Sumário: 48.1. Execução de prestação alimentícia: 48.1.1. Introdução; 48.1.2. Procedimento – 48.2. Execução contra a Fazenda Pública: 48.2.1. Introdução: 48.2.2. Procedimento; 48.2.3. Regime dos precatórios; 48.2.4. Compensação em favor da Fazenda Pública; 48.2.5. Emenda Constitucional 62/2009 (A EC do Calote); 48.2.6. Dispensa de precatório; 48.2.7. Preterição no pagamento.
A execução de alimentos é uma execução de pagar quantia certa, que em razão da especial natureza do direito tutelado é tratada como execução especial. A especialidade da execução de alimento dá-se principalmente em razão da previsão de atos materiais específicos a essa espécie de execução, sempre com o objetivo de facilitar a obtenção da satisfação pelo exequente1. Há divergência a respeito da espécie de direito de alimentos que pode ser executada pela via especial. Parcela da doutrina entende que a via especial é limitada aos alimentos legítimos, decorrentes em razão de parentesco, casamento ou união estável, excluindo-se da proteção especial os alimentos indenizatórios, decorrentes de ato ilícito2. Não concordo com tal entendimento, porque a necessidade especial do credor de alimentos não se altera em razão da natureza desse direito, não havendo sentido criar um procedimento mais protetivo limitando sua aplicação a somente uma espécie de direito alimentar3.
As principais diferenças dizem respeito aos momentos em que as regras previstas nos arts. 732 a 735 do CPC, combinadas com os arts. 16 a 29 da Lei de Alimentos (Lei 5.478/1968), podem ser aplicadas e aos meios de pressão psicológica (prisão civil) e de satisfação por sub-rogação (desconto em folha de pagamento) à disposição do exequente, que em decorrência da previsão contida no art. 569, caput, do CPC, sempre poderá vincular à sua vontade as medidas executivas a serem adotadas no caso concreto.
Aplicando-se os arts. 16 a 18 da Lei de Alimentos, verifica-se que o legislador criou uma ordem de preferência entre as diferentes formas executivas:
(i) primeiro, sempre que possível, o desconto em folha de pagamento;
(ii) segundo, o desconto de renda;
(iii) mostrando-se essas duas formas de desconto manifestamente inapropriadas, o credor poderá escolher entre a expropriação e a prisão civil.
Não se pode concordar com o legislador, porque, apesar de ser legítima a preocupação com a menor onerosidade ao réu, também se deve considerar a efetividade da tutela executiva, conforme analisado no Capítulo 35, item 35.6. A escolha deve ser, portanto, sempre livre, dependendo exclusivamente da vontade do exequente4, conforme correto entendimento do Superior Tribunal de Justiça5.
Não vejo sentido na doutrina que defende a inaplicabilidade das normas especiais da execução de alimentos à execução de títulos extrajudiciais. Entendo que, sendo a natureza do direito inadimplido alimentar, pouco importa a natureza do título executivo, ainda que se compreenda que as medidas executivas previstas no procedimento especial de execução de alimentos sejam mais onerosas ao executado, que deve, entretanto, considerar tal fato no momento da formação do título extrajudicial6. O entendimento foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que decidiu pela possibilidade de prisão civil, nos termos do art. 733 do CPC, em execução de título executivo extrajudicial7.
No tocante às decisões judiciais, essa espécie de execução não necessita estar fundada em sentença civil condenatória, podendo ser aplicada também às decisões interlocutórias que determinem a condenação ao pagamento de alimentos provisionais ou provisórios8. Saber se tais decisões são ou não títulos executivos judiciais é irrelevante na prática, sendo que o tema da executividade de decisões interlocutórias foi tratado no Capítulo 35, item 35.2.
No Capítulo 34, item 34.2, já tive a oportunidade de afirmar que, preferindo o exequente adotar o procedimento previsto pelos arts. 732 e 735 do CPC, cabe a aplicação das normas referentes ao cumprimento de sentença de obrigação de pagar quantia certa. Por outro lado, optando pelo procedimento previsto no art. 733 do CPC, em razão de sua incontestável especialidade, cabe ao credor ingressar com processo autônomo de execução, aplicando-se as particularidades processuais do dispositivo legal apontado e subsidiariamente as regras procedimentais do processo de execução. Tanto o procedimento do cumprimento de sentença como do processo de execução são enfrentados em capítulos específicos sobre o tema, restando, portanto, analisar somente as particularidades da execução de prestação alimentícia.
Registre-se que há corrente doutrinária que entende que os arts. 732 e 733 do CPC não preveem dois diferentes procedimentos executivos, mas diferentes medidas executórias à disposição do exequente9. Para essa corrente doutrinária, o procedimento da execução de alimentos é sempre o comum, com apenas algumas especialidades no tocante a medidas executivas de sub-rogação (desconto em folha de pagamento) e de execução indireta (prisão civil). De qualquer forma, como consagrado no Superior Tribunal de Justiça, a escolha será sempre do credor exequente10.
Optando o exequente pela execução por sub-rogação, já foi afirmado que o procedimento será de execução comum de pagar quantia certa. A especialidade fica por conta do desconto em folha de pagamento (art. 734 do CPC). Para parcela da doutrina existe também especialidade procedimental na previsão do art. 732, parágrafo único, do CPC, que permite o levantamento mensal da importância da prestação, desde que tenha sido penhorado dinheiro, ainda que pendentes de julgamento os embargos. Entendo não mais se tratar de especialidade procedimental, porque no sistema atual os embargos à execução como regra não têm efeito suspensivo (art. 739-A do CPC), de forma que o levantamento do dinheiro penhorado é admissível não só na execução de alimentos, como em qualquer outra execução de pagar quantia certa.
Há, entretanto, uma interessante questão derivada da aplicação do art. 732, parágrafo único, do CPC à luz do art. 739-A do CPC: havendo penhora de dinheiro na execução de alimentos, é possível ao executado, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 739-A, § 1.º, do CPC, a obtenção de efeito suspensivo aos embargos? Tudo leva a crer que não, porque se o legislador já previa a possibilidade de levantamento de dinheiro (o que só pode ocorrer porque os embargos não têm efeito suspensivo) quando o efeito suspensivo dos embargos era ope legis, com maior razão o entendimento deve ser mantido para a atual situação de efeito suspensivo ope iuris.
