Perguntaram-lhe se era verdade que andava metido com a mulher do maricas. Achavam até normal que ela tivesse outro, porque se o marido era assim não servia para o essencial. O essencial, sendo necessário, está sempre certo e não pode faltar. O Crisóstomo, com o coração em chamas, não falaria do assunto, porque entendia uma violência meterem-se na sua vida, sem respeito pelas circunstâncias, os pormenores, os amores. A tão grande espera. Os pescadores, contudo, animavam-se com a conversa pelo cómico de cada ideia. Diziam ser uma enormidade do mundo moderno que os maricas casassem e que as mulheres se aviassem pela vizinhança. Os maricas eram uns porcos, e as mulheres umas ordinárias. A humanidade fazia-se assim. De bem ficavam os homens, por serem estáveis e normais. Todos iguais. De aberração em aberração, um deles contou que já vira uma mulher que antes havia sido um homem. Não era um homem de vestido, como no carnaval, era um homem de pila cortada. Foi um enfermeiro quem lho garantiu, um enfermeiro amigo que acabara de ver a aberração despida para uma operação qualquer. Tinha um buraco na carne como se lhe tivesse sido arrancado o pénis à dentada. Outro pescador contou que a filha de uma vizinha nascera com os olhos tapados como se fosse uma bola fechada. Morrera logo a seguir numa choradeira que ninguém parou. Foi uma coisa boa que morresse, que a mãe até lhe tinha vergonha. As mães tinham sempre vergonha de filhos assim, uns filhos mal gerados, porque eram vistas como mães más, com o corpo burro, um corpo também ele defeituoso no processo de imaginação dos filhos. Como se tomasse opções erradas, ou o estômago comesse demasiado, ou os pulmões respirassem de menos, ou o fígado quisesse vinho como viciado. Como se alguma coisa dentro delas conspirasse por profundo egoísmo ou apatia contra o filho, que devia ser coisa de benigno consenso por todo o ser da mãe.
Os pescadores riram-se como de um monstro marinho, daqueles que inventavam e que, em toda a vida, nunca veriam. Depois, um dizia ter visto uma serpente com duas cabeças. Era um corpo estio e longo a acabar em cabeça para um e para outro lado, como uma faca de dois gumes, uma faca a ferrar por esquerda e direita. Isso, a ser verdade, era como existirem dragões e outros animais mitológicos. O mais fácil, pensaram todos, era que o pescador fosse mentiroso ou estivesse bebido, e pouco importava que inventasse histórias. Alguém, jocoso, perguntava: e chispava dos olhos. É que vi uma assim que chispava dos olhos a meter medo a toda a gente. O pescador respondia: não. Já bastava que ferrasse pela boca e pelo cu. Depois perguntavam: ó Crisóstomo, o marido da tua namorada ferra pelo cu. Diziam que o Antonino era uma serpente de duas cabeças, ao menos de duas bocas, e que ferrava a quem se deixasse ferrar.
Dispersavam para os seus afazeres, não fossem os peixes escapar ou o barco entornar, mas formulavam bem claro o conselho, para que não levasse o Crisóstomo por tabela. Sim, por se deitar com ela ainda lhe entraria alguma coisa pelo cu adentro, exactamente por se deitar ela com o Antonino. Como se sobrasse algo na Isaura passível de atacar outras pessoas.
Ainda acreditavam que podiam nascer filhos assim pela falta de higiene durante a gravidez. Se uma mulher não reparasse bem reparado, umas poeiras ou uns ácaros eram o suficiente para irem misturados pelo acima das mulheres, a infectar tudo por dentro. Na formação da cria, podia acontecer de misturar-se a metades com as bactérias ou bichos maiores. Ficava a meias de ser gente e outra existência qualquer. Os desejos mudavam para desumanidades certamente por causa de uma lixeira dessas, a meter-se mulheres acima sem que elas, um bocado ou mesmo muito mal lavadas, dessem conta disso.
