Sumário: 68.1. Introdução – 68.2. Legitimidade e competência – 68.3. Procedimento – 68.4. Depositário judicial – 68.5. Prisão civil.
O contrato de depósito é regulado pelos arts. 627 a 652 do CC, tendo como objeto o recebimento de coisa por uma pessoa, denominada de depositária, que deve guardá-la por um determinado tempo e restituí-la quando reclamado pela pessoa que deu a coisa em depósito, nomeada de depositante. Conforme expressamente previsto no art. 627 do CC, somente coisa móvel pode ser objeto do contrato de depósito, mas há forte tendência doutrinária que defende a possibilidade de depósito legal de coisa imóvel, considerando-se a existência de previsões legais nesse sentido (p. ex.: art. 17 do Decreto-lei 58/1937 e arts. 622, 799, 925, todos do CPC)1.
Tratando-se de coisa infungível, haverá depósito regular, obrigando-se o depositário a devolver ao depositante especificamente a coisa dada em depósito, não restando dúvida da aplicabilidade do procedimento especial previsto nos arts. 902 a 906 do CPC. Sendo a coisa fungível, tratar-se-á de depósito irregular, o que em tese afasta a aplicação do procedimento especial ora analisado, sujeitando-se a relação jurídica à disciplina legal do mútuo. Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, inclusive afastando a possibilidade de prisão civil2, no mais afastada para qualquer espécie de depósito pela Súmula Vinculante 25. Afirma-se em tese porque é possível a existência de contrato de depósito de coisa fungível no qual expressamente conste a impossibilidade de uso e consumo da coisa, determinando-se a devolução quando solicitado especificamente do bem dado em depósito, apesar de sua fungibilidade. Nesse caso, aplica-se o procedimento especial da ação de depósito3.
O depósito pode ser contratual (ou voluntário) quando resultado de um acordo de vontade entre as partes, sendo nesse caso um contrato gratuito, conforme expressa previsão do art. 627 do CC. Pode ser também necessário (ou extracontratual) quando não resulte de um acordo de vontade entre as partes, sendo chamado de depósito legal quando decorrente de imposição de lei, e de depósito miserável quando decorrente de inesperada necessidade, tal como ocorre em casos de enchente, calamidade pública, naufrágio ou saque. No caso de depósito necessário, desaparece em regra a gratuidade, sendo legítimo ao depositário o recebimento de valores pela guarda da coisa, existindo doutrina que defende tal onerosidade também ao depósito contratual4.
A legitimidade ativa é da pessoa que confiou o bem à custódia do depositário, não havendo necessidade de essa pessoa ser a dona da coisa, bastando que tenha sua posse no momento do depósito. Não há qualquer empecilho para que o depositante seja pessoa jurídica e até mesmo pessoa formal. São também legitimados os herdeiros e sucessores do depositante, que poderão tanto propor a ação de depósito como assumir o polo ativo (sucessão processual) na hipótese de falecimento do depositante.
No polo passivo constará o depositário infiel, ou seja, a pessoa que tendo o dever de custodiar o bem e devolvê-lo ao depositante quando solicitado a tanto não o faz. Também são legitimados os herdeiros e sucessores do depositário infiel, sendo equivocado o entendimento de que a ação de depósito tenha natureza personalíssima. Sendo obrigação patrimonial, é natural que ocorra a sucessão aos herdeiros e sucessores. O que a doutrina corretamente não admite é a possibilidade de prisão civil de herdeiros e sucessores quando o desvio do bem seja imputado ao de cujus5. Concordo com tal posicionamento, mas entendo que, sendo o desvio atribuível aos herdeiros e sucessores, a prisão civil será plenamente cabível. Por fim, também a pessoa jurídica pode ser legitimada passiva, admitindo-se a prisão civil de gerentes e diretores, que serão considerados responsáveis pela devolução do bem quando solicitado6.
Registre-se que os posicionamentos favoráveis à prisão civil, entretanto, passaram a ser mero exercício acadêmico após a infeliz Súmula Vinculante 25, que proíbe a prisão civil do depositário infiel.
