Estavam as coisas do Camilo dispostas pela casa como se tivessem sido feitas pela casa para estarem ali. Estavam as coisas do Camilo dispostas pelo Crisóstomo como se as coisas do Camilo, e também o Camilo, tivessem sido criação do pescador. Reparava nisso, estupefacto de calma, apaziguado com as sortes, a pensar que a tristeza tinha um caminho e que, a guiar pela vontade, ainda seria possível que descobrisse a felicidade. Estava feliz.
O rapaz pequeno crescia semeado com boa esperança. Certamente seria terreno farto aquele lugar, a nutrir a aprendizagem necessária, o afecto necessário. Assim o pensou o Crisóstomo quando espiou o Camilo na sua quotidiana tarefa de pousar os livros, pegar nos cadernos, preparar-se para todas as matemáticas da escola. Perguntou-lhe: que é esse ar desconfiado. O rapaz respondeu: sono. Um sono desconfiado, perguntou outra vez o pescador. Ando cá a pensar, disse o Camilo. Em quê. Nas pessoas. No que dizem. No que dizem e no que é verdade. Por vezes é diferente. Pode não ser mentira, mas apenas uma maneira diferente de acreditar.
Tão cedo pela manhã, a casa azul da praia já abria de sol. Como fosse uma nuvem por onde o sol passasse mais e mais, a chegar à areia, à água do mar. A casa da praia coava o sol.
O velho Alfredo explicara ao pequeno Camilo que os maricas eram uma degeneração das pessoas. Eram pessoas que se estragavam e não prestavam mais. Faziam também parte dos que escolhiam ser uma porcaria ao invés de quererem ser normais, como as prostitutas, os drogados, os surfistas e os cantores. O pequeno Camilo, que teria uns seis anos e muita convicção de que o avô lhe contava a verdade de todas as coisas, perguntou outra vez e o velho Alfredo assim lho repetiu: os maricas, de tanto insistirem, ainda hão-de ensinar a humanidade a nascer pelo cu. Era um conceito difícil e malcriado para uma criança, mas significava um pouco o que diz o ditado da água mole na pedra dura, que de tanto investir há-de furar. Os maricas, de tanto o quererem, hão-de fazer do cu um lugar todo ao contrário. Ao Camilo importava saber se as pessoas que daí nasciam seriam normais. O velho Alfredo, a aterrorizar o pequeno, dizia-lhe que se calhar nasciam sem cabeça ou com olhos de pepino ou teriam braços moles sem ossos e buracos na pele. Hão-de ser uns bichos atropelados, arregalados de sangue e sem alma nenhuma, dizia. A criança, aflita até, não entendia porque haveria de alguém querer fazer nascer uma pessoa pelo lado sujo do corpo, e não entendia como sabendo disso podiam os maricas optar por o seguirem sendo. O velho Alfredo sempre o aconselhava a não falar com estranhos e a desviar-se de todas as pessoas esquisitas. Depois, assegurou-lhe ir à escola para saber se o professor de quem falavam era um perigo desses grandes, como se o professor, por eventualmente ser maricas, só por isso, já fosse um perigo de atentado à educação séria dos alunos tão vulneráveis. Talvez o professor parisse um bicho que degolasse os miúdos. Talvez o professor falasse em lâminas e o que dissesse cortasse os miúdos, a talhá-los como nacos de carne. Ou talvez, com as mesmas lâminas, os lapidasse como aos diamantes. Não, como os diamantes não, pensavam todos. Um professor assim nunca faria diamantes.
O velho Alfredo, com tanto amor pelos livros e pelo exercício mental que curaria o colesterol e muito tecto de casa com vontade de cair, ensinou ao neto que o amor era todo da família ou dos homens com as mulheres. Como se os maricas não fossem familiares, não fossem nascidos de pai e mãe, não pertencessem a ninguém. Como se fossem talvez encontrados pelo caminho à sorte, igual a algo que se levava para casa a ver o que tinha dentro. O Camilo assim o aprendeu. Pensava que ia crescer no sentido mais clássico do presépio. Uma senhora, um senhor, um menino e os animais a verem contentes. Depois, os vizinhos em visita com oferendas. Um presépio limpinho. O rapaz pequeno perguntou: avô, posso ir brincar com o cão. Achava que, se alguém lhe quisesse fazer mal, uma mandíbula amiga haveria de o ter sempre em segurança.
