Uma vizinha dizia à Matilde: se deus quis que o fizesse, também há-de querer que o desfaça, se assim tiver de ser. Mate-o. É um mando de deus. A Maltide, atormentada, nem respondia. A outra perguntava: e não lhe dá nojo, a lavar-lhe as roupas e as louças. Ainda apanha doenças com isso de mexer nas porcarias do corpo dele. A Matilde dizia que sim, que lhe dava nojo, mas também achava que ainda era só uma delicadeza, não era sexual. Talvez nunca viesse a ser sexual. Mate-o, como se faz aos escaravelhos que nos assustam. São um nojo quando se põem aí a voar na primavera.
A vizinha insistia: o seu rapaz é maricas para a vida inteira, que ele abana-se como os galhos e tem mais flor do que a amendoeira. Se fosse meu filho, pela vergonha, eu rachava-o a meio e metia-o no buraco dos cães com sarna. A Matilde, com o coração pequeno e a cabeça confusa a encher-se de ódio, achava que se o filho lhe morresse a vida estaria normal, porque ser mãe fora uma ilusão. Parecia uma menina nos sentimentos, pensava ela do filho. Parecia uma menina quando dizia algumas palavras, parecia que, distraindo-se, gesticulava demasiado. A Matilde não conseguia entender porque lhe aconteceria um horror assim. A vizinha, mais fácil a dizer as coisas, contava-lhe que pelas redondezas os poucos casos daqueles tinham sido tratados em modos. Uns racharam os filhos ao meio, outros mandaram-nos embora espancados e sem ordens para voltar, e um homem até subiu pelo cu acima do filho uma vara grossa e pô-lo ao dependuro para todos verem. Era uma bandeira. E quem via tinha-lhe tanto horror quanto desprezo. Depois ainda o queimaram, e calaram-se todos para disfarçar e não dar contas à polícia. Os polícias nem queriam saber. Se um maricas desaparecesse, eles faziam umas perguntas tolas e iam-se embora sem resistência. Era tão habitual que o povo tivesse juízo para essas decisões antigas, não importava que a lei quisesse outra coisa, porque todas as pessoas sabiam o que estava certo desde há muitos mil anos.
A Matilde, talvez por criar viúva o seu único filho, enojava-se do mesmo jeito mas agia diferente. Não teria coragem para desfazer um filho, o único filho, que tanto trabalho e sonho lhe dera. Se, pelo menos, o pudesse mandar embora, mesmo que não tivesse mais familiares, nem muito para onde ir. Ficariam sozinhos um do outro. A Matilde queria acreditar que, mandado embora, o filho poderia resolver o problema, como se longe dali ele não florisse, não gesticulasse, não subisse um tom nas sílabas mais bonitas das palavras quando falava a rir, talvez longe dali não fosse maricas. Talvez porque ela também tivesse culpa. Era culpada duas vezes, uma de o ter feito assim, outra de não encontrar solução e competir-lhe tanto encontrar solução. Respondia à vizinha que o Antonino era só um miúdo, e nem gostaria de rapazes porque ainda sequer tinha idade para gostar de raparigas. Era só um crianço mais enfezado nos modos e com poucas conversas.
Como não tinha pai, não tinha valentia.
Pensava assim a Matilde. Um rapaz sem pai cresce talvez mais assustado, porque uma mulher vale menos nos sustos todos da vida.
O susto de um homem importa mais que mil sustos de uma mulher.
A vizinha não reconfortava a Matilde em nada. Tinha uma sachola, se fosse com ela, arrancava a cabeça ao miúdo, metia-o num buraco grande no fundo do campo e depois de dois dias ia fazer de conta que alguém o levara para o Brasil. Dizia: andam aí a chegar brasileiros por todo o lado, devem fartar-se de roubar gente para trabalhar de graça como escravos. Se estiverem escravizados, também não pensam em mais nada. E se fizerem asneira, levam no lombo. Se forem uns porcos, abatem-nos e não os choram. A Matilde suspirava, lavava as roupas e as louças do Antonino e, de cada vez que uma faca lhe passava pelas mãos, pensava em mandá-lo embora antes que fosse tarde de mais. Um rapaz sem pai não tinha valentia. Que valesse ao menos para não envergonhar ninguém. Era uma coisa tão pouca de se fazer. Tão pouco de se esperar e pedir. Guardava as facas a tremer. Em cada faca nascia uma boca e todas as bocas diziam que o matasse. A Matilde, sozinha por casa, ouvia sempre o mesmo.