Tratando-se de ação de natureza pessoal, aplica-se o art. 94 do CPC, sendo competente o foro do domicílio do réu, mesmo quando excepcionalmente o depósito tiver como objeto uma coisa imóvel. É possível no contrato de depósito a existência de cláusula de eleição de foro, o que naturalmente poderá modificar o estabelecido pelo art. 94 do CPC.
A petição inicial da ação de depósito deverá preencher os requisitos formais previstos no arts. 282 e 283 do CPC. O art. 902 do CPC prevê dois requisitos específicos da petição inicial da ação de depósito, a saber:
(i) prova literal do depósito, que segundo ensina a melhor doutrina não precisa necessariamente ser o contrato de depósito, bastando que seja uma prova escrita que demonstra a relação jurídica material de depósito7;
(ii) estimativa do valor do bem, caso tal valor não conste do contrato de depósito, exigência que se presta tanto para a fixação do valor da causa como para possibilitar ao réu a consignação do valor do bem em dinheiro.
Poderá também constar da petição inicial o pedido de prisão civil do réu pelo prazo máximo de 1 ano (art. 902, § 1.º, do CPC). Trata-se de medida de execução indireta, funcionando a prisão civil como meio de pressão psicológica – por meio de uma ameaça – para que a obrigação seja satisfeita voluntariamente (não espontaneamente). Sendo forma de efetivação da tutela jurisdicional, não há como defender o entendimento de que a prisão civil nesse caso está condicionada ao pedido expresso do autor, sendo vedada a atuação oficiosa do juiz8. Entendo que o juiz possa determinar a prisão civil de ofício9, mas que, naturalmente, o autor poderá impedir essa decretação se expressamente se manifestar contra ela.
Mais uma vez é preciso registrar que as considerações referentes à prisão civil do depositário infiel só têm relevância para os que não adotarem o posicionamento do Supremo Tribunal Federal que proíbe a prisão civil do depositário infiel. O desrespeito, entretanto, tratando-se de entendimento consagrado em súmula vinculante, além de não ser recomendável, ensejará o cabimento no caso concreto de reclamação constitucional para o Supremo Tribunal Federal.
Apesar da omissão de previsão expressa nesse sentido nos arts. 901 a 906 do CPC, são admitidos tanto o pedido do autor como a aplicação de ofício pelo juiz de outra tradicional medida de execução indireta, as astreintes (art. 461, § 4.º, do CPC). O art. 905 do CPC prevê expressamente a busca e apreensão do bem, sem prejuízo do depósito ou da prisão civil do réu. Também é aplicável o art. 461, § 3.º, do CPC, de forma que o autor poderá pedir liminarmente a apreensão do bem depositado, ainda que a sua entrega definitiva fique condicionada à vitória definitiva na demanda, sempre que demonstrar a relevância da fundamentação e o justificado receio de ineficácia do resultado final da demanda.
Entendendo estar a petição inicial regular, o juiz determinará a citação do réu por uma das formas legais previstas (art. 222 do CPC), concedendo-lhe o prazo de 5 dias para adotar quatro possíveis reações. Apesar da omissão legal, é indiscutível a possibilidade de o réu deixar de reagir à sua citação, o que configurará revelia, nos termos do art. 319 do CPC. Segundo previsão do art. 902, I, do CPC, o réu poderá:
(a) entregar a coisa, em espécie peculiar de reconhecimento jurídico do pedido, devendo a demanda ser extinta com resolução de mérito (art. 269, II, do CPC) em razão da satisfação do direito do autor;
(b) depositar a coisa em juízo, o que permitirá ao réu contestar a demanda sem sofrer qualquer medida de execução direta (busca e apreensão) ou indireta (astreintes e prisão civil);
(c) consignar o equivalente em dinheiro, sendo admitida essa reação somente na hipótese de impossibilidade material de devolução da coisa depositada10. O autor pode não concordar em receber o equivalente em dinheiro sempre que ainda for possível a obtenção da coisa depositada, podendo requerer ao juiz a tomada de medidas executivas para a retomada do bem.