Subitamente, a Isaura entrou com o Antonino na casa do Crisóstomo e sentaram-se no sofá. A Isaura, o Antonino e o Crisóstomo, como um friso de gente com as mãos nos joelhos, encolhidos de tímidos, calados. Chegaram o boneco do sorriso de botões vermelhos para um canto, espremendo-o. O Camilo viu a Isaura, a magra mulher quase namorada do pai, viu o Antonino, um homem maricas que inclinava um pouco o tronco para a direita num sinal inusitado de delicadeza, e viu o Crisóstomo, o pescador educado que, pelo coração, se pôs logo a sofrer. O Camilo pensou que era preciso tirar do corrido do sofá o homem maricas. A Isaura disse que era o marido dela. Afinal tinha um marido, ou não sabia muito bem se o tinha, mas ele rondara-a, ela tinha dito que sim, e ele fugira. E agora estava ali erguido de prova e ainda não derretera a aliança.
A Isaura, que tinha o nome mais bonito do mundo, não sabia explicar nada.
O Camilo achava que os maricas de verdade falavam aos ais. Ai diga-me, ai que querida, ai meu deus, ai a chuva que cai, ai a minha vida, ai que susto, pelas alminhas. O Antonino não falava assim, mas entortava-se um bocado, deitava flor. Um homem que deita flor, como comentava o povo. Já havia deixado de rir há muito. Se não dizia ais, talvez fosse uma outra espécie de maricas, menos maricas, um maricas de se mexer e não de falar, talvez fosse menos hediondo, menos perigoso, talvez nada perigoso e até só um tolo, imprestável, assim estragado até para fazer mal, como se tivesse o esperma seco e nunca pudesse sonhar com engravidar alguém pelo cu. Podia ser um maricas amigo. Não sabia, o Camilo, se podiam existir maricas amigos ou se teriam de ser todos violentos e desprezíveis. Os surfistas e os cantores, descobria ele todos os dias, não se lhes podiam comparar. Até os cães selvagens se tornavam mansos e bons para as pessoas. Até as raposas, com muitos anos de treino, se tornavam uns sossegados cães de casa. Na escola, alguém contava que tinha uma aranha estrangeira que podia matar pessoas. Com o tempo, a aranha estrangeira habituara-se à companhia e deixara de ferrar. Não oferecia mais um perigo. Estava consolada da vida. Em paz com a sorte. Os bichos também acabam por reconhecer a sorte. Depois o Camilo pensou melhor, aquele era mais ou menos marido da quase namorada do seu pai. Não podia ser gente correcta. Aparecera na altura errada e era certo, nos olhos bem vistos, que o Crisóstomo se pusera logo a sofrer. Estava tudo errado. O Camilo disse: não há chá. Puxou o boneco do sofá e fechou a cara. Era o modo que tinha de dizer que não devia haver conversa.
Até que a humanidade aprenda a nascer pelo cu. O Camilo pensou: até que a humanidade aprenda a nascer pelo cu. Sentia-se zangado. Em perigo.
A Isaura estava demasiado confusa. Trouxera o Antonino para que o Crisóstomo tivesse uma boa ideia para resolver o problema. O Crisóstomo perguntou: é filho da dona Matilde. Conheço-a. Era vizinha da minha tia. Depois a minha tia morreu e nunca mais fui lá para cima. A sua mãe está bem. O Antonino disse que sim. A mãe estava bem. Achava que estava bem. O Crisóstomo pensou: pobre homem.
O Antonino confessou ter um certo amor pela Isaura. E também o Crisóstomo pensou no outro como um náufrago que segurava o corpo de uma mulher como uma tábua boiando em alto-mar. O Camilo pensou que havia gente a exercer o amor como um crime. Gente que gostava até por maldade. O homem maricas amaldiçoava a Isaura com aquele amor, que mais não seria do que o desespero a obrigá-lo a ter alguém. O Antonino dizia: quem vê assim o mar parece que navega, parece que vai embora.
A janela iluminava tudo, sempre generosa. Olhavam a praia porque não sabiam o que dizer. Mas a casa de madeira não partia. Não saía do lugar, e era aos homens que competia mexer. Decidir como prosseguir.
Talvez a Isaura tivesse pena por estar ela própria ao pé de amar. O Crisóstomo nunca quereria mal algum ao Antonino, sabia dele agora, magoava-se, mas recebia a vida como ela era e fazia o que podia. Não pensava em mais nada. Os maricas, acreditava ele, estavam doentes de algo incurável. O importante era que não passassem dos seus limites. O Camilo disse: se está casada, já não pode ser namorada do meu pai. O Camilo pensou que, se estava casada, a Isaura já não namorava, já não engordava, dormiria com um lixo de gente e morreria em muito pouco tempo como uma porcaria só para deitar fora. A Isaura encolheu os poucos ombros.
