Veio um desconhecido e olhou para o Antonino. Esticado, e a parecer comprador, olhou para o Antonino. O Antonino arrepiou-se. Estava com o cheiro dos bezerros e mais o cheiro das galinhas de meter-lhes o dedo no cu, e elas andavam sempre por ali a deitar ovos enquanto ele arremessava umas couves ao chão para debicarem. Os patos vinham em bando e picavam-lhe as calças e as calças rompiam-se, e o Antonino já competia com o espantalho no meio do milho. Equilibrava os ovos, escolhia os mirrados para a casa, os maiores para o homem da carrinha, depois enxotava dali o cão que não parava de ladrar e o estava a aborrecer. Chamava pela Isaura para ver que raio queria o desconhecido, e um dos bezerros começou aos pulos como se fosse bailarino e, a dar-lhe palmadas, o Antonino pôs-se a suar, e nem o bezerro acalmava atirando lama e palhas do chão pelo ar. O Antonino estava despenteado, e o vento naquele dia ia às pressas por algum irritante mistério. O desconhecido apeou-se ali a fumar e a fumar olhava.

Se fosse pelos ovos, pensou o Antonino, então era só ir buscá-los, que até lhos dava. Se fosse por um frango, então era só ir buscá-lo, que até lho dava. Se fosse por uma conversa, então podia dizer, mas talvez o Antonino, estremecido, não conseguisse responder nada. Adoraria, contudo, que fosse por uma conversa.

Se fosse por ele, pelas alminhas, podia pegar. Não tinha preço ou tinha o preço de um pardal. Pode comprar-me pelo preço de um pardal, pensou. O estranho homem sorriu.

A Isaura largou os orégãos e gritou: diz ao senhor para entrar. Entre as buganvílias que já circundavam a janela grande da cozinha, a Isaura gritava e ria-se, para ensinar o Antonino a ser feliz. Diz ao senhor para entrar e ver de perto como são frescos os nossos ovos. O desconhecido entrou.

O Antonino esfregou os dedos na roupa suja e ficou tão nervoso que apenas reparou em como um homem podia ser um assunto tão intenso. A Isaura, descendo a correr as escadas, disse: vou à casa da praia. Até logo. Foi certamente para que ficassem sozinhos. O Antonino não conseguia respirar.

A gatafunhar com as próprias mãos, o Gemúndio dizia que a galinha tinha ido embora. Não se passara tempo suficiente para que desaparecesse da terra, mas o homem estava obstinado a garantir que, escavada a cova, não estaria nada dentro das madeiras que ele pregara. Talvez tivesse sido roubada, se ali andava a aparecer a terra molhada em tempo seco, talvez a mesma pessoa que a molhasse tivesse ido buscar o animal mágico, porque era um facto que a caixa estava vazia, sem ossos e sem nada que deixasse rasto da galinha ou do açafrão. Uma galinha mágica podia desaparecer depois de morta mil vezes que não seria nada mais espantoso do que já começar por ser mágica. Foi outra vez perguntar ao Giesteira se a mulher estava acorrentada. E o filho regressado jurou que tudo passava calmo. Aquela louca não escavava nem mijava em lado algum que não fosse certo. O Gemúndio baralhou-se em demasia. Começou a tremer, como a regurgitar ou a derreter. A Matilde levou-o desolado de volta para casa.

