Sumário: 79.1. Introdução – 79.2. Procedimento da execução do preço – 79.3. Procedimento para recuperação da coisa vendida.
O contrato de compra e venda com reserva de domínio é regulado pelos arts. 521 a 528 do CC. Trata-se de contrato de compra e venda em prestações quando a propriedade do bem continua a ser do vendedor até o pagamento integral do preço, investindo-se o comprador na posse da coisa vendida desde a celebração do contrato. Não se confunde com o contrato de alienação fiduciária, embora ambas sejam formas contratuais de financiamento para a aquisição de bens, porque na alienação fiduciária a propriedade é transferida ao comprador, o que não ocorre na venda a crédito com reserva de domínio1.
Segundo previsão expressa do art. 521 do CC, a reserva de domínio só é cabível nos contratos de compra e venda de bens móveis, sendo esse entendimento reforçado pela previsão do art. 1.070, § 1.º, do CPC, que faz referência à alienação forçada da coisa vendida em leilão, que é forma processual de alienação judicial de bem móvel2.
Verificando-se a mora do comprador no contrato de compra e venda com reserva de domínio, o vendedor estará tutelado de duas formas distintas pelo ordenamento jurídico:
(a) poderá exigir o pagamento do restante do preço (tutela do direito de crédito);
(b) poderá exigir a restituição da coisa vendida (tutela do direito à coisa).
Em termos processuais, o vendedor tem à sua disposição duas formas distintas para alcançar a tutela de direito material, dependendo da espécie que pretenda ver concretamente prestada: preferindo receber o preço, caberá o procedimento do art. 1.070 do CPC; preferindo retomar a posse do bem alienado, caberá o procedimento do art. 1.071 do CPC. Como lembra a melhor doutrina, são ações concorrentes, importando a escolha de uma delas na exclusão da outra3.
Na hipótese de o vendedor preferir receber o pagamento dos valores não quitados e estando as prestações representadas por um título executivo, ingressará com processo de execução de pagar quantia certa, seguindo-se fundamentalmente o procedimento comum dessa espécie de execução, analisado no Capítulo 47. A única especialidade digna de nota diz respeito ao art. 1.070, §§ 1.º e 2.º, do CPC: o primeiro prevendo que, efetuada a penhora da coisa vendida, é lícito a qualquer das partes, no curso do processo, requerer-lhe a alienação judicial em leilão; o segundo prevendo que o produto do leilão será depositado, sub-rogando-se nele a penhora. O exequente não é obrigado a penhorar o bem objeto da alienação, e, caso não o faça, o procedimento da execução não terá nenhuma especialidade.
Registre-se a exigência do art. 1.070, caput, do CPC de existência de um título executivo extrajudicial, porque sem ele não será admitida a ação executiva, cabendo ao vendedor que objetivar receber os valores faltantes ingressar com processo monitório4 ou de conhecimento, que seguirá o procedimento comum – ordinário ou sumário, dependendo do caso concreto.
Na hipótese de o vendedor preferir retomar a coisa vendida, caberá um processo de conhecimento com o procedimento previsto no art. 1.071 do CPC.
Como todo processo, também o ora analisado tem início por meio de petição inicial, nos termos dos arts. 282 e 283 do CPC. No tocante aos documentos indispensáveis à propositura da demanda, é preciso atentar para as exigências previstas no art. 1.071, caput, do CPC, referente ao protesto do título, e no art. 525 do CC, referente ao protesto ou interpelação judicial, devendo o documento comprobatório deste ato instruir a petição inicial. Existe viva polêmica a respeito da forma procedimental do protesto, sendo correto o entendimento de que não precisa ser judicial, podendo ser realizado extrajudicialmente por meio do cartório de protesto5, ainda que existam decisões em sentido contrário6, sendo pacífico o entendimento de que, realizado o protesto, não se exige a intimação pessoal do comprador7.
Segundo o art. 1.071, caput, do CPC, o autor poderá requerer liminarmente a apreensão e o depósito da coisa. Apesar de existir doutrina que entende tratar-se de espécie de antecipação de tutela8, prefiro o entendimento pela natureza cautelar9, considerando-se que nesse momento a coisa vendida ainda não é devolvida ao vendedor, sendo apenas objeto de depósito judicial10.
Deferido o pedido, o juiz nomeará um perito, que procederá à vistoria da coisa e ao arbitramento de seu valor, descrevendo-lhe o estado e individuando-a com todos os característicos (art. 1.071, § 1.º, do CPC). Feito o depósito ou sem ele (o autor não é obrigado a fazer o pedido liminar e o mesmo pode ser indeferido), o réu será citado para contestar a ação no prazo de cinco dias e, tendo pago mais de 40% do preço, poderá nesse prazo requerer ao juiz a concessão de 30 dias para reaver a coisa mediante o pagamento das prestações vencidas, juros, honorários advocatícios e custas processuais.
Nos termos do art. 1.071, § 3.º, do CPC, não havendo reação do réu ou deixando de pagar o restante do valor no prazo de 30 dias concedido pelo juiz, o autor, apresentando os títulos vencidos e vincendos, requererá a reintegração imediata na posse da coisa depositada, devendo nesse caso depositar em juízo o eventual saldo existente a favor do réu (valor pago descontados o valor da dívida e as verbas de sucumbência). Nos termos do art. 1.071, § 4.º, do CPC, se a ação for contestada, seguirá o procedimento ordinário.
Para os defensores da teoria trinária das sentenças, a sentença de procedência condena o réu à entrega da coisa11, sendo executada no próprio processo por meio de cumprimento de sentença, nos termos dos arts. 475-I e 461-A do CPC. Para os defensores da teoria quinária das sentenças, a sentença é executiva lato sensu, sendo executada no próprio processo por meio de cumprimento de sentença, nos termos dos arts. 475-I e 461-A do CPC12. Ou seja, é apenas uma questão de classificação da sentença, sendo tranquilo o entendimento da forma de sua satisfação.
Executiva lato sensu ou condenatória em obrigação de entregar coisa, a sentença terá indiscutivelmente natureza condenatória em obrigação de pagar na hipótese de existir saldo em favor do réu, que apesar de perder a posse da coisa alienada tem o direito de receber a diferença entre o valor da coisa e o valor da dívida, acrescida de honorários advocatícios e custas processuais.
O procedimento de vendas a crédito com reserva de domínio deixa de ser especial no PLNCPC.
1 Nery-Nery, Código, p. 1.235; Marinoni-Mitidiero, Código, p. 924.
2 Câmara, Lições, v. 3, p. 445.
3 Theodoro Jr., Curso, n. 1.458, p. 334; Pinheiro Carneiro, Procedimentos, n. 105, p. 255.
4 Pinheiro Carneiro, Comentários, n. 105, p. 256.
5 STJ, 3.ª Turma, REsp 685.906/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.08.2005, DJ 22.08.2005, p. 272.
6 STJ, 4.ª Turma, REsp 785.125/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 1.º.03.2007, DJ 23.04.2007, p. 274.
7 STJ, 4.ª Turma, REsp 556.637/RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 27.11.2007, DJ 10.12.2007, p. 369.
8 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 925; Pinheiro Carneiro, Comentários, n. 106, p. 259.
9 Marcato, Procedimentos, n. 177, p. 295; Câmara, Lições, v. 3, p. 447.
10 Theodoro Jr., Curso, n. 1.460, p. 335.
11 Câmara, Lições, v. 3, p. 447.
12 Marinoni-Mitidiero, Código, p. 926.