Sumário: 65.1. Conceito e cabimento – 65.2. Natureza jurídica – 65.3. Procedimento.
Comete atentado o sujeito que cria uma nova situação jurídica ou altera o status quo durante a pendência de uma demanda judicial, sem estar amparado no Direito e gerando com sua conduta um prejuízo1. Segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a expressão “processo principal” contida no art. 796 do CPC é abrangente e engloba tanto processos de jurisdição contenciosa como de jurisdição voluntária2. A ação de atentado, com procedimento previsto nos arts. 879 a 881 do CPC, tem como objetivo a restituição da situação anterior à prática do ato ilegal, de forma que se mantenha tal situação até a solução definitiva do processo. Justamente por visar o restabelecimento da situação anterior, é correto o entendimento de não ser cabível o atentado quando o ato ilegal criar uma situação praticamente irreversível3. A doutrina que, ainda assim, defende o cabimento da ação de atentado com fundamento na possibilidade de o autor pedir a condenação em perdas e danos4 não convence, pois nesse caso será cabível um processo de conhecimento de cobrança.
Apesar de corrente doutrinária defender a possibilidade de uma conduta omissiva ensejar a ação de atentado, entendo que somente uma conduta positiva proporcionará as condições fático-jurídicas exigidas pelo texto legal. Exigindo-se uma inovação da situação de fato, parece mais adequado entender que a inovação, como a própria acepção do vocabulário indica, represente uma atividade positiva da parte5.
Segundo o art. 879 do CPC, comete atentado a parte que no curso do processo: I – viola penhora, arresto, sequestro ou imissão na posse; II – prossegue em obra embargada; III – pratica outra qualquer inovação ilegal de fato. A exigência contida no caput do dispositivo legal exige o trâmite de um processo (que pode ser de qualquer natureza), sendo que a doutrina amplamente majoritária afirma que, por serem a litispendência e a litigiosidade da coisa efeitos da citação válida (art. 219, caput, do CPC), somente após esse ato processual será admitida a ação de atentado6. Esse entendimento, entretanto, não parece ser o mais acertado.
Conforme analisado no Capítulo 10, item 10.5.2.1.1, a litispendência para o autor tem início no momento da propositura da demanda e para o réu, no momento da citação válida, parecendo mais adequado entender que já existe processo pendente a partir da propositura da demanda, sendo também a partir desse momento cabível o atentado. Basta imaginar um arresto de imóvel realizado inaudita altera parte num processo cautelar, devidamente averbado na matrícula do imóvel; havendo violação desse arresto pelo requerido no processo cautelar, mesmo não tendo sido citado, será cabível o atentado pelo requerente. O essencial é que o réu do processo principal tenha condições de ter ciência deste, ainda que não tenha sido citado7.
Por outro lado, mesmo pendente o processo, nem sempre o ato descrito no art. 879, I, do CPC constituirá atentado. A doutrina corretamente afirma que a mera continuação de atos iniciados antes da pendência do processo, quando não há decisão judicial determinando a sua paralisação, não constitui hipótese de cabimento da cautelar de atentado. Basta imaginar a pendência de uma ação possessória sem concessão de medida liminar na qual o réu continue a praticar atos de moléstia que já praticava quando da propositura da demanda8. E isso pode ocorrer inclusive após a sua citação.
O art. 879, I, do CPC mistura atos de natureza executiva, como a penhora e a imissão na posse, com atos de natureza cautelar, como o sequestro, sendo que o arresto pode ter natureza cautelar ou executiva (art. 653 do CPC). Todos esses atos, entretanto, têm um ponto de contato que justifica a sua reunião em um mesmo inciso: são atos de constrição judicial, que naturalmente devem ser respeitados pelas partes.
O prosseguimento em obra embargada é previsto no art. 879, II, do CPC como ato suficiente para o cabimento da ação de atentado. Segundo previsão do art. 940 do CPC, admite-se ao demandado a continuação de atividades em obra embargada desde que preste caução suficiente e idônea e demonstre o prejuízo decorrente da paralisação, sendo que nesse caso não será admitida a cautelar de atentado, que exige a ilegalidade do ato.
A última hipótese de cabimento da ação de atentado consiste na prática pela parte de qualquer inovação ilegal no estado de fato, que pode ser facilmente compreendida como a prática de ato que altere a estrutura física ou orgânica do bem litigioso, por meio de seu desvio, ocultação, destruição ou inutilização9. Há decisão do Superior Tribunal de Justiça entendendo que a alienação de bem penhorado não constitui atentado, sendo tão somente ato ineficaz perante o credor10.
