MADRID, 6 DE JANEIRO DE 1948

Na parte de cima do estojo lia-se Parker, mas a caneta era uma Pelikan clássica, de corpo verde riscado e tampa de laca preta com um clipe dourado.

– O meu filho também gostava de escrever muito. – Os olhos de Frau Weiss nublaram-se quando o falso Adrián a segurou entre os dedos com uma expressão de prazer quase infantil. – Tenho as suas cartas da frente, muito bonitas, mas a… Füller… ficou em Hanôver. Esta igual.

– Muitíssimo obrigado, Ingrid. – Manuel Arroyo Benítez, com o seu nome próprio e os dois apelidos, abraçou-a e beijou-a nas faces. – É lindíssima, adoro-a, mas… Como sabes que gosto de escrever?

– Eu vi caderno e lápis no teu quarto, aqui. Tu muito velho para usar lápis.

O Natal tinha começado para eles um mês antes. A 6 de dezembro, Clara deu uma festa para celebrar o dia de São Nicolau, o lendário viajante que todos os anos navegava de Espanha à Alemanha para distribuir doces e fruta às crianças. Cumprindo escrupulosamente a tradição, Fräulein Stauffer entregou a cada convidado dois cartuchos de papel, um cheio de caramelos e outro de fruta cristalizada, desta vez realmente espanhola. Rafael Cuesta Sánchez foi um dos destinatários dos doces e já não se deu ao trabalho de fazer as perguntas com que massacrava o seu amigo Manolo desde que este o convidara a integrar o círculo de Clarita.

– Mas o que achas que ela quer de mim?

– Não sei. Não voltou a dizer-me nada.

– Está bem, mas… não percebo.

– Neste negócio, as coisas correm muito devagar. – Era só isso que sabia, e muito bem, Manuel Arroyo Benítez. – Talvez não tenha chegado ainda o momento de te pedir um favor. Talvez as coisas tenham mudado e esse momento nunca chegue. Isso seria o melhor para ti, portanto não fiques nervoso.

O falso Adrián Gallardo não tinha telefone. O salário de um porteiro noturno não dava para tanto e, além disso, o protegido de Fräulein Stauffer não tomava qualquer iniciativa que não fosse previamente emanada do número 14 da calle Galileo. Por isso, todas as tardes perguntava numa taberna da Corredera Baja se alguém lhe tinha telefonado ou deixado recado. Embora jantasse em casa de Ingrid todas as sextas-feiras, Clara preferia esse sistema para entrar em contacto com ele. Quando lhe devolvia a chamada, ela limitava-se quase sempre a perguntar-lhe como estavam a correr as coisas, de vez em quando convidava-o para almoçar e só em ocasiões especiais o chamava ao seu escritório.

– Obrigada por teres vindo, Adrián. – O dia 7 de julho de 1947 foi uma dessas ocasiões. – Como estás?

Convidou-o a sentar-se a uma mesa estranhamente desarrumada, coberta de papéis e de pastas, e continuou a falar ao telefone em alemão sem lhe dar oportunidade de responder à pergunta.

– Claro, sim… Já me tinha lembrado disso, de facto… – Ergueu a vista na direção de Adrián e sorriu por instantes, antes de voltar a fixá-la nos seus papéis. – Tentarei tratar disso hoje mesmo.

Imediatamente depois de desligar, sem qualquer preâmbulo, perguntou-lhe se ele achava que o funcionário de La Meridiana estaria disposto a juntar-se ao grupo.

– A juntar-se? – O protegido foi cauteloso. – A que te referes exatamente?

– Bom… – A protetora não foi muito mais audaz. – Pergunto-me se gostaria de nos conhecer, de se relacionar com os nossos amigos, de colaborar connosco se algum dia surgisse a oportunidade.

Adrián Gallardo reprimiu a tentação de sorrir e atrasou a resposta alguns segundos, como se precisasse de refletir muito bem.

– Não sei o que dizer, Clara. Não o conheço muito bem, mas tendo em conta como se portou comigo, suponho que sim.

No dia seguinte, na esplanada do Café Lion, Rafael Cuesta Sánchez soube que tinha sido convidado para a festa que o camarada Eberhard Messerschmidt ofereceria na sua casa de Cercedilla a 18 de julho, para celebrar o aniversário do golpe de Estado. Pela primeira vez perguntou porquê. Pela primeira vez, ouviu o amigo dizer que não sabia.

– E agora, o que faço? – perguntou a seguir. – Digo que sim ou…?

Aquelas reticências deram lugar a um silêncio que se prolongou mais do que era razoável. O falso Adrián chamou o empregado, pagou a sua cerveja e a que o acompanhante não tivera tempo de acabar e propôs-lhe um passeio até à calle Apodaca. Só depois respondeu.

– Vou ser muito sincero contigo, Guillermo. – Mais uma vez, o recurso ao seu verdadeiro nome anunciou a gravidade do assunto de que iam falar. – Para mim, seria uma bênção que aceitasses. Em primeiro lugar, por puro egoísmo, porque me sinto muito sozinho. O Adrián conhece cada vez mais gente, mas eu não tenho ninguém com quem falar. Para a minha missão também seria muito bom que aceitasses porque me garantiria um meio fácil e seguro de canalizar a informação. Se voltar a ver-te com frequência, não terei de me preocupar em esconder um caderno como o que tens no bolso num cacifo vazio. Com um trabalho como o teu e a quantidade de correspondência com que lidas diariamente, conseguirias enviar mais relatórios à Meg, até pelo correio. De modo que, pensando em mim, pedir-te-ia que me acompanhasses, mas não te quero enganar. Não sei o que a Stauffer quer de ti, ela não me disse, no entanto, se tivesse de arriscar, apostaria o salário de um mês em como se prende com o teu trabalho. Um funcionário de uma transportadora é um tesouro para qualquer organização de inteligência. Ora, isso significa que é provável que acabes por correr riscos. E, com esta gente, risco é sinónimo de perigo, portanto… – Parou, olhando para o homem que caminhava ao seu lado. – Escolhe. Agora estás a tempo, porque o teu contacto com a Clara é tão superficial que uma negativa não teria consequências. Mais à frente… quem sabe.

Guillermo olhou para ele. Depois sorriu. Finalmente, desatou a rir, para ativar o mecanismo que obrigava sempre o seu amigo a rir-se com ele.

– E como vamos para lá, de comboio?

Com efeito, a 18 de julho, ao meio-dia, desceram ambos de um comboio na estação de Cercedilla. No passeio fronteiro, como lhes tinha dito Ingrid Weiss, viram uma taberna com um nome tão vulgar que acabava por ser original. Na Casa Gómez confirmaram-lhes que a estalagem ficava mesmo ao lado, e que os burros que tinham visto presos a um muro, à esquerda da porta, eram o meio de transporte mais eficaz para subirem até Fuenfría.

– Não está a falar a sério… – Guillermo não achou graça nenhuma. – Eu nunca montei um burro na vida.

– Estes já conhecem o caminho. – Sorriu o taberneiro. – Mas o meu filho irá convosco, só para prevenir. E mais tarde, para descerem… Em casa de don Eduardo há telefone, mas o melhor é levarmos um burro a mais e os senhores descem com o jardineiro, que vive aqui na aldeia. É o que fazemos todos os anos.

– O Eduardo… – Manolo franziu o sobrolho. – Está a falar do senhor Messerschmidt?

– Claro. É que ele tem um nome muito estranho. Aqui chamamos-lhe assim.

Nos últimos dez dias, o funcionário de La Meridiana não tinha dormido muito. Desde que aceitara aquele convite, quase todas as noites punha o despertador para as quatro da manhã e dirigia-se a um prédio da Gran Vía onde recebia um curso intensivo de nazismo. Manolo tinha calculado o grau de conhecimento do Terceiro Reich que seria expectável de um simples fascista espanhol, mas estava mais preocupado com a possibilidade de Guillermo falar demasiado do que de parecer ignorante. Além de lhe recomendar que, por norma, ficasse calado, tentou antecipar os nomes dos convidados que poderiam encontrar na festa e explicou-lhe as normas específicas de cortesia que regiam as relações sociais naquele grupo.