Segundo o art. 734 do CPC, o desconto em folha de pagamento é possível quando o devedor for funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa, bem como empregado sujeito à legislação do trabalho, hipótese na qual o juiz mandará descontar em folha de pagamento a importância da prestação e o tempo de sua duração. Aduz o art. 734, parágrafo único, do CPC que o juiz comunicará, por ofício à autoridade, à empresa ou ao empregador, os nomes do credor e devedor, o valor da prestação mensal e o tempo de duração da obrigação. Apesar da omissão legal, sempre que o profissional liberal for comprovadamente remunerado pelo seu trabalho de forma estável e periódica, é admissível oficiar ao pagador para que realize o devido desconto em tais pagamentos11.
O terceiro não é prejudicado com o desconto determinado pelo juiz, não havendo interesse de agir numa eventual irresignação; afinal, para o pagador não importa para quem o pagamento é destinado. Na hipótese de descumprir a ordem do juiz e continuar a pagar diretamente ao devedor de alimentos, os valores indevidamente desviados poderão ser cobrados pelo credor de alimentos diretamente do terceiro pagador12, que ainda poderá responder pelo crime previsto no art. 22 da Lei de Alimentos.
Era tradicional o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que somente se admitiria a aplicação do art. 734 do CPC às prestações vincendas, de forma que, sendo o desejo do credor a utilização de meios meramente de sub-rogação em sua execução de alimentos, deverá se valer do procedimento comum da execução de pagar quantia certa para a cobrança da dívida já acumulada pelo inadimplemento anterior13. Em recente decisão daquele tribunal, entretanto, o posicionamento foi revisto, tendo sido admitido o desconto em folha de pagamento para quitação de parcelas já vencidas14.
Além do desconto em folha de pagamento, previsto expressamente pelo art. 734 do CPC, o art. 17 da Lei de Alimentos prevê a possibilidade de satisfação do direito alimentar por meio de prestações cobradas de alugueres de prédios ou de quaisquer outros rendimentos do devedor, também nesse caso devendo o terceiro responsável pelo pagamento deixar de pagar ao devedor de alimentos e passar a pagar diretamente ao credor de alimentos ou ao juízo.
Optando o exequente pelo procedimento do art. 733 do CPC, o executado será citado para que no prazo de três dias adote uma entre três possíveis posturas, não estando prevista expressamente em lei a ausência de reação do executado, embora essa seja não só uma reação possível, mas, infelizmente, frequente na praxe forense.
A primeira reação prevista em lei é o pagamento, em espécie de reconhecimento jurídico do pedido, o que acarreta ao executado o dever de pagar também as custas processuais e os honorários advocatícios, sendo a execução extinta. Poderá o executado alegar e provar que já cumpriu a obrigação, que em regra se dá pelo pagamento, também se admitindo outras formas menos frequentes, tais como a transação, novação etc. Sendo acolhida essa alegação, a execução será extinta.
Poder-se-á ainda se justificar pelo não pagamento, indicando com seriedade e de forma fundamentada as razões que efetivamente o impossibilitaram de satisfazer o direito do exequente. A seriedade da alegação decorre geralmente de prova documental juntada com a defesa, mas o executado tem direito a produzir provas em momento procedimental posterior, em especial a testemunhal, que não pode ser produzida no momento da defesa. A justificativa impede a prisão porque, segundo o art. 5.º, LXVII, da CF, somente o inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentícia permite a prisão civil.
Sendo acolhida a defesa, a prisão civil não será decretada, devendo o juiz extinguir a execução, podendo o exequente requerer a instauração da execução por quantia certa contra devedor solvente pelo procedimento comum, nos próprios autos ou em autos apartados15. Há decisões do Superior Tribunal de Justiça admitindo a conversão de um rito procedimental em outro, mormente quando mais favorável ao devedor, como é o caso presente16.
Segundo os tribunais superiores, não sendo acolhida a justificativa e determinada a prisão, não cabe habeas corpus para convencer o tribunal das razões do inadimplemento, considerando-se a limitação probatória presente desse tipo de ação17. Ainda que se concorde com o entendimento dos tribunais superiores a respeito da inadequação do habeas corpus em razão de seu procedimento sumário documental, não se deve descartar a priori sua utilização contra a decisão que decreta a prisão civil, até mesmo porque, sendo possível ao autor a produção de prova documental em seu favor, apesar de continuar a ser tecnicamente mais apropriado o recurso cabível contra a decisão (p. ex., na decisão proferida pelo juízo de primeiro grau cabe agravo de instrumento), deve se admitir o habeas corpus como meio viável de garantir ao preso sua liberdade.
Tratando-se de decisão interlocutória de primeiro grau, o órgão competente para o julgamento do habeas corpus é o tribunal de segundo grau ao qual esteja vinculado o órgão de primeiro grau, sendo irrelevante o local em que esteja preso o autor do habeas corpus. A competência do Superior do Tribunal de Justiça exige que a decisão que determina a prisão tenha sido proferida pelo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, ainda que em agravo de instrumento contra a decisão que denegou tal pedido em primeiro grau de jurisdição18.
De tudo quanto afirmado com relação às formas de impugnação da decisão que decreta a prisão civil, haveria uma opção ao preso: a mais técnica seria a interposição do recurso cabível e a mais atécnica, mas também admitida em razão da importância que o sistema jurídico concede à liberdade, o habeas corpus. Entendo que não se deve admitir a existência concomitante dos dois instrumentos, porque haverá nesse caso identidade de partes, causa de pedir e pedido, o que configura a litispendência. Havendo o julgamento no mérito de um dos instrumentos impugnativos, entendo que a coisa julgada material deveria ser suficiente para impedir o manejo do outro instrumento, mas aparentemente não é exatamente esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, existindo decisão daquele tribunal que admite o habeas corpus mesmo depois de preclusa a decisão desfavorável ao preso proferida em agravo de instrumento19. O Tribunal preferiu prestigiar a justiça à segurança jurídica, admitindo a relativização da coisa julgada para afastar o decreto de prisão, em entendimento que já havia proporcionado decisão anterior a admitir a revogação da prisão civil mesmo diante do óbice da coisa julgada material em sentido contrário20.