Quando se era novo, o barco assemelhava-se a um ser orgânico fantástico, que se alongava no mar como por coragem perante o impossível. O pescador novo percebia as águas com um medo expectante, e o trabalho, a violência do trabalho, anestesiava um pouco a espera pelo adamastor. O ondular das águas, em cumplicidade com a réstia de luz que a lua fazia, previa figuras que espreitavam submersas, ao longe e ao perto, em visita. O pescador novo trabalhava aprendendo que a companhia era ilusória e que o impossível diminuía porque a realidade crescia e banalizava até o medo maior. Até que fosse medo nenhum. O Crisóstomo pensou que a sua vida era já uma conquista grande de monstros de toda a espécie. Lembrou-se da estranheza das noites na água, a estranheza que a escuridão incute nos objectos quando, por distracção ou demasiado olhar, se tornavam desconhecidos e se revestiam de maravilha ou terror. Pensou que nunca decidiria definitivamente acerca de tantos episódios, tantas pequenas e grandes insinuações de algo anormal, medonho. Mas uma pessoa nunca seria como um monstro marinho, nunca seria como a mentira de uma serpente de duas cabeças. Uma pessoa nunca seria uma mentira. Era preciso que se partisse dessa honestidade. Falar do Antonino como uma verdade, ao menos isso, por decência ou honestidade, sem inventar, por delirante preconceito, histórias que emparveciam as pessoas, que emparveciam as conversas e que não dignificavam sequer o tempo gasto. O Crisóstomo, nessa noite, encostou-se mais pelo bordo da traineira e trabalhou desatento, com o sentido longe dali. No dia seguinte, sabia, tinha de voltar a dizer à Isaura que a amava. Isso, por si só, era suficiente para que a felicidade comparecesse. Os felizes, pensava ele, eram quase os felizes, agora eles, na sua vez. O resto, apenas problemas, coisas práticas que tinham de resolver, mas sem chispar dos olhos e sem ferrar por lados diversos. A vida podia ser mais simples.
Ofereceu-lhe um anel com uma pedra azul muito brilhante. Era uma água-marinha, dissera-lhe o caro vendedor. Uma condensação de todo o mar, como se todo o mar fosse sumariado na eterna intensidade daquela matéria. A Isaura colocou-o no dedo e afundou. Perdeu-se facilmente na profundidade dos sentimentos. Tinha, no entanto, um quase marido entre o anel e o dedo. Tinha um marido entre um e outro pulmão. Conseguia mal respirar. E o Crisóstomo disse: queria muito que não te sentisses sozinha no mundo. Ela levantou-se, pareceu-lhe ter de ir a algum lugar. Ia ver o Antonino. Mostrar-lhe o anel e desejar que o mar se desfizesse em mil bocas de tubarão. O anel reagiu ao sol. Era um caleidoscópio que levava a Isaura na rua igual a uma epifania divina.
Talvez por causa do amor, a Isaura permitiu que o Antonino ficasse em sua casa, no quarto grande da Maria, já nunca como um marido, explicou-lhe. Era uma situação toda esdrúxula que tivesse um homem dentro de casa, mas o casamento anulara-se e a vida seguira e tão pouco depois tudo mudava como não havia mudado durante tantos anos. O Antonino talvez pudesse pacificar-se com a Matilde, talvez mais adiante no tempo, na idade. Ele garantia que gostaria de cuidar da sua mãe com o empenho paciente com que a Isaura cuidara da Maria. A Isaura não dizia mais nada. Andou a dividir coisas pela casa toda e a repartir e a destinar. O Antonino ficava ali encaixado também, e o povo, sem saber se aquilo era marido ou disparate, haveria de habituar-se e calar-se devagarinho. Nenhuma história ficava contada para sempre. O Antonino tomou as mãos da Isaura, emocionado, e contou-lhe como se quisera matar na noite do dia em que casaram.
Contou-lhe como deixou a Matilde e partiu até ao cais dos barcos. Mergulhou na água atirado como um saco. Mas o corpo pôs-se a mexer e, entre engolir água e nadar, viu-se à superfície do mar a tremer de frio, o rosto molhado num pranto, o rosto molhado na tristeza de ter de partir.
O Antonino disse à Isaura que amasse. Que amasse, pelos dois, o pescador, que dele cuidasse como quem cuidava do importante destino do mundo. O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cá da pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra.
E amar uma pessoa é o destino do mundo.
O Antonino explicou-lhe que não queria ser mulher e que gostava de mulheres e lhes prestava atenção. Disse que admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa. As mulheres, pensava ele, eram mais intensas. A Isaura pensou que a delicadeza dos homens maricas era como uma carência, uma insuficiência, uma semelhança com as mulheres que vinha de dentro a estragar-lhes os gestos, alguns gestos que deixavam de ser estritamente masculinos.