Não é pacífico o entendimento a respeito da natureza jurídica da ação de atentado, não bastando a sua colocação no rol das cautelares típicas para concluir por essa natureza jurídica, até porque, como já analisado, várias são as ações previstas nesse rol que não tem natureza jurídica cautelar. Antes de propriamente determinar a natureza jurídica da ação de atentado, é importante perceber que essa ação nunca tem natureza preventiva, porque para o seu cabimento exige-se que o ato ilícito já tenha sido praticado, mas essa característica não é decisiva para a definição da natureza jurídica do atentado, porque existem ações de conhecimento preventivas e cautelares que não são preventivas11.
Existe corrente doutrinária que defende não se tratar de tutela cautelar12 porque a demanda é satisfativa, sendo bastante em si e não dependendo da propositura de posterior ação de qualquer espécie13. Na realidade, o processo principal não será proposto porque já existe, sendo condição para a ação de atentado a pendência de um processo, que será o processo principal, daí o correto entendimento de ser sempre uma ação incidental. Há doutrina que entende que a natureza é mista, sendo cautelar no tocante ao pedido de restituição ao status quo e de conhecimento no referente ao pedido de indenização pelos danos suportados14.
Prefiro o entendimento que sustenta a natureza cautelar15 porque, se alguma satisfação existe nesse processo, não é do direito material da parte, mas apenas do direito à cautela, retornando-se a um estado de fato anterior meramente porque assim será praticamente possível a satisfação de seu direito no processo principal16. Uma vez praticado um ato que viola uma penhora, o interesse da parte em restabelecê-la por meio da ação de atentado limita-se a manter uma situação fático-jurídica que criará as condições necessárias para que a execução seja eficaz. A função da ação de atentado, portanto, é garantir a eficácia do resultado de outro processo, por meio do retorno à situação fática anterior que já era capaz de proporcionar tal garantia.
Apenas registro que, no tocante à previsão contida no art. 881, parágrafo único, do CPC, não há como defender a natureza jurídica cautelar da pretensão ali contida, considerando-se que a condenação do réu ao pagamento das perdas e danos que o autor da ação sofreu em razão do atentado tem indiscutivelmente caráter satisfativo. A possibilidade de cumulação do pedido de restituição à situação anterior e de condenação do réu em perdas e danos é hipótese excepcional de admissão de cumulação de pedido cautelar e cognitivo na mesma demanda, circunstância que passará a ser admitida com maior frequência com a definitiva adoção da tese do sincretismo processual.
A legitimidade ativa é de qualquer sujeito que esteja na relação jurídica processual, tanto autor e réu como terceiros intervenientes que tenham sido admitidos no processo17. Deve figurar no polo ativo o sujeito que alega ter sofrido ou estar na iminência de sofrer um prejuízo com o ato impugnado. No polo passivo deve constar o sujeito que pratica o ato impugnado, que pode ou não ser parte na relação jurídica processual no processo principal.
O procedimento tem início por meio de uma petição inicial nos termos dos arts. 801 e 282 do CPC, sendo sempre dispensada a exigência do art. 801, III, do CPC porque a ação de atentado, por exigir a pendência de um outro processo, será sempre incidental. Pela mesma razão não se aplica o art. 806 do CPC. A depender da pretensão do autor o pedido será simples ou composto: pretendendo somente a restituição ao estado anterior, limitará seu pedido a essa pretensão; pretendendo também a condenação do réu ao pagamento de perdas e danos, deverá também fazer um pedido de natureza condenatória, não se admitindo a condenação do réu sem o pedido expresso do autor18.
Prevê o art. 880, caput, do CPC que a petição inicial será autuada em separado, com a formação de novos autos perante o juízo competente para o processo principal, ainda que os autos principais estejam no tribunal em razão de pendência de recurso (art. 880, parágrafo único, do CPC), sendo nesse caso hipótese que excepciona o art. 801, parágrafo único, do CPC, conforme analisado no Capítulo 52, item 52.2. Segundo correto entendimento do Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de competência absoluta pelo caráter funcional, não se prorroga e pode ser conhecida de ofício19.
Segundo o art. 880, caput, do CPC, o procedimento seguirá o disposto nos arts. 802 e 803 do CPC, o que numa interpretação literal exclui a possibilidade de concessão de liminar, prevista no art. 804 do CPC20. Há doutrina que defende esse entendimento e afirma ser vedada a liminar porque o restabelecimento de estado de fato só pode ocorrer de forma definitiva21. A premissa está correta, porque não se pode provisoriamente restabelecer uma situação de fato, mas a conclusão é equivocada, sendo admissível a antecipação dos efeitos práticos desse restabelecimento, que será obtida por meio da liminar.