Contudo, como no ditado popular, quem não tem filhos cada dia mata cem, pensava a Matilde. Ter o filho feito, ainda que em grande nojo ali levantado, era muito outra coisa. Não era uma retórica. Dizer era muito fácil. Fazer ficava reservado para heróis e gente com grandes sortes.
A vizinha tinha-lhe tanta pena quanto desprezo. Era para ali uma mulher a envelhecer de pouca vergonha, sem tomar uma atitude. E a Matilde dizia: ainda vou às louças, dona Lina, que eu não tenho como parar. Entrava e pensava que o Antonino, a crescer, era como uma borboleta, a vir de larva para colorido, sem ter como disfarçar-se, desgraçando tudo. Um bichinho das flores.
Punha-o a escavar e a levar os pesos maiores. Deitava já corpo de homem, era obrigatório que se fizesse homem tanto quanto pudesse, a ver se lhe caíam ou tolhiam as asas, o pintalgado e os perfumes. A Matilde esperava que ele mudasse tanto quanto fosse possível. E podia também carregar com as coisas do campo a mando dela, que era o mando de deus de que se sentia capaz. Como havia ela de pôr-se no lugar de deus e decidir como ele, se era uma mulher simples da lavoura, só com terras e ervas e mais uns bichos lorpas à volta. Estava sempre angustiada e geria arduamente a sua lavra, era como era. Pensava que talvez o trabalho pesado se lhe metesse pelo corpo adentro e o tornasse viril. Eram mais viris os trabalhadores robustos, e ele perderia talvez o amaricado se bulhasse na terra com a força já de grande fúria. Havia que enfurecer-se. Fazer-se de bravo. Ao menos perderia as razões que tivesse para se rir. Não se riria com o agudo esquisito da voz como saindo do lugar.
Quando o rapaz chegou aos dezassete anos, vieram dizer à Matilde que o tinham espancado perto do riacho. Ela que fosse vê-lo depressa porque o miúdo estava caído no chão a gemer de dores. E o que foi, perguntava ela. Responderam-lhe: estava de calças arreadas a ver os homens que tomavam banho. O seu filho, dona Matilde, é aleijado por trás.
Quando a Matilde chegou a ele, algumas pessoas cercavam-no como a um bicho que se vê agonizar até à morte. Ela percebeu que o cercavam curiosas, a ver se de um rapaz assim exalava uma alma ou uma sombra negra que o bafo do diabo sorvesse. Abutres, pensou ela, por estarem à espera que um cachopo de nada morra. Ela ainda queria convencer-se de que ele seria um cachopo de nada e que aquilo, se ele só pensava em asneiras, era porque lhe faltava crescer para homem. Enxotou-os abrindo caminho até ao Antonino e tomou-o sozinha nos braços. Não falou nem gritou com ninguém. Levava o corpo do filho como quem limpava por obrigação o vomitado do chão. Limpou o chão ao levar consigo o rapaz, tomando as culpas, uma vez mais, por aquela vergonha. Por vergonha, ou réstia de respeito, ninguém barafustou. Os homens que se banhavam estavam calados, tinham corpo para o dobro do Antonino e acalmaram quando se sentiram matar alguém.
O Antonino deitou-se à cama, porque a Matilde não teve coragem de o levar ao hospital, e comeu sopa e cuspiu sangue. A mãe, em protesto, fechou-lhe o quarto como a um cão e fê-lo sentir o asco que a acometia entregando-lhe as refeições à distância, não dizendo mais nada. Pousava a bandeja com o prato e a água na camilha e saía. Não olhava para ele. Escusava-se a olhar. Tinha-lhe deixado pomadas e comprimidos. Quando era preciso algo mais, ele batia à porta e ela permitia que fosse à casa de banho. Acontecia ter de esperar, enquanto ela tratava dos campos e dos animais. Depois, ela recolhia as toalhas com luvas e imergia-as em água e lixívia por horas. Ia metê-las ao tanque com muito sabão para se esquecerem de ter encostado na pele do Antonino. De todo o modo, ela nunca as usaria. Seriam dele, para ele, enquanto sobrevivesse.