No friso do sofá nenhum dos três se mexeu. Não se tocavam e não se entreolhavam. Perdiam os olhos pelo chão, eram como cachopos sem saber o que fazer, ou eram como cidadãos aflitos numa sala de espera. O governo talvez devesse ter atendimento para aquelas coisas, prestar serviço de discernimento. A Isaura pensou que se não se inventavam missas para os solteiros, que ao menos se inventasse uma repartição para os empatados. Uma coisa na câmara municipal onde pudessem uns e outros entregar quem lhes trazia um impasse à vida. Lembrou-se da Maria. Disse: tenho de ir. O Antonino levantou-se e disse: vamos. O Crisóstomo não se mexeu. O Camilo abriu a porta e sentou-se ao pé do pai que, começando lentamente a respirar, lhe falou do casamento, do amor e dos homens maricas. O rapaz pequeno tinha cabeça dura. Mas aprendera a gratidão. Agradeceu ao Crisóstomo que conversasse com ele sobre esses assuntos mais difíceis. O pai abraçou-o e disse-lhe que o amava muito.
Amo-te muito, filho. Sabes, filho, amo-te muito.
O Crisóstomo explicava que o amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa. Isso dava também para as variações estranhas do amor. O miúdo perguntava se havia quem amasse por crime, por maldade. Alguém amar por maldade, repetia. O pai achava que talvez não. A maldade tinha de ser o contrário de amar. O Antonino, disse-lhe, já não estava casado com a Isaura porque o casamento havia sido anulado. A Isaura só não sabia o que fazer. Era um compromisso diferente, esse de sentir-se ligada a alguém apenas pela moral e não pelos papéis. Estava ligada pela compaixão.
Entregaram a Maria em casa passava um pouco das quatro da tarde. A expressão inalterada da mulher não permitia perceber alegria ou tristeza por voltar ali. Teria sido uma confusão, acharam todos. A Isaura explicou, mentindo, que se levantara e que não a vira mais. Perguntara, pedira, mas não a vira e pensara até que a tinham raptado para lhe levar órgãos ou arrancar as alianças dos dedos. Os enfermeiros quase se riram. Era uma velha estragada pela doença, não tinha muito que se lhe roubasse, e as alianças valiam quase nada contra o peso na consciência por se raptar alguém. Foi à polícia, perguntou um deles. Ela disse que não. Achava que devia esperar.
Por dentro, a Isaura não sabia como arrumar aquelas pessoas. A mãe, que permanecia como morta a exigir cuidados, e o Antonino, que exigia cuidados para não deixar de viver. Quando se tivesse sozinha, quando sozinha estivesse no quarto da Maria sem ter quem as visse, a Isaura talvez pegasse numa almofada para abafar a outra. Se lhe pusesse uma almofada de modo suave sobre o rosto, tirando-lhe lentamente o ar, a Maria apagaria como uma vela que consumiu por inteiro o oxigénio de um compartimento qualquer. Talvez fizesse isso. Seria mais fácil se não houvesse sempre quem se intrometesse, porque, depois de morta, a Maria poderia ir tombar na pilha dos bichos que morriam na quinta e sobre os quais a Isaura deitava terra sem pensar mais acerca do assunto. O Antonino, entre os animais a fazer as vezes da mulher, pensava por seu turno que seria uma coisa boa que voltasse a Maria a casa. Era já uma mãe sem grande vantagem, mas tê-la por perto, pacífica, tinha de ser uma coisa boa, como uma lembrança mais generosa de outro tempo, uma fotografia mais quente, maior, volumétrica, única. A fotografia única que mais valeria a pena preservar. Uma fotografia quente, dizia ele, possível de abraçar.