– Até algum deles se embebedar – repetiu no melhor quarto de uma estalagem de Cercedilla, minutos antes da hora do almoço –, ninguém levanta o braço nem grita Heil Hitler, percebido? Quando esse momento chegar, eu farei o mesmo que eles porque fui voluntário nas SS, jurei fidelidade ao Führer, mas tu não podes ir tão longe. Tu limitas-te a levantar o braço, mas sem dizer nada, Arriba España!, quando muito, e se calhar nem isso. É o que se espera de um camarada espanhol. Se alguém te perguntar, podes definir-te como fascista, isso será do agrado geral, mas que nem te passe pela cabeça dizer as palavras nazi ou nacional-socialista porque eles nunca o fazem. Preferem dizer que são europeus, essa é a palavra-chave, e para falarem do Terceiro Reich também usam eufemismos como aqueles tempos, os bons velhos tempos… Coisas assim. A única palavra que mantiveram é Führer, embora, para se referirem a ele às vezes usem também anagramas, como 88 ou HH. Vais lembrar-te de tudo isto?

– Sim, vou lembrar-me de tudo, tem calma. A única coisa que me preocupa… – Franziu os lábios numa expressão de desagrado. – Não acho graça nenhuma a montar esse burro, essa é a verdade.

– Não me lixes, Guillermo! Estás prestes a meter-te na boca do lobo, vais conviver com uma data de criminosos de guerra e vens-me com isso?

– Que queres? Tenho imenso medo de montar animais. Quando era pequeno… – Antes de partilhar a recordação, ele próprio desatou a rir-se. – Um dia, a minha avó obrigou-me a montar um pónei que havia no Retiro. Era um animal muito bom, muito manso, dizia o dono. Bom, a verdade é que me atirou ao chão, eu voei por cima da cabeça dele, ainda tenho a cicatriz…

Às sete e meia da tarde, depois de um passeio tranquilo durante o qual, dessa vez, sim, os burros se comportaram como os mais mansos e dóceis, chegaram a uma cancela de ferro ladeada por dois pilares de granito e trancada por uma corrente. Atrás dela começava um trilho de terra que, entre prados e arvoredo, parecia não levar a lado nenhum.

– Já chegámos – anunciou o filho do taberneiro.

– Aonde? – O homem que se apresentara como Adrián Gallardo voltou-se e olhou-o surpreendido. – Não se vê nenhuma casa.

– Está ali atrás, no fim do caminho. Quando saímos, o meu pai telefonou a avisar, deve estar a chegar alguém para abrir… – Nessa altura, o vento mudou de direção e o rapaz levantou a mão. – Não ouvem a música?

O ouro do Reno, um Wagner lírico, pacífico, quase gentil, sucumbiu logo a seguir ao estrépito de um motor. Uma furgoneta antiga mas imaculada parou do outro lado da cancela, e o condutor não fez tenção de os cumprimentar antes de abrir o cadeado e de tirar a corrente, apesar de eles terem desmontado ao vê-lo chegar. Depois de abrir a porta, dirigiu-se primeiro ao dono dos burros, indicando-lhe por gestos que os podia levar. De seguida, dirigiu-se a Guillermo.

– Adrián?

– Não, Rafael – respondeu ele, adivinhando que o interlocutor não falava espanhol, antes de apontar para o amigo. – Ele, Adrián.

Gut. – E inverteu a ordem que a intuição lhe ditara ao estender-lhes a mão. – Willkommen.

Esperou que o filho do taberneiro iniciasse o caminho de regresso antes de fechar novamente a cancela com corrente e cadeado. Só quando se certificou de que estava bem segura, apontou para a furgoneta com o indicador.

– Sabes o que te digo? – sussurrou Guillermo ao ouvido de Manolo enquanto o seguiam. – Muito me arrependo de ter protestado por causa do burro.

Aquela receção bastara para lhes sugerir que iam entrar numa comunidade secreta, cuja natureza justificava a pouca informação que tinham conseguido arrancar ao taberneiro quando o convidaram a beber um copo com eles, depois de uma refeição muito saborosa. Na sala de jantar da Casa Gómez ficaram a saber que em Cercedilla havia duas zonas residenciais conhecidas como «colónia dos alemães», contudo, apesar de o proprietário da taberna estar a par dos burros que os convidados dessas casas alugavam, não sabia muito mais sobre os donos delas. Só lhes contou que a colónia de Camorritos, situada à subida para o monte, era mais antiga do que a do vale da Fuenfría e que o primeiro a erigir ali uma casa alpina, com varandas e beirados de madeira decorados com aberturas em forma de coração, foi um alemão de origem judaica que chegou a Espanha por volta de 1920.

Don Eduardo chegou muito mais tarde. Pelos vistos, vivia em Madrid desde o fim da nossa guerra e depois, pronto, ficou. A princípio, só vinha passar o verão, mas agora vive aqui todo o ano.

A princípio era antes de 1945, quando Messerschmidt estava vinculado à Agregação Naval da embaixada alemã, um emprego que encobria o seu verdadeiro trabalho para a inteligência militar. Agora referia-se ao cargo atual como assessor da Armada de Guerra espanhola, um serviço tão valioso para o regime que o próprio Franco tinha escrito pessoalmente uma carta, recusando-se a entregá-lo aos aliados. O taberneiro não devia saber disso, mas também não lhes pôde dizer muito mais.

– É um homem amável e generoso, que paga muito bem os serviços que lhe prestam. As pessoas da aldeia respeitam-no, embora não o vejamos muito. A ele, a eles… Não gostam de se misturar connosco e é lógico, como são estrangeiros têm outros costumes, alguns nem sequer falam bem espanhol. Mas, o que estou a contar-lhes? Se os senhores devem conhecê-lo muito melhor do que eu…

No dia seguinte, quando entraram no comboio que os levaria de volta a Madrid, ambos sentiam que não haviam conhecido em absoluto o homem que os recebera de braços abertos à porta de um chalet que parecia ter sido trazido do Tirol por artes mágicas. E essa não foi a sensação mais inquietante que a festa de Herr Messerschmidt lhes provocou.

Don Eduardo, como lhe chamavam na aldeia, vivia há mais de vinte anos em Espanha, contudo, embora o seu domínio da língua fosse muito melhor, o seu aspeto não diferia muito do de Frau Weiss. O corte do casaco, as calças de cabedal, os emblemas alpinos que lhe decoravam as lapelas e as meias brancas que espreitavam pelo rebordo das botas teriam competido vantajosamente com a trança grossa que coroava a cabeça de Ingrid num concurso de emigrantes atacados pela saudade. Aquele excesso surpreendeu-os porque Herr Messerschmidt era, regra geral, um homem muito discreto. Meg só tinha encontrado uma fotografia dele, à civil, com um fato cinzento indistinguível daqueles que vestiam os espanhóis que o rodeavam. Mesmo assim, ninguém teria hesitado em identificá-lo não só como o único alemão do grupo, mas também como um dos três militares que posavam para a máquina. Hirto como o tronco de uma árvore, de calcanhares unidos, ombros erguidos e queixo levantado, a pertença à Marinha de guerra do Reich aflorou visivelmente na energia com que apertou a mão dos recém-chegados.

– Bem-vindos, bem-vindos, estamos muito felizes por conhecê-los. – O sotaque gutural, inconfundível, diluía-se na simpatia de um sorriso que lhe permitia exibir os dentes. – Entrem, por favor, vou apresentar-lhes os meus amigos, por aqui…

Manolo não sabia muito bem a que tipo de festa iam. Tinha descartado a possibilidade de uma farra com putas porque sabia que Clara, convidada para a receção que Franco oferecia todos os anos a 18 de julho no palácio de La Granja, se lhes juntaria à noite, depois de cumprimentar o Generalíssimo. Contudo, além da presença provável de senhoras no salão, não fazia ideia de quem iriam encontrar. A realidade começou por lhes defraudar as expectativas para depois as ultrapassar. O efeito foi semelhante àquele que teria sentido um banhista incauto que se metesse no mar num dia calmo, soalheiro, e fosse atingido por uma onda inesperada que brincasse com ele como com um boneco de trapos que não está disposto a soltar.

No início foi a calmaria. À primeira vista, os homens e as mulheres que os cumprimentaram das suas cadeiras, sem grande interesse, formavam um grupo previsível e socialmente homogéneo, meia centena de pessoas abastadas, onde só chamava a atenção a quantidade de nacionalidades dos seus integrantes, um número tão grande como o que Monsieur Agoyo costumava encontrar nos cocktails que frequentara durante os seus primeiros anos em Genebra. A única diferença percetível entre aquela festa e as organizadas pela Sociedade das Nações era linguística. Embora ao longo da noite se fossem formando grupinhos onde alguns convidados sussurravam em língua materna, o idioma comum era o espanhol, mais ou menos bem falado. A avaliar pela idade das mulheres, pelos penteados impecáveis e pelo brilho dos diamantes que as iluminavam, quase todos os homens convidados tinham ido com as legítimas esposas, apesar de dois cinquentões, um francês de gestos aristocráticos, e outro alemão, terem trazido acompanhantes ocasionais, duas jovens espanholas na casa dos vinte anos, sem outras joias além dos encantos que transbordavam dos seus vestidos ligeiros. Ambas se identificaram com os seus nomes de guerra, Luci e Cati, iniciativa que não destoava num salão onde a norma era apresentar-se com um nome próprio, quase sempre falso, e nenhum apelido.

