EXPRESSO TRANSEUROPEU GOLDBAUM,
JURA, MAIO
Até então, Otto tinha sempre gostado das viagens de família no comboio. O Expresso Transeuropeu Goldbaum tinha-os levado para passar o verão na sua vila no lago Lemano, todos os anos, em julho. Tinha-os levado à ópera em Paris e a visitar os primos em Frankfurt e Berlim. Otto tinha feito neste comboio a viagem até à fronteira russa, com os colegas da universidade (por insistência da baronesa — ela não suportava a ideia de ele viajar num comboio normal, mesmo que fosse numa carruagem privada). Nunca dormira tão bem no quarto como dormia no comboio; imaginava-se encolhido, reduzido a uma dimensão mínima, atravessando um atlas aberto da Europa num pequeno comboio de brinquedo. Dizia sempre ao camareiro que deixasse as persianas abertas, para que ele pudesse ficar deitado, na liteira, a ver as estrelas, no meio do fumo, e ver a Lua nascer e pôr-se, uma esfera na escuridão. Esta viagem era diferente. Ele queria que fosse mais lenta, mas parecia mais rápida.
A melancolia de Greta era contagiante. Espalhou-se pelos escassos passageiros como sarampo. Otto compreendia que ela estava inquieta com o casamento, cada vez mais próximo, e estava solidário com a irmã, mas o dilema dela também o fazia lembrar-se do seu próprio destino. Por enquanto era livre para seguir o seu caminho, fazer o seu curso de Física e Astronomia na universidade de Viena, um semestre no departamento em Berlim e aquele maravilhoso verão de investigação no observatório nos confins orientais do império. Mas sabia que esta folga do seu destino era temporária. Mais cedo ou mais tarde — e Otto tinha uma premonição de que seria mais cedo — teria de abandonar a sua paixão e entrar para o banco. Detestava o banco; detestava o cheiro dos painéis de cedro nas paredes e o sussurrar dos funcionários, o som das suas penas a arranhar o papel e a luz elétrica amarelada, e os almoços fúteis com todos os quinze administradores. Mas sabia que teria de ser. Não podia exatamente alegar que não tinha jeito para números.
Pensou qual seria a sensação de ser um homem normal. Não se iludia a pensar que gostaria de ser pobre, apenas moderadamente abastado. Sairia na estação seguinte e seria simplesmente Herr Schmitt, a viver num qualquer hotel simpático. Repreendeu-se; era um pensamento absurdo.
O único passageiro que não parecia afetado pelo ambiente geral de desânimo era o embaixador inglês. Sir Fairfax Leighton Cartwright estava a viajar como convidado dos Goldbaum até Paris, e Otto deu por si a procurar a companhia do homem mais velho. Sir Fairfax era um cavalheiro, um autor e um diplomata próximo do fim da meia-idade, com um bigode espalhafatoso e contos fabulosos do Oriente. Otto pensou que havia algo de muito inglês em escolher um romancista para embaixador. Mas era certo que parte do seu papel era promover melhores relações entre as nações, e talvez a sua imaginação fosse suficientemente fértil para que, ao pensá-lo, conseguisse concretizá-lo. Sir Fairfax espantava-se, com um deleite infantil, com as mais diversas coisas: os candelabros especialmente adaptados, com peças de borracha entre os cristais para garantir que só à mais alta velocidade batiam uns nos outros; os painéis de vidro Lalique no salão que retratavam ninfas dos bosques a dançar com pássaros tropicais. O que mais fascinava o embaixador era o vasto quadro panorâmico que retratava a rota do Expresso Transeuropeu Goldbaum — os dois mil quilómetros de percurso, na totalidade, comprimidos em um quilómetro. O quadro era exposto num caixilho de vidro com um grande painel de vidro e guardado na carruagem panorâmica; só três ou quatro metros eram visíveis de cada vez. De hora a hora, um dos criados encaixava uma alavanca num mecanismo na parte lateral do caixilho e rodava o quadro alguns metros, de forma que refletisse sempre paisagens que o comboio estava prestes a atravessar: as luzes do Palácio Real em Budapeste, campos de trigo pontuados por papoilas cor de sangue ou navios a vapor em lagos azuis. À hora certa, o embaixador estava ao pé do caixilho, excitado como um rapazinho, à espera de ver o panorama mudar.
