar sobre as extradições, incluindo Manuel Gaona Cruz, defensor dos direitos humanos. O Ministério da Defesa ordena que tirem a roupa e lavem todos os corpos sem exceção, eliminando assim evidências valiosas, e proíbe o acesso do Instituto Médico Legal para fazer o levantamento dos cadáveres.
Enquanto tudo isso acontece, por ordem da ministra de Comunicações, Noemí Sanín Posada — prima- irmã de María Lía Posada, a esposa de Jorge Ochoa —, os canais de televisão colombianos transmitem só programas de futebol e notícias do Reinado Nacional da Beleza. Quase 27 horas depois de iniciada a invasão se escuta uma última explosão, e dentro do edifício tudo fica em silêncio. Às 14h30, o general Arias Cabrales avisa sobre a vitória ao ministro da Defesa, e o general Vega Uribe informa ao presidente que a invasão foi controlada e o Palácio da Justiça, recuperado.
— Que palácio? Um monte de ferros retorcidos com cem cadáveres incinerados dentro? — todos nós nos perguntamos, atônitos.
Às oito da noite, Belisario Betancur faz um pronunciamento ao país:
— Para o bem ou para o mal, o presidente da República assumiu a responsabilidade.
— Qual responsabilidade? O massacre do Poder Judiciário com um bombardeio inclemente do Exército e da polícia? — digo a mim mesma, escutando aquele comandante supremo das Forças Armadas no qual o povo colombiano, eternamente absorto com a ilusão de uma paz que não existe, acreditou ver em 1982 um futuro estadista.
De todo aquele holocausto, sobraram apenas três grandes vencedores: os militares, os Extraditáveis e os partidos tradicionais. Porque, como futuro projeto político, o M-19 e todos os demais grupos insurgentes ficaram enterrados nas cinzas do Poder Judiciário. Morreram onze magistrados, 43 civis, 33 guerrilheiros e onze membros das Forças Armadas e do DAS. As câmeras dos noticiários registraram o momento em que uma dúzia de empregados da cafeteria, seu gerente e duas guerrilheiras foram retirados pelo Exército do prédio do Palácio da Justiça. No dia seguinte, quando as famílias pediram informação sobre o paradeiro dos detidos, eles responderam que as pessoas estavam provisoriamente reclusas em guarnições militares. Ninguém dará detalhes de quais e onde, e nunca mais voltaremos a saber dessas pessoas.
Em 12 de novembro volto daquele fatídico reinado, o último que cobrirei na minha vida profissional. No dia seguinte, 13 de novembro desse annus horribilis, acontece na Colômbia a maior tragédia de todos os tempos, e a atenção dos meios de comunicação de todo mundo se esquece daquelas cem vítimas do Palácio da Justiça, em Bogotá, para se voltar para os 25 mil mortos de Armero, na rica região arrozeira e cafeeira de Tolima. Pensando na sorte inacreditável daqueles carniceiros de aluguel do Estado, digo que sobre a minha pobre pátria e sobre todos nós caiu uma maldição, e me pergunto se aquele que eu acreditava ser o mais corajoso dos homens se transformou apenas no mais covarde dos monstros. Mudo meu número de telefone e, com a alma encolhida pelo espanto, tomo a decisão de não voltar a ver Pablo Escobar nunca mais na minha vida. De um dia para o outro, deixei de amá-lo.