Numa noite, ele tombou nas higienes. Ela ouviu como bateu com o joelho na tijoleira e abafou um grito. Pôs-se atrás da porta para saber se pediria ajuda. Como não o fez, a Matilde voltou ao seu lugar. Nas higienes, ela pensava que o Antonino se adoçava como as raparigas. Devia usar-se da esponja para ensaboar a pele à espera de ver a pele tornar-se delicada, rosada, como a das actrizes de cinema. Era porco. Ele recolheu-se ao quarto e ela voltou uns segundos mais tarde, trancou-lhe a porta e deitou-se. De porta trancada, achava ela, o Antonino encolhia-se ao seu juízo. Era como fustigá-lo na auto-estima, para que aprendesse os escrúpulos das boas pessoas. Como se lhe aprisionasse o desejo no tamanho de um quarto. Até que diminuísse ao tamanho da cama. Até que diminuísse ao tamanho do peito. Até que diminuísse ao tamanho da vergonha. Até que desaparecesse. Nenhum desejo mais. Mais nada.
Nenhuma borboleta.
Procurando-se, o Antonino sentara-se na cama a meio da noite a transpirar. Era-lhe incompreensível o que acabara de fazer. Estava estupefacto com o seu gesto, assustado, os olhos abertos numa vergonha sozinha, íntima, uma vergonha de si mesmo. Metera o dedo. Como se o dedo fosse algo que não podia ser, autonomizando-se, servindo de amor. Um dedo a fazer do amor de outrem. A servir de amor. Cauteloso, carinhoso, lascivo. Pensou que estava louco e zangou-se consigo mesmo repugnado e recusando aceitar ser assim, repetir tal vergonha. Uma bágoa rosto abaixo laminou-lhe a pele a ferver. A febre parou-lhe o pensamento. A vergonha parou-lhe o pensamento. O que sabia do amor parou-lhe o pensamento.
Não sabia nada sobre o amor.
Além de ter medo de ficar sozinho, não sabia rigorosamente nada sobre o amor.
Lembrava-se do corpo dos homens e achava que talvez fosse necessário que o seu próprio corpo reagisse honestamente a tal memória. Pensara, por um instante, que havia algo dentro de si que o esperava, como alguém dentro de si que o esperava. Estava, achou, errado. Não queria ter nada adiado. Queria ser o que podia, aquilo que lhe era permitido. O resto que estivesse dentro de si precisava de morrer. Pensou nos homens e convenceu-se de que eram animais perigosos que nunca poderia, ou deveria, amar.
No dia seguinte, lavando-se, recusou o amor como quem escolhia a sanidade. Haveria de, renunciando à sua própria natureza, ser um herói de si mesmo, um herói da sua mãe. Preferia ser sempre um herói infeliz.
Disse à Matilde que nunca mais lhe daria um desgosto. Ela tomou uma faca, viu-a abrir a boca, ouviu-a dizer que o matasse e aproximou-se do rapaz, que chorou. A Matilde pousou a faca no pescoço do filho. O frio da lâmina parecia medir-lhe a febre que voltava.
Quando, em passagem, viu os homens a banharem-se, o Antonino estremeceu de um frenesi inaudito. Não procuraria testar-se nunca e sabia que o seu corpo lhe propunha as maiores porcarias, por isso, voluntariamente, nunca se acossaria procurando confusões. Foi o acaso que o fez passar por ali onde os trabalhadores decidiram fazer gazeta e mergulhar no riacho a berrarem uns com os outros, nus. Julgou ficar apenas quieto, mais até para não ser visto por ali do que para desfrutar de algum proveito. Queria não ser apanhado, porque o acaso seria mal interpretado e a prudência recomendava o esconderijo. Depois, na distracção, a certa confiança de estar bem agachado entre os arbustos permitiu-lhe ver como os corpos dos trabalhadores eram moldados à força de muita virilidade. Eram homens como árvores maciças a abrir as águas em jogos brutos, espaventando tudo com os braços e mergulhando vezes sem conta de rabo para o ar. Ficavam depois boiando como impossivelmente leves, ágeis, inertes de só beleza na superfície da água. O Antonino pôde ver como os homens eram belos na sua rudeza, como pareciam fortes para tudo, com braços largos para abraços esmagadores. E o amor parecia ser tão esmagador e criado pela robustez.