Não havendo pagamento, não se justificando o executado, ou, ainda, não convencendo o juiz de suas justificativas, deverá ser determinada sua prisão civil, como meio de pressão psicológica para que este realize o pagamento. Como já defendi o entendimento de que o procedimento especial pode ser aplicado a qualquer espécie de direito alimentar, é natural a possibilidade de aplicação da prisão civil na execução de alimentos decorrentes de ato ilícito21. Há interessante decisão do Superior Tribunal de Justiça que, apesar de não tratar diretamente do tema, defende a tese de inoponibilidade da impenhorabilidade do bem de família em execução de alimentos por ato ilícito, afirmando que o sentido teleológico do art. 3.º, III, da Lei 8.009/1990 não limita sua aplicação somente aos alimentos decorrentes de laços de família22. Se o raciocínio se aplica a questões referentes à penhorabilidade, também deve ser aplicado no tocante aos meios executivos, em especial a prisão civil.
Essa prisão não tem cunho satisfativo tampouco punitivo, sendo apenas um mecanismo de pressão sobre a vontade do devedor, de forma que, mesmo preso, o executado continua a ser devedor (art. 733, § 2.º, do CPC)23. Justamente por ser apenas mecanismo de pressão, com o pagamento do devedor será imediatamente suspenso o cumprimento da ordem de prisão ou, já tendo sido o executado preso, será imediatamente libertado (art. 733, § 3.º, do CPC). Para a doutrina majoritária, a decretação da prisão não pode dar-se de ofício pelo juiz24, tampouco por manifestação do Ministério Público quando funcionar como fiscal da lei, dependendo de manifestação expressa do exequente nesse sentido. O Superior Tribunal de Justiça também entende sempre que a prisão civil depende de pedido expresso do exequente25.
O prazo máximo da prisão, segundo o art. 733, § 1.º, do CPC, é de um a três meses. Ocorre, entretanto, que a Lei de Alimentos (Lei 5.478/1968), em seu art. 19, determina que o prazo máximo da prisão seja de 60 dias, ou seja, dois meses. A divergência doutrinária é considerável, existindo três correntes de entendimento. Um primeiro entendimento faz distinção entre a execução de alimentos provisionais (um a três meses) e de alimentos definitivos (máximo de 60 dias). Um segundo entendimento prefere a aplicação do Código de Processo Civil, com o prazo entre um e três meses, independentemente de se tratar de alimentos provisionais ou definitivos26. E um terceiro entendimento defende a aplicação da Lei de Alimentos, apontando para o prazo máximo de 60 dias tanto na execução de alimentos provisionais como definitivos27. O Superior Tribunal de Justiça adota o segundo entendimento, aplicando um prazo mínimo de um mês e máximo de três meses28.
Naturalmente que o prazo analisado é o máximo de prisão que poderá suportar o devedor, sendo liberado imediatamente da prisão na hipótese do pagamento do valor devido que ensejou a aplicação da medida executiva indireta. O Superior Tribunal de Justiça entende que o pagamento parcial desse valor não é suficiente para a revogação da prisão29.
Por ser medida de extrema violência, a jurisprudência tem limitado a utilização de tal medida coercitiva, não sendo decretada a prisão para a cobrança de diferenças de pensões vencidas, ou para a cobrança de débitos antigos ou de mais de três meses30. O entendimento consagrado nos tribunais superiores deve ser bem compreendido: somente se admite a prisão do devedor de alimentos referente às três últimas parcelas não quitadas anteriores à distribuição da ação de execução, mas, vencendo-se parcelas durante esse processo, a prisão só será elidida na hipótese de pagamento integral da dívida: as três parcelas mais recentes anteriores à distribuição e todas as demais que se vencerem durante a execução até o pagamento.
Conforme corretamente já decidiu o Supremo Tribunal Federal, havendo sucessão de execuções de alimentos a prisão só será admitida na primeira, porque enquanto não houver o pagamento, as prestações cobradas nas execuções seguintes sempre estarão computadas nas “prestações vincendas” da primeira execução31. A prisão, porém, pode ser renovada diante de novo inadimplemento do devedor tantas vezes quanto necessárias, desde que se trate de novas parcelas em aberto após a ameaça ou a efetiva decretação da prisão civil do devedor32.
Principalmente em razão da natureza dos bens públicos – de uso comum, de uso especial ou dominicais – considerados inalienáveis e, por consequência lógica, impenhoráveis, o procedimento da execução de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública demanda uma forma diferenciada daquela existente para a execução contra o particular33. Também se costuma afirmar que a especialidade do procedimento está relacionada ao princípio da continuidade do serviço público34, já que os bens não poderiam ser afastados de sua utilização pública, sob pena de prejuízo à coletividade. Por fim, o procedimento especial também é justificado no princípio da isonomia, sendo o pagamento por precatórios a única maneira apta a garantir que não haja preferências na ordem de pagamento aos credores da Fazenda Pública35.
Não concordo com a parcela doutrinária que defende que a Fazenda Pública não é executada, porque, não havendo atos de constrição patrimonial e expropriação, não se pode dar ao procedimento previsto nos arts. 730 e 731 do CPC e 100 da CF a natureza executiva36. Expressões como “falsa execução”37 ou “execução imprópria”38 não devem ser prestigiadas. Entendo que todo procedimento voltado a resolver a crise jurídica de satisfação é uma execução, sendo irrelevantes para a determinação da natureza executiva do processo as técnicas procedimentais previstas em lei para a obtenção desse objetivo. Sendo o procedimento previsto em lei o adequado para o credor da Fazenda Pública receber seu crédito, com a solução da crise jurídica de satisfação, trata-se de execução.
Registre-se que as demais formas de execução – fazer/não fazer e entrega de coisa – não exigem procedimento diferenciado quando a Fazenda Pública ocupa o polo passivo, devendo-se seguir as regras gerais previstas pelo Código de Processo Civil39. É possível, inclusive, a aplicação dos arts. 461 e 461-A do CPC, em especial as astreintes40, observadas as ressalvas criadas pela Lei 9.494/1997, art. 1.º (lei que disciplina a tutela antecipada contra a Fazenda Pública).