Ele disse que ela havia de se pôr bonita para o pescador. Sorriram. Ele começou a penteá-la e a formar-lhe o cabelo para que tivesse um desenho qualquer. Sorriram. Desencantaram uns batons e outras humidades e mais pós de pintar a cara e foram sublinhando a Isaura aqui e acolá, como se marcassem o que se via de importante, como se propusessem uma leitura repetida de algo que não era feito de palavras mas que comparecia no rosto dela igual a página com uma história escrita. A Isaura nunca se imaginara com os olhos bordejados de azul-claro, um azul que escondia as olheiras tristes das noites de espera. Nunca pensara que a beleza pudesse estar simplesmente como preguiçosa à sua mercê. À mercê de um maior empenho. O Antonino fechou o estojo, sorriu. Disse: isto esteve demasiado tempo esquecido no quarto da tua mãe, estes lápis estão velhos, são antigos, se fossem novos haveriam de te pôr ainda mais bonita. A Isaura viu-se no espelho, cuidada como uma senhora, e quase se assustou. Talvez agora o Antonino fosse um bom marido. Talvez assim fosse um bom marido. Por um instante, a Isaura sentiu-se feliz. Expôs a mão ao espelho. O anel reluziu numa saudação. Por um instante, a Isaura sentiu-se um pouco absoluta.
Foi a primeira vez que pegou numa coisa daquelas. No entanto, o Antonino via a Isaura e sabia de algum modo onde estava escondida a sua beleza. O Antonino via a Isaura.
Ela perguntou-lhe: não te curas. E ele disse: não. E ela disse: não pareces doente. E ele disse: pois não. E ela disse: deve ser porque não estás doente. E ele disse: não sei. E ela disse: haviam de inventar um comprimido. E ele disse: pois haviam.
À tarde, o Antonino foi ver a Matilde para lhe dizer que estava bem. Quando o viu, ela nas beiras do seu tanque, parecia que a enxotavam. Ia enxotada para dentro de casa e deixava a porta aberta claramente para que ele entrasse também. Quando entrou, ela chorou e abraçou-o por um segundo, proibida sempre de lhe tocar, proibida de o querer. Queria-lhe bem. A Matilde enxugou o rosto e ele também. Disse-lhe que estava com a Isaura, que cuidava dos animais e das hortaliças na casa da Isaura. Ela perguntou pela morte da Maria. Abanaram a cabeça como se o silêncio fosse a única resposta. Depois, a Matilde desviou da porta a cortina e abriu a pequena janela de vidro fosco por onde espreitaram os dois. Tinha uma caseira. Uma mulher despachada que lhe fazia o que ficara por fazer desde que ele se fora embora. O Antonino sorriu. A Matilde respondeu: mas já quero que se vá embora também. Tem tanto de despachada quanto de complicada. Só me dá dores de cabeça. Não tem sossego. É uma mulher sem sossego e sem inteligência nenhuma.
O Antonino só conseguia pensar no breve abraço que a mãe não contivera. Só conseguia pensar que valera tudo a pena, porque sentira aquele breve abraço da mãe.
A Rosinha tinha uma filha de sete anos que cirandava por ali com afazeres mais pequenos mas infinitos. A Matilde pusera-as na casa de baixo, remediadas com um quarto para as duas, mas fazia-lhe confusão que andasse de volta delas um velho que não lhes dava futuro, só as iludia. A Rosinha, feita toda de pedra, parecia indestrutível, a andar para cima e para baixo com a força de muitos homens. Vinha-lhe da cabeça, como dizia a senhoria, tirava da cabeça que a vida era assim e não deitava queixa a coisa nenhuma. Quem quer, faz. Quem não quer, manda. A Rosinha fazia tudo sem esperar ser mandada. Queria e fazia de tudo. A Matilde poderia até estar satisfeita com a caseira, não fosse ter uma cria por ali sempre a meter o bedelho e depois a caseira enfiar o velho Rodrigues em casa e andar sempre a suspirar por ele. A Matilde dizia-lhe para ir suspirar por alguma coisa de valor, como um pouco de dinheiro no banco ou um par de aulas para a filha, mas a outra estava aflita com os amores e não era por viver encantada com um homem tão mais velho que o encanto diminuía. As pessoas eram assim mesmo, feitas de imprudências. Olhe, dizia a Rosinha, quem sabe se a imprudência é a felicidade. A imprudência é a felicidade. E a Matilde respondia, você quer dizer a burrice. É que a burrice dá direito a orelhas. Talvez exista muito burro feliz.
O Antonino disse: boa tarde. A Matilde explicou que era o seu filho, casado com uma Isaura, e sorriram todos. As palavras saíram-lhe gordas, como se pudesse falar por tamanho, dar tamanho ao que dizia. Era do orgulho de, por uma vez, apresentar o Antonino com essa máscara tão cristã de estar casado. Fazia dela a mãe perfeita, finalmente a mãe perfeita. Não importava que o casamento se tivesse desfeito, o Antonino não lho disse, importava que estava do lado de lá dos campos, acolhido por uma Isaura, a ter por ofício o cuidado com outros bichos, outras hortaliças. A Rosinha disse: ai que rapaz jeitoso, se não fosse casado atirava-me eu a ele, que preciso de um pai com juízo para a minha menina. E a Matilde disse: então largue esse velho e procure melhor, que você nem é feia e há-de haver quem lhe pegue. E ela respondeu: e você que quer. Para onde eu vou, vai-me o coração também, que ainda não arranjei modo de o largar pelo chão.
