Quando a anã parou de respirar, aberta das costas e desfeita dos órgãos, o doutor ainda separava das tralhas do parto o corpo sujo do menino a nascer. A anã já era só uma matéria antiga, estragada e sem mais oportunidade, e o menino ainda pensava que o seu corpo prosseguia pelo dela. O doutor, a tomar o menino muito inacabado, pensou que não nasceria dali ninguém. Pensou que, por ser prematuro de tanto tempo, se desfizera a sorte. Não houvera gestação suficiente para que acudisse àquela confusão a constituição de uma alma. Era só um troco de carne. A criança era o resto de uma conta de outro corpo que, ao morrer, parecia revoltar-se na tentativa de deixar memória. Um troco do pagamento da morte como um último sonho de vida. A criança era uma moeda pequena que não compraria nada na capacidade de sobreviver. A mulher do doutor, enchendo bacias de panos ensanguentados, disse que assim nasciam nem os bichos. Mas o menino, afinal, chorou.
Tinha alma. Puseram-no em cuidados e começaram as conversas acerca do que lhe fazer. Enterraram a anã num buraco pequeno no cemitério da vila, mas não houve pedra para lhe pôr. Cobriu-se com um alto de terra onde, no primeiro dia, certamente algum homem, por resto de amor, foi deitar umas flores repartidas da jarra de outro morto com mais sorte. A partir dali, a anã apagava-se da vida do povo. As hipocrisias faziam de conta que nunca existira alguém assim, os papéis rasgaram-se, a casa ficou trancada, a estragar-se, até que se rompesse o pé de uma porta e os gatos fossem para lá mexericar e apodrecer tudo. A grande cama da anã era um lugar negro, como um pântano, onde os animais, entrando, iam dormindo como a sossegar no fantasma de alguém. Podiam nascer morcegos e cogumelos ali, podiam nascer aranhas matadoras e cirandar espectros para sempre desconhecidos e abandonados. Mas o menino tinha alma. Seguiu para o hospital, incubaram-no e sobreviveu, mesmo debaixo do pior olhado.
Quando o velho Alfredo foi falar ao doutor, ia apressado como os homens práticos, a pensar que era coisa simples de se resolver, tomar o menino e esquecerem-se todos do assunto. O velho Alfredo, que vinha de uma vila de praia e passava naqueles interiores a passeios de reformado, dizia que queria o menino, não lhe faria mal e haveria de o criar a ver o mar com muito carinho. O doutor achava que ele tinha talvez demasiada idade, estaria já cansado, e que uma criança nascia para o futuro, nunca era uma coisa apenas do presente. Dizia assim: as crianças são para depois, nunca apenas para agora. O velho Alfredo perguntava: e chama-se Camilo. O doutor respondia com outra pergunta: e que lhe dirá você quando crescer. O velho Alfredo jurava: que sou avô dele, vou dizer-lhe que sou avô dele até lhe poder explicar melhor a história e ele já se ter em pé e trabalhar sozinho. Hei-de fazer dele um homem antes que o tempo me venha morrer. Não importaria que tivesse um passado triste. O passado não corre. O doutor pensava o contrário. Pensava que o passado tinha pernas longas e corria, sim, e muito, como um obstinado a marcar a sua presença, a sua herança. O passado é uma herança de que não se pode abdicar, disse o doutor. O velho Alfredo encolhia os ombros. Não podia desfazer a história do menino, não podia suprimir a desgraça da anã ou a sua atabalhoada forma de se compensar do amor. Ninguém poderia biografar o Camilo novamente. Novo era só o presente e o que se pensasse do futuro. O doutor pediu juras e o velho Alfredo jurou. Ninguém mais quereria o menino além daquele forasteiro, sem história por ali e um pouco destituído. O doutor insistiu com as juras. Fizeram-se os papéis. Enganaram-se os papéis. Os adultos sorriram. O menino, quando amadurecido pela incubadora lenta, como um iogurte caseiro que fermentava, seria entregue. Haveria de ser colocado entre o amor de dois velhos, ela já morta e ele ainda vivo, apressado. Tão pequeno era o menino, e já chegava como da terra ao céu nas coisas dos sentimentos ou das loucuras.
