Sumário: 64.1. Introdução – 64.2. Natureza jurídica – 64.3. Legitimidade – 64.4. Procedimento.
Para o direito brasileiro o marco inicial da personalidade da pessoa natural é o nascimento com vida, sendo correta a afirmação de que o nascituro não tem personalidade jurídica, ainda que o Direito proteja os seus interesses desde a concepção (art. 2.º do CC). Havendo interesses juridicamente tutelados pelo ordenamento, caberá ao futuro titular do pátrio poder (ou poder familiar) protegê-lo enquanto o nascituro não adquirir a personalidade civil.
O processo de posse em nome de nascituro só se justifica quando por alguma razão estiverem em jogo os seus interesses sucessórios1, cabendo à mulher (genitora) requerer a prova de seu estado de gravidez (o que demonstrará a existência de um nascituro) e a sua investidura – ou, excepcionalmente, a nomeação de um curador pelo juiz – na posse dos direitos do nascituro. A finalidade da tutela jurisdicional é permitir a habilitação do nascituro em inventário no qual participará na condição de herdeiro ou legatário.
Para a doutrina majoritária a posse em nome de nascituro não tem natureza cautelar, sendo indevida a sua previsão pelo legislador no rol dos processos cautelares típicos. Concordo plenamente com esse entendimento, mas nem sempre com as premissas utilizadas para fundamentá-lo.
Parcela da doutrina afirma que a posse em nome do nascituro não possui natureza cautelar porque, diferente da produção antecipada de prova, não se limita a assegurar a prova, efetivamente produzindo-a2. A comum e indevida confusão entre asseguração e produção antecipada de prova é demonstrada e devidamente criticada no Capítulo 58, item 58.1, mostrando-se de maneira manifesta no caso da posse em nome do nascituro. Afirma-se que, sendo interesse da mulher grávida a prova da gravidez para outros fins que não a investidura na posse dos direitos do nascituro, a parte deverá se valer de outra demanda, no caso a justificação avulsa3. Realizado o exame de DNA, seja nessa justificação avulsa, seja no processo de posse em nome de nascituro, seja uma cautelar de produção antecipada de prova, obviamente a prova terá sido produzida, o que demonstra claramente o equívoco em afirmar que a posse em nome de nascituro não tem natureza cautelar porque nesse processo se produz a prova e não meramente se assegura a sua produção.
Há ainda outro aspecto que demonstra de maneira ainda mais clara o equívoco do pensamento ora criticado. A pretensão da mulher grávida com o processo de posse em nome de nascituro não é a declaração de sua gravidez, que na realidade é realizada tão somente de forma incidental; a pretensão é a declaração de legitimidade da investidura na posse dos direitos do nascituro, o que obviamente só será determinado pelo juiz se demonstrada a existência de um nascituro, o que exigirá – como solução de questão prejudicial – a declaração da gravidez. A posse em nome de nascituro não é, como parece à parcela da doutrina4, uma ação probatória autônoma, cujo objeto seja a declaração do fato de a autora estar grávida, mas demanda que declara a mãe titular da posse dos direitos do nascituro5.
O processo em nome de nascituro não tem natureza cautelar por duas razões fundamentais:
(i) para o julgamento de procedência do pedido da autora não se exigirá o preenchimento de fumus boni iuris e periculum in mora6;
(ii) não existe a acessoriedade típica das ações cautelares, sendo que a eficácia da medida obtida nessa demanda não acautela o resultado de um outro processo, esgotando-se em si mesma com o nascimento ou o falecimento do ente concebido7.
É corrente na doutrina a afirmação de que o processo de posse em nome de nascituro é de jurisdição voluntária, tendo como objetivo apenas constituir uma situação jurídica, qual seja a habilitação do nascituro no inventário do de cujus no qual será herdeiro ou legatário8.
A mulher que carrega o nascituro em seu ventre é a legitimada padrão para a propositura do processo de posse em nome de nascituro, abrangendo tanto a viúva como a concubina9. Excepcionalmente, se o poder familiar (antigo pátrio poder) couber ao pai, como ocorre na hipótese de legado em favor de nascituro de pai vivo ou quando a mulher grávida pretender esconder seu estado gravídico, o pai também terá legitimidade ativa para a demanda. Também excepcional é a legitimação por curador especial, na hipótese de a mulher grávida estar interditada.
O Ministério Público não tem legitimidade ativa, porque o interesse a ser tutelado, apesar de ter como titular um nascituro é de natureza patrimonial, ainda que a doutrina majoritária entenda que, por se tratar de jurisdição voluntária, será admissível essa legitimação ativa, nos termos do art. 1.104 do CPC, quando a mulher for incapaz e não tiver curador10. Deverá, de qualquer forma, participar como fiscal da lei, como expressamente previsto no art. 877 do CPC, dispositivo até mesmo desnecessário diante da obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público em toda demanda que tenha como objeto interesses de incapazes (art. 82, I, do CPC).