O Antonino tocou na mulher. Achou aquilo a coisa mais bonita de se dizer e ficou emocionado.
Tocou-lhe, perante o espanto da mãe e o sobreaviso da pequena cria. Estava talvez mais sensível do que o costume e agia sem muito querer. Tocou na mulher, parou o olhar no dela, que se aquietou expectante como um animal um pouco selvagem apanhado em grande surpresa, e disse-lhe: nunca queira livrar-se do coração. Siga-o. A caseira ficou confusa. Não era costume que alguém lhe respondesse com tão grande intensidade nos olhos. A Matilde entrou em casa alvoroçada. Achava que tinha um filho que era um certo deficiente do amor. Padecia de uma loucura dos sentimentos. Dizia por imprudência o que não tinha de dizer, não devia sequer acreditar naquilo.
Outra vez sozinhos na cozinha, ele acalmou-a. Disse-lhe que era um rapaz de pouco valor, mas que estava a habituar-se a valer pouco para não esperar nada da vida. Se não esperarmos nada, dizia ele, tudo quanto existe é já abundância. A Matilde recomeçou a falar da Rosinha para se esquecer de tudo.
Contou que o velho com quem ela andava metida era um estafermo e que vinha por ali apenas para se aproveitar da mulher. Nunca lhe dera nada de jeito e talvez fosse pai da cria, mas não vendia uma cabra para dar um casaco à rapariga ou cuidar-lhe de um dente. Contou que o velho vinha e fazia um reboliço lá para a casa de baixo, mandava a cria passear ao campo e só saía aviado. A Rosinha, depois, aparecia já com couves e batatas e pegava no trabalho para não dar conversa. A Matilde contou que a Rosinha, por causa dessa coisa mal gerida do amor, estragava tudo e até lhe custava a ver. O Antonino perguntou: como estraguei eu. A Matilde respondeu: sim, não pior, mas muito também.
O Antonino disse: gostava que me abraçasse outra vez. Foi quando chegou o velho Rodrigues, que lhes bateu na porta falando alto. E a Rosinha, perguntou ele. A Matilde respondeu: foi-se pôr bonita, que ela andava como um reco a precisar de muito banho. O Antonino lembrou-se de como a Isaura se pusera bonita.
Quando o Crisóstomo viu a Isaura pintada e penteada, julgou que ela vinha de noiva. Sentaram-se na areia a sentir o fim da tarde a brincar como miúdos. Perguntou-lhe se vinha de noiva, assim bonita, assim vaidosa, se aquilo era uma forma de casar. Ela não sabia se as noivas eram vaidosas. Não casara vaidosa e nem se fora pentear, pensou. Mas contigo, dizia, se casasse punha-me de luz, como se caísse de um candeeiro. Foi o Antonino, confessou ela. Riram-se os dois. Pôs-me bonita de tanto olhar e andar à procura.
Beijavam-se já muito na praia, ali mesmo diante da janela de casa por onde o Camilo podia perceber que se encontravam cada vez mais. O Camilo gostava que a Isaura fosse para o Crisóstomo, como racionalmente encomendada para ele, para lhe fazer bem, para o intensificar como um pescador que trazia finalmente o mar inteiro para casa. Um pescador que definitivamente conquistava o mar. A Isaura sorria e achava subitamente que as coisas se compunham a partir do que não seria óbvio. Afinal, o Antonino cuidava dos bichos e das hortaliças e a casa não desmoronava, e ela podia estar a tarde inteira por ali, a voltar aos lanches, a beber chá como uma senhora de convívio, a barrar manteiga nas torradas. Já não compravam doces esquisitos porque não se sentiam nada esquisitos e não precisavam de se impressionar. Eram tão normais. Queriam as coisas normais com que se entendiam sem complicações. Quando se conhece alguém, pensou o Crisóstomo, procuram-se as exuberâncias dos gestos, como para fazer exuberar o amor, mas o amor é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conduzir ao sossego. O gesto exuberante é um gesto desesperado de quem não está em equilíbrio. Parecia agora saber tanto sobre o assunto, pensava, como se pudesse, ao acertar na mulher, saber por instinto tudo o mais quanto estava certo ou errado. O Crisóstomo, ali na areia da natureza toda ouvinte e toda inteligente, disse que o Antonino era o melhor ser humano do mundo. Depois riram-se os dois sempre mais. Tinha-lhe mandado a Isaura embelezada como de presente. O melhor presente.
