Mininha, nome pequeno de Emília.

A Matilde de imediato tirou a cria dali. Não era boa ideia que apreciasse ao pormenor a morte da mãe. Não era de ver. Bastava que se soubesse, que se confirmasse e ficasse sabido. Arrastou-a e pôs-se a caminho de casa, como largando tudo, deixando tudo para que outras pessoas cuidassem do que ali se abreviara. Alguém que cuidasse do que ficara parado, que agora importava à Matilde, por instinto, tirar dali a miúda, como se à cria lhe coubesse uma mãe por substituição, uma mãe urgente, porque na vida de uma criança tudo urgia.

O Rodrigues foi quem aos abraços separou a Rosinha da galinha gigante espalhada em pedaços corados do açafrão. Separou-a aos abraços num pranto sonoro, dizia que a sua flor se finara, uma flor como nenhuma, que por imprudência finara. Que tolice tão grande a de ter comido carne do animal mágico, que tolice só possível a quem vivia uma euforia sem pensar em mais nada. A euforia foi que a pôs de burra, pensava o Gemúndio a voltar para viúvo e encalhado no mesmo desarrumo.

A Mininha não sossegava. Tinha ventas e era malcriada e queria ir ver o que faziam à mãe, onde a punham. Mas, quando se soube, estava já metida numa caixa, arrumada de flores e perfumes para fazer de conta que a morte era uma coisa bonita. Estava como um enfeite ao centro da capela, bem-comportada, sossegada. A Mininha foi-lhe ao pé mexer na caixa, remexer nos panos, ver em que se tornara a Rosinha e só depois chorou convencida de que dali já não saía para casa. Achava, numa esperança razoável, que pudesse ter sido um engano e que, desenganada a coisa, a mãe se levantaria e buliria para cumprir o resto da vida. Mas a vida atalhara-se.

A capela vazia deixava que exalasse a alma com largura e paciência, e os poucos que ali acorriam rezavam breves e breves partiam, já desimportados. Quase nada importava a morte de uma caseira gananciosa. A filar os velhos pelas fortunas e mais vacas ou menos vacas, acabara de enfeite na capela, mal pintada pelos cangalheiros que, com duas moedas de pagamento, também não enchiam barriga nem deitavam bágoa. A Mininha sentou-se, pediu à Matilde que a deixasse sentada, ao menos sentada sem pressa e sem sermão, e a Matilde foi encostar-se à porta a contar pelos dedos os anos, os quartos da casa, os quilómetros para a escola, os beijos dados ao Antonino, o infinito do amor por um filho, os pacotes de leite por mês, as arrobas de batata a sacar, as palavras direitas para oficializar na repartição o encargo com a cria, o casmurro da cria até que compreendesse que estava a tentar ajudá-la. Passava dedos para trás e para a frente e sem que apreendesse rotundamente o significado do que estava a decidir. Contava e as contas de alguma forma escondiam-lhe o resultado. Talvez não estivesse ainda preparada para se inteirar ou para assumir o resultado. Depois, atónita, olhou para a rua, o céu claro de muita luz e o dia tão normal, e a Matilde disse-o no pensamento: tenho uma filha. Estava a decidir por uma filha, como se lhe nascesse com sete anos, um atraso, mas ainda muito futuro em compensação. Elevou as mãos num abraço e não contou mais pelos dedos se seria demasiado velha para aquela alegria esquisita, para aquele compromisso grande, para a abundância imposta por amar-se uma filha. Era necessária uma abundância de tudo, matéria, espírito e idade, para regressar ao tempo de educar alguém. Não quis contar, nem pelos dedos nem por alto, o quanto arriscava com aquele sentimento, o quanto se vulnerabilizava, talvez tola, por uma esperança nova de voltar a ser mãe.

