Em setembro, o diabo passava a sujar as amoras. Era o que dizia o povo de um modo mais indelicado. O diabo, maldoso e muito paciente, passava, baixava as calças escuras e malcheirosas, e sujava as amoras que, se comidas, davam a volta à barriga dos incautos e os sentavam. O Camilo, por causa da gula e da imprudência, estava sentado. O Crisóstomo bem lho dissera, que não era grande ideia ficar aguado pelas amoras. Era melhor aprender a ignorá-las. O rapaz, uma e outra vez a correr aos banhos, sentava-se, emagrecia e arrependia-se. Jurava que tinha escolhido as ainda gordas e jurava que as lavara bem lavado, não tinham diferenças com as de agosto e agosto tinha acabado havia tão pouco tempo. Como raio havia o diabo de estar a olhar para o calendário com uma precisão tão mesquinha.

O Camilo pensou no diabo como um chato imbecil.

Uma menina veio por um cão. Bateu à porta, perguntou pelo Camilo e acrescentou que vinha pelo seu cão, que estava para aprender modos de sossegar e parar de saltar. O Crisóstomo disse-lhe que o Camilo caíra de cama. O Camilo, umas horas antes, já combinara com o pai. Quando batesse à porta uma menina de olhos verdes, não queria que lhe dissesse que estava sentado. Era tão feio que pensassem em nós sentados, confessou o Camilo. Era-lhe mais importante que a menina só imaginasse o mal menor. Era importante que o Crisóstomo lhe dissesse que o rapaz estava de cama, adoentado, a dormir. A menina encontraria o cão atrelado ao lado da casa, e poderia voltar no dia seguinte, talvez dois dias depois quando estivesse tudo bem, já tudo disfarçado daquela palermice de não resistir às amoras.

O Camilo está, perguntou ela, venho buscar o meu cão. E o Crisóstomo respondeu com uma pergunta: chamas-te Teresa. Ela disse que sim. E ele exclamou: és tão bonita, que bonita, tão bonita. Ela corou. O Camilo, escondido no quarto, aflito para não ter de se ir sentar, ouviu também e também corou. Venho só buscar o meu cão, repetiu ela, como se o pescador a estivesse a prender por um braço sem a deixar mais ir embora. Ele deu-lhe o recado completo e, antes que ela se fosse, largada de timidez e braço, largada de ansiedade, disse-lhe: volta amanhã, o Camilo já vai estar bom e vai gostar de falar contigo.

Já lhe havia pedido que não tivesse vergonha. Nunca tenhas vergonha de mim, e nunca penses que te quero mal. Podes pedir-me todas as ajudas e falar-me sobre todas as tuas ideias, medos ou sonhos. O Camilo, ainda assim encabulado, contou-lhe que a Teresa tinha uns olhos verdes muito meigos e era tão delicada que parecia uma pessoa feita de algodão por dentro. O Crisóstomo sorriu. O Camilo respondeu: que pena vir o diabo cagar nas amoras. Só é bom que seja setembro e que as aulas estejam quase a recomeçar. Quando recomeçarem, verei a Teresa mais vezes.

Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há-de ficar comigo para sempre sem me abandonar.

O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós. O Camilo sorriu e disse: não compreendo nada, só queria dizer que gosto da Teresa e que os meus amigos de quinze anos, como eu, estão todos a arranjar namoradas. Gostava de arranjar uma namorada para sempre.

Alguns dias depois, a menina convidou o Camilo para a sua casa. Era para ver como o cão tinha mais uso da inteligência e se portava tão bem. Ficara mais calmo. Como fazes para ensinar os cães, perguntou ela. Ele encolhia os ombros. Era-lhe natural. O meu irmão que morreu, disse ela, também sabia ensinar os cães. O Camilo não soube o que responder.

A casota do cão parecia uma miniatura de uma casa grande feita para pessoas. Tinha um telhado bonito de madeira pintada de laranja. Dizia: Trovão. Parece uma casa para gente pequenina, disse ele. E ela perguntou: já viste o anão que agora vive ao pé da igreja. Não, respondeu ele. E porque se matou o teu irmão.

A Teresa disse-lhe que o irmão era diferente. Disse-lhe: às vezes, por serem diferentes, as pessoas preferem morrer. Eu queria mais que ele estivesse vivo, porque era-me igual que ele fosse diferente. O Camilo achou que entendeu. Respondeu: o meu avô também morreu, e a minha avó já tinha morrido, e a minha mãe e o meu pai. E depois tive outro pai e agora vou ter uma mãe, e tenho um tio e mais a mãe do meu tio e a nova filha dela que fica a ser minha prima. A Teresa perguntou: como se chama a tua prima. Ele disse: Mininha. Ela respondeu: não conheço. Ele disse: é mais nova do que nós. É uma criança ainda.

O Trovão, espreitando ansioso à porta da sua distinta casa, subitamente não se conteve e saltou-lhes em cima. O Camilo e a Teresa riram-se e soltaram-no para irem correr com ele.

Mais tarde, o Camilo pensou que o Antonino se podia matar. Pensou nisso sem poder pensar em mais nada.

Para não fazer do Crisóstomo um mau pai, o Camilo contou-lhe que tinha medo que o Antonino se matasse. O pai abraçou-o.