Sumário: 63.1. Introdução – 63.2. Natureza jurídica – 63.3. Penhor legal e autotutela – 63.4. Procedimento.
O penhor é instituto de direito material, tutelado pelos arts. 1.431 e ss. do CC, sendo o penhor legal regulamentado pelos arts. 1.467 a 1.472 do CC. Naturalmente, os limites do presente livro não permitem maiores digressões a respeito desse instituto de direito material, bastando em caráter introdutório uma breve definição do que é penhor legal.
Segundo o art. 1.431 do CC, o penhor é constituído pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação. Já o art. 1.467 do CC prevê as hipóteses de penhor legal, afirmando serem credores pignoratícios, independentemente de convenção:
(I) os hospedeiros ou fornecedores de pousada, sobre bagagens, móveis, joias ou dinheiro que os consumidores ou fregueses tiverem consigo na hipótese de não pagamento das despesas;
(II) o dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis do rendeiro ou inquilino que estiverem guarnecendo o mesmo prédio, na hipótese de não pagamento dos aluguéis – bem como os encargos acessórios1 – ou rendas.
Como consta expressamente dos arts. 1.431 e 1.467 do CC, somente bens móveis poderão ser objeto de penhor, desde que suscetíveis de alienação. Essa última exigência tem importante consequência processual, considerando-se que a alienação mencionada no dispositivo legal é tanto a convencional como a judicial, de forma que os bens impenhoráveis, apesar de serem alienáveis por vontade do proprietário, não podem ser alienados judicialmente, o que basta para impedir que o penhor legal recaia sobre eles. Bens impenhoráveis, portanto, não podem ser objeto de penhor legal2.
Apesar de previsto entre os processos cautelares típicos, a doutrina majoritária entende que a homologação de penhor legal não tem natureza jurídica cautelar. Provavelmente, o legislador tenha se impressionado com a previsão do art. 1.470 do CC, que exige a existência de perigo de demora para que o penhor legal seja admitido, presumindo que este de alguma forma se confunda com o periculum in mora, o que justificaria a colocação do procedimento no rol dos processos cautelares3. Ou ainda tenha levado em conta que o penhor legal realizado pelo credor não gera a satisfação de seu direito, funcionando tão somente como garantia – de natureza real, desde que ocorra a homologação judicial – do pagamento da dívida.
É corrente o entendimento de que a homologação do penhor legal é processo de jurisdição voluntária4, considerando que o autor desse processo busca apenas a constituição da garantia legal prevista pelo ordenamento material e a sentença de procedência concede a satisfação desse interesse5. No processo de homologação de penhor legal não interessa ao juiz a efetiva existência ou a extensão da dívida alegada pelo autor, bastando o preenchimento dos requisitos formais do penhor legal, o que inclusive impede que a sentença proferida no processo produza coisa julgada material6.
Ainda que não tenha natureza cautelar, a mera colocação da homologação do penhor legal no rol das cautelares típicas permite a aplicação de regras do procedimento cautelar, desde que não conflitantes com a natureza do processo. Dessa forma, a doutrina acertadamente entende pela aplicação do art. 806 do CPC, exigindo-se do autor o ingresso de ação de cobrança – pela via cognitiva ou executiva – no prazo de 30 dias do trânsito em julgado da sentença homologatória. A justificativa é simples: não há sentido em forçar o pretenso devedor a suportar uma garantia real em seus bens indefinidamente, a bel-prazer do credor7.
Conforme analisado no Capítulo 1, item 1.2.1, a autotutela é forma de solução de conflito realizada unilateralmente por uma das partes envolvidas no conflito de interesses pelo exercício da força, sendo de aceitação excepcional no sistema jurídico pátrio. Seria o penhor legal uma dessas exceções legais?
Apesar de dispositivos legais constantes do Código Civil e do Código de Processo Civil ora imporem para o penhor legal a anterior retirada de bens do patrimônio do devedor por ato do credor, ora indicarem que esse ato não é necessário, a melhor interpretação é aquela que leva em consideração três diferentes situações.