De noite, sentaram-se juntos na carruagem de refeições, uma miniatura da elegante sala de jantar do château em Saint-Pierre. As cadeiras estavam estofadas com cabedal de Marrocos e a mesa era de nogueira polida, embora só sentasse doze, sendo mais estreita e mais pequena do que a original, do château, que sentava quarenta e cinco. De início, o grupo estava apático. Beberam vinho da Borgonha, da vinha da família, e comeram consomé de vitela, quase transparente, com pequenas massinhas brancas. A carruagem da cozinha estava cheia e, apesar de todas as comodidades modernas, fazia um calor sufocante. As facas abanavam ruidosamente no faqueiro, como um exército de sabres, sempre que o comboio dava uma curva. A família não fazia ideia. Não teria ocorrido a nenhum deles — nem a Otto, tão liberal — pensar em algo como uma cozinha. A comida aparecia por magia, perfeitamente quente, perfeitamente confecionada, e os criados eram tão competentes que nem uma gota de consomé manchava a toalha de mesa perfeitamente engomada enquanto serviam o jantar, mesmo quando o comboio acelerava à incrível velocidade máxima de 133 quilómetros por hora.
A baronesa fez um esforço e perguntou pela mulher e os filhos do embaixador. Otto sabia que a mãe não estava minimamente interessada, mas gostava de se certificar de que a etiqueta, mesmo a da conversação, era estritamente observada.
Greta comeu pouco e praticamente não se mexeu, nem sequer para irritar a mãe. Depois de terminarem o último prato — panquecas boémias liwanzen de alperce —, as senhoras retiraram-se para a sala para tomar café, enquanto os cavalheiros ficaram para trás para beber vinho do Porto e da Madeira. Sir Fairfax recusou um charuto, inclinando-se para a frente com um suspiro infeliz.
— Talvez agora possamos falar um pouco de negócios, senhor barão?
— Com todo o gosto.
— O império deseja modernizar o seu exército. Deseja, de uma vez por todas, elevar-se ao nível do século vinte. Neste tema, pelo menos, o imperador e o príncipe estão de acordo.
Sir Fairfax falava cuidadosamente; os seus modos de rapazinho tornaram-se subitamente sérios, como se fosse um rapaz de liceu eleito presidente da associação de estudantes.
O barão acenou com a cabeça.
— Sim, é a informação que tenho. Houve alguma discussão sobre se a marinha precisaria ou não de couraçados. Não pode haver financiamento para ambos.
— O exército irá receber o que precisa.
Otto olhou para o embaixador, surpreendido. Os Goldbaum orgulhavam-se de ter sempre a melhor informação. A informação era um bem tão valioso como a divisa, e os negócios dos Goldbaum dependiam dela. A informação era a semente que se plantava pela Europa para que as árvores de dinheiro pudessem crescer e dar fruto. Apresentar ao barão dados que ele não tinha já obtido por si era invulgar. Otto perguntou-se se o pai não estaria apenas a fingir ignorância. Fosse como fosse, não parecia incomodado e cedeu ao embaixador.
— É preciso uma grande quantia de dinheiro. Não estou disposto a fornecer a totalidade do capital. O empréstimo também está a ser discutido na Prússia. Mas — fez uma pausa e sorriu — o senhor embaixador não quer que a Alemanha empreste dinheiro à Áustria. Quer que eu fale com os meus primos franceses.
— Quero, sim. Este empréstimo não devia vir da Alemanha, mas de França. Gostaria de reforçar as boas relações entre a França e a vossa magnífica nação.
O barão riu da lisonja.
— Não quer que a Áustria-Hungria fique endividada perante a Alemanha. É melhor para si que fiquemos a dever à França. Mas porquê ficar pela França? Podia ver se o governo inglês está disposto a emprestar os fundos necessários. Assim a vossa nação e a nossa terão uma firme amizade. Não podemos fazer o que os alemães nos mandam se tivermos um exército pago por vocês.