– Dá-me um abraço, camarada! – Até que o estrondo de uma onda repentina desencadeou um vendaval a centenas de quilómetros de qualquer mar. – Fico sempre emocionado quando reencontro os bravos que me orgulhei de comandar.

Um homem atlético mas não muito alto, com feições de menino bonito, moderadamente travesso, nariz pequeno e bochechas redondas que durante toda a vida lhe permitiriam reivindicar ter sido o modelo de Tintin, nem sequer se deu ao trabalho de dizer como se chamava enquanto atravessava o aposento na direção do falso Adrián Gallardo.

– Às suas ordens, meu general! – Manolo bateu os calcanhares e fez a saudação fascista antes de se fundir num abraço com Léon Degrelle.

– Oxalá, não achas? – O belga falava muito bem espanhol. – Oxalá pudesses voltar a estar sob as minhas ordens para lutarmos juntos, ombro a ombro, pelo futuro da Europa.

– Não perca a esperança, senhor. – A melancolia do chefe supremo da última unidade onde se batera o verdadeiro Adrián Gallardo inspirou o seu usurpador. – Isto ainda não terminou. O nosso Reich viverá mil anos.

– É assim que se fala! – Degrelle agarrou-o pelos braços e apertou-os com força. – Vem comigo… – Porém, de repente, mudou de opinião. – Venham! – Dirigiu-se aos restantes convidados. – Aqui têm um dos meus bravos, um herói, defensor de Berlim, orgulho do Reich e do seu chefe, que tive a honra de ser eu próprio…

A intervenção de Degrelle, um dos líderes naturais daquela obscura congregação, cobriu com um halo de luminoso prestígio a cabeça do presumível Adrián Gallardo Ortega, que a partir de então teve oportunidade de falar individualmente com a maior parte dos convidados, enquanto o homem que o acompanhava permanecia em silêncio, um passo atrás, como um guarda-costas indigno de atenção.

– E tu, não bebes nada? – Só Luci se aproximou dele, enquanto Manolo falava com um casal de britânicos. – Anda, acompanho-te ao bar.

Apesar de ter a certeza, depois da irrupção do filho predileto do Führer, de que nenhuma quantidade de álcool conseguiria embebedá-lo, Guillermo conformou-se com um copo de xerez e Luci sorriu ante semelhante escolha.

– Devias ter ficado em Madrid – sussurrou-lhe, depois de se afastarem dos empregados. – Esta gente não gosta nada de…

Esticou o indicador da mão direita, apoiando-o na face e Guillermo desatou a rir.

– Enganas-te, não somos maricas. Somos só amigos e convidaram-me para vir com ele, embora ainda não saiba porquê.

– Nesse caso… – Luci fez uma pausa, voltou-se como se soubesse que o acompanhante exigia a sua presença, viu a mão que se agitava no ar e sorriu antes de acabar a frase. – Nesse caso, devias mesmo ter ficado em Madrid. – Bebeu de um trago o conhaque que lhe restava no copo e pousou-o numa mesa pé-de-galo. – Bem, vou-me embora porque o meu tio fica muito ciumento quando me afasto dele cinco minutos.

O «tio» de Luci era Louis Darquier de Pellepoix, comissário para os Assuntos Judaicos do regime de Vichy. O falso Adrián Gallardo reconheceu-o sem hesitar, reconhecendo também John Angus Macnab, o fascista inglês cuja mulher, Marjorie Munden, já era amiga de José Antonio Primo de Rivera antes de a Falange existir. Como o anfitrião ou o próprio Degrelle, apresentaram-se com os seus verdadeiros nomes, seguros do grau de blindagem que poderiam esperar do regime de Franco. Outra das estrelas da reunião, a atriz Miriam di San Servolo, beijou o herói de Berlim nas faces com um trejeito encantador, antes de se identificar com o seu nome artístico. Jovem, loura e sofisticada, tinha uma boa figura e uma cara interessante, com olhos claros e bonitos, mas o maxilar demasiado marcado e um queixo de bruxa que contrastava com o suave contorno do rosto da sua irmã mais velha, Claretta Petacci, a amante do Duce. Mal a reconheceu, Manuel Arroyo Benítez disse para consigo que, se aquela receção fosse uma lotaria, ter-lhe-ia saído o primeiro prémio, mas escondeu o júbilo e continuou a cumprimentar toda uma galeria de criminosos famosos. A timidez do romeno Horia Sima, cujo aspeto o assemelhava mais a um frade cartuxo do que ao chefe supremo da Guarda de Ferro, pareceu-lhe incompatível com os factos da sua biografia, mas um alemão jovial e sociável, que lhe pediu que o tratasse simplesmente por Walter embora ele tivesse a certeza de que o seu apelido era Kutschmann, tratou-o como se o conhecesse há uma vida.

O único convidado de Herr Messerschmidt que não se levantou para o cumprimentar foi um homem alto, que partilhava com o anfitrião uma postura militar e aparentava uns bons sessenta anos. Usava uns óculos de massa arredondados, bastante grandes, e um bigode anacrónico, demasiado largo para a moda, que terminava em duas pontas torcidas para cima. A perinha completava um rosto que parecia do século XIX, tão bem conseguido que traía a sua natureza de camuflagem. Manolo Arroyo aproximou-se dele o mais que pôde por duas vezes, que lhe bastaram para descobrir que os três homens que o rodeavam e só abandonavam o posto à vez, para irem à casa de banho ou ao bar, falavam com ele e entre si numa língua eslava, provavelmente croata. Ouvindo-a, o falso Adrián sentiu o coração acelerar como se quisesse sair-lhe do peito. Meses depois, comprovaria que a sua intuição daquela noite estava certa e que o militar carrancudo que não falava com ninguém era Ante Pavelić, o líder da Ustacha croata, um dos três criminosos de guerra mais procurados da Europa.

Antes da chegada dos convidados de La Granja, o falso Adrián Gallardo sentiu a falta do caderno novo, guardado, juntamente com um lápis, no bolso interior do casaco. A quantidade de informação que acumulava era tal, que apesar rudeza de Pavelić, chegou a lamentar o seu sucesso social. Enquanto isso, Guillermo ficou sozinho até se integrar num grupo de holandeses, de cuja identidade Manolo não tinha muita certeza, exceto no caso de um polícia colaboracionista de apelido Kipp. Quando tentou juntar-se-lhes, Herr Messerschmidt exigiu a atenção dos convidados para comunicar que o jantar os esperava no jardim. Passados instantes, enquanto todos se atiravam ao bufete, ele mudou de direção e fechou-se numa casa de banho. Depois de trancar a porta, elaborou mentalmente uma lista com os nomes, nacionalidades e patentes das pessoas que conseguiu identificar, mas, quando se preparava para começar a escrevê-los, um calafrio percorreu-lhe a coluna como o aviso de um dedo traidor e simultaneamente leal. O que descobrira assustava-o tanto que decidiu confiar na memória e guardar o caderno, intacto, no bolso de onde o tinha tirado. De seguida, respirou fundo, examinou o rosto no espelho para ver se estava tudo em ordem, antes de se dirigir para o jardim.

– Espero que estejas a divertir-te. – Guillermo, sozinho numa mesa afastada, levantou um copo de vinho para o cumprimentar. – Porque eu estou chateado como um peru… Mas a salada – e apontou para o prato que tinha à frente –, apesar de nacional, está porreira. Devias experimentar.

Quando voltou do bufete, Guillermo já não estava sozinho. Os holandeses haviam-se sentado com ele e festejaram a oportunidade de conhecer melhor o herói de Berlim. Manolo, cansado de repetir a história das suas proezas fictícias, fê-lo uma vez mais, mas, antes de os tanques soviéticos entrarem pela Porta de Brandeburgo, o som de buzinas interrompeu-lhes o avanço.

A chegada dos privilegiados que Franco havia convidado para La Granja alterou o equilíbrio de interesses da reunião e rarefez ainda mais uma atmosfera onde o oxigénio já escasseava. Clarita, muito elegante num vestido de cocktail estampado, branco com flores em tons avermelhados, dirigiu-se para o jardim com os braços abertos e o sorriso radiante de uma atriz de cinema a cumprimentar os seus admiradores em noite de estreia. Contudo, Fräulein Stauffer não era a única estrela que se juntou ao serão. Johannes Bernhardt, o todo-poderoso presidente da Sofindus, chegou atrás dela com um sorriso não menos radiante, e até Guillermo se deu conta de que os convidados se dividiram então em dois grandes grupos, os que foram a correr beijar Clara e os que esperavam a sua vez para apertar a mão do empresário. José Félix de Lequerica, antigo ministro dos Assuntos Exteriores de Franco e salvador evidente de alguns dos presentes, colocou os aduladores de Fräulein Stauffer em apuros e obrigou-os a dividirem-se para homenagearem ambos. Menos sucesso tiveram outros espanhóis, com a relativa exceção dos Víctor de la Serna, pai e filho, que se moviam naquele ambiente como em sua própria casa. Estavam ambos a par do regresso à pátria de Adrián Gallardo e pediram a Herr Messerschmidt que lho apresentasse. Mais tarde, outros senhores espanhóis aproximaram-se para o conhecer.

Quando apertou a mão de Esteban Maroto, que tinha vindo de Madrid sem a mulher, procurou Guillermo com os olhos, mas não o encontrou. Clarita também tinha desaparecido. Reapareceram juntos ao fim de alguns minutos e aproximaram-se para cumprimentar Adrián. Depois, sem parar para conversar com mais ninguém, Clara dirigiu-se para a mesa dos croatas, abraçou durante uns segundos o homem dos óculos e da pera, sentou-se ao lado dele e nem se levantou quando, por volta da meia-noite, Degrelle fez um brinde que desencadeou um fim de festa previsível. Enquanto todos os camaradas entoavam o Horst Wessel com o braço levantado, Fräulein Stauffer mantinha os seus junto ao corpo, absorta na conversa com Ante Pavelić, ambos com o sobrolho franzido dos conspiradores em apuros, ela a tomar notas esporadicamente num caderninho semelhante ao que Manolo guardava no casaco, ele a coçar a testa de quando em quando com uma expressão de verdadeira preocupação. Eram quase duas da manhã, e Guillermo já tinha gritado Arriba España! várias vezes, quando Clara se levantou e se dirigiu para eles.

– Disseram-me que vieram de burro, é verdade? – Os dois assentiram e ela soltou uma gargalhada. – Eu tenho o carro ali fora. Vou voltar para Madrid, mas, se quiserem, deixo-vos na aldeia. Fica-me a caminho.

Não foram sozinhos. A dona do veículo sentou-se no banco traseiro, entre o cavalheiro do século XIX e um dos seus guarda-costas, depois de pedir aos dois protegidos que se apertassem no banco da frente, ao lado do motorista. Quando o carro arrancou, Manolo teria dado qualquer coisa para ter olhos na nuca. Pressentiu que nunca mais estaria tão perto do croata e esperou pelo menos ouvir-lhe a voz, mas a única que escutou naquele trajeto tão curto, de pouco mais de dez minutos, foi a de Clarita.

– Vamos ver se nos encontramos depois do verão porque quero falar-vos de uma ideia que me ocorreu. – Discorria num tom quase musical, tão risonha e descontraída como se não fosse a mesma mulher que tinham observado uma hora antes. – Como temos tantos hóspedes estrangeiros que precisam de aprender espanhol, pensei que podíamos criar grupos de conversação, o que acham? Recorrer a pessoas amigas que juntem duas ou três vezes por semana, nas suas casas, grupos mistos, para que os nossos convidados pratiquem a língua. Com os romenos não há problema. Eles aprendem espanhol com muita facilidade, mas temos outros, eslavos, húngaros, croatas – pronunciou a palavra sem qualquer ênfase –, até belgas e franceses, e alemães, evidentemente, a quem faria muito bem. O que acham? Posso contar convosco?

Depois de ambos se oferecerem com a mesma veemência, Clara traduziu a iniciativa para alemão, a fim de informar os acompanhantes estrangeiros, e não houve tempo para mais. No momento em que o carro entrava na aldeia, voltou ao espanhol para desejar um bom verão a Adrián e a Rafa, contou-lhes os seus planos de férias e foi até à porta da estalagem para os abraçar. Quando tornou a entrar no carro, já o guarda-costas ocupava o banco dianteiro. Nem ele, nem Pavelić moveram um músculo para se despedir deles.

Frau Weiss reservara-lhes dois quartos que comunicavam entre si, e a primeira coisa que Manolo fez quando entrou no seu foi pôr uma cadeira ao lado da cómoda para a usar como secretária. Finalmente, tirou o caderno, abriu-o e olhou para Guillermo.

– Conta-me o que aconteceu há pouco. A Clara levou-te lá para dentro, não foi?

– Sim, mas… – Negou, abanando a cabeça. – A verdade é que não aconteceu nada. Ao chegar, cumprimentou-me e começou a rodar a cabeça como se estivesse à procura de alguém. Depois, pediu-me que a acompanhasse porque queria procurar don Eduardo, que estava no salão, perguntou-lhe por um tal Ban e…

– Ban? – Manolo esboçou uma expressão de surpresa. – Não seria antes Bam, com «m»?

– Bom… É possível, não sei. Essa letra muda alguma coisa? – Manolo assentiu, mas não quis ser mais explícito. – A questão é que don Eduardo disse à Clara que o Ban, ou Bam, seja lá o que for, não se atrevera a vir. Usou o verbo atrever-se, lembro-me porque me chamou a atenção. Ela perguntou-lhe porquê e ele olhou para mim, sorriu e disse-lhe alguma coisa em alemão para que eu não percebesse. A Clara encolheu os ombros e replicou que estava bem e que tinham problemas mais graves para solucionar. Depois disse-me que tinha pedido para eu vir porque queria apresentar-me um amigo, mas que fora ele quem não pudera vir. E pronto. Desculpa, mas não tenho mais nada que contar.

Quando Guillermo se deitou, Manolo continuava a escrever. Quando acordou, o amigo dormia profundamente no quarto ao lado e no caderno que deixara sobre a cómoda restavam muito poucas folhas em branco.

– Queres que o dê à Meg? – propôs-lhe ao voltar de um passeio, perto do meio-dia, encontrando-o finalmente acordado.

– Não, tenho de a ver. Preciso de falar com ela acerca de tudo isto.

A diplomata norte-americana tirava os sapatos para entrar descalça no prédio. Costumava aparecer entre as quatro e as cinco da manhã, com menos frequência do que ambos teriam gostado e moderadamente disfarçada, com uma peruca morena coberta por um lenço, uma saia disforme, até meia perna, sapatilhas de lona e um saco grande de pano por onde espreitava um pau de vassoura. Com o tempo, tinha descoberto a eficácia insuperável deste último pormenor. Em 1948, os únicos noctívagos eram os meninos de boas famílias, sendo que as mulheres da limpeza eram tão invisíveis para eles como para os trabalhadores mais madrugadores, que andavam pela rua meio adormecidos.

Meg quase nunca anunciava as suas visitas e a surpresa aumentava a euforia do amante, a alegria com que a despia no quarto dos contadores e com que se instalava com ela, com muito cuidado, num catre de lona que parecia desfazer-se sob as suas investidas. Os encontros, sempre curtos, incómodos, nunca haviam sido tão emocionantes como nessa altura, embora os dois sentissem a falta de uma cama de casal. O sexo com Meg era um luxo, um presente tão valioso para o impostor, que nunca o era tanto como quando a tinha nos braços, que não renunciou a ele na noite em que lhe entregou o caderno escrito em Cercedilla. Depois, já vestidos, ele atrás do balcão, ela sentada a seu lado, falaram durante algumas horas da festa de Herr Messerschmidt.

Aquele festim representava o prelúdio de uma longa seca. A 19 de julho, Clara foi para Sitges veranear e levou Ingrid. Pondo em prática o calendário feliz dos espanhóis ricos, prolongou as férias até princípios de outubro, quase três meses durante os quais Adrián não voltou a ter notícias dela, nem de qualquer outro membro da rede. De regresso, pelo contrário, Fräulein Stauffer revelou a eficácia do seu sangue alemão, desenvolvendo em muito pouco tempo o projeto que esboçara enquanto fazia o trajeto entre Fuenfría e a aldeia de Cercedilla. No início de novembro, Manolo começou a ir duas vezes por semana, a meio da tarde, a casa de Ingrid, para conversar em espanhol com os dois guarda-costas de Pavelić, entre outros. Guillermo tinha um horário semelhante, em dias diferentes e em casa de Amparo Priego. A 6 de dezembro, dia de São Nicolau, anfitriões, alunos e professores encontraram-se na festa que Clara ofereceu no número 14 da calle Galileo.

Nessa altura, Manolo já tinha pedido a Meg que procurasse um presente de Natal para Guillermo. Não tinha sido fácil encontrá-lo e não havia chegado a tempo da consoada, mas estava pronto no dia de Reis. Nessa tarde, ao sair da casa de Ingrid, o falso Adrián com a sua caneta Pelikan, e o falso Rafa com um modesto cachecol cinzento, tricotado à mão, foram juntos até à calle del Pez.

– Sobe um pouco, que tenho uma coisa para ti e não ta posso dar na rua.

Chegados lá acima, entregou-lhe uma caixa embrulhada e presa com uma fita azul-celeste com um grande laço.

– O que é isto?

– Foi a Meg que embrulhou. – Manolo sorriu. – Abre-a.

Quando pegou na pistola, uma Smith and Wesson reluzente, tão bem oleada que parecia nova, embora ao examiná-la tenha visto as marcas do buril que havia apagado o número de registo, Guillermo estava tão nervoso que nem sequer se deu conta de que ia repetir a mesma pergunta.

– O que é isto?

– Tu não sabes disparar, pois não? – O amigo não parou de sorrir ao vê-lo negar com a cabeça. – Então, acho que está na hora de aprenderes.

Quando me transmitiu o convite de Herr Messerschmidt, o Manolo avisara-me de que, na rede Stauffer, risco era sinónimo de perigo. No dia de Reis de 1948, já o tinha descoberto sozinho, mas ainda não estava preparado para me ver com uma pistola nas mãos.

– Não te assustes. – Ele parecia muito calmo, muito seguro do que dizia. – Isso é o principal. Está descarregada e não tem munições. Tenho de encontrar um sítio onde possa ensinar-te a usá-la e depois… Soube que don Eduardo tem um pequeno campo de tiro na casa de Cercedilla. Os camaradas vão lá treinar aos domingos. Quando melhorares a tua pontaria, iremos com eles em excursão.

– Isto é de loucos, Manolo. Eu sou cirurgião, percebes? Dedico-me a consertar o que estes trastes provocam, não a usá-los… Nunca hei de aprender.

– Claro que hás de aprender. – Abanou a cabeça, dando razão a si próprio. – Este traste, como tu lhe chamas, pode salvar-te a vida. Não sei se te dás conta do tipo de pessoas com quem estamos a lidar…

Pousou o indicador a meio da clavícula e acariciou a pele entre a garganta e o peito com um movimento circular que não foi suficiente para me reconciliar com o seu presente de Reis, mas que bastou para lhe dar razão. Tanta razão, que até me senti culpado por me ter esquecido do Marcos.

Dois meses antes, tê-lo-ia reconhecido sem hesitar como o mais novo dos guarda-costas do homem disfarçado, cuja presença tanto agitara o Manolo em Cercedilla, embora o seu aspeto se tivesse deteriorado muito no último trimestre. Vendo-o de perto, calculei que tivesse uns trinta e cinco anos e que nunca chegaria aos quarenta. Antes de a Amparo mo apresentar, chamou-me a atenção a sua pele amarelada e, mais ainda, o tom sujo, de âmbar manchado, que lhe turvava o que deveria ser o branco dos olhos. Era o único croata do meu grupo de conversação, do qual também faziam parte dois dos três holandeses que conheci em casa de Messerschmidt, um muniquense rechonchudo, sorridente, agraciado com o aspeto plácido de um pai feliz de família numerosa, e um húngaro taciturno, de olhos cansados.

– Bom, então vamos começar. – Sentámo-nos os seis à mesa da sala de jantar para a nossa primeira lição, eles com cadernos e canetas, eu de mãos vazias. – Chamo-me Rafael, nasci numa povoação de Toledo, sou solteiro e trabalho numa transportadora. Agora é a vossa vez de me dizerem como se chamam, de onde são, em que trabalham…

Estava uma tarde chuvosa, tão escura e desagradável como o mês de novembro em Madrid pode chegar a ser, porém, à entrada, a dona da casa pediu-nos que deixássemos os casacos e os guarda-chuvas no bengaleiro da entrada, explicando que ali estava sempre muito calor. Era verdade, mas, mesmo que o porteiro do prédio alimentasse a caldeira como se fosse o fogareiro de Lúcifer, Marcos insistia em manter-se com o sobretudo. Espantou-me que, ao tirá-lo, já sentado na cadeira que eu lhe indicara, não desistisse do cachecol grosso de lã que lhe dava duas voltas ao pescoço.

Quando a Clara telefonou para a transportadora propondo-me que me encarregasse de um grupo, avisei-a de que nunca tinha dado aulas e de que não sabia se o faria bem. Ela soltou uma gargalhada do outro lado da linha e afirmou que a única coisa que esperava de mim era que obrigasse os meus alunos a falar espanhol e que lhes corrigisse os erros que fossem cometendo. Propôs-me que fizesse rondas de intervenção, escolhendo um tema para que eles o comentassem à vez, e antes de desligar calculei que o Manolo adoraria essa metodologia. No dia seguinte, veio buscar-me à saída do trabalho e entregou-me uma lista de assuntos de conversa que poderiam ajudar-me a identificar os meus alunos. De seguida, recomendou-me que desse as aulas sem apontar nada, para evitar qualquer suspeita. No caso do Marcos, aquela precaução foi absolutamente supérflua.

– Eu… – Demorou um bom bocado a encontrar um verbo. – Estar… Marcos.

Foi o último a intervir e aquelas três palavras bastaram para revelar que o seu conhecimento do espanhol era quase nulo. Aquilo aborreceu-me bastante, porque a Clara me tinha garantido que todos conheciam os rudimentos da língua, mesmo que só usassem os verbos no infinitivo. No entanto, depois de proferir o seu nome falso, Marcos compôs com muito esforço uma frase com duas palavras espanholas, pequeno e nascer, entre outras de uma língua estranha que não fui capaz de identificar. Depois rendeu-se, abanou a cabeça e pareceu repeti-lo em alemão.

– Esperem um pouco.

A Amparo estava na sala a ler uma revista e sorriu quando me viu aparecer.

– Vem comigo, por favor – pedi-lhe. – Há um deles que não sabe nada, mas acho que fala alemão.

– Está bem. – Levantou-se, aproximou-se de mim, rodeou-me o pescoço com os braços. – Mas depois vais ter de me pagar a tradução.

– Achas? Veremos. – Beijei-a nos lábios e sorri também. – Sou um pobre funcionário de escritório, já sabes…

Estreitou-se contra mim como se quisesse cobrar um sinal, com o mesmo entusiasmo que lhe tinham inspirado aquelas aulas de conversação, que prometiam uma cobertura ideal para os nossos encontros. Nunca consegui averiguar se ela tinha arranjado algum esquema para que me atribuíssem o grupo da sua casa ou se a Clara se inspirara na nossa amizade infantil de uns remotos verões em San Rafael para nos juntar, mas o rumo que tomou a aula depois da chegada dela fulminou qualquer ilusão de romantismo.

– A Amparo fala alemão – anunciei aos meus alunos depois de lhe pedir que se sentasse ao meu lado. – Pedi-lhe que viesse ajudar-me com o nosso amigo. Ela agora vai traduzir-lhe o que acabei de dizer.

O Marcos, que entendia um pouco uma língua que não sabia falar, assentiu com a cabeça e inclinou-se como se precisasse de se concentrar. Tinha a cara redonda e o cabelo, não muito curto e muito liso, espalhou-se-lhe sobre a testa e deu-lhe o aspeto de um colegial inseguro, arrependido de não ter estudado a lição, mas a impressão depressa se dissipou. Depois de ouvir a Amparo, levantou a cabeça, olhou para mim, entortou os lábios, duas linhas muito finas, num ângulo sinistro, levantando apenas um canto da boca e revelando um simulacro de sorriso. Depois disse uma frase em alemão e estendeu a mão direita, dando a vez à intérprete.

– Chama-se Marcos – verteu ela para espanhol com uma expressão ainda tranquila, descontraída. – É da Croácia, de uma aldeia muito pequena, a uns cem quilómetros de Zagrebe.

– Muito bem – aprovei. – Então vamos ensinar-lhe como se diz isso…

Todavia, o Marcos não me deixou continuar.

– Diz que ainda não acabou, que ainda tem de falar da sua profissão.