Poderá ainda o réu simplesmente contestar o pedido do autor (art. 902, II, do CPC), sendo lícita a alegação de qualquer matéria defensiva, o que torna as matérias expressamente previstas no art. 902, § 2.º, do CPC (nulidade ou falsidade do título e extinção das obrigações) meramente exemplificativas. Além da contestação, o réu também poderá apresentar as outras espécies de resposta, inclusive a reconvenção, considerando-se que a partir da resposta do réu o procedimento torna-se ordinário (art. 903 do CPC)11 e exceções rituais.
Aduz o art. 903 do CPC que, no caso de o réu apresentar contestação, observar-se-á o procedimento ordinário, o que naturalmente não afastará uma especialidade procedimental da ação de depósito que é a possibilidade de decretação de prisão civil do depositário infiel12, desde que afastado o já mencionado entendimento do Supremo Tribunal Federal de proibição da prisão civil nesse caso.
Julgado procedente o pedido, prevê o art. 904 do CPC que o juiz ordenará a expedição de mandado para a entrega da coisa ou seu equivalente em dinheiro no prazo de 24 horas, sendo naturalmente que esse prazo só terá sua contagem iniciada a partir do momento em que a sentença passar a gerar efeitos. Dessa forma, eventual recurso com efeito suspensivo impede a executividade imediata da sentença. Como a norma legal prevê a possibilidade da consignação do equivalente em dinheiro, é indispensável que o juiz o determine em sua sentença; não havendo controvérsia, será o valor do contrato ou aquele indicado pelo autor; todavia, se houver, será o determinado pelo juiz.
Como se nota da própria redação do dispositivo legal ora comentado, a prisão civil, para os que a admitem, não deve ser determinada pelo juiz como primeira medida executiva, devendo-se aguardar o cumprimento da obrigação no prazo de 24 horas13, e somente se descumprida poderá ser determinada a prisão civil. A busca e apreensão pode ser determinada pelo juiz, ainda que o réu tenha consignado o valor pelo equivalente ou esteja preso. Recuperado o bem depositado, o valor consignado será devolvido ao depositário e expedir-se-á mandado de soltura na hipótese de o depositário estar preso.
Não sendo obtido o bem e tampouco o seu equivalente em dinheiro, poderá o autor valer-se da sentença de procedência para executar por meio de cumprimento de sentença (arts. 475-J, 475-L, 475-M, 475-R do CPC) as perdas e danos suportados pela insatisfação de seu direito. Nesse caso, naturalmente, cessará a especialidade procedimental, tratando-se de execução por quantia certa, não se admitindo a prisão civil14.
Todos os atos executivos voltados à satisfação do direito reconhecido pela sentença serão praticados no próprio processo em que se condenou o réu, por meio de uma mera fase procedimental de satisfação. A sentença, portanto, tem natureza executiva “lato sensu”, restando dispensado o processo autônomo de execução para a satisfação do direito nela reconhecida. O que poderia durante certo tempo ser entendido como algo excepcional, atualmente é a regra para todas as demandas que tenham como objeto uma obrigação de fazer (art. 461 do CPC), como é o caso da ação de depósito.
O depositário judicial atua em demanda judicial como auxiliar eventual do juízo, prestando um serviço público de suma importância na manutenção de bens que sejam objeto de constrição judicial. Como se pode notar, o depósito judicial não decorre de um contrato celebrado entre as partes, mas de uma determinação judicial proveniente da necessidade de se manter em depósito bens que tenham sido objeto de constrição.
Durante muito tempo se discutiu se a retomada de bem em depósito judicial deveria seguir as regras procedimentais do depósito convencional, ou mais precisamente, se a pressão psicológica desenvolvida pela prisão civil poderia ser aplicada independentemente de uma ação de depósito. O Supremo Tribunal Federal sumulou entendimento no sentido de que a ação seria dispensada, podendo o juiz determinar a prisão civil incidentalmente no processo em que se verificou o depósito (Súmula 619 do STF). O assunto finalmente se pacificou com a expressa previsão legal nesse sentido (art. 666, § 3.º, do CPC), mas se tornou superado em razão da Súmula Vinculante 25.