O penhor legal pode funcionar como forma de autotutela por parte dos sujeitos descritos no art. 1.467 do CC que, intitulando-se credores, poderão por mão própria reter bens móveis do pretenso devedor inadimplente (autotutela)8, servindo o procedimento previsto nos arts. 874 a 876 do CPC para a regularização do penhor, nos termos do art. 1.471 do CC, entendendo a melhor doutrina que a homologação judicial é condição de existência e eficácia da proteção conferida pelo penhor legal. Para ser justificável essa tomada de bens pelas próprias mãos deve existir o perigo de demora previsto no art. 1.470 do CC, ou seja, deve ser manifesto o periculum in mora.
Tendo ocorrido a autotutela, o art. 1.471 do CC exige do tomador do penhor, em ato contínuo, o pedido de homologação judicial. O silêncio da lei quanto ao prazo para que esse pedido seja realizado faz com que não haja unanimidade doutrinária a respeito da interpretação do termo “ato contínuo”. Para alguns caberá ao juiz no caso concreto a fixação de um prazo razoável9, para outros cabe a aplicação por analogia do art. 806 do CPC, concedendo-se um prazo de 30 dias para o ingresso do processo de homologação do penhor legal10, parecendo ser essa a melhor solução porque torna homogêneo o prazo para todos os processos, em nítido prestígio da segurança jurídica. Vencido o prazo, caberá ao devedor o ingresso de ação possessória, considerando-se que a partir de então a posse do credor passa a ser considerada injusta11.
Ocorre, entretanto, que mesmo em situações em que exista o periculum in mora pode não ser possível ou recomendável ao credor a tomada de bens do devedor por ato de justiça de mão própria, lembrando corretamente a doutrina que a autodefesa admitida pelo art. 1.470 do CC não permite o uso exagerado da força ou ainda a criação de indesejável perturbação social12. Nesse caso, caberá ao pretenso credor o ingresso de processo cautelar para resguardar seu interesse13, sendo o pedido de homologação do penhor legal realizado após 30 dias da efetivação do ato de constrição judicial, nos termos do art. 806 do CPC.
Por fim, pode não existir o perigo de demora, hipótese na qual não caberá a tomada de bens por mãos próprias, competindo ao credor o pedido de homologação do penhor legal sem qualquer providência unilateral prévia14. Com a procedência do pedido, admitir-se-á por meio judicial o ato de tomada de penhor.
Como todo processo, a homologação de penhor legal tem o seu início por meio da petição inicial apresentada pelo autor. Como não se trata propriamente de processo cautelar, entendo que a petição inicial deva ser elaborada nos termos dos arts. 282 e 283 do CPC, não sendo necessária a aplicação do art. 801 do CPC, em especial em seu inciso III, porque o autor não é obrigado a indicar o processo principal15. No tocante aos documentos indispensáveis à propositura da demanda, o art. 874, caput, do CPC prevê a necessidade de juntada de conta pormenorizada das despesas, tabela de preços e a relação dos objetos retidos.
A exigência de juntada de conta pormenorizada das despesas e tabelas de preços somente se aplica aos credores descritos no art. 1.467, I, do CC, de forma que o locador e/ou arrendador estão dispensados dessa exigência, devendo apenas juntar aos autos cópia do contrato de locação ou arrendamento16. Apesar de o art. 1.468 do CC exigir que a tabela de preços seja impressa, prévia e ostensivamente exposta na casa, sob pena de nulidade do penhor, a melhor doutrina entende que a publicidade dos preços é indispensável, mas a necessidade de a tabela ser impressa não, admitindo-se que a tabela seja manuscrita, algo comum em estabelecimentos mais simples17. O art. 874, caput, do CPC prevê, por fim, a indicação da relação dos objetos retidos, mas isso só será possível na hipótese de o credor ter tomado o penhor pelas próprias mãos; não tendo isso ocorrido, basta a relação dos bens sobre os quais se pretende realizar o penhor legal.