Sir Fairfax abanou a cabeça.
— Infelizmente, não farão o empréstimo. Contudo, o governo francês consideraria fazer o empréstimo, se fosse partilhado pela casa Goldbaum.
— Discutirei a questão com a Casa de Paris — concordou o barão. — Mas somos perfeitamente autónomos. O barão Jacques e Henri tomarão as suas próprias decisões.
— Queria pedir-lhe que os aconselhasse vivamente a fazê-lo. Em Inglaterra, já não consideramos os franceses os nossos inimigos naturais. É a ambição da Alemanha que me rouba o sono. Os ingleses e os austríacos, o rei e o imperador e o arquiduque, desejam todos o mesmo: a paz. A guerra é uma despesa grotesca, em todos os sentidos.
— Ninguém está a falar de guerra, senhor embaixador.
— Façamos então todos os possíveis para que ninguém venha a falar.
O barão fez então um comentário sobre o ano do vinho de sobremesa, e Sir Fairfax, diplomata perfeito, partilhou de imediato as suas recordações da terrível geada do fim de agosto de 1890 e o lamentável efeito que teve nas vinhas da Borgonha. Não voltaram a falar de política, de dinheiro nem de guerra.
O comboio fez uma paragem demorada na fronteira com a Suíça, para que os passaportes fossem carimbados, e depois seguiu caminho, atravessando os sopés da Jura, cobertos de árvores. Alguns dos cumes mais altos pareciam cortados por nuvens, como o topo de um ovo cozido. Greta não veio tomar o pequeno-almoço. Pediu a Anna para lhe preparar um banho. Esperou que a criada enchesse a grande banheira de esmalte com água quente, deitasse os sais de banho perfumados, dispusesse as toalhas de linho com odor a lavanda e a deixasse a sós. Mas em vez de entrar na banheira, Greta abriu as cortinas de renda, desobedecendo às indicações diretas da baronesa, e ficou, nua, à janela, a ver França passar por ela: os campos vazios, o solo lavrado, húmido no brilho róseo da manhã, com rebentos verdes à superfície. De vez em quando, florestas de pinheiros escuros ou um rio de prata acompanhavam a linha férrea durante uns momentos, antes de se desviarem. Passaram a alta velocidade por um camponês na passagem de nível, a tentar reparar a roda da sua carroça, com o filho pequeno empoleirado num fardo de palha, olhando fixamente, de boca aberta, para o comboio. Greta duvidava que ele tivesse sequer reparado na rapariga nua à janela.
Mais tarde, dirigiu-se discretamente para a carruagem panorâmica e ficou sentada, sozinha, com um chocolate quente que não bebeu e uma revista que não leu. Olhou pela janela, tão absorta nos seus pensamentos que não ouviu Sir Fairfax entrar na carruagem e falar com ela. Ele tossiu e voltou a falar.
— Por onde estamos a passar agora, Fräulein Goldbaum?
Ela estremeceu e sorriu-lhe.
— Estamos perto de Dijon. Devemos chegar a Paris antes da hora de almoço. Imagino que esteja contente por se ver livre de nós.
— De todo. E espero que nos voltemos a ver em Inglaterra. Sou um velho amigo do seu noivo. Bom, do pai dele, na verdade. Conheço o Albert desde que ele era um rapaz.
Greta voltou-se para o embaixador, ansiosa, como um girassol a virar-se na direção do sol.
— Conhece, mesmo? Como é que ele é?
Sir Fairfax sentou-se num sofá baixo diante dela e franziu o sobrolho, pensativo.
— Não é muito falador. Não está sempre a palrar, como alguns outros jovens. Suponho que ele seja aquilo a que os ingleses chamam «reservado». É um naturalista. Sempre a colecionar coisas. A correr pelos campos com a sua rede de borboletas. Faz uns desenhos extraordinários. E, claro, tem mostruários cheios delas.
— De borboletas?