Estive quase a opor-me, a insistir em ensinar-lhes frases curtas, mas ele não tinha parado de sorrir nem de olhar para mim. Devolvi-lhe o olhar, fui até ao fundo dos seus olhos e descobri a ferocidade de uma ave de rapina que sobrevoava uma vítima que só poderia ser eu. No entanto, quando lhe permiti continuar, fui o último a compreender a razão oculta da sua intervenção, que provocou um motim entre os meus alunos.

– Que disse ele?

Quando consegui perguntar, o húngaro, pálido como uma figura de cera, já se tinha ido embora sem se despedir de ninguém. Enquanto saía da sala de jantar, tão depressa como se fugisse de um perigo mortal, o homem de Munique, que se apresentara como Friedrich, levantou-se e dirigiu-se ao Marcos aos gritos. Estava tão furioso que julguei que lhe ia dar uma bofetada, mas limitou-se a ficar de pé, junto da cadeira, insultando-o numa língua que eu não entendia. Um dos meus alunos holandeses levantou-se para apoiar aos gritos os argumentos do alemão. O outro tinha cruzado os braços sobre a mesa para neles esconder a cabeça como uma criança assustada. A Amparo observava tudo isto com os olhos arregalados. O sangue fugira-lhe da cara e dera à sua maquilhagem um aspeto grotesco, de máscara pintada, com os limites do blush visíveis na palidez repentina e os ouvidos surdos à minha pergunta.

– Que disse ele? – repeti, abanando-a suavemente pelo cotovelo.

Ela olhou para mim como se não me conhecesse. Depois levantou-se e saiu da sala de jantar sem uma palavra. Olhei para a frente e hesitei uns instantes porque o Marcos se tinha levantado, por sua vez, para gritar tão perto de Friedrich que pareciam prestes a começar à pancada. Bom, então que o façam, concluí. Levantei-me, fui à procura da Amparo e encontrei-a de pé no meio da sala, a contorcer as mãos com tanto afã como se torcesse um pano húmido.

– Disse… – Não tive de fazer a mesma pergunta pela terceira vez. – Disse que é um assassino, um criminoso como todos os outros. Que matou muitos judeus e muitos sérvios num campo, Jasi, Jase… Não sei, estou muito nervosa, não me lembro do nome. Também disse que gostava do seu trabalho, que ganhou duas medalhas por fazê-lo tão bem. E que o pai lhe tinha ensinado que um sérvio bom é um sérvio morto.

– E então os outros aborreceram-se?

– Os outros disseram-lhe que se calasse, que não falasse disso. – Movia os lábios sem me olhar, com os olhos cravados num quadro pendurado atrás de mim, como se a sua visão pudesse atravessar-me. – Mas ele disse que não veio aqui para mentir, que ninguém lhe disse que teria de mentir. E começou… Começou a perguntar aos outros porque tinham fugido, e se nunca… Se nunca tinham entrado numa casa à noite para arrancar algumas crianças da cama, e disse umas coisas… Horríveis. – Olhou para mim, abraçou-me, escondeu a cabeça no meu ombro. – Foi horrível, Guillermo.

– Não me chames Guillermo – sussurrei-lhe ao ouvido, ouvindo passos atrás de mim.

– Peço desculpa, minha senhora… – Friedrich estava ao nosso lado, os holandeses, um passo atrás. – Peço desculpa, senhor… Rafael. Isto muito mau – abanou a cabeça num gesto mortificado, que acentuou o seu ar de honesto funcionário público com filhos a mais. – Muito mau. Peço desculpa.

– Não se preocupe – desfiz suavemente o abraço da Amparo e voltei-me para ele. – A culpa não foi sua.

– Muito mau, muito mau – repetiu, estendendo-me a mão antes de acrescentar que também eles se iam embora.

A Amparo acompanhou-os à porta, mas eu não me movi. Precisava dela para expulsar Marcos, que decerto continuava na sala de jantar, muito satisfeito, calculei, com a tempestade que tinha desencadeado. No entanto, quando ela voltou do vestíbulo, recusou-se a ir comigo procurá-lo.

– Vai tu, esse tipo mete-me medo. Não quero voltar a vê-lo na minha vida. Além disso, não sei, não percebo…

– Eu sim – repliquei. – Eu percebo-o.

Mas não tive de lho explicar porque o Marcos cruzava a porta que separava a sala da sala de jantar. Trazia o sobretudo dobrado sobre um braço, o cachecol na outra mão, e o que pretendera esconder, uma camisa miserável, mais amarela do que branca, com o colarinho muito coçado e sem dois botões, deixava ver uma mancha mesmo abaixo da garganta, um centímetro acima da união das clavículas. Aquele grão redondo e minúsculo de um vermelho intenso, rodeado por uma pequena estrela de pele escarlate, confirmou o diagnóstico que me sugerira o tom alaranjado da pele, o âmbar sujo dos olhos. Era cirrose e, a avaliar pelo aspeto da estranha tatuagem que os livros pelos quais aprendi medicina denominavam aranha vascular, estava muito avançada. Aquela certeza paralisou-me por instantes, causando-me um dilema moral mais complexo do que julgara de início. Eu não tinha deixado de ser médico e a minha obrigação era dizer àquele doente que consultasse um especialista. No entanto, aquele doente era um filho da puta cuja morte seria um bem para a Humanidade. Por outro lado, nenhum especialista conseguiria evitar que esse benefício se consumasse. Marcos não tinha salvação, e eu sabia-o. Talvez por isso, porque não tinha nenhum interesse em aprender uma língua que não teria tempo de praticar, tenha cedido ao impulso macabro e exibicionista que me arruinou a primeira aula. Até aqui as coisas estavam claras. Daí em diante, por muito que pessoalmente lhe desejasse a agonia mais cruel, convinha-me ter em conta que a Amparo sabia que eu era médico, que, para a missão do Manolo, era essencial não despertar suspeitas e, sobretudo, que me podia dar ao luxo de ficar bem porque aquele cabrão ia morrer na mesma.

– Diz-lhe que devia ir a um hospital para que lhe examinem a mancha que tem na garganta.

– O quê? – Ela voltou-se e observou-me, enquanto ele continuava plantado à nossa frente, baloiçando-se suavemente sobre as duas pernas sem deixar de sorrir.

– Diz-lhe – insisti. – Diz-lhe que fui enfermeiro durante a guerra, que vi casos como o dele… Este homem tem cancro de fígado. Está muito doente.

Antes de traduzir, retrocedeu um passo e escondeu metade do corpo atrás de mim, como se até falar com ele a assustasse. Ele ouviu-a, assentiu com a cabeça, respondeu e desatou a rir.

– Já foi ao médico e ele disse-lhe que ia morrer – traduziu a Amparo num sussurro. – Deu-lhe três meses de vida, no máximo. E sabe que vai para o inferno porque é uma pessoa muito má.

Quando ela terminou, assenti sem deixar de olhar para ele. O Marcos retribuiu o olhar, sorriu e acrescentou alguma coisa em alemão.

– Diz que tu não és dos nossos – informou-me a Amparo. – Vou responder-lhe que é um idiota.

– Não, não lhe digas nada. Acompanha-o à porta e ele que se vá embora de uma vez.

– Acompanha-o tu. – Apertou-me o braço. – Por favor. Ele mete-me medo.

Porém, ele acabou por ir sozinho. Quando se dirigiu para o vestíbulo, segui-o à distância. Depois de abrir a porta, voltou-se, ergueu o braço direito, dobrou três dedos esticando o indicador para simular a forma de uma pistola e apertou um gatilho imaginário, disparando sobre mim antes de se ir embora.

– Peço desculpa, Rafa. – A Clara telefonou-me para o escritório no dia seguinte e na voz dela, simultaneamente melosa e autoritária, detetei o tom da superiora de um convento de clausura. – O Wilhelm contou-me tudo. – Foi assim que descobri que eu e o meu aluno alemão tínhamos o mesmo nome. – A culpa foi minha. Não pretendia incluí-lo em nenhum grupo, mas ele insistiu muito e os amigos dele… – fez uma pausa mais longa do que o razoável. – O Marcos é o protegido de um camarada muito querido para mim e ambos sofreram muito desde o fim da guerra. Por isso, cedi, mas foi um erro. O que aconteceu ontem deve ter sido muito desagradável para ti, para todos, e quero pedir-te perdão.

– Não teve importância, Clara, não te preocupes.

– Claro, claro que é importante, é importante para mim. A Amparo contou-me que ainda por cima tiveste a amabilidade de lhe recomendar que fosse a um médico e ele… – A segunda pausa foi mais curta do que a primeira. – Que deceção, Rafa! Estou desolada. É verdade que ele está muito doente, que vai morrer, mas nem isso o desculpa, embora… – A terceira, quase impercetível. – Ele não voltará a incomodar ninguém, garanto-te.