Quando miúdo pequeno, a Matilde sentava-o ao colo e contava-lhe que o pai partira para cuidar deles à beira de deus. Era difícil aceitar que o pai não ficasse como os outros homens a ajudar na vida da casa e do campo. Era muito difícil aceitar que não pudesse ao menos voltar por umas férias, uns tempos, como os que vinham de fora, dos seus empregos estrangeiros. Nem no natal, quando os miúdos todos tinham pai e tinham mãe. A Matilde sentava-o ao seu colo, afagava-lhe os cabelos e fantasiava a gadanha da morte como uma coisa boa, porque às crianças se contavam as versões boas de todas as histórias, mesmo das mais terríveis. O Antonino vivia curioso acerca do pai e genuinamente sofria com a sua ausência, mas o colo da mãe era, por si só, o motivo maior da sua curiosidade. O colo da mãe, pelo qual faria perguntas noite inteira, nessa troca que as mães aceitam fazer de afagar um filho por uma pergunta, afagar um filho por um olhar. Incansáveis. Nesse tempo, o Antonino podia crescer para ser tudo. Não era nem particularmente rapaz nem particularmente maricas. Era uma criança, todo ele livre num tempo de ser livre e de não pensar em nada. O que pensava, porque aprendia sobre o mundo e ganhava amor e ódio a cada coisa, era sempre passível de corrigir mais tarde. Nada lhe parecia definitivo, ao menos nada era definitivo além da ausência do pai. A Matilde mimava a criança porque sem o marido se dava a carências maiores. Agarrava no miúdo como se estivesse agarrada a algo que chegava ao outro mundo. Apertava-o com as saudades de um homem e enviuvava profundamente, para sempre, convencida de que a sua vida era só fazer do filho um homem, esperar depois pelos netos e achar que as leis estavam cumpridas. O Antonino perguntava: e era parecido comigo. Ela dizia: cara de um, focinho do outro. Riam-se. Puxava-lhe pelo nariz, beijava-o na testa.
As crianças não deviam crescer nunca porque as crianças são perfeitas. A Matilde pensava que o seu menino pequeno era perfeito. Pensava: as crianças não deviam crescer nunca porque as crianças são perfeitas.
Que raio acontece depois às crianças, que crescem para ser tudo ao contrário do que os pais lhes disseram e tanto lhes sonharam. Que raio se há-de passar na vida das pessoas que as faz perder o controlo sobre os mais novos, tão permeáveis quanto casmurros a crescerem à revelia do que os pais ensinam, querem, mandam. Deviam crescer exactamente como lhes fosse dito. A gostarem do que aprenderam a gostar quando pequenos, a repudiarem o que lhes foi dito para repudiar, sobretudo abdicando de envergonhar a família tornando-se o oposto das coisas boas, das boas educações que as famílias lhes dão. Que raio acontece às crianças depois. A Matilde lembrava-se bem de nunca ter ensinado o Antonino a ser maricas. A sopa de abóbora é boa, dizia ela, e ele, por amor, passava a sentir um bom sabor ao comer a sopa de abóbora. As paredes azuis da sala são bonitas, dizia ela, a tua camisola é bonita porque é azul, e ele acreditava que a cor azul era a sua preferida, até ser a sua preferida sem pensar muito nisso. Talvez lhe devesse ter dito que os homens eram feios. Não lhe ocorrera prepará-lo para o desejo. Não estaria à espera que se pusesse do lado de lá das naturezas, a pensar ao contrário, a querer fazer ao contrário. Não lhe dissera acerca da beleza das raparigas, que podiam efectivamente ser tão belas. Talvez fosse obrigação de mãe rodeá-lo de raparigas e falar-lhe delas, fazê-lo criar expectativas, apreciar o rodado das saias e suspeitar o garrido dos seus sexos. Era tão comum que os rapazes se desenvencilhassem sozinhos nessas aprendizagens que a Matilde não colocou a hipótese de se ocupar de tal coisa. Mas não lhe disse nem isso nem o contrário. Nunca lhe dissera que os homens eram bonitos. Nunca o deixara perceber que ser maricas era coisa bonita. Pensava que as crianças tinham de ser casmurras para que não lhes ficasse com segurança a educação toda dentro. Algumas crianças cresciam para serem simplesmente malcriadas. Já para velha, a Matilde pensava que se tinha enganado acerca das crianças. Desculpava-se assim. A culpa não podia ser sua. Era, quando muito, culpa sua não o ter desfeito. Mas desfazer um filho não dava para qualquer mãe, porque o ódio nunca era completo e o amor estava sempre presente, deturpando as melhores e mais sensatas decisões. Quem não tem filhos cada dia mata cem.
A conversa do Crisóstomo com o Camilo punha-se como uma educação tardia para correcção do que o velho Alfredo ensinara. Com tanto livro, insistia o pescador, o velho havia de ter enchido a cabeça do miúdo com palermices acerca das pessoas diferentes. Não era nada que os maricas fossem parecidos com as prostitutas ou com os drogados, com os surfistas ou com os cantores. Cada um padecia de uma especificidade que carecia de ser pensada de modo distinto. O Camilo achava que outrora devia haver um saco onde coubessem todos. Por outro lado, era um miúdo génio e magoava-o sobretudo o ter percebido que o aparecimento de um Antonino era um perigo na felicidade de um Crisóstomo. O pescador sorria. Nunca tivera dúvidas de que os filhos, mesmo pequenos, também serviam para cuidar dos pais. O Camilo tinha teorias e estratégias para definir a situação. Importava, acima de tudo, reclamar da mulher uma decisão, ainda que um dos candidatos se parecesse anular por sua própria natureza. Era importante consumar caminhos, dizia o Camilo, um tem de ir para um lado, e o outro para outro lado qualquer.