Em sua antiga redação, o art. 100, caput, da CF indicava que os créditos de natureza alimentar independiam de expedição de precatório, mas os tribunais superiores consagraram o entendimento de que tais créditos têm preferência no pagamento, mas não dispensam a expedição de precatórios41. Esse entendimento foi integralmente consagrado pela Emenda Constitucional 62/2009, que modificou a redação do art. 100, caput, da CF e incluiu no § 1.º a expressa previsão de preferência dos débitos de natureza alimentar. Em termos de direito de preferência, a Emenda Constitucional 62/2009 criou uma preferência no âmbito dos débitos alimentares para os credores que tenham mais de 60 anos na data da expedição do precatório e para os portadores de doenças graves, até o limite de 3 vezes o valor previsto no art. 100, § 3.º, da CF (art. 100, § 2.º, da CF).
Para aplicação do procedimento especial previsto pelo art. 100 da CF e arts. 730 e 731 do CPC, por “Fazenda Pública” devem ser entendidos tanto os entes que compõem a administração direta – União, Estado, Município e o Distrito Federal – como também aqueles que compõem a administração indireta, sempre que regidas por regras de direito público – autarquias e fundações de direito público. Para parcela da doutrina, também devem ser incluídas as agências reguladoras, porque regidas pelo direito público42.
No caso das sociedades de economia mista e empresas públicas, a aplicação do procedimento executivo dependerá das atividades que exercem43:
(i) quando atuam em operações econômicas em concorrência com as empresas privadas, aplica-se o art. 173, § 1.º, da CF, sendo executadas pelo procedimento executivo comum;
(ii) quando exploram atividade econômica própria das entidades privadas, mas para prestar serviço público de competência da União Federal, são executadas pelo procedimento especial. O Plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu pela impenhorabilidade dos bens da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT)44, exigindo também para essa empresa a observação do procedimento executivo especial ora analisado.
Apesar das modificações ocorridas no art. 100 da CF, realizadas pela Emenda Constitucional 30/2000, com a utilização expressa do termo “sentença judiciária”, a execução contra a Fazenda Pública pode se fundar tanto em título executivo judicial (sentença), como em título executivo extrajudicial45. O entendimento mais recente do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto aponta para a possibilidade de execução de título extrajudicial, sem que isso de alguma forma represente ofensa ao regime jurídico de direito público inerente à atuação do Estado em juízo46.
O procedimento previsto para a execução por quantia certa contra a Fazenda Pública é consideravelmente simples, já que dispensa tanto a garantia do juízo (os bens públicos são impenhoráveis) quanto os atos de expropriação, como a avaliação, realização de hasta pública, arrematação, adjudicação etc. A Fazenda Pública é citada para embargar no prazo de 30 dias (art. 1.º-B da Lei 9.494/1997), e não para pagar como todos os demais executados em execução de pagar quantia certa. Para a doutrina que defende a extinção do processo autônomo de execução de sentença, inclusive na execução contra a Fazenda Pública, haverá a mera intimação, considerando-se tratar de mera fase procedimental (ou módulo processual)47. Como já tive oportunidade de explicar no Capítulo 34, item 34.2, entendo, como a maioria da doutrina, que a Lei 11.232/2005 não é aplicável à execução contra a Fazenda Pública, sendo mantido nesse caso o processo autônomo de execução de sentença.
Caso a Fazenda Pública não oponha embargos, deverá ser expedido o precatório pelo juízo da execução e encaminhado ao presidente do tribunal. Para parcela da doutrina, mesmo diante da omissão da Fazenda Pública, cabe ao juiz enviar os autos ao contador judicial, com o que se evitam eventuais abusos em detrimento do dinheiro público48. Acredito que, numa manifesta disparidade entre o valor exequendo e o valor representado pelo título executivo, cabe ao juiz exercer um controle de ofício por meio da remessa dos autos ao contador, até porque quem executa por valor superior ao seu crédito executa parcialmente sem título, e a ausência de título é matéria de ordem pública, que deve ser conhecida de ofício pelo juiz. Entretanto, tornar tal medida uma regra decorrente da mera omissão da Fazenda Pública não parece ser a solução mais adequada, tendo inclusive potencial de criar indevidos embaraços procedimentais para o exequente de boa-fé.
Segundo a previsão do art. 1.º-D da Lei 9.494/2007, na hipótese de a Fazenda Pública não embargar a execução, não serão devidos honorários advocatícios. Registre-se que essa regra não é absoluta, havendo inclusive entendimento sumulado no Superior Tribunal de Justiça de que são devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções individuais de sentença proferida em ações coletivas, ainda que não embargadas49.
Na execução de título extrajudicial, as matérias alegáveis nos embargos à execução seguem a previsão do art. 745 do CPC, que em seu inciso V deixa claro que todas as matérias de defesa serão admitidas. Já na execução de título judicial os embargos à execução têm uma limitação na cognição horizontal, de forma que a Fazenda Pública só poderá alegar as matérias previstas pelo art. 741 do CPC50, dispositivo muito semelhante ao art. 475-L do CPC, devidamente analisado no Capítulo 49, item 49.3.2.
Apesar do procedimento especial dessa execução, é indubitável a aplicação subsidiária das regras do processo de execução comum naquilo que não for incompatível com as regras procedimentais previstas pelos arts. 730 e 731 do CPC e art. 100 da CF. É natural que todas as normas que versam sobre penhora, avaliação, expropriação e entrega de dinheiro são inaplicáveis, mas as novidades da Lei 11.382/2006 quanto aos embargos à execução são totalmente aplicáveis à execução de titulo judicial contra a Fazenda Pública.
Entendo que o mais importante reflexo dessas novidades é a ausência de efeito suspensivo aos embargos à execução (art. 739 do CPC), que somente será concedido no caso concreto se a Fazenda Pública preencher os requisitos legais, dispensada naturalmente a existência de penhora51. O interessante é notar que a ausência de efeito suspensivo aos embargos à execução faz com que o procedimento prossiga, devendo ser praticados os atos subsequentes; na execução contra a Fazenda Pública, o ato subsequente é a elaboração do precatório pelo juízo da execução e seu encaminhamento para o Tribunal. Com a nova concepção dos embargos, acredito plausível o entendimento dessa expedição imediata, ainda que pendentes os embargos à execução de julgamento.
Compreendo que o entendimento defendido encontrará diversas dificuldades. Para a doutrina que defende a necessidade de reexame necessário da sentença que julga os embargos52 é evidente a impossibilidade de expedição de precatório antes da decisão do tribunal. Ainda que não se admita a ausência de efeito suspensivo dos embargos na execução contra a Fazenda Pública, nada justifica a necessidade de reexame necessário contra a sentença dos embargos, sendo esse o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça53.