O pequeno Camilo foi enrolado nuns lençóis e desapareceu entre documentos e pressas. Ia no carro do velho Alfredo, muito sossegado, a ganhar tamanho, a dormir, a comer, a sujar-se. O doutor foi quem o embalou como de encomenda. Sabia o que estava a fazer. Era muito melhor que o menino fosse para longe daqueles altos, porque eram quinze os pais negando tudo, ignorando tudo, e quinze as mulheres enganadas. Um filho não podia ter quinze pais e mendigar, ainda assim, que algum o tomasse. Na tamanha vergonha em que o povo se metera, seria um perigo para toda a ínfima felicidade que a criança crescesse com tantos inquinados, traiçoeiros, inimigos. O velho Alfredo pegava no menino e fazia-o sorrir. Mas este era ainda muito carrancudo. Não percebia nada da vida e não fazia escolha. Calava-se. Era um bebé calado. Talvez sentisse que até começar a respirar fora já caminho longo de agruras e rondas de morte, talvez não quisesse agora arriscar mais coisa nenhuma. Não vinha por graça e não encontrava graça em nada nem ninguém. Precisava de tempo. Assim chegaram à vila na praia, à casa do velho Alfredo, que se abriu num silêncio complexo.
Anos antes, a falecida Carminda ali estivera de esperanças. Dizia ao marido que teriam um filho que lhes cuidasse da velhice, que seria um filho a cuidar-lhes da alegria. Descansava muito, bojuda pela casa, lentamente, a ficar quieta e pesada, que era o seu menino a ganhar alma, diziam. Quando a Carminda sangrou e o perdeu, ficou angustiada com o que acontecia aos filhos que não se podiam ter. O velho Alfredo dizia-lhe: não te aflijas, Minda, a alminha dele há-de ficar guardada no céu para nos nascer da próxima vez.
Talvez fosse verdade que a alma feita por um bebé que não se pudera ter voltasse mais tarde, como alinhada previamente, num direito de preferência, para vir ao mundo com aqueles mesmos pais, aquele mesmo destino. E seria decisão do destino que ela não viesse tão cedo. Mas a Carminda não deixou de sofrer, porque nunca mais reincidiria na maternidade. Ficaria oca, apenas oca, sem modo. A Carminda dizia que era como um casco infértil, apenas a aparência de uma mulher, mas não mais uma mulher capaz de ser mãe. Era o resto. O resto de uma mulher.
Dizia que as mulheres se abriam pela cabeça e que o diabo lhes metia uma colher pelos ossos adentro a comer os conteúdos. Pensava que as mulheres se abriam pelas pernas e que o diabo lhes metia uma colher pelos lugares adentro a comer os conteúdos. Ela sentia que uma colher lhe comia os conteúdos e chorava numa revolta que já não lhe dava nem coragem.
Cismava com almas do outro mundo como se fosse perscrutada para ser dominada e abatida. O velho Alfredo abraçava-a muitas vezes, olhando para o sozinho da casa e tentando também pacificar-se com aquela impossibilidade de fazer família. O velho Alfredo aquecia como sabia o coração dos dois, e era certo que o coração dos dois não gelava, apenas ficava mais pequeno à medida que a tristeza lhes ganhava tudo. A Carminda contava a toda a gente que estava ali como um tronco de árvore deitado por terra. Toda a gente lhe respondia com piedade, por piedade. Ficava oca.