Ao fim de alguns minutos, o Antonino já não tolerava a reacção do seu corpo. Precisava de sair dali. Ir-se embora, fechar os olhos, tirar dos olhos aquela solicitação. Não foi verdade que tivesse baixado as calças. Não estava a tocar-se. Quando um dos homens o apanhou, ele estava apenas agachado a dar uns passos para longe, a ver como sair dali do mesmo discreto modo como chegara. Mas parecia um bandido a roubar sorrateiramente quando deu uns passos em jeito de saída. Que diabo haveria de ter roubado, se levava os bolsos vazios. Parecia um bandido e, por azar, era o moço maricas, filho da Matilde, de que já muita gente começava a falar. O homem deitou-lhe a mão e esticou-o à sua frente. Entre as pernas do rapaz preponderava o seu pensamento. O homem apertou-o assim mesmo. A mão entre as pernas do rapaz como se fosse de espremer-lhe o pénis até o fazer rebentar. O Antonino gritou de dor. Quando os outros se aperceberam do rapaz maricas tombado de joelhos, vieram da água como estavam e não se cobriram. Expuseram-se como machos normais, com o direito absoluto, retirando ao rapaz qualquer desculpa ou dignidade. O primeiro homem jurou que ele estava de calças arreadas a tocar-se. Dizia: estava a comer-se de nós, a pensar em nós. Passou por todos a sensação estranha de o Antonino lhes tocar sexualmente. Num instante, todos sentiram na imaginação o que seria um cachopo daqueles sobre os seus corpos. Quando o primeiro o esbofeteou, já um segundo lhe levava o pé ao peito. Pela raiva, tanto lhe pediam explicações como o esganavam. E ele foi ficando pelo chão, reagindo menos, rastejando, julgando que à beleza dos homens correspondia a fúria, a bestial crueldade. Os homens, como lei da natureza, eram todos iguais e feios. Para serem diferentes e bonitas estavam as mulheres. O Antonino queria ter sido todo ao contrário do que era. Ao sentir as pancadas, acreditava morrer, e alma adentro decidiu que, se renascesse, queria gostar das mulheres para nunca mais ser o mesmo, nunca mais ser assim. Odiava-se.
Quem avisou a Matilde não o fez por piedade, fê-lo por curiosidade. Era para ver se ficaria mais ou menos aflita, como para saber se era mais ou menos culpada de o filho ser um nojo daqueles. Disseram-lhe à queima-roupa que o fosse buscar porque o haviam deitado ao chão depois de o apanharem a ver os homens. A Matilde sentiu o filho morto. Angustiada e a enlutar-se, pôs-se a caminho. Quem a via não sabia muito bem o que pensar. Alguns quiseram desejar que o rapaz morresse deveras para que se acabasse com aquele problema ali pela beira. Seria uma vontade de deus. Outros achavam que esses rapazes eram feitos para muita zaragata e que o Antonino haveria de sobreviver, porque a coberto do diabo ninguém morria de fácil. A passo largo, a Maltide ia revolta por dentro, como água do mar infectada, ondulando descontrolada dos pés à cabeça.
A Matilde, depois, pousou no vazio da mesa a faca grande, que seguia sempre gritando para que o matasse. Não fez mais nada. De faca na mão, levantada ao pescoço do filho, havia sido apenas um modo de escutar a promessa que ele lhe fizera, essa promessa de nunca mais lhe dar um desgosto. A Matilde já não acreditou. Estava como morta e disposta a matar. Era só isso. Uma mulher morta disposta a matar também. Estava para lá da desilusão. Era cada vez menos a mãe dele. Sentia-se condenada e não abençoada. A maternidade abençoava. Aquilo não. O rapaz limpou-se às mangas, tentou talvez abraçá-la, mas ela fugiu-lhe, e ele pensou que estava obrigado a conquistar tudo de novo. Tudo o que seria seu por natureza, e que a natureza se esforçara por lhe levar, ele teria de reconquistar. Era como encontrar modo de regressar a uma mãe. Voltar ao interior que tudo imagina e renascer perdoado, um filho perfeito. Os filhos perdoados são outra vez perfeitos. Ficou com essa esperança.