Nesse momento, a Isaura sentou-se ao pé da Maria e observou a sua quietude. Estava uma luz intensa a entrar no quarto e a brancura das paredes tornava tudo muito esbatido, comendo as cores aos objectos, esfumando-os. Parecia que naquele dia a cor fazia morrer tudo, absorvendo a Maria e todos os seus pertences. A Isaura deixou-se assim, o Antonino a trabalhar nos bichos e nas hortaliças e ela a decidir, naquela morte da Maria, de que modo a vida valia a pena. Respiravam pouco. Ambas respiravam pouco. Suspendiam-se. Aproximou-se depois da mãe. Afagou-lhe o cabelo. A Maria suspirou mais fundo, talvez temendo a proximidade da filha. Ou emocionando-se. Sim, a Maria devia ter-se emocionado com o gesto da filha mexendo-lhe com delicadeza no cabelo. Começou a mover os dedos como se entre eles passassem os orégãos. Certamente queria trabalhar para dizer que fora sempre uma lutadora. Queria dizer que lutara. Não era uma qualquer. Apelava ali à sua dignidade. Merecia uma boa memória. E a Isaura uma e outra vez lhe mexeu no cabelo, a respirarem as duas como se fossem esbatidas também. Invisíveis na luz. A filha não fez mais do que isso, estando de pé e um pouco inclinada. Talvez a Isaura pensasse que poderia tomar uma almofada para lhe retirar o fôlego e a deixar partir. Talvez só pensasse nisso, mas nunca o faria. A Maria, que moveu os olhos para o rosto da filha e pôde suspirar como se o corpo lhe ganhasse outra força, esgotou-se assim. Era a temperatura. Subiu para a temperatura do ar e lá ficou. Parou o seu tempo naquele instante, vidrada na filha, a mão da filha no seu cabelo branco, um silêncio absoluto na casa que faria considerar a conquista do maior dos sossegos. Cheirava a impossíveis orégãos, como anúncio de trabalho consumado.
Quando o Antonino subiu, a Isaura sentara-se já novamente na cadeira. Estava ali sem fazer nada. O Antonino chorou. Dava-lhe uma sensibilidade maior e não se continha. Tomou a Isaura e levou-a para a cozinha. Serviu-lhe água.
Depois disse-lhe: quem perdeu a mãe perde-a para sempre e nunca mais pára de a perder.
Quem perdeu a mãe perde para sempre e nunca mais pára de perder.
A Isaura arrepiou-se. Olhou para o homem maricas e sentiu-se outra vez uma má pessoa. Sobretudo má pessoa. Magoava-se cada vez mais com o que pensava de si mesma. Magoava-se talvez por achar que deveria ser melhor, precisava de ser melhor. O amor era mérito. E ela não merecia nada.
Explicou ao Crisóstomo que a um dado momento era preciso amar sem olhar a quem. Quando se espera uma vida inteira, perdem-se as exigências e tudo se torna muito geral. Pouco importam os pormenores, dizia ela. Cria-se uma urgência no corpo e passamos a ser apenas uma oferta, uma porção generosa de gente, e depositamo-nos à sorte ou ao azar para que nos levem, nos queiram, por bem ou por mal, e nos dêem uso. A Isaura explicou ao Crisóstomo que se sentia assim, urgente. Depois disse-lhe que a Maria morrera. Depois disse-lhe que se sentia sozinha no mundo. O Crisóstomo beijou-a. Beijou a mulher que fora do homem maricas e disse que a amava. Talvez ainda não fosse o dobro de um homem, mas era já, sem dúvida, muito mais do que um homem inteiro. Podia mais do que um homem inteiro. Podia muito mais. Disse-lhe: havemos de compor as coisas. Também eu percebi essa urgência. Mas não quero uma mulher qualquer, alguém ao acaso que me leve e me use. Quero-te a ti. Quero a mulher que fala sozinha com a areia e o mar, a que veio ao meu encontro exacto. A Isaura sentiu que estava triste e feliz ao mesmo tempo.
Ela perguntou: podes repetir.
Ele disse: amo-te, Isaura.
Subitamente, metade das coisas pareciam compostas.