Cabem ao juízo da execução a elaboração do precatório e o seu encaminhamento ao presidente do Tribunal competente, responsável por repassá-lo ao ente devedor para que seja incluído no orçamento. Segundo entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, a atividade desenvolvida pelo presidente do Tribunal não tem natureza jurisdicional, mas meramente administrativa54. Ainda assim, segundo o art. 100, § 7.º, da CF (redação dada pela Emenda Constitucional 62/2009), incorre em crime de responsabilidade, respondendo também ao Conselho Nacional de Justiça o Presidente de Tribunal que por ato comissivo ou omissivo retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório. Os pagamentos requisitados até 1.º de julho de cada ano deverão ser pagos até o final do exercício do ano seguinte (art. 100, § 5.º, da CF), com os valores devidamente atualizados.
É fato notório o não pagamento dos precatórios no exercício subsequente, conforme determina o texto constitucional; alguns demoram longos e sofridos anos para serem pagos. Tanta espera fez surgir um enorme e concorrido ramo de atuação, que, aproveitando-se da omissão e descaso estatal, surge para tirar seu lucro da tragédia nacional que é o não pagamento dos precatórios: o ramo de compras de precatórios, agora oficializado pela Emenda Constitucional 62/2009, nos termos do art. 100, §§ 13 e 14, da CF. Não sem um ágio considerável, porque muitos credores da Fazenda Pública preferem receber valor significativamente menor do efetivamente devido a esperar por infindáveis anos para o recebimento do valor representado no precatório. A doutrina corretamente critica a letargia do Poder Público em cumprir as condenações judiciais, mas num país em que, salvo raras exceções, o Poder Público dá seguidos exemplos de desordem e desrespeito com os direitos mais básicos e fundamentais dos seus cidadãos, não seria o pagamento de suas dívidas que funcionaria.
Apesar de previsões constitucionais admitindo que a União intervenha no Estado e este no Município quando o inadimplemento estatal superar dois anos consecutivos (arts. 34, V, “a”, e 35, I, da CF), o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento de que a intervenção não pode ser determinada quando a razão para o não pagamento dos precatórios é a insuficiência dos cofres públicos, considerando que os entes públicos têm outros compromissos a serem enfrentados. Exige-se, portanto, “inadimplemento voluntário e intencional”, para que seja determinada a intervenção55. Resumindo a atual situação: o Poder Executivo não paga, o Judiciário não se importa e o Poder Legislativo cria novas normas jurídicas para piorar ainda mais o cenário.
Tome-se, por exemplo, a iniciativa infeliz do Poder Legislativo resultante na Emenda Constitucional 30/2000, ao determinar um parcelamento de débitos da Fazenda Pública em prestações anuais num prazo de dez anos. Ainda que conste do art. 78, § 2.º, da ADCT que o não pagamento ao final do exercício tem efeito liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, o que pode parecer altamente eficaz em termos de coerção psicológica, a verdade é que os credores foram obrigados a aceitar um parcelamento de seu crédito, imposto por vontade unilateral do devedor. E, o que é pior, temerosa desse efeito liberatório, e tendo sido excluídos desse parcelamento os créditos alimentares, atualmente a Fazenda Pública prefere pagar os créditos normais para se livrar da perda da receita tributária, deixando os precatórios alimentares no esquecimento, até porque nesse caso, além de uma remota chance de algum tipo de remorso em razão das milhares de pessoas que morrem esperando na fila sem obter seu crédito alimentar, não há nenhum outro dano ao Poder Público e muito menos aos seus irresponsáveis e indiretamente assassinos agentes. Isso sem falar na Emenda Constitucional do calote (EC 62/2009), analisada em separado.
Com a Emenda Constitucional 32/2001 surge interessante questão quanto à competência do presidente do Tribunal para resolver questões que porventura surjam a respeito do precatório. Tanto doutrina quanto a jurisprudência sempre afirmaram que a competência do presidente do Tribunal se limita a questões referentes à regularidade formal e a atualização monetária até o momento do pagamento56, tarefa essa última facilitada pelo disposto no art. 100, § 12, da CF (redação dada pela Emenda Constitucional 62/2009). Questões de fundo como aquelas referentes ao cumprimento da obrigação, cálculos realizados, extinção do processo, são de competência do juízo do processo executivo, e não do presidente do Tribunal, que exerceria apenas uma função administrativa ao expedir o precatório. Tanto assim que é entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal o não cabimento de recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatório57.
Ocorre, entretanto, que a Emenda Constitucional 32/2001, no seu art. 2.º, dispõe que o presidente do Tribunal, mesmo de ofício, poderá rever as contas elaboradas para aferir a exatidão dos valores requisitados antes de seu pagamento ao credor. Como se percebe, a inclusão constitucional, além de rumar contra jurisprudência já pacificada, parece não respeitar os limites da coisa julgada material, considerando-se que a mudança no critério de cálculo adotado não pode mais ser discutida, a não ser pela via excepcional da ação rescisória. Impõe-se interpretar o dispositivo restritivamente, admitindo-se que o presidente do Tribunal só tenha competência para a correção de erros formais, materiais ou aritméticos nas contas58.
Segundo entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça, não incidem juros de mora no período compreendido entre a confecção dos cálculos de liquidação e a expedição do precatório ou do ofício requisitório59. Registre-se interessante decisão na qual é admitida a correção, porque expressamente prevista em sentença transitada em julgada, tendo entendido o tribunal que o afastamento da correção nesse caso ofende a coisa julgada material60.
A Emenda Constitucional 62/2009 traz novidade ao sistema de pagamento por precatórios, altamente benéfica à Fazenda Pública, mas com grande potencial de tornar ainda mais difícil a satisfação do direito de crédito do mais infeliz dos credores: o da Fazenda Pública.
Segundo o art. 100, § 10, da CF, antes da expedição dos precatórios, o Tribunal intimará a Fazenda Pública devedora para que, num prazo de 30 dias, sob pena de perda do direito de compensação, informe sobre a existência de débitos do credor que possam ser compensados com o débito da Fazenda Pública. Não é, entretanto, qualquer crédito que poderá ser objeto de compensação, já que, segundo o art. 100, § 9.º, da CF, a compensação só é possível nos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.