Existia intensa discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito da possibilidade de prisão do depositário infiel diante do Pacto de São José da Costa Rica, que determina expressamente que a prisão civil é exclusividade do devedor de alimentos. Em julgados recentes o Supremo Tribunal Federal, em entendimento que vem sendo seguido pelo Superior Tribunal de Justiça15, decidiu pela impossibilidade da decretação de prisão civil do depositário infiel. O entendimento veio a ser consagrado pela Súmula Vinculante 25.
Valendo-se da tese de que os pactos internacionais que tenham como objeto os direitos humanos têm lugar singular no ordenamento jurídico brasileiro, localizando-se abaixo da Constituição Federal, mas acima da legislação interna, a Corte Suprema entendeu que a única prisão civil admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro é a do devedor de alimentos. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional que com ele conflite, de forma que, não havendo previsão constitucional do procedimento para a prisão civil do depositário infiel, esta é incabível16.
Registre-se julgado do Superior Tribunal de Justiça que, mesmo após decisões do Supremo Tribunal Federal pela inadmissibilidade da prisão civil do depositário infiel, entendeu que, na hipótese de depositário judicial, a prisão civil é cabível, considerando-se que nesse caso o depositário exerce um múnus público, qual seja o de ser auxiliar eventual do juízo, o que justificaria a sua prisão civil17. Esse entendimento, entretanto, restou superado com a Súmula 419 do STJ, editada em respeito à Sumula Vinculante 25.
A ação de depósito deixa de ser procedimento especial no PLNCPC.
1 Theodoro Jr., Curso, n. 1.236, p. 57; Marcato, Procedimentos, n. 34.1, p. 128.
2 STJ, REsp 959.693/PR, 4.ª Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 22.04.2008; DJ 19.05.2008; AgRg no Ag 477.166/MS, 3.ª Turma, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 26.10.2006; DJ 11.12.2006.
3 Theodoro Jr., Curso, n. 1.236, p. 57; Marcato, Procedimentos, n. 36, p. 130.
4 Marcato, Procedimentos, n. 34.1, p. 128.
5 Theodoro Jr., Procedimentos, n. 1.238, p. 61.
6 Marcato, Procedimentos, n. 37, p. 130; Nery e Nery, Código, p. 1.158; Fidélis dos Santos, Dos procedimentos, n. 51, p. 51-52.
7 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 824; Fidelis do Santos, Dos procedimentos, n. 45, p. 47.
8 Nery-Nery, Código, p. 1.156; Câmara, Lições, p. 304.
9 Marcato, Procedimentos, n. 38.1, p. 131. Contra, Theodoro Jr., Curso, n. 1.242, p. 63, entende que o juiz pode determinar de ofício, mas que a expedição do mandado de prisão depende de pedido do autor.
10 Theodoro Jr., Curso, n. 1246, p. 66.
11 Fidélis dos Santos, Dos procedimentos, n. 57, p. 56; Nery-Nery, Código, p. 1.156.
12 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 825; Nery-Nery, Código, p. 1.157.
13 Theodoro Jr., Curso, n. 1.248, p. 68; Marcato, Procedimentos, n. 40.1, p. 134.
14 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 826.
15 STJ, HC 106.114/SP, 1.ª Turma, rel. Min. Francisco Falcão, rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, j. 21.08.2008. Informativo 384/STJ, 3.ª T., HC 122.251-DF, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 17.02.2009.
16 STF, HC 88.240/SP, 1.ª Turma, rel. Min. Ellen Gracie, 07.10.2008; HC 90.171-7/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.08.2007. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, revogou a Súmula 619: Informativo 531/STF, Plenário, HC 92.566-SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 03.12.2008. Em sentido contrário: Informativo 382/STJ, 1.ª T. RHC 19.406-MG, rel. Min. José Delgado, rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, j. 05.02.2009.
17 STJ, HC 116.480/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. 14.10.2008.