Quando desliguei, tive a sensação de sair de um frigorífico, como se a última frase me tivesse prendido num bloco de gelo que nunca conseguiria derreter com o calor do meu corpo. O tom de delicada cortesia que tinha escolhido para se desculpar endureceu tanto e tão abruptamente que admiti pela primeira vez que a encantadora Fräulein Stauffer pudesse ser uma mulher temível. Esse acabou por ser o diagnóstico mais acertado, porque o Marcos tinha uma cirrose que metastizara para outros órgãos vitais, mas nunca se chegou a contorcer de dor numa longa agonia.

– Limparam-lhe o sebo. – O Manolo olhou em volta, comprovou que as mesas contíguas à nossa continuavam desocupadas e baixou a voz, depois de pedir alegremente duas imperiais a um dos empregados do Lion que já tratávamos por tu. – Fizeram desaparecer o teu aluno alcoólico e tagarela.

Nem tinham passado três dias desde que a Clara me avisara de que o Marcos não voltaria a incomodar ninguém e talvez por isso a notícia me tenha afetado tanto.

– Como soubeste?

Ele tinha começado o seu próprio grupo de conversação antes de mim, reunindo às terças e às quintas-feiras em casa de Ingrid. Não contando com a anfitriã, que precisava mais das aulas do que alguns dos outros alunos, era evidente que a Clara o tinha posto à frente de um grupo de evadidos mais relevantes, mais perigosos e mais importantes para a sua organização do que os alunos que me atribuíra. Entre eles, constavam os dois camaradas do Marcos que o acompanhavam em Cercedilla como guarda-costas do Pavelić, a 18 de julho do ano anterior. Apesar de ter decidido aproximar-se dos alunos e de ter instituído o hábito de irem todos comer umas tapas depois da aula, ainda não tivera tempo para grandes familiaridades. No entanto, não precisou de mais para interpretar os sinais que se sucederam na véspera de se encontrar comigo.

Um dos dois ustachas tinha chegado com tão má cara que o professor recorreu ao seu elaborado mau alemão para lhe perguntar se estava doente. Ele respondeu-lhe que não, depois que sim, finalmente que não estava doente mas triste, deprimido. Tenho mal de coração, acrescentou em espanhol. Nesse momento, a Ingrid aproximou-se dele, deu-lhe um abraço e disse-lhe em alemão que não deveria sentir-se culpado, que fez o que era necessário, que o outro estava a pedi-las. O segundo ustacha mandou a anfitriã calar-se, ela acatou a ordem com a mansidão habitual e ofereceu ao compatriota a cadeira ao lado da sua, mantendo com ele uma conversa que mais ninguém conseguia ouvir, embora todos se apercebessem da consoladora ternura que lhe pairava na voz. Nos olhares perplexos, nervosos, que cruzavam, o Manolo adivinhou que os restantes alunos ignoravam o que tinha acontecido em casa da Amparo. Quando se deu conta de que começavam a assustar-se, propôs em alemão começar a aula porque já tinham perdido muito tempo. Os dois ustachas concordaram, embora o que não estava deprimido tenha pedido à Ingrid um copo de conhaque para o seu camarada. Enquanto ele o bebia de um gole, informou os restantes, sucintamente, de que tinha morrido um amigo comum que era como um irmão mais novo para o mais afetado dos dois. Ao despedir-se deles, a Frau Weiss perguntou a que horas seria o funeral. Às oito da manhã, responderam-lhe, no cemitério grande, o da praça de touros…

Nessa noite, depois da aula não houve tapas. O Manolo foi a pé para o trabalho, contudo, antes de chegar, entrou num bar que tinha telefone, marcou o número de casa da Meg e, quando ela atendeu, contou mentalmente até três antes de desligar. Às cinco da manhã, uma senhora da limpeza entrou no prédio onde Adrián Gallardo Ortega trabalhava como porteiro noturno. Ao fim de quatro horas, uma mulher que se apresentou como funcionária da Secção Consular da representação diplomática do Reino Unido em Madrid, telefonou para os escritórios do cemitério de Almudena para perguntar se fora enterrado recentemente algum estrangeiro, possivelmente indocumentado, que pudesse ser um cidadão escocês desaparecido de casa há três dias. Foi assim que soube que nessa mesma manhã se efetuara, realmente, o enterro de um estrangeiro, embora se tratasse de um homem de trinta e quatro anos, de nacionalidade espanhola, com um nome muito esquisito que não parecia escocês e que, de acordo com a certidão de óbito, tinha morrido de cancro de fígado.

– Mas tu não acreditas.

– Não. – O Manolo olhou em volta novamente, embora ninguém tivesse ocupado as mesas vazias. – O camarada, o do coração doente, limpou-lhe o sebo, tenho a certeza.

– Bom, acabou por ter um fim melhor do que esperava.

– Se calhar foi por isso que o provocou.

Aquela hipótese pareceu-me despropositada, porém, quando tive mais tempo para pensar, compreendi que a morte de Marcos poderia considerar-se um suicídio passivo, consumado por mão alheia. Apesar de mal o conhecer, não me parecia o tipo de homem sem coragem para se matar com as suas próprias mãos, e muito menos estúpido. Portanto, quando optou por esbanjar sinceridade em casa da Amparo, devia ter alguma razão para assinar em público a sua sentença de morte. Nunca a descobriríamos. Nunca chegaríamos a saber que tipo de contas pendentes teria com os camaradas, por que razão preferiu vê-los a tremer de medo, se não teve tempo para se suicidar antes de o irem buscar ou se quis falar com o seu assassino antes de morrer, mas a morte dele teve impacto com efeitos duradouros na rede Stauffer e em todos os seus satélites. O que mais me afetou a mim provocou tão pouca inquietação no falso Adrián Gallardo como teria provocado no verdadeiro.

– Estavas à espera de quê? Foi sempre assim, sempre, desde o início. As chaminés de meia Polónia fumegavam vinte e quatro horas por dia e eles diziam que era tudo mentira, que era uma infâmia inventada pelos inimigos. Falavam do campo de Theresienstadt, uma espécie de jardim de infância onde filmaram uma série de documentários de propaganda, como se alguém acreditasse que continuava a existir, como se não soubéssemos que os judeus desses filmes tinham ido parar a Auschwitz no próprio dia em que as câmaras saíram do recinto… São pessoas muito más, Guillermo, mesmo muito más. Que nem te passe pela cabeça confiar em nenhum deles.

Vira-os a sorrir, a abraçar-se, a levantar o braço como eu havia levantado o punho tantas vezes, a cantar o seu hino com lágrimas nos olhos, no entanto, até esse momento, não conseguira temê-los. Pareciam-me demasiado normais, demasiado simpáticos, até carinhosos, para não encaixarem no molde saudoso de um grupo de exilados que lambiam mutuamente as suas feridas depois da derrota. Desfrutara amiúde da sua hospitalidade, sempre mais ostentosa do que generosa, e habituara-me à excelente educação que lhes aflorava nos gestos, palavras e atitudes. Eram tão exageradamente educados que o seu cavalheirismo ultrapassava os costumes da época em que vivíamos, impregnando as suas figuras de um brilho anacrónico e lânguido que, como o bigode de Pavelić, parecia provir de outro século. Porém, a morte de Marcos arrancou-lhes a pele, triturou-lhes a carne, deixou-lhes à vista os ossos que eu não fora capaz de ver. E nada voltou a ser igual.

Antes de iniciar a minha segunda aula, o Friedrich pediu à Amparo que nos acompanhasse à sala de jantar. Depois, sem chegar a sentar-se, dirigiu-se-nos para nos pedir desculpa, pousando a mão direita no lado esquerdo do corpo, sobre o coração. Esclareceu que falava em nome de todos enquanto os outros concordavam com as suas palavras num silêncio litúrgico de cabeças baixas e expressões graves, executando um exercício perfeito de cinismo coletivo que não impediu que os meus olhos vissem, por cima da cabeça do porta-voz, a borracha da máscara de funcionário público abnegado, pai feliz de uma família numerosa, que lhe escondia o verdadeiro rosto. A atuação foi tão brilhante como a dos camaradas, mas o conteúdo do discurso não esteve à altura do seu talento dramático. Enquanto lhe devolvia um sorriso tão falso como aquele que me exibia, não encontrei nas palavras dele um único eco de sinceridade, nenhum elemento alheio àqueles que compunham um argumento preconcebido, tão frágil na aparência como eloquente na realidade.