São legitimados passivos os herdeiros do autor da herança em que se localizam os direitos do nascituro, sendo tal regra deduzida do art. 877, § 2.º, do CPC, que dispensam os exames para atestar a gravidez se os herdeiros do falecido concordarem com a declaração da autora, o que só poderá ocorrer se esses herdeiros estiverem participando do processo como réus11. Se o direito do nascituro não for fundado em direito sucessório, sendo fruto de doação, o legitimado passivo será o doador12.
O processo tem o seu início por meio de petição inicial, cumpridas as exigências formais dos arts. 282 e 283 do CPC, no que couber, sendo inaplicável o art. 801 do CPC em razão da natureza não cautelar do processo de posse em nome de nascituro. A petição inicial deve ser instruída com a certidão de óbito da pessoa de quem o nascituro se diz sucessor (art. 877, § 1.º, do CPC), sendo essa exigência dispensada quando o direito do nascituro não decorrer de sucessão causa mortis, como ocorre no caso de doação13.
Aduz o art. 877, caput, do CPC que a mulher grávida requererá ao juiz que, ouvido o Ministério Público, seja examinada por um médico de sua nomeação, sendo dispensado esse exame se os herdeiros do falecido concordarem com a declaração da autora de que está grávida. Apesar da omissão do dispositivo legal, não sendo a pretensão principal da mulher a declaração de sua gravidez, mas a investidura na posse dos direitos do nascituro, deve constar da petição inicial o pedido de investidura14.
Ainda que não exista previsão específica de citação dos réus (herdeiros do falecido), o princípio do contraditório a exige no caso concreto, havendo polêmica doutrinária a respeito da amplitude da participação desses réus no processo. A corrente doutrinária majoritária acertadamente entende que os réus são citados nos termos dos arts. 802 e 803 do CPC, tendo cinco dias de prazo para contestar o pedido15, mas existem alguns doutrinadores que defendem o não cabimento de contestação nessa espécie de processo, afirmando serem os réus citados tão somente para acompanhar a produção da prova pericial16, que inclusive será dispensada se todos concordarem com a alegação da autora de que está grávida.
Sendo dispensado o exame ou sendo este realizado e restando demonstrada a gravidez, o juiz proferirá sentença de natureza declaratória, investindo a autora na posse dos direitos que assistam ao nascituro, nos termos do art. 878, caput, do CPC. O exame tem procedimento simplificado, não cabendo indicação de quesitos ou de assistente técnico17, ainda que o contraditório deva ser respeitado com a oitiva das partes após a conclusão do exame. Se por qualquer razão o exame não puder se realizar (p. ex., desaparecimento da grávida ou a sua recusa em se submeter ao exame), o processo será extinto sem que os direitos do nascituro sejam prejudicados (art. 877, § 3.º, do CPC), não se aplicando as presunções previstas nos arts. 231 e 232 do CC. Sendo o exame inconclusivo, em razão de qualquer quadro clínico atípico, o juiz poderá determinar novo exame, inclusive aguardando um momento mais adequado para realizá-lo. Não constatada a gravidez, o juiz extinguirá o processo com rejeição do pedido da autora, em decisão que, apesar de ser de mérito, não faz coisa julgada material, sendo possível a questão da gravidez voltar a ser discutida em outra demanda judicial18.
Apesar de não existir no PLNCPC previsão de cautelares nominadas, a posse em nome de nascituro está prevista no Capítulo de procedimentos especiais contenciosos, mais precisamente nos arts. 726 a 728.
1 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 800.
2 Baptista da Silva, Do processo, p. 528; Câmara, Lições, p. 221.
3 Oliveira, Comentários, n. 118, p. 380; Baptista da Silva, Do processo, p. 528.
4 Baptista da Silva, Do processo, p. 528; Greco Filho, Direito, n. 46, p. 203.
5 Greco, Jurisdição, n. 6.3, p. 84.
6 Theodoro Jr., Processo, n. 293, p. 349; Costa Machado, Código, p. 1.429.
7 Oliveira, Comentários, n. 118, p. 380.
8 Oliveira, Comentários, n. 118, p. 380; Theodoro Jr., Processo, n. 293, p. 349; Costa Machado, Código, p. 1.429; Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 317. Contra: Câmara, Lições, p. 221.
9 Baptista da Silva, Do processo, p. 530; Costa Machado, Código, p. 1.429.
10 Theodoro Jr., Processo, n. 294, p. 349; Oliveira, Comentários, n. 119, p. 381.
11 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 800; Tesheiner, Jurisdição, n. 3.1, p. 58.
12 Theodoro Jr., Processo, n. 294, p. 349; Baptista da Silva, Do processo, p. 530.
13 Theodoro Jr., Processo, n. 295, p. 350.
14 Theodoro Jr., Processo, n. 295, p. 350.
15 Theodoro Jr., Processo, n. 295, p. 350; Greco, Jurisdição, n. 6.3, p. 85; Costa Machado, Código, p. 1.430; Oliveira, Comentários, n. 120, p. 382; Câmara, Lições, p. 223.
16 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 800.
17 Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 318.
18 Oliveira, Comentários, n. 122, p. 384; Greco, Jurisdição, n. 6.3, p. 87; Baptista da Silva, Do processo, p. 534.