É realmente lamentável a disposição constitucional, porque equipara um crédito fundado em decisão transitada em julgado (precatório) a um alegado crédito pelo próprio credor! Como se pode notar da novidade constitucional, caberá ao credor da Fazenda Pública suspender administrativamente ou judicialmente o processo no qual se discute a dívida afirmada pela Fazenda Pública. Significa dizer que, ainda que se discuta o débito afirmado pela Fazenda Pública, o que inegavelmente o torna provisório, a compensação no momento do pagamento do precatório será realizada. Pergunta-se: e se ao final verificar-se por decisão transitada em julgado que o débito alegado pela Fazenda Pública era fantasioso, como infelizmente ocorre com mais frequência que o desejado?
Por outro lado, é possível que não exista discussão administrativa ou judicial a respeito do débito alegado pela Fazenda Pública. Nesse caso, entendo que o credor do precatório deverá ingressar com uma ação cautelar inominada para impedir a imediata compensação e num prazo de 30 dias ingressar com o processo principal para discutir o débito. Caso prefira e esse caminho seja possível no âmbito administrativo, poderá proceder da mesma forma.
Registre-se, por fim, que o art. 100, § 9.º, da CF, expressamente prevê que o direito de compensação da Fazenda Pública envolve débitos “constituídos contra o credor original”, de forma que, sendo cedido o crédito em precatório para terceiros, nos termos dos §§ 13 e 14 do art. 100, da CF, a compensação deixa de ser admitida, o que pode funcionar como mais um incentivo ao credor da Fazenda Pública na cessão de seu crédito. Pergunta interessante que deverá ser respondida pela doutrina é a possibilidade da Fazenda Pública alegar alguma espécie de fraude que torne ineficaz a cessão na hipótese de comprovar que a cessão teve como único e exclusivo propósito evitar a compensação.
A Emenda Constitucional 62/2009 modificou substancialmente o art. 100 da CF e as principais modificações são objeto de análise no presente Capítulo. Poucas foram positivas, algumas neutras e a maioria foi ruim, sempre sob a ótica de respeito ao credor da Fazenda Pública. A parte mais sombria, entretanto, não é essa, mas sim a nova redação dada ao art. 97 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias. É justamente em razão dessa alteração que a Emenda Constitucional vem sendo chamada pela Emenda do Calote, uma verdadeira vergonha nacional e demonstração cabal do desprezo de nossos governantes aos mais comezinhos princípios do direito, da ética e da boa-fé. Já existe inclusive Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil e subscrita pela AMB, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, Associação Nacional dos Servidores do Poder Judiciário, Confederação Nacional dos Servidores Públicos e Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ADI 4.357, rel. Min. Ayres Britto).
O art. 97, caput, da ADCT, permite aos Estados, Distrito Federal e Municípios que estejam em mora no pagamento de precatórios a adoção de um regime especial, que exclui o sistema de pagamento previsto pelo art. 100 da CF. Conforme se descobre pela leitura dos §§ 1.º, 2.º e 3.º do art. 97 da ADCT, haverá uma nova moratória parcial em favor desses entes públicos, agora de 15 anos. Como bem afirmado na ADI 4.357, o parcelamento de débitos em 15 anos é “verdadeira zombaria, galhofa que se faz ao jurisdicionado e ao próprio Poder Judiciário”. Além da esdrúxula forma de cálculo do pagamento dos precatórios pelo regime especial, o § 13 do art. 97 exclui a possibilidade de sequestro nesse sistema de pagamento, salvo no caso de não liberação tempestiva dos recursos tratados no inciso II dos §§ 1.º e 2.º do mesmo artigo legal.
Tão funesto quanto a forma de pagamento prevista para o tal “regime especial” é a regra de que somente 50% dos recursos atribuídos a tal fundo servirão para o pagamento dos precatórios em ordem cronológica (art. 97, § 6.º, do ADCT). Os outros 50% poderão ser utilizados, segundo o art. 97, § 8.º, do ADCT, da seguinte forma, à escolha do ente público: (a) mediante leilões, regulados pelo § 9.º do ADCT; (b) pela ordem crescente de valor por precatório; e (c) acordo direto com os credores por meio de conciliação.
Não é necessário muito esforço para se notar que as três formas previstas para o pagamento de metade do valor arrecadado para pagamento de precatórios significam um claro desrespeito ao direito de crédito reconhecido judicialmente contra a Fazenda Pública. Os mais românticos afirmaram que aqueles que têm precatórios de menor valor devem receber antes, sem perceber que aqueles que têm precatórios de maior valor terão que esperar um tempo indefinido para o recebimento do que é seu de direito. É preciso lembrar que, independentemente do valor do débito, nem todos escolhem ser credores da Fazenda Pública... Ainda mais acintosa é a proposta de conciliação, a qual forçará o credor a abrir mão de parcela de seu direito de crédito com o receio de nunca receber se assim não o fizer.
Conforme bem colocado na ADIN 4.357, trata-se da “instituição oficial da pechincha da sentença judicial, em verdadeira banca de negociata e absoluto amesquinhamento da autoridade do comando judicial”. Pobre país no qual o credor, que deveria ser o mais interessado em cumprir com suas obrigações, vale-se da “empobrecida” classe política para se blindar cada vez mais, deixando o jurisdicionado à míngua. Resumindo tudo em mais uma passagem da petição inicial da ADIN 4.357: as regras já criticadas constituem “o maior atentado à cidadania já visto na história brasileira”. Na realidade, não sei se é o maior atentado, devido à maestria de nossos governantes em assim proceder, mas certamente tem posição de inegável destaque entre as maiores vilanias do Estado contra o jurisdicionado.
Não se pode deixar de mencionar no estudo da execução por quantia certa contra a Fazenda Pública a disposição do art. 100, § 3.º, da CF, que permite nos casos de condenação de pequeno valor que o pagamento seja realizado sem a necessidade de expedição de precatório.
O “pequeno valor” apontado pelo dispositivo constitucional deverá ser indicado por cada entidade federada, por meio de legislação específica, segundo previsão do art. 100, § 4.º, da CF. O art. 97, § 12.º, do ADCT (incluído pela EC 62/2009) dispõe que, se a lei referida no art. 100, § 4.º, da CF, não tiver sido publicada em até 180 dias contados da publicação da emenda constitucional, para os Estados e Municípios o valor será de 40 salários-mínimos e para os Municípios de 30 salários-mínimos. No âmbito federal, o pequeno valor foi determinado pelo art. 17, § 1.º, da Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.257/2001) e confirmado pelo art. 2.º da Resolução 373/2004 do Conselho da Justiça Federal em 60 salários-mínimos (art. 17, § 1.º).