Era porque lhe estava colocada uma segunda oportunidade para a educação. Poderia certamente atentar melhor em cada perigo e desviar-se das frustrações. Com uma cria, recomeçava cada coisa, recomeçava a maternidade, e podia afirmar com rigor um cuidado de valores que ratificariam a sua existência como uma benignidade integrada socialmente, com brio para ser discutida por qualquer um numa compaixão genuína. A Matilde viu o normal do dia, a azáfama de quem passava ao largo da capela no quotidiano alheio, e suspirou. Nesse suspiro, entrou. Marchou como numa formação militar, como por ordem superior, e assim com segurança até ao pé da Mininha. Sentou-se. Deitou-lhe os braços por cachecol leve e incondicional. Assim se enterneceu. Chorou depois, como qualquer mãe choraria por alguém que faltasse tanto a uma filha sua. A Mininha ajeitou-se ali, aninhada naquele corpo que generosamente se oferecia e, sem falar, pediu ajuda.

Estava de longe o Antonino, a ver como ia à terra a caseira. A Matilde já o percebera. Algumas pessoas talvez o tivessem percebido também. Estava por ali o filho maricas da dona Matilde, era o que pensavam. E pensavam que parecia um bocado escorraçado, porque ficava de longe e ao perto vinham uns poucos sempre por curiosidade com a morte. Queriam certamente que a terra respondesse, que aberta a cova funda se ouvisse por eco uma voz que garantisse alguma coisa acerca do lado de lá. Mas, esburacado todo o cemitério, tanta gente ali enterrada, nunca resposta alguma era devolvida, nem para susto nem para sossego dos que ficavam. O filho maricas da dona Matilde, pelos falhos das grades do cemitério, espreitava a sua mãe toda entornada sobre uma menina. Era como lhe dissera o Rodrigues, que a cria da Rosinha ficava para filha da Matilde, porque a Matilde lhe punha gosto e a poderia fazer vingar melhor do que ervas daninhas. O que o Rodrigues queria dizer, por nojo e muita ignorância, era que a Matilde criava qualquer coisa, depois de ter criado um bicho daqueles, daqueles como o Antonino. Amansava tudo, dizia ele. A sua mãe há-de amansá-la até ser adulta. Depois logo se vê se, feita mulher, tem cabeça para ganhar a vida ou se não presta. O Antonino respondeu: não sou nenhum bicho, eu. O velho fungou. O filho da Matilde reclamou: para que me veio falar, seu velho mal-educado. O Rodrigues, superior nas virilidades, virou-lhe a cara, superior na dignidade também. O Antonino pensou que era, de todo o modo, um ser arreliado e que precisava de amansar. Amansou como pôde. Triste.

O Rodrigues reentrou no cemitério. Confessou depois que deitarem a Rosinha à terra tinha sido como ser de terra o seu coração. Como se a deitassem no peito do homem, exagerado e muito falso. Era com certeza uma poesia de velho. Em pouco tempo, umas e outras haveriam de se pôr em fila para que as escolhesse. Com casa alugada ou não, um amante e uns tostões faziam falta a toda a gente, e ele, também pelas carências, não resistiria nem veria por que resistir. Era verdade que podia carpir nas camas novas o antigo amor. E carpir numa cama nova era sempre um alívio maior.

O Antonino andou.

Pela rua abaixo, não sentiu nada que a mãe o desfizesse para recomeçar com a menina, como se ele não fosse mais nada e as duas fossem tudo, inteiras, completas. Sentiu antes que a mãe poderia voltar ao amor incondicional, a um tempo anterior às indiscrições sociais, para se sensibilizar com a plenitude de perfilhar, com a plenitude de desculpar e nunca abandonar. Sabia que a Matilde era a mãe perfeita. Porque depois de tanta solicitação, não o rachara a meio nem o subira num pau. A Matilde esperara como esperaria a vida inteira. Ainda que o impasse existisse e a cada gesto a loucura estivesse à espreita. Mas a Matilde nunca enlouqueceria. Era algo que garantia por amor. Por amor, ela nunca enlouqueceria. Era uma mãe perfeita.

Mas deixava-lhe um ciúme. Um ciúme que era já uma saudade de ter lugar no colo dela, de ter lugar no incansável dos seus dias. No incondicional. O Antonino desceu a rua, e desciam também as bágoas, e ele mais intenso se sentia e mais complexo, entre chorar dessa saudade como de uma alegria ao mesmo tempo. Era uma alegria acima de tudo o que sentia, por saber a Matilde nesse início. Como um sinal de vida. A Matilde dava um sinal de vida, depois de tantos anos parecendo votada a livrar-se das últimas obrigações e a desistir. Com a cria pela mão, a Matilde não podia mais desistir. Escolhia participar ainda, esperar ainda, ter esperança, acreditar que a cada oportunidade poderia optar melhor, ser melhor, ser mais feliz. Era essa a ideia grande do que acontecia. A Matilde podia voltar a ser feliz. O Antonino, por antecipação, chorava de ciúme e felicidade.

Talvez os homens maricas o fossem por sofrerem demasiado com coisas nenhumas. A Isaura surpreendia-se com esse pensamento. O Antonino por casa a contar-lhe como estavam as peripécias da sua vida e aquela emoção constante, e ela a achar que ele era delicado, a escolher sofrer meticulosamente por cada assunto, como se em cada assunto da sua mãe estivesse em causa o seu lugar de filho. Como se fosse filho da Matilde ainda antes de pensar em si como um homem adulto, despegado de cordões umbilicais, saias e saiotes. Era delicado. A Isaura chegou-se perto dele e investigou a expressão honesta do seu rosto. O modo como se expunha diante dela e a tratava como uma amiga. Ela nunca fora amiga de ninguém. Vivera encurralada entre os pais, o gado, as hortaliças e o amor dos infelizes. Via agora como se tornavam estranhas as pessoas que falavam de si, as pessoas que formulavam um discurso, as que diziam isto ou aquilo. Via agora como parecia elementar àquele homem que desabafasse aqueles segredos, que livrasse a boca das palavras, porque ao menos as palavras partiam e partiam de dentro do peito, aliviando o peito, fazendo-o pesar cada vez menos, como num certo milagre da confissão. Ao menos as palavras iam embora, desapareciam a cada instante, talvez metidas para uma liberdade que merecessem por terem tido a coragem de comparecer. O Antonino, tão menino, como um António sempre pequenino, talvez fosse maricas por gostar tanto da mãe, por entristecer tanto por lhe ter morrido o pai, por se perder muito, como sempre a precisar de fazer o caminho para casa. Nessa altura, a Isaura poderia ter-se emocionado. Nunca se sentia a Isaurinha, uma Isaura sempre pequenina, enterrara os pais e esquecera-se deles, como se lhes quisesse apenas maldade, e ela pensava sempre que era uma má pessoa, era talvez má pessoa. E queria muito ser de outro modo.

Quando se sentaram no sofá do Crisóstomo, os três engraçados diante da mesinha com as torradas e o doce de abóbora, o Antonino contou que era por ciúme. Sorriram. Dito assim, parecia uma coisa tão bonita. A Isaura confessou que tinha ciúmes dos bichos quando era pequena. E depois riram-se outra vez. Achava que cada galinha devia seguir os seus passos numa paixão ou respeito inesgotável. Fosse por amor ou apenas fome pelo milho, ela queria acreditar que importava mais a cada bicho do que outro bicho ou outra pessoa qualquer. Ficava enfunada quando não lhe faziam caso, ignorando mesmo a mão-cheia de milho que haveria de atirar pelo ar. Enxotava as galinhas com os pés e chegava a falar-lhes de má, a ver se tinham sentimentos que pudessem ser magoados. Depois, sim, os três riram-se. Mas uma menina pequena não seria nunca substituição para um homem adulto, dizia o Crisóstomo. Subitamente, talvez pelo contágio das conversas todas, desde o azul do mar e do céu até à frustração dos mirtilos, desde as conversas acerca dos ais e até às das coisas que as pessoas diziam, o Antonino acreditou que podia gostar de estar ali. Gostou de estar ali e disse: tenho saudades da minha mãe mas não quero voltar. Quero partir. Por isso preciso tanto de saber como está, como fica, e se me deixa partir a bem porque a quero muito. A Isaura elogiou que tivesse arrancado os fetos das floreiras da casa. Estavam abertas as camélias e os agapantos. Tinha posto buganvílias a cair da parede abaixo e as buganvílias eram as mais extravagantes das flores. Havia muita coisa certa no trabalho do Antonino. Quando falou da morte da Rosinha e da adopção da Mininha pela Matilde, ele apenas denunciou o carinho que esperava do mundo. Tratava as coisas todas como se as coisas todas fossem para melhorar. Era triste que ninguém tivesse percebido isso até então.