O art. 874, parágrafo único, do CPC prevê que, estando suficientemente provado o pedido, o juiz poderá homologar de plano o penhor legal. Apesar de existir corrente doutrinária que entende cabível a prolação de sentença inaudita altera parte, sendo posteriormente realizada a citação do réu apenas para pagar a dívida18, não há como admitir essa circunstância em razão da nítida ofensa ao princípio do contraditório que seria gerado pela interpretação literal da norma ora analisada19. Note-se que na ausência de citação do réu antes da sentença nem mesmo haverá contraditório postergado, típico das medidas cautelares concedidas inaudita altera parte, mas simplesmente a abolição por completo desse princípio constitucional, o que evidentemente não se pode admitir. Ademais, como lembra a melhor doutrina, o art. 1.472 do CC permite ao réu evitar o penhor mediante o oferecimento de caução, o que evidentemente tornaria impossível a prolação de sentença homologatória sem a sua citação20.
O réu será citado para pagar ou alegar defesa no prazo de 24 horas. Sendo realizado o pagamento, haverá reconhecimento jurídico do pedido, que deve ser homologado pelo juiz; tendo sido tomada a posse por ato unilateral do credor, os bens deverão ser devolvidos por este, que a partir do pagamento os manterá com posse injusta, podendo até se configurar a figura penal da apropriação indébita.
Na defesa do réu há uma limitação das matérias que podem ser alegadas, o que torna o procedimento da homologação de penhor legal um daqueles em que existe uma limitação à cognição horizontal do juízo. Pela previsão do art. 875 do CPC, o réu só poderá alegar em contestação:
(I) nulidade do processo, compreendidas aqui as questões formais do procedimento;
(II) extinção da obrigação, que poderá ter ocorrido por qualquer forma prevista na lei material (p. ex., pagamento, remição, novação), sendo também admissível a alegação de prescrição21;
(III) não estar a dívida compreendida entre as previstas em lei ou não estarem os bens sujeitos a penhor legal.
Existe doutrina que entende ser o rol previsto pelo art. 875 do CPC meramente exemplificativo, sendo passíveis de alegação outras matérias referentes à legalidade do penhor, tais como a sua nulidade ou excesso22. Ainda que se acolha esse entendimento, a cognição continua sendo limitada horizontalmente, porque somente as matérias afeitas ao penhor legal serão admitidas, sendo excluídas outras como, por exemplo, a existência ou extensão da dívida. Naturalmente, são alegáveis as matérias de ordem pública, que o juiz pode conhecer de ofício, o que permite a defesa processual fundada em pressupostos processuais e/ou condições da ação.
Ainda que não exista previsão legal expressa, é admissível a realização de uma fase probatória sempre que o juiz entender necessária a produção de prova, inclusive com designação de audiência de instrução e julgamento quando for necessária a produção de prova oral. Não sendo hipótese de produção de prova, ou já tendo esta sido produzida, caberá ao juiz sentenciar a demanda, tendo maior interesse prático a sentença que acolhe ou rejeita o pedido do autor (art. 269, I, do CPC), ainda que outras espécies sejam possíveis, tais como a sentença homologatória de reconhecimento jurídico do pedido na hipótese do pagamento da dívida e a sentença terminativa na hipótese de vício formal insanável.
Segundo o art. 876 do CPC, sendo acolhido o pedido do autor, em sentença de natureza constitutiva, os autos serão entregues ao requerente no prazo de 48 horas (contados após o trânsito em julgado23), independentemente de traslado, salvo se, dentro desse prazo, existir pedido de certidão; sendo rejeitado o pedido, em sentença de natureza declaratória, o objeto será entregue ao réu, ressalvado ao autor o direito de cobrar a conta por ação ordinária, sendo que a devolução do bem só terá algum sentido quando os bens já tiverem sido tomados pelo autor, o que nem sempre ocorre. É interessante a expressa menção à manutenção do direito do autor em cobrar sua dívida, ressaltando a norma legal que na homologação do penhor legal não se discute a existência ou extensão da dívida.
Existe certa divergência a respeito de ser a sentença de procedência desse processo, um título executivo, o que já admitiria o ingresso de cumprimento de sentença para o pagamento da quantia assegurada pelo penhor. Ainda que exista corrente doutrinária que defenda a possibilidade de execução dessa sentença24, prefiro o entendimento de que essa execução é inviável, cabendo ao autor ingressar com um processo judicial de conhecimento para a cobrança de seu crédito25.