A execução por RPA (requisição de pagamento autônoma) não tem propriamente um procedimento executivo. Transitada em julgado a sentença, caberá ao juízo da condenação requisitar ao condenado o pagamento do valor da condenação no prazo de 60 dias, por meio de depósito em agência da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil. Não sendo atendida a requisição judicial, o juiz determinará o sequestro da quantia devida, não se confundindo essa medida com o sequestro previsto para o desrespeito à ordem de pagamento, porque nesse sequestro basta o não pagamento dentro do prazo de 60 dias61.
No caso de o credor de valor acima dos permitidos pela lei pretender a execução sem o precatório, haverá renúncia do valor excedente, não sendo possível executar um mesmo crédito sem precatório até o valor permitido e o restante por precatório. Se não pretender abrir mão de seu crédito, deverá utilizar a via do precatório.
Caso algum credor seja preterido no seu direito de preferência, poderá requerer o sequestro – melhor seria dizer arresto – da quantia necessária para satisfazer o débito. O presidente do Tribunal, após ouvir o chefe do Ministério Público, poderá determinar a apreensão e a entrega do valor ao credor preterido. Apesar da nomenclatura típica da tutela cautelar, a doutrina majoritária entende que o sequestro ora analisado tem natureza de ato executivo, gerando a imediata satisfação do autor do pedido e que foi preterido na ordem de pagamento62.
Existe intenso debate doutrinário a respeito de quem é o sujeito passivo dessa apreensão, ou seja, o valor do sequestro será retirado do patrimônio da Fazenda Pública ou do credor “fura-fila”?
Os que defendem que o ato de constrição deve recair sobre o patrimônio do credor que recebeu antes da hora afirmam ser essa a única forma de reverter o prejuízo gerado pelo pagamento indevido. Ao admitir que o valor seja retirado do patrimônio público, haveria um indevido incentivo à ilegalidade, porque saberiam todos os credores que, tendo a oportunidade de furarem a fila dos precatórios, o valor indevidamente recebido estaria a salvo de qualquer restituição por parte do Poder Público63. Também se valem do argumento da inalienabilidade dos bens públicos que, mesmo sendo penhorados, não poderiam ser posteriormente expropriados64.
Por outro lado, existe doutrina que defende que o sequestro recaia sobre o patrimônio da Fazenda Pública, que era a devedora original e, mesmo tendo realizado pagamento fora da ordem, continua a ser a devedora, não se podendo entender que, mesmo atuando contrariamente à lei, a Fazenda Pública possa se valer da inalienabilidade dos bens públicos65. O Supremo Tribunal Federal entende que o sequestro deve recair sobre renda pública66, enquanto o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que o sequestro deve recair sobre renda pública não só na preterição da ordem de preferência, mas também no caso de omissão no orçamento e em casos de não ser a dívida que foi parcelada paga no vencimento67.
Uma terceira corrente doutrinária entende que tanto o patrimônio público como o patrimônio do credor que recebeu em desrespeito à ordem podem ser objeto do sequestro, possibilitando ao credor preterido a formação de um litisconsórcio passivo68. Há entendimento do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, de que não existe litisconsórcio necessário entre o ente público e o credor que recebeu fora da ordem, sendo a legitimidade passiva no sequestro exclusiva do ente público69.
Aparentemente, a Emenda Constitucional 62/2009 pretende pôr fim à polêmica por meio da previsão contida no art. 100, § 6.º, da CF. Segundo esse dispositivo legal, as dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente no Poder Judiciário, sendo sequestrados desse valor consignado os valores a serem pagos ao credor preterido.
1 Theodoro Jr., Processo, n. 332, p. 391.
2 Greco, O processo, n. 11.1, p. 526-527; Dinamarco, Instituições, n. 1.726, p. 601.
3 Marinoni-Arenhart, Execução, p. 374-375.
4 Marinoni-Arenhart, Execução, p. 377-378; Câmara, Lições, v. 1, p. 318. Contra: Araken de Assis, Manual, n. 399, p. 904-905; Greco, O processo, n. 11.1.3, p. 531; Abelha Rodrigues, Manual, p. 434-435.
5 RHC 21.490/RS, 4.ª Turma, rel. Min. Massami Uyeda, j. 02.08.2007; RHC 19.408/SP, 3.ª Turma, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 1.º.06.2006.
6 Pela aplicação: Dinamarco, Instituições, n. 1.726, p. 601; Greco, O processo, n. 11.1, p. 526; Abelha Rodrigues, Manual, p. 422. Contra: Câmara, Lições, v. 1, p. 314.
7 Informativo 435/STJ: 3.ª Turma, REsp 1.117.639-MG, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 20.05.2010.
8 Theodoro Jr., Processo, n. 334, p. 392; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 373-374; Fux, Curso, p. 1.467.
9 Barbosa Moreira, O novo, p. 274.
10 Informativo 447/STJ: 2.ª Turma, RHC 27.936-RJ, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 16.09.2010.
11 Marinoni-Arenhart, Execução, p. 379; Araken de Assis, Manual, n. 414.2, p. 948.
12 Greco, O processo, n. 11.1, p. 529.
13 STJ, 3.ª Turma, AgRg no REsp 822.486/RJ, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 18.09.2008, DJe 08.10.2008; STJ, 4.ª Turma, RHC 21.490/RS, rel. Min. Massami Uyeda, j. 02.08.2007, DJ 27.08.2007, p. 253.
14 Informativo 485/STJ: 4.ª Turma, REsp 997.515/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 18.10.2011.
15 Greco, O processo, n. 11.1.3, p. 532.
16 STJ, 3.ª Turma, RHC 14.993/CE, rel. Min. Castro Filho, j. 05.02.2004, DJe 25.02.2004, p. 167; STJ, 4.ª Turma, REsp 414.514/SP, rel. Min. Barros Monteiro, j. 19.11.2002, DJ 10.03.2003, p. 230.
17 STF, 1.ª Turma, HC 87.134/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 08.08.2006; STJ, 3.ª Turma, HC 55.842/SP, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 03.08.2006; HC 49.408/SP, 3.ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 02.02.2006.