Nessa altura, o Camilo domesticava um cão. Ia entregá-lo a um amiguito novo e deitava os olhos para a areia como a garantir que estava tudo bem. O cão esperava. Estava educado. O Camilo orgulhoso.
Os pescadores nunca entenderiam que a vida do Crisóstomo fosse diferente assim, mas esperar que a vida de toda a gente fosse igual era uma rotunda estupidez. Já não importava o que poderiam dizer. Por isso, a Isaura deitou-se na cama dele. Não tinha mais virgindade alguma para oferecer, porque o tempo de sozinha apagara segredos e a virgindade era só um segredo a ser revelado e mais nada. Deitou-se talvez já mais saudável, tendo engordado, criando novas curvas pelo corpo que ainda não desnudava. Pediu que fosse assim, sem ver, lentamente, sem ver. Tinha uma camisa de dormir que a cobria até aos pés. O Crisóstomo deitou-se delicadamente ao seu lado e poderia ser até que apenas conversassem. Aquele era o sentimento mais intenso do mundo. O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és.
Amo-te muito, filho.
Quando novamente se deitou ao lado da Isaura, o Crisóstomo também se emocionou, mas não chorou, era muito menos maricas do que o Antonino. Emocionou-se por abraçar aquela mulher e acreditar que, aos quarenta anos, a vida tinha aprendido finalmente aquilo de que precisava. E a Isaura, longe de casa, era agora outra mulher. Respirava. Ela respirava. Tirou a camisa de dormir. Teve a coragem de se despir e de fazer tudo ao contrário do que estava à espera. Queria estar já num futuro qualquer, no qual se pudesse entregar toda, sem reservas.
O Camilo pensou que talvez o Antonino, por nem falar aos ais e por ter engrossado o corpo como um trabalhador rude do campo, se salvara de ser um monstro. Talvez amasse. Passou a ponderar a oportunidade de alguém ter dignidade no erro e o erro ser meritório de respeito. Na verdade, nunca mais os sons das casas falaram, nem estavam a Carminda e o Alfredo em lugar algum senão no cemitério. Havia tanta coisa que lhe fora ensinada e que não valeria de nada, era uma educação feita por um amor descontrolado, a descarrilar por instintos confusos de eternidade e muita, mesmo muita, saudade. O Camilo começou a pensar que tantas coisas se aprendiam quando se ficava sozinho. Era importante que muita coisa fosse decidida nessa clausura da solidão, para que a natureza de cada um se pronunciasse livremente, sem estigmas. Pensou assim e achou que, não sendo um livro, era um pensamento capaz de eliminar o colesterol e segurar os tectos das casas todas. Naquela noite, também ele percebia que tanto se fazia de outro modo. Era outro o modo de a Isaura ficar ali a dormir, sem mais namoro nem mais explicação. Também ele se tornara filho do Crisóstomo sem mais pergunta nem explicação. Fixara o ar terno do Crisóstomo, fixara como transbordava de si mesmo correspondendo ao conselho que lhe dera ao beijá-lo. Antes de dormir, o Camilo disse que amava o Crisóstomo, amava o seu pai. Precisou de o dizer para não se limitar no amor. Precisou de o dizer para si mesmo, baixinho, para não se limitar no amor.
De manhã, apreciaram juntos a colecção de conchas e os objectos esquisitos que vinham do mar. O Crisóstomo contava histórias sobre cada um e riam muito. Parecia que se juntavam para tornarem cada história fundamental. Como se fosse fundamental cada concha, cada objecto esquisito e tudo ser contado em companhia. E a Isaura dizia: isto é só um plástico. E o Crisóstomo respondia: tem escrita uma mensagem numa linguagem desconhecida, repara bem. Talvez fosse chinês ou algo parecido com chinês de um lugar mais ou menos chinês ou para os lados da China. Talvez fosse de um país que não esse, e talvez fosse muito bonito ou muito feio. Mas o Crisóstomo, que nunca saíra da sua vila senão ali para adiante, no mar, achava que escrever-se assim era esquisito e digno de ser assunto de conversa e coisa de recordar.
Preparavam o pequeno-almoço. Não havia ninguém na areia. Do pequeno-almoço ao mundo inteiro, tudo parecia equilibrado, perfeito. A janela mostrava como podiam ser felizes.