Não tendo ocorrido qualquer decisão no processo a respeito da existência ou extensão da dívida, em razão da limitação à cognição horizontal criada pelo art. 875 do CPC, não há na sentença que julga procedente o pedido de homologação de penhor legal qualquer declaração a respeito da existência ou extensão da dívida, matéria alheia ao objeto do processo. Dessa forma, não tendo ocorrido o reconhecimento judicial da dívida, não pode valer a sentença de procedência desse processo como título executivo para cobrança de tal dívida, limitando-se a condição executiva dessa decisão ao capítulo acessório de condenação do réu ao pagamento das verbas de sucumbência.
Ressalte-se que, na hipótese de o autor não ter tomado o penhor em ato de autotutela, a sentença de procedência terá eficácia executiva visando a tomada dos bens da posse do réu. Nesse caso, existe doutrina, partidária da teoria quinária das sentenças, que entende tratar-se de eficácia mandamental da sentença26, com ordem dirigida ao réu para que entregue a posse dos bens ao autor. Seja como for, o principal é entender que a sentença de procedência nesse caso gera efeitos práticos, tipicamente executivos, de satisfação do direito do autor, que serão desenvolvidos no próprio processo, agora em fase de cumprimento de sentença27.
Apesar de não existir no PLNCPC previsão de cautelares nominadas, a homologação de penhor legal está prevista no Capítulo de procedimentos especiais contenciosos, mais precisamente nos arts. 681 a 684.
No art. 681, caput, há exigência de instrução da petição inicial com o contrato de locação ou a conta pormenorizada das despesas, como já apontava a melhor doutrina. Além disso, o prazo de defesa do réu não é mais de 24 horas, sendo designada uma audiência preliminar na qual deverá pagar ou contestar. O art. 682 do PLNCPC, que trata das matérias alegáveis na defesa, repete o art. 875 do atual CPC, acrescendo uma nova hipótese: alegação de haver sido ofertada caução idônea, rejeitada pelo credor. Nos termos do art. 683 do PLNCPC, após a audiência preliminar seguir-se-á pelo procedimento comum.
1 Theodoro Jr., Processo, n. 287, p. 340; Câmara, Lições, v. 3, p. 208. Contra: Baptista da Silva, Do processo, p. 519-520.
2 Marinoni-Mitidiero, Curso, p. 799; Theodoro Jr., Processo, n. 287, p. 340.
3 Bomfim Marins, Comentários, p. 350.
4 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 798; Costa Machado, Código, p. 1.426.
5 Theodoro Jr., Processo, n. 288, p. 341.
6 Oliveira, Comentários, n. 113, p. 357.
7 Oliveira, Comentários, n. 113, p. 359.
8 Baptista da Silva, Do processo, p. 511. Contra: Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 310.
9 Oliveira, Comentários, n. 113, p. 360; Greco, Jurisdição, n. 7.11, p. 134.
10 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 798.
11 Oliveira, Comentários, n. 113, p. 360.
12 Oliveira, Comentários, n. 113, p. 361.
13 Theodoro Jr., Processo, n. 287, p. 340.
14 Baptista da Silva, Do processo, p. 513; Bomfim Marins, Comentários, p. 351.
15 Câmara, Lições, p. 212.
16 Theodoro Jr., Processo, n. 289, p. 341; Oliveira, Comentários, n. 114, p. 363; Baptista da Silva, Do processo, p. 516.
17 Câmara, Lições, p. 212.
18 Theodoro Jr., Processo, n. 289, p. 342.
19 Greco, Jurisdição, n. 7.11, p. 133; Oliveira, Comentários, n. 114, p. 365-366; Câmara, Lições, p. 213; Bomfim Marins, Comentários, p. 354.
20 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 798.
21 Alvaro de Oliveira, Comentários, n. 115, p. 368; Bomfim Marins, Comentários, p. 355.
22 Marinoni-Mitidiero, Curso, p. 799.
23 Theodoro Jr., Processo, n. 290, p. 343; Oliveira, Comentários, n. 116, p. 373.
24 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 799; Greco Filho, Direito, n. 45, p. 202-203; Costa Machado, Código, p. 1.428.
25 Greco, Jurisdição, n. 7.11, p. 135; Baptista da Silva, Do processo, p. 523-525; Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 315-316; Theodoro Jr., Processo, n. 208, p. 343.
26 Baptista da Silva, Do processo, p. 522.
27 Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 315.