18 STJ, 3.ª Turma, AgRg no HC 135.742/DF, rel. Min. Massami Uyeda, j. 26.05.2009, DJe 10.06.2009.
19 STJ, 1.ª Turma, REsp 769.735/RS, rel. Min. Luiz Fux, rel. p/ acórdão, Min. Teori Albino Zavascki, j. 26.05.2008, DJe 18.02.2009.
20 STJ, 3.ª Turma, RHC 11.758/SP, rel. Min. Castro Filho, j. 18.09.2001, DJ 29.10.2001, p. 199.
21 Abelha Rodrigues, Manual, p. 435.
22 STJ, 3.ª Turma, REsp 437.144/RS, rel. Min. Castro Filho, j. 07.10.2003.
23 Barbosa Moreira, O novo, p. 274.
24 Dinamarco, Instituições, n. 1.727, p. 605; Theodoro Jr., Processo, n. 334, p. 393. Contra: Barbosa Moreira, O novo, p. 274.
25 Informativo 391/STJ, 3.ª T., HC 128.229-SP, rel. Massami Uyeda, j. 23.04.2009.
26 Marinoni-Arenhart, Execução, p. 382; Barbosa Moreira, O novo, p. 274.
27 Araken de Assis, Manual, n. 410.1, p. 940; Câmara, Lições, v. 1, p. 317.
28 STJ, 4.ª Turma, RHC 23.040/MG, rel. Min. Massami Uyeda, j. 11.03.2008; RHC 16005/SC, 3.ª Turma, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 1.º.06.2004.
29 Informativo 504/STJ, 4.ª Turma, RHC 31.302-RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 18.09.2012.
30 Súmula 309/STJ: “O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo”; STF, 2.ª Turma, HC 93.501/SP, rel. Min. Eros Grau, j. 23.09.2008.
31 STJ, 3.ª Turma, HC 39.902/MG, rel. Min. Nancy Andrigui, j. 18.04.2006, DJ 29.05.2006, p. 226.
32 Greco, O processo, n. 11.1.3, p. 533; Araken de Assis, Manual, n. 410.5, p. 943-944; STJ, 4.ª Turma, RHC 23.040/MG, rel. Min. Massami Uyeda, j. 11.03.2008.
33 Theodoro Jr., Processo, n. 319, p. 379; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 391.
34 Pereira, Execução, n. 24, p. 444.
35 Greco, O processo, n. 11.2.1, p. 542; Scarpinella Bueno, Código, p. 2.037.
36 Abelha Rodrigues, Manual, p. 399.
37 Dinamarco, Instituições, n. 1.729, p. 610.
38 Theodoro Jr., Curso, n. 319, p. 379.
39 Greco, O processo, n. 11.2.1, p. 540; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 392; Dinamarco, Instituições, n. 1.729, p. 611; Abelha Rodrigues, Manual, p. 398.
40 STJ, 2.ª Turma, AgRg no Ag 1.040.411/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. 02.10.2008; AgRg no Ag 1.025.234/SP, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 07.08.2008.
41 Súmula 655/STF e Súmula 144/STJ.
42 Scarpinella Bueno, Código, p. 2.037.
43 Theodoro Jr., Processo, n. 329, p. 388. Contra: Marinoni-Arenhart, Execução, p. 392; Câmara, Lições, v. 1, p. 309.
44 No mesmo sentido; STJ, 2.ª Turma, REsp 397.853/CE, rel. Min. Franciulli Netto, j. 18.09.2003.
45 Theodoro Jr., Processo, n. 379, p. 388; Greco, O processo, n. 11.2.1, p. 541; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 392.
46 Súmula 279/STJ.
47 Câmara, Lições, v. 1, p. 311; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 394.
48 Abelha Rodrigues, Manual, p. 403.
49 Súmula 345/STJ; EREsp 513.608-RS, Corte Especial, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 05.11.2008.
50 Cunha, A Fazenda, n. 12.1.2, p. 243.
51 STJ, REsp 1.024.128/PR, 2.ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 13.05.2008, DJe 19.12.2008; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 394.
52 Viana, Execução, p. 115; Câmara, Lições, v. 1, p. 310.
53 STJ, 1.ª Turma, AgRg no REsp 1.079.310/SP, rel. Min. Francisco Falcão, j. 11.11.2008; EREsp 251.841/SP, Corte Especial, rel. Min. Edson Vidigal, j. 25.03.2004; Marinoni-Arenhart, Execução, p. 395; Franco, Execução, p. 297-299.
54 Súmula 311/STJ.
55 STF, Tribunal Pleno, IF-AgR 4.663/MG, rel. Min. Ellen Gracie, j. 06.03.2008.
56 Marinoni-Arenhart, Execução, p. 396; Abelha Rodrigues, Manual, p. 407.
57 Súmula 733/STF.
58 Scarpinella Bueno, Código, p. 2.041.
59 Informativo 481/STJ: AgRg no REsp 1.240.532/RS, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 18.08.2011.
60 Informativo 465/STJ: 2.ª Turma, REsp 1.221.402/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 1.º.03.2011.
61 Pereira, Execução, n. 24.6, p. 463.
62 Fux, Curso, p. 1.468; Câmara, Lições, v. 1, p. 313; Abelha Rodrigues, Manual, p. 410; Viana, Execução, n. 3.6.3.2, p. 126.
63 Marinoni-Arenhart, Manual, p. 397.
64 Barbosa Moreira, O novo, p. 272; Fux, Curso, p. 1.468; Câmara, Lições, v. 1, p. 313-314.
65 Araken de Assis, Manual, n. 429.4, p. 970; Greco, O processo, n. 11.2.1, p. 544; Franco, Execução, p. 181-184; Viana, Execução, n. 3.6.3.3, p. 126-128.
66 STF, Tribunal Pleno, ADI 1.662/SP, rel. Min. Maurício Correa, j. 30.08.2001.
67 STJ, 2.ª Turma, RMS 22.519/RO, rel. Min. Humberto Martins, j. 19.06.2008; RMS 23213/SP, 1.ª Turma, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 26.02.2008.
68 Cunha, A Fazenda, n. 12.1.6, p. 257.
69 STJ, 1.ª Turma, RMS 18.729/SP, rel. Min. Denise Arruda, j. 02.10.2007.