A melhor doutrina afirma corretamente que uma interpretação sistêmica, mais abrangente que a meramente literal, permite a conclusão do cabimento de liminar, porque, havendo os requisitos legais exigidos em lei, não haveria sentido lógico ou jurídico em permitir o perecimento do direito em razão da vedação de liminar22. Ademais, fechada a porta para liminar, o autor entra pela janela, ou seja, pela tutela antecipada.
Como se pode notar, o procedimento é o do processo cautelar, já devidamente analisado no Capítulo 52, item 52.4, salvo o cabimento de reconvenção23, havendo somente interesse a análise da sentença em razão do disposto no art. 881 do CPC. Pela previsão desse dispositivo legal, julgado procedente o pedido do autor, será ordenado o restabelecimento da situação anterior, a suspensão da causa principal e a proibição de o réu falar nos autos até a purgação do atentado. Também haverá condenação ao pagamento de perdas e danos caso haja pedido nesse sentido. Entendo que no capítulo referente ao restabelecimento da situação anterior a sentença tem natureza mandamental, enquanto o capítulo referente à condenação do réu tem natureza condenatória, sendo satisfeito por meio de cumprimento de sentença24.
Não merece interpretação literal o art. 881 do CPC no tocante à suspensão do processo principal, entendendo a melhor doutrina que a suspensão dependerá de análise a ser realizada no caso concreto, só se justificando quando demonstrado que a continuidade do processo possa acarretar algum dano ao autor da ação de atentado25. Já a proibição de falar no feito – exclusiva do processo principal26 – parece ser inconstitucional, em nítida afronta ao princípio da ampla defesa e do contraditório27, devendo o juiz se valer de outras medidas coercitivas para a efetivação de sua decisão.
No PLNCPC não existe mais previsão de cautelares nominadas.
1 Nery-Nery, Código, p. 1.142; Abelha Rodrigues, Manual, p. 698.
2 Informativo 474/STJ: 3.ª Turma, REsp 942.658/DF, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 02.06.2011.
3 Baptista da Silva, Do processo, p. 547.
4 Galeno Lacerda, Comentários, n. 124, p. 387; Abelha Rodrigues, Manual, p. 699; Câmara, Lições, v. 3, p. 228.
5 Câmara, Lições, v. 3, p. 229.
6 Theodoro Jr., Processo, n. 300, p. 357; Galeno Lacerda, Comentários, n. 124, p. 386; Baptista da Silva, Do processo, p. 539.
7 Câmara, Lições, v. 3, p. 231-232.
8 Baptista da Silva, Do processo, p. 541; Câmara, Lições, v. 3, p. 228.
9 Theodoro Jr., Processo, n. 302, p. 359.
10 STJ, 3.ª Turma, REsp 209.050/RJ, rel. Min. Castro Filho, j. 05.02.2002, DJ 1.º.04.2002, p. 181.
11 Câmara, Lições, v. 3, p. 230.
12 Barbosa Moreira, O novo, p. 310.
13 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 801.
14 Galeno Lacerda, Comentários, n. 126, p. 390.
15 Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 319; Fidélis dos Santos, Manual, n. 1.525, p. 403; Costa Machado, Código, p. 1.431.
16 Theodoro Jr., Processo, n. 298, p. 356.
17 STJ, 3.ª Turma, REsp 206.935/ES, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 20.04.2004, DJ 24.05.2004, p. 255.
18 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 803; Baptista da Silva, Do processo, p. 560.
19 STJ, 6.ª Turma, MC 8.286/RJ, rel. Min. Paulo Galotti, j. 1.º.07.2004, DJ 05.08.2004.
20 Theodoro Jr., Processo, n. 305, p. 361.
21 Costa Machado, Código, p. 1.432; Fidélis dos Santos, Manual, n. 1.527, p. 403.
22 Marinoni-Mitidiero, Código, pp. 802-803; Galeno Lacerda, Comentários, n. 130, p. 404; Câmara, Lições, v. 3, p. 237; Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 322.
23 Scarpinella Bueno, Curso, v. 4, p. 322.
24 Galeno Lacerda, Comentários, n. 132, p. 407; Baptista da Silva, Do processo, p. 560.
25 Baptista da Silva, Do processo, p. 563.
26 Theodoro Jr., Processo, n. 306, p. 363.
27 Contra: Galeno Lacerda, Comentários, n. 133, p. 411.