Em casa, o homem cismou que a Rosinha também se pusera a pé tão mágica quanto aquilo que comera. A Matilde ficou a velar-lhe o sono mas, a cuidar para que acalmasse, acalmou-lhe de todo a vida. Foi dizer à cria que estava o velho Gemúndio morto no quarto antigo do Antonino. A cria, esticada de solenidade e agarrada ao Irmão, perguntou se podia ir vê-lo de perto, a pedir-lhe ainda, assim fresco do lado de lá, que fosse a dizer à mãe que estava tudo bem. A Matilde disse-lhe que não havia muito para ver e que todas as coisas, por mais insondáveis, ficavam do lado de cá. A cria foi ao pé do velho e chorou pela mãe e, não se contendo, acreditou sozinha na transcendência e falou. Pediu tudo quanto quis pedir e só se ateve quando respirou mais fundo e confessou estar mais tranquila. Como não teve coragem de beijar o homem, levou-lhe o sorriso de botões ao rosto. O Irmão beijou o Gemúndio. Depois, o Irmão pareceu abraçar-se a ela. A Mininha e o Irmão educadamente benzeram, com a candura, a morte do Gemúndio. A Matilde amou a rapariga por ter sido livre a decidir uma coisa tão subjectiva e delicada quanto a crença na transcendência. Depois, trancou-a dali para fora, que era muito morto para uma só criança em tão curto tempo e as crianças não deviam ganhar hábito da morte, apenas consciência. A Mininha, muito adulta e bem-criada, dizia que depois de ver a mãe já pouco lhe assustava a morte das outras pessoas. Mas não era por desprezá-las, era por dominar melhor os sentimentos e parecer que tudo ficava abaixo de uma intensidade que não voltaria a repetir-se. A cria sentou-se, ponderou melhor e disse outra vez: talvez se repita consigo, mas agora não quero pensar que isso vai acontecer. Mais depressa queria morrer eu primeiro. A Matilde abraçou a filha Mininha. Havia uma tristeza muito grande em que uma cria tão nova tivesse já ideias tão cruéis sobre a perda. Mas era também verdade que dessa tristeza nascia o amor das duas, Matilde e Mininha, agarradas uma à outra como promessa de se fazerem felizes.

A cria disse: mãe Matilde, abrace também o Irmão.

A Mininha ainda muito choraria. Gritaria pelas noites fora e correria pelo campo à procura do abraço da Matilde, como se lhe corressem atrás as abelhas todas do mundo. Andaria assim angustiada e a interromper a brincadeira mais encantada com o desespero súbito do medo, a suspeita de ficar sozinha, a boca dos bichos ferrando a pele da Rosinha, a galinha a arder no estômago morto e deitado da mulher. A Mininha haveria de andar muito tempo na instabilidade das emoções, porque aqui e ali o medo a recolocava na expectativa insegura de saber o que lhe aconteceria. Perguntava à Matilde: mãe Matilde, vou crescer, eu vou crescer, mãe Matilde, vou ficar assim forte e saber fazer as coisas e tomar conta de tudo sem morrer nova. Muita gente tinha dito que a Rosinha morrera nova.

O desconhecido entrou depois de o Antonino lhe ter dito que entrasse. A Matilde apontou o quarto, não havia muito a saber. Era pegar no velho e levá-lo para a capela, que o punham já de feição ao funeral. O desconhecido dizia que não tinha problemas com isso e o Antonino também não. Embalaram o homem como uma mercadoria digna e tiveram dele uma pena calma que ia pela humanidade inteira, como se carpissem as mortes por vir de toda a gente. Por ser maricas, o desconhecido nem por isso chorou. O Antonino sim. Parecia que lhe importava o velho mais do que seria de importar, porque estava acolhido pela mãe e era ainda uma companhia. E as fortunas que deixara iam para a coisa pública ou para os bancos, que ninguém fora mudar papéis nem pedinchar fatia. Ficaram os bichos a meias na casa da Matilde e na quinta da Isaura, mas quem os quisesse de direito que os fosse lá buscar. Não tinham papéis, tinham boca e fome todos os dias. Mas às perguntas não diziam nada, e na comida estavam habituados ao melhor. O Antonino segurou nos ombros e o desconhecido nos pés e o corpo foi posto na caixa que mandaram seguir para a capela. A cria, atabalhoada com aquilo e com ser criança, observou o Antonino e o desconhecido e sentiu que, não se conhecendo antes, eram já amigos. Eram como amigos e achou que se conheceriam para sempre, como se não pudessem voltar a desconhecer-se ou não quisessem nunca mais deixar de se ver. A Matilde achou muito masculino que o desconhecido não chorasse. Achou muito masculino que não tivesse medo de pegar num morto. Achou que estava com o Antonino, pensou que não havia mais nada a achar e muito menos a fazer. A Matilde perguntou: como se chama.