O Wilhelm, conhecido por Friedrich, pediu-me desculpa pela atitude do Marcos, pela sua falta de respeito para comigo e para com a minha generosidade voluntária e gratuita, que nunca poderiam agradecer o bastante. Desculpou-se também pela violência verbal com que tinha respondido à agressão, pelo barulho que tinha perturbado a paz de uma casa tão respeitável, pelo desgosto que, sem dúvida, não permitira à dona conciliar o sono nessa noite. Em nenhum momento insinuou que o Marcos tinha mentido e não desmontou nenhuma das suas acusações. Sempre às voltas com as mesmas fórmulas de cortesia, como se dançasse uma valsa perpétua num enorme salão palaciano, também não expressou o único conceito que lhe interessava fixar na minha memória e na da Amparo. Nós sabemos que vocês sabem quem somos, mas não se preocupem porque ninguém voltará a levantar a cortina que cobre o nosso passado, e, se alguém o tentar fazer, vocês, como nós, sabem o preço que esse alguém pagará. Essa era a única coisa que o Wilhelm, ou Friedrich, ou como quer que se chamasse, queria comunicar-nos, enquanto eu lhe oferecia a minha própria máscara sorridente, escondendo atrás da curva dos meus lábios que a única coisa que me interessava dele era a sua verdadeira identidade, as decisões que fora capaz de tomar, os crimes que o haviam levado a ocupar a cabeceira da mesa de jantar de don Fermín Martínez. A Amparo, a meu lado, estava tão tranquila como se aquela pequena representação teatral a tivesse satisfeito por completo. Contudo, também ela teve tempo para pensar antes de a aula acabar.

Quando os meus alunos saíram em grupo, como chegariam e sairiam todas as tardes a partir de então, ela arrastou-me para a cama, tentando demonstrar que a morte do Marcos conseguira resvalar pelos nossos corpos, o dela sempre tão irresistível para mim que tornava desnecessário qualquer exagero de representação. No entanto, enquanto se esforçava por manter o controlo dos seus gestos, da sua voz, a Amparo exagerou na atuação, fingiu como se acreditasse que conseguiria enganar-me. Vestida talvez o conseguisse, nua não. Eu conhecia cada um dos seus rituais, a forma de pedir o que lhe agradava, o gesto a que recorria para recusar o que não lhe apetecia, os movimentos que lhe apressavam ou adiavam o prazer e a fronteira a partir da qual não sabia voltar, um terreno de que nem sequer se aproximou enquanto se exilava por vontade própria num campo de manobras desértico, onde praticou um reportório insólito de novidades, uma exibição vampiresca de manual, cujo rendimento ficou muito aquém dos frutos da sua natureza simples e espontânea.

– O que tens, Amparo?

Não me respondeu. Afastou-se de mim e ficou imóvel, com os braços colados ao corpo e os olhos a brilhar mais do que o normal.

– Vá lá, diz-me – insisti. – Diz-me o que tens.

Tínhamos atravessado juntos uma guerra civil. Ela entregou-se a mim em território inimigo, exerceu o direito do vencedor, saqueou a minha casa, levou o meu filho, abandonou-me nove anos antes de o acaso e o desejo nos juntarem novamente, e nada nos tinha impedido de navegar nessas águas tão turvas que não lhes conseguíamos ver o fundo. Durante todo esse tempo, o sexo fora mais forte do que tudo, tinha-nos absolvido de qualquer pecado, preenchido os desfiladeiros, limado os montes, construído uma planície sólida, estável, onde não precisávamos de fazer equilibrismo para nos mantermos de pé. Ela tinha julgado que as minhas aulas de espanhol acrescentariam uma nova camada de cimento, mais lisa e perfeita, ao falso chão que nos protegia da lama, mas não contara com a confissão do Marcos, e a culpa não era dela. Quando o conheci, eu não estava habituado ao protocolo da corte de Viena que imperava no círculo da sua amiga Clarita, mas ela frequentara-o o suficiente para não temer nenhum dos integrantes. Até que aquele homem falou, e as suas palavras projetaram jorros de sangue humano, quente, que ainda manchava as paredes da sua casa, que flutuava no milhão de partículas minúsculas, invisíveis, que engolíamos ao respirar, que nos marcava como se estivesse estampado para sempre na nossa pele. Ela havia calculado mal e sentia medo.

– É que… Não quero que me deixes, Guillermo.

Tinha medo de mim, mas não só de me perder. O Marcos, na vida e na morte, explicara-lhe onde se havia metido e as consequências de me ter aberto as portas de par em par inquietavam-na. Tinha medo do que eu já sabia, do que poderia aprender no futuro, do que poderia contar um dia. Deixara de confiar em mim porque se havia apercebido demasiado tarde de que a nossa história não era uma simples reedição da paixão que nos unira em tempos. Em 1936, éramos ambos inocentes relativamente aos acontecimentos que nos agitaram como se uma mão desconhecida puxasse por uns fios invisíveis, a reclusão que partilhara com o avô, a morte de don Fermín, o seu desamparo, a vontade dos nossos corpos, a nossa impotência face a eles, a diversão, o prazer, a alegria luminosa que floresceu entre os escombros. Naquela época, a Amparo confiava em mim, e eu já sabia que ela não era de fiar, mas isso não teve importância enquanto Madrid esteve nas mãos dos meus. Agora, ela nem sabia quem eram os meus, para quem trabalhava um homem a quem continuava a chamar Felipe quando ninguém a ouvia, porque nos tínhamos metido por vontade própria na boca do lobo, porque caminhávamos tão alegremente para o abismo. E eu não lhe ia explicar.

– Porque havia de te deixar? – Aproximei-me dela, acariciei-lhe a anca muito devagar, compreendi que ela tinha razão, que não tardaria muito tempo a deixá-la, e a frieza com que elaborei o raciocínio deixou-me gelado. – Estamos no mesmo barco. Se ele se afundar, afundamo-nos juntos.

Ela desfez o gelo. Estreitou-se contra o meu corpo, rodeou-me com as pernas, com os braços, beijou-me na boca como se fosse a última vez, e eu cedi novamente à tentação de pensar que talvez estivesse apaixonada por mim. Mais tarde, depois de uma queca brusca e intensa, onde tudo foi autêntico e beneficiou também da tensão que ainda rarefazia o ar do quarto, compreendi que isso não tinha importância. A Amparo era demasiado egoísta para conjugar o verbo apaixonar-se incondicionalmente, e ambos sabíamos que eu não lhe convinha. A novidade residia no facto de ela me convir a mim e de continuarmos a ir para a cama até ela deixar de me ser útil. Não era um pensamento bonito, mas combinava bem com o sangue que manchava as paredes, com a atmosfera sinistra que respirávamos ao mesmo ritmo e com a frieza repentina das minhas reflexões. Eu jogava em vantagem. Eu estava a par da verdade, das regras de um jogo que ela só conseguia praticar às cegas. Por isso, o meu espírito recuperou a temperatura normal muito antes de o meu corpo abandonar a cama dela. A Amparo demorou mais tempo a comportar-se como se nunca tivesse conhecido o Marcos, mas nem ela, nem eu, voltámos a mencioná-lo.

Em meados de fevereiro, a Meg alugou uma quinta na província de Toledo para que eu pudesse praticar com a Smith and Wesson ao longo de um fim de semana, e eu não só aprendi a atirar como descobri, para meu espanto, que até tinha boa pontaria.

– Não percebo. – Depois de ter estoirado três das cinco garrafinhas vazias a alguns metros de distância, voltei-me para o casal que se beijava com a mesma ânsia com que o fizera antes do meu primeiro tiro. – Nas feiras, nem um triste peluche ganhava, e agora… Que estranho.

A minha pontaria ainda melhorou bastante naquela primavera, com as Luger que o Herr Messerschmidt punha à disposição dos convidados todos os domingos, até que o dia 18 de julho voltou a funcionar como uma festa de fim de curso. Don Eduardo já nos considerava parte do seu círculo e para o demonstrar encorajou-nos a levar acompanhante. Eu fui com a Amparo. O Manolo convidou a Ingrid, mas, embora lhe tenha agradecido, acabou por recusar o convite porque a Clara, disse, talvez não gostasse de a ver lá. No dia seguinte, no entanto, foram juntas para Sitges e interrompeu-se tudo até aos primeiros dias de outubro.

Foi justamente nessa altura, depois de um ano e meio de inatividade, quando parecia que já nada ia acontecer, que soube o que a Fräulein Stauffer queria de mim e comecei a desconfiar de que ninguém me dera antes um presente tão valioso como a Smith and Wesson sem número de registo e com munição abundante.