O Alfredo sentou-se com o menino ao colo e precaveu-se de quanto soube para tratar das suas necessidades exigentes. Ainda era minúsculo e não tinha valentia nenhuma contra as armadilhas do mundo. O velho Alfredo preparara a casa nas temperaturas, nas luzes, com a despensa repleta de fraldas e leite em pó, pó de talco, gotas para o nariz, cobertores pequeninos, chupetas, parafernálias e parafernálias. Sentado com o Camilo ao colo, pensou: Minda, o nosso menino chegou. Deixou depois a mão sobre a cabeça do menino, como se assim lhe pusesse a alma certa no corpo, e sorriu. O nosso menino chegou. Pensou que as almas nunca se perdiam, nunca se desperdiçavam, e que o lugar delas havia de ser grande, e pensou que o destino saberia como se cumprir, quanto mais não fosse por respeito. Pensou que a Carminda, suspensa à espreita pelos céus, se assegurara de fazer com que aquele fosse o filho deles, que finalmente chegara a oportunidade do filho deles. E o velho Alfredo disse: Camilo, o nosso menino. O velho Alfredo, enquanto o dizia, sublinhava a falta que lhe fazia a esposa. Ter o menino pequeno era como persegui-la pelo impossível. E a alma que coubesse à criança, achava o velho, era uma cercania da Carminda. Vinha de perto da Carminda, como uma coisa ao lado. Como se trouxesse um pouco do seu toque, do seu perfume, talvez pudesse fazer renascer o seu sorriso, uma expressão característica, um jeito específico como acontece entre familiares. Ter aquele menino era como tê-la por perto, repetia uma e outra vez no seu pensamento extasiado. Por isso, acreditou que estava tudo certo, que fazia tudo certo e que, com aquela idade, ressuscitava como podia o amor da sua vida. Pelo amor. Porque só o amor faria um milagre assim. O pequeno Camilo. E o velho Alfredo parecia abdicar das necessidades ou de reiterar a prudência. Por um perigo, o velho Alfredo podia ser só um maluco. Pensou que o menino também era o resto da Carminda, o resto da mulher que afinal se prolongava. Sendo o resto da anã, transformava-se no resto da Carminda. Uma moeda pequena que ganharia valor com o tempo. Haveria de ganhar valor e pagar tudo.
O Camilo cresceu a achar que a Carminda andava pela casa. Quando se ouvia um barulho inusitado, uma porta que rangia sozinha, um toque nas janelas, um sopro do vento que se assemelhava a um murmúrio, o pequeno prestava atenção como se esperasse a formação de uma palavra. Talvez a Carminda lhe dissesse algo. O avô assim o ensinara a saber da presença da mulher morta. Silenciavam-se muito à noite, depois das coisas do dia, as tarefas e os prazeres, e escutavam antes de adormecer. Por algum motivo, o velho Alfredo acreditava que o sossego da noite era vigiado pela mulher. Se ela estivesse longe, viria para casa naquele momento, como a fazer a sua parte, a desempenhar o seu papel, o que pressupunha também a entrada assídua nos sonhos dos dois, Alfredo e Camilo. O rapaz imaginava as fotografias a ganhar vida, mesmo as mais antigas a preto e branco. Imaginava aquela mulher que não conhecera a mexer-se e pensava que teria a voz bonita e diria coisas inteligentes. O Camilo imaginava coisas inteligentes para serem ditas pela Carminda nos seus sonhos. Quando acordava, espantava-se com tais palavras. Dizia ao avô tudo de quanto se lembrava e sentia ter aprendido. Quando um ruído estranho e súbito de novo se fazia escutar, ele sorria e dizia que era a avó. A avó estava por perto. O velho Alfredo respondia: eu e a tua avó vamos estar sempre perto de ti. O rapaz acreditou que a companhia podia vir de dois mundos. A natureza da sua cabeça via isso como verdadeiro e tornar-se-ia muito difícil, no futuro, deixar de o ver. Como se tornaria complicado pensar diferente daquilo que o avô lhe ensinara.
O velho Alfredo percebia como o rapaz crescia esperto, cheio de curiosidades e a fazer perguntas. Não foi estranho que perguntasse muito sobre a sua mãe. Como era e o que fazia. O velho Alfredo não conhecera a anã. Explicou ao Camilo que soubera de um bebé nascido sem ninguém e que fora buscá-lo como se lhe pertencesse, caído do céu. Uma conversa em café de estrada, num passeio, daquelas que se ouvem como coisa nenhuma, como se apenas o vento silvasse lá fora. Alguém dizia: que frio passa. Lembrava-se disso. De estar muito frio quando o rapaz nasceu, e de falarem as pessoas mais sobre o tempo do que sobre o filho de quinze pais que ninguém fora ver. Havia lobos por toda a parte. O Camilo frustrava-se um pouco pela falta de pormenores nas histórias do avô, mas fantasiava a partir do tom da sua voz e a partir do carregado do seu semblante, como se o vigiasse de perto, à espera que lhe desse uma pista maior para um segredo maior que haveria de ser o seu passado. O modo como lhe respondia o velho homem estava carregado de intenções e o que mais lhe importava dizer era um certo esplendor dos sentimentos. O Camilo, só por isso, sentia que tudo valera a pena e sentia que, dentro de alguma tristeza, era feliz.
Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro. O Camilo ria-se. Perguntava o que era o colesterol, e o velho Alfredo dizia-lhe ser uma coisa de adulto que o esperaria se não lesse livros e ficasse burro. Por causa disso, quando lia, o pequeno Camilo sentia-se a tomar conta do corpo, como a limpar-se de coisas abstractas que o poderiam abater muito concretamente. Quando percebeu o jogo, o Camilo disse ao avô que havia de se notar na casa, a quem não lesse livros caía-lhe o tecto em cima de podre. O velho Alfredo riu-se muito e respondeu: um bom livro, tem de ser um bom livro. Um bom livro em favor de um corpo sem problemas de colesterol e de uma casa com o tecto seguro. Parecia uma ideia com muita justiça.
A urgência de fazer do Camilo um rapaz esperto era demasiada. Velho e sempre mais velho, o Alfredo partia um pouco a cada dia. Esperando por tarefa, não por natureza. Esperava como podia. Executava um plano. Pensava secretamente que os filhos podiam ser só uma vingança contra o peremptório da morte. Como uma revolta contra o apagamento absoluto. Como se fosse de acreditar que através das crianças que se criavam se podia perdurar ainda. Mas as vinganças contra a morte, como contra o tempo, pareciam todas utopias ingénuas. O velho Alfredo contaminava o menino de memórias sobre a Carminda e sobre si. Achava que o menino era a herança. O menino era o que ficava ao mundo como continuidade de algo que não se pudera fazer antes nem de outra maneira. Chegara a tempo, ainda que urgente e perigoso. Os ruídos da casa respondiam, o velho Alfredo dizia: a avó está contente, ela está contente. O Camilo respondia com a pergunta: e a minha mãe não fala. O velho Alfredo instruía o rapaz por um sentido muito egoísta do amor. Instruía o rapaz igual a um mensageiro que partiria depois, sozinho, à mercê da sorte, a espalhar notícia de que um dia, numa vila de praia, vivera um casal, Carminda e Alfredo, que se amou muito. O velho Alfredo, que talvez tenha sido apenas um tolo, queria que o rapaz tivesse a boca cheia dos seus nomes e os perpetuasse. Porque havia uma tristeza insuportável em permitir que um amor assim se apagasse sem testemunho. Como se fosse inútil.
Numa noite, em cima do silêncio, soou um silvo mais longo e persistente. Era um silvo cortando pelo espaço da casa quase como um caminho a ser traçado, um fio desenrolado até ao ouvido do pequeno rapaz. Já moço. Ficou atento, invariavelmente à espera de que se tornasse uma manifestação mais inteligível à sua vontade de se comunicar com a presença aceite da Carminda. Não se dizia nada no silvo, senão o monocórdico sopro, a nota quase afinada de flauta que não cessava. O Camilo levantou-se como tomando o fio na mão e seguiu no escuro o pequeno labirinto da casa. O silvo entrava pelo entreaberto da janela que o velho Alfredo teria deixado assim para respirar. Encostado à parede, como sentado a ver o escuro, já não diria mais nada. Não parecia aflito, não tombara. Segurava-se dignamente sentado, como se tivesse deixado a alma a puxar ainda os cordéis do corpo feito marioneta. Talvez a janela estivesse aberta porque a alma solta já não lhe coubesse numa casa tão pequena. Talvez não lhe coubesse o amor, agora que fora do corpo se estendia pela infinitude dos sentimentos à procura da mulher. O Camilo, escutando sempre o silvo, noite inteira, acreditou que a sua intensidade era a junção da voz do velho Alfredo à da Carminda. Julgou que lhe diziam que estavam por ali. O rapaz, que ficara de boca cheia com os seus nomes e os dizia para si mesmo, jurando a memória, deixou mesmamente a janela entreaberta. Pensou que, por uma noite, estariam bem assim as coisas, assim como o avô as preparara. Aconchegou-se com duas mantas no velho sofá e não dormiu. Partilhou como pôde o momento da morte com o avô, o seu único familiar, a única pessoa que efectivamente lhe pertencera até então. No escuro, apenas com um impreciso luar criando sombras e definindo os contornos dos objectos maiores, o Camilo percebeu que a casa cedia. Talvez o avô não tivesse lido um bom romance nos últimos anos, talvez tivesse errado nos livros, talvez não tivesse lido nada, preocupado que estava com cuidar do neto e motivá-lo. O Camilo estendeu a mão à pequena mesa ao pé do sofá e agarrou no livro que ali estava. No escuro seria impossível reconhecer as palavras. Lembrou-se, no entanto, de o haver pousado ali. Lembrou-se do título, do autor, lembrou-se do que lhe dissera o avô: este cura-te um cancro. Gostaria de acreditar que pudesse curar a morte. O livro, mesmo no escuro e mesmo assim fechado, fez-lhe companhia.