A Isaura foi ajudar a fazer as trouxas com as tralhas do Gemúndio. Dizia: dona Matilde, conte sempre comigo. Conte sempre comigo para si e para a Mininha, que ao Antonino já nem que me batam o deixo de mão. É meu. E a Matilde respondeu: é meu também. Ele é meu também. E, entre a tristeza, foram de novo levadas a sentir alguma felicidade. Abraçaram-se como amigas, como família, sabiam que precisavam uma da outra para serem melhores. Sabiam, já tão claramente, que juntas poderiam ser muito mais felizes.

A Isaura não tinha discursos, era simples e fazia da tristeza ou da alegria estados de espírito muito elementares. Agora estava alegre e queria que fossem alegres as suas pessoas. Dizia à Matilde também que o Crisóstomo, o Camilo e mais o Antonino eram as suas pessoas. O rapaz pequeno ouvia-a e punha-lhe palavras, para ajudar a que se expressasse, porque ela era de conversas práticas e não sabia conversas complicadas acerca de assuntos menos de compra e de venda. O Camilo dizia: esperança, a Isaura tem esperança. E ela repetia: pois espero, espero muito. O rapaz pequeno perguntava: e casam os dois, casam. Se casassem ficavam para sempre comprometidos, como obrigados a serem também os pais dele. Ela dizia que não podia escolher sozinha, ele perguntava porquê. A Matilde dizia: vamos às trouxas.

Mas o Camilo acrescentou: até eu sei que são os homens que têm de pedir as mulheres. Até eu sei disso.

A Matilde sorria. O Camilo dizia: o meu avô também morreu. E a minha avó, e a minha mãe e o meu pai.

Em segredo, a Isaura haveria de dizer à Matilde: o Camilo tem uma amiga. Anda enrabichado por uma cachopa. Estava a ficar grande. A Matilde admirou o Camilo. Tinha agora quinze anos, era um crianço todo feito para ser homem. Depois gritou: Mininha, não fiques aqui, vai passear, rapariga, vai ver os rapazes que muitos ainda devem estar a pescar no rio. Vai ver como se pescam os peixes.

O Crisóstomo foi pedir a Isaura em casamento na areia. Sentaram-se. O Crisóstomo levara uma ceira com toalha e lanche. Ela disse: sou um bocado maluca, fiquei muito tempo sozinha e talvez tenha cometido erros e estragado coisas na minha alma. E ele dizia: pois eu também sou um bocado maluco, e fiquei muito tempo sozinho, talvez tenha cometido erros e estragado tantas coisas na minha alma. Se casarmos para nos estragarmos um ao outro, talvez alguma coisa se componha. Sinto que é mais fácil ser maluco quando estou contigo. É melhor. E ela respondeu: deixas-me ser mãe do menino. E ele disse: deixo. Então aceito, disse ela. Se casassem, ela queria caber em tudo da vida do Crisóstomo. Queria ser tudo na vida dele. Mesmo maluca e sem discursos. Comprava e vendia as felicidades e as tristezas com essa simplicidade de dizer que sim. Depois espantou-se com o lanche. Havia doces ainda mais esquisitos que o requintado de mirtilo, e havia torradas com feitios, como se fossem bonecos de brincar, e havia bebidas mais importantes, com rótulos ilegíveis e uns copos azuis de vidro grosso que lembravam o anel que ele lhe dera. E ele disse: não tenho dinheiro para mais anéis como esse, mas dou-te um copo e fico com o outro, fazem conjunto. Ela percebeu que estava tudo premeditado, que ele andava a preparar-lhe a festa há tempo e queria muito que ela aceitasse. A Isaura, que ainda não sabia quase nada sobre o amor, achou que era já feliz, mais feliz do que haviam sido os seus pais. Talvez pudesse começar a perder o medo. Talvez pudesse mudar. Poderia perder a tristeza lentamente. Disse que começaria a falar mais vezes sozinha até aprender a falar. Até aprender a verbalizar o que sentia. Ele jurou fazer o mesmo. Jurado ali, na areia, ambos sentiram que a natureza toda os entendia e geria a sua inteligência para favorecer os seus desejos.

Puseram-se de luz, como se caíssem de um candeeiro.