— E traças. Escaravelhos. Bichos-da-seda. Muito impressionante.
Greta tentou fazer um ar intrigado em vez de repugnado. Imaginou-se fixada por alfinetes, na sua coleção, entre as borboletas.
— E é bonito?
O embaixador riu.
— Está a fazer estas perguntas a um homem de idade. Não sou exatamente a pessoa certa para responder.
Greta suspirou e o embaixador cedeu.
— Segundo sei, as senhoras acham-no bem-parecido, atraente. É um pouco mais alto do que a média e normalmente, quando não faz este frio terrível, em excelente forma física devido aos…
— … passeios com a rede de borboletas.
— Sim. Isso mesmo.
Greta recostou-se na cadeira e olhou pela janela, tentando concentrar-se nas filas de vinhas e nas sombras das nuvens a cobrir os montes mais baixos.
— A mãe dele é uma mulher maravilhosa. Lady Goldbaum é uma excelente anfitriã e uma jardineira de grande talento.
— Jardineira?
— Sim, os jardins de Temple Court são espantosos. Lady Goldbaum conseguiu a maior coleção de rododendros na Europa e os…
Greta deixou de ouvir. Ocorreu-lhe que tinha passado muito tempo a pensar em Albert, tendo criado um retrato carinhoso, ainda que fictício, do noivo, na sua mente, sem ter praticamente pensado nos outros membros da sua nova família. Durante o primeiro ano, iriam viver com os pais de Albert em Temple Court, antes de se mudarem para a sua casa na propriedade. Lady Goldbaum tinha-lhe escrito uma carta muito simpática, sugerindo que Greta tratasse da escolha da mobília e supervisionasse a renovação da casa, ao seu gosto e ao de Albert (como se já partilhassem uma visão harmoniosa de casal, apesar de ainda não se terem conhecido); e até estar pronta, seriam muito bem-vindos — aliás, seriam recebidos com uma imensa alegria — na casa da família. Greta mexeu-se, inquieta; não gostava de admitir que a sua felicidade inicial dependeria da relação com a sogra, bem como com o marido. Afinal, depois da lua de mel, Albert passaria a semana em Londres e só voltaria a Temple Court aos fins de semana com o pai. Haveria longos dias a preencher na companhia de Lady Goldbaum e os seus rododendros espantosos. Greta começou a temer que viessem a ser dias realmente muito longos.
— E o irmão de Albert, como é? — perguntou, interrompendo o embaixador e depois corando com a sua própria falta de educação.
— O Clement? — perguntou Sir Fairfax, hesitante.
Greta acenou com a cabeça. Albert era o irmão mais novo e era invulgar, entre os Goldbaum, o filho mais novo casar primeiro. Ainda não tinha sido encontrada uma noiva Goldbaum adequada para Clement.
— Gosto dele — disse Sir Fairfax, cuidadosamente.
— Mas há quem não goste?
— Não, não. Se Albert é um pouco reservado, a verdade é que Clement é dolorosamente tímido.
E gordo, pensou Greta. Era a única coisa que sabia com alguma certeza acerca do futuro Lord Goldbaum. Quando a baronesa lhe tinha anunciado que ia casar com um Goldbaum inglês, Greta partiu do princípio de que a mãe estava a falar de Clement, conhecido em toda a família pelo seu espantoso tamanho. Quando percebeu que era com o irmão mais novo que iria casar, ficara tão aliviada que tivera de se sentar no chão do quarto de vestir da baronesa, com a cabeça entre os joelhos.
— Clement joga xadrez — disse Sir Fairfax, após uma pausa. Sussurrou-o, como se se tratasse de uma tremenda perversão.
— Xadrez? — disse Greta, no mesmo tom baixo. — Isso não é assim tão mau, pois não?
Era um passatempo invulgarmente económico para um Goldbaum.
— Tudo o que é feito obsessivamente não é saudável — disse Sir Fairfax, escolhendo as suas palavras com tanta delicadeza que Greta continuou sem perceber qual seria o problema. Foi com pouco prazer que pensou na sua nova família: uma amante de plantