Entretanto, o Gemúndio decidiu urgente o funeral do almoço do seu casamento.
Travessa completa, batatas e hortaliças. Juntou tudo como pôde o que era da galinha, e vazou tudo numas madeiras que pregou. Não era nada de muito direito nem punha beleza, mas continha a travessa toda e ainda o que sobrara no panelão e mais o que estava no lixo, as penas e as peles duras e a cabeça de olhos esbugalhados e vazios. Atirou mais os panos da cozinha, as facas, o machado e quanto pudesse ter sangue ou outro resto da morta. Fez o funeral do almoço, a ser servido à natureza para que esta tomasse rédeas do que lhe pertencia. Igual a estar a pôr a mesa meio metro abaixo do chão. Queria enterrar o animal mágico porque entendia que havia de ter por ali uma alma ou réstia de espírito e não gostava de pensar que penasse numa zanga. Para ele, um bicho assim caído no seu quintal por uma tempestade podia ser exactamente um anjo, porque ninguém havia de garantir que um anjo era obrigado a ter melhor aspecto. E nem era de ser feia, aquela galinha disparatadamente grande, era só por não ser o que se esperava de um anjo, mas o Gemúndio, com muitas dúvidas e tão às portas da morte, não queria arriscar ter a braços uma coisa divina e maltratá-la.
Andou pelo quintal a ver um lugar mais empertigado. Um que desse para melhor cemitério de uma coisa de honra. E lá decidiu que entre onde cresciam as flores silvestres havia de ser o mais bonito. As flores silvestres significavam uma generosidade de beleza que os campos tinham para com toda a gente. Sem esforço, sem muita preocupação ou plano, as flores cobriam todas as extensões e faziam uma calma festa que alegrava quem não fosse má rês. A galinha mágica, por vir de anjo ou outro ser com superioridade, ia ainda assim achar bem o lugar e aceitar o perfume, o efeito gracioso da terra aberta para cemitério único, um cemitério só seu no espontâneo do campo. A caixa pousou. O Gemúndio observou-a como se ainda esperasse entender o que ali deixava para sempre, e depois cobriu de terra a cova e afastou-se. À noite, teve um pesadelo terrível. Viu os bichos subterrâneos a comerem o cozinhado da galinha e viu como se tornavam monstros e cresciam também para gigantes do tamanho de casas. Sonhou que brotavam da terra os escaravelhos e os besouros, mais os corta-lumes de patas dentadas, e sonhou que lhe passavam metros acima da cabeça e começavam a devorar tudo o que estava no caminho com bocas na extremidade de estômagos infinitos. O Gemúndio acordou e ainda achou ver o fantasma da falecida Rosinha. Tão aterrorizado ficou, nem se mexeu para ir à cozinha encher um copo de água e tomar o seu calmante. Ficou com a luz acesa, a cabeça sob os cobertores e as pernas a tremer. Assim esperou que fosse dia e o sol lhe provasse que os bichos da terra não haviam mudado para monstros. Seguiam no esterco e sossegados, para bem de toda a gente. O Gemúndio teve a certeza de que não se podia brincar com a memória do animal mágico. Foi deitar-lhe flores à terra e até lhe rezou. Pediu a quantos santos havia para lhe tomarem a alma e lhe acolherem as graças. Só depois, como um crente submisso, teve coragem para seguir com o dia. Parecia-lhe, embora desconfiado, que se desculpara num jeito digno de perdão.
A Matilde e a Mininha foram à casa do velho, entrouxaram tudo de novo e despediram-se com alguma demora. Queriam sair dali, não lhes fazia bem a casa, o cheiro da casa, nem mesmo saber que a galinha estava enterrada adiante com honras de flores e cuidados contra os cães que se punham a chafurdar para enterrar ou desenterrar ossos e mijar. Queriam sair. Arranjaram ajuda com o homem do cerco e encheram-lhe o carro e até esqueciam por ali coisas de que não precisavam ou não queriam precisar. A Matilde dizia: obrigada, agora está tudo, obrigada e boa sorte para as suas coisas. E o velho demorava-as, queixava-se numa lamúria, como se estivesse a atá-las por uma corda para não saírem. Dizia: mal posso com as pernas, tenho por dentro tudo a partir, que já faço pó no esqueleto, e agora com esta idade, sem outra ajuda, quem me vale. O homem novo do cerco dizia-lhe: ainda há-de haver outra caseira, há muita mulher por aí, senhor Gemúndio, em dois dias vai ver que lhe surge solução. O que não seria verdade. As mulheres não queriam facilmente um velho tão estragado, queriam um que lhes desse boleia e contasse histórias e tivesse uns trocos. Aquele já era outra coisa, sem liquidez e sem genica, não tinha conversa, só tinha trabalho para dar e promessas para depois da morte. Estava a enterrar uma segunda mulher em tão pouco tempo, não tinha bom augúrio.
A morte afligia muita rapariga nova. As raparigas novas que ficavam por pegar aceitavam os velhos enquanto lhes parecessem de alguma valentia, mas andar ali a rondar-lhes a morte, tão ao pé de eles se finarem, fazia impressão a muitas, que preferiam viver mais remediadas a viver como bichos de comer cadáveres. O Gemúndio deixou-as partir, quase chorando. A Matilde, que vivia dias de surpreendente rejuvenescimento, ficou pelo canto do olho a ver como o velho homem se entortava de emoção. Foi pensar para longe dali. Agarrada às trouxas e à mão pequena da cria, a Matilde foi pensar. O homem do cerco dizia: com tanto mundo e tanta gente, ainda há quem não tenha terra e quem não tenha ninguém.
Quando a Matilde voltou à casa, o velho estava aflito e todo ao contrário. Perguntava se havia vida antes da morte, como se ele próprio existisse só nas palavras, fosse uma retórica sem autonomia. Dizia a coisa absurda e a Matilde perguntava: você não tem fome. Ele abanava a cabeça em sinal afirmativo. Ela respondia: então é porque está vivo e ainda não lhe deu a morte, que a gente com a fome não nos dá para conversas tolas. Um bom prato e você arrebita.
Talvez quem não conseguisse prever o seu próprio destino fosse por viver ofuscado com o frívolo da vida. A Matilde ponderava. Talvez só não acedesse ao conhecimento lúcido do destino quem passasse na vida como um charlatão, habituando o pensamento a uma superficialidade que falseava os instintos mais genuínos. Seria um modo de desbaratar, uma leviandade a transformar a fortuna de viver numa participação cínica ou anestesiada na criação. O homem do cerco sorria todo, também estava de cristandade feliz ao levar no carro o velho Gemúndio ainda pasmado e a Matilde muito decidida. Ele perguntava: ó dona Matilde, isto para si também é cá uma surpresa, muda-lhe a vida toda. E ela dizia: o que nos muda também nos aumenta. Queria dizer que obrigava a um crescimento interior e espevitava o engenho e a robustez para a sobrevivência.
Não quereria casar com ele, nem preocupar-se com ficar-lhe herdeira de casa e terrenos e quantos porcos e vacas tivesse. Pensava que seria fácil deitá-lo no quarto que fora do Antonino, levar-lhe umas sopas nas refeições, umas carnes picadas e uns pães de forno, e deixá-lo entregue ao tempo dele, a sossegar para ver se morria sossegado. Pôs-lhe sobre a mesa-de-cabeceira a fotografia da mulher, da verdadeira de muitos anos, e afiançou-lhe que o ouviria se ele a chamasse. A Mininha foi à cozinha dizer à nova mãe que ainda estava arreliada, mas que havia de ajudar com alguma coisa. E a Matilde explicou-lhe que não se dizia arreliada, dizia-se triste e um bocadinho zangada. Porque arreliar-se era uma falta de educação. A criança estava arreliada porque não compunha dentro do peito os sentimentos. Era mal organizada nas dores como os bichos.
A Mininha disse: antes de um vulcão explodir, as cobras afastam-se, e se houver um rio ou mar no caminho, as cobras afogam-se. A Matilde baixou-se aos olhos da cria e limpou-lhe uma bágoa. A rapariga explicou: parece que vai tudo explodir. O medo fazia-se assim. Um medo feito de tristeza que tornava a menina arreliada numa pessoinha a vacilar, como novamente de colo, como outra vez antes do que já era. A Matilde percebeu que estavam as duas num recomeço, que era talvez mais fácil que recomeçassem então a par, cúmplices. A Matilde perguntou: e como sabes tu isso das cobras e dos vulcões. A cria respondeu: lembro-me, mas não sei de onde. A Matilde jurou: vamos ficar bem. Era sabido que praga de mãe adoptiva não pegava, mas talvez pegassem as bendições. Na vida pequena da cria, a intensidade de cada instante mandava-a crescer. O coração crescia-lhe, e a tristeza, muita e verdadeira, ia-lhe para o juízo.
A Matilde preparou-lhe uns cadernos e foi levá-la à escola. Sempre acreditou que era preciso que fosse à escola. A cria não estrebuchou. A Mininha perdia, a cada instante, um pouco da sua má-criação.
E a Matilde dizia: tu olha para os rapazes, cachopa, vê como são bonitos. A miúda ria e ainda achava os rapazes palermas e muito infantis. A Matilde insistia: são bonitos, rapariga, os rapazes são bonitos. Tens de aprender a olhar para eles.
Nessa altura, a Isaura penteava-se muito. Comprara enfeites novos, de cor para a pele e de prata para as orelhas. Ao sair à rua, ainda tão magra e frágil, ela sentia que competia por fim com as galinhas e com os outros animais irrequietos e apelativos. Achava-se uma coisa de ver. Perguntava-se a si mesma sobre quem seria burro de não querer ver uma mulher assim, diferenciada pelo cuidado de parecer bem. Ia aos bichos e às hortaliças, mas o verniz das unhas não se desfazia em qualquer gesto, e punha o cabelo para trás da orelha, sentia os brincos pendurados, não os perderia. Competia, sim, com os animais, que entre gostarem dela ou virem pelo milho pareciam reparar que estava de alegrias. Davam-lhe alegrias e ela pensava no Crisóstomo e acreditava que estar assim numa expectativa boa e tão grande era um contágio para todas as coisas. Por isso, ao chegar-se ao portão largo da frente, viu a Matilde com a Mininha pela mão e gritou. A Mininha levava os cadernos e desciam ambas para a escola na vila. Quando a Isaura gritou por elas, o seu entusiasmo inusitado mudou o mundo.