Quando levaram o corpo do avô, olharam desconfiados para o rapaz. Era certo que não devia ficar ali sozinho, alguma coisa tinha de ser feita mas, com catorze anos e de olhar profundo, o Camilo tinha cara de quem se sabia cuidar. Faltavam menos de quatro anos para ser maior e a vizinhança reconhecia que era miúdo com juízo, sempre a caminho da escola e em redor do avô. Assim fiadas, cada pessoa se pôs à espera de que outra decidisse e, com isso, ninguém decidiu nada. O velho Alfredo foi para onde estava a Carminda, e o Camilo fechou a janela entreaberta, levou os cobertores para o quarto, viu como era verdade que o tecto apodrecia, e calou-se. Calaram-se todos.
Leu o livro. Leu obstinadamente o livro como se esperasse ver sair do livro o corpo inteiro do seu avô. Além de esperar, nada aconteceu.
Por todos pensarem que alguém pensara no assunto, o pequeno Camilo ficou vinte dias quieto, encostado pelo chão, no silêncio da casa à espera de silvos e madeiras rangendo. Parecia-lhe, no entanto, que o avô e a avó, por se juntarem ao fim de tantos anos, se distraíam e nenhum ruído se adensava ou ganhava dignidade alguma. Apenas se ouviam ruídos estúpidos de uma casa velha como os das outras casas velhas com ruídos igualmente estúpidos. Uma casa que parecia vazia mesmo com ele lá dentro. Uma casa, enfim, estúpida.
O Camilo pensou na escola, pensou no futuro e no que sabia sobre a saúde. Pensou que talvez o seu avô fosse só um tolo e por ser tolo talvez o tivesse enganado. Estava sozinho, encarava os restantes livros já sem os ler e tinha quase comida nenhuma. Enquanto o avô não lhe falasse inequivocamente, o Camilo não faria mais nada. O avô não falou. O Camilo nada fez. Por instantes, queria odiar o avô como a vingar-se de não saber o que fazer. Depois, recuava nos pensamentos. Sentia-se uma má pessoa e não o suportaria. Fora ensinado acerca da importância de se sentir grato. Pedia perdão com a voz interior e esperava mais ainda.
Subitamente, uma vizinha irrompeu pela casa adentro dizendo que sabia que haviam abandonado ali o rapaz. E ela era quem sabia, aos gritos de arreliada, que nunca o vira ser levado por ninguém. Estava indignada porque tinha filhos e pensava que se não fossem mandados ficavam de mandriões sem mexer um dedo. O Camilo, já magro e confuso, estava de mandrião, como seria de esperar. Dizia ela: há que trabalhar, que nessa idade já muito boa gente levanta a vida. Empurrou o rapaz, pô-lo a banho e disse-lhe: vais a minha casa comer de jeito e começas a perguntar às pessoas se têm trabalho. O Camilo, magro de poucas conservas e migalhas de bolacha, achava que a casa ia cair. Recusava-se a ler depois que o último livro não lhe curara a morte do avô. Entristeceu de repente, percebendo que morreria também sem mais nada, como outra pessoa qualquer. A vizinha pôs-lhe o prato diante e exclamou: parece impossível, deixarem uma criança destas ali abandonada.
O Camilo era como outra pessoa qualquer.
O sol estava alto e era como um patrão.
Foi pelas ruas sem perguntar nada a ninguém. Via as caras de toda a gente, o modo desconfiado como reagiam ao negrume do seu rosto. Não lhe era possível sequer o entusiasmo para uma sedução essencial. O Camilo passava, via e era visto, voltava. Trancava-se em casa a pensar que o esforço fora já bastante. O tecto caía. A infelicidade tornava-se insuportável. Apetecia-lhe odiar tudo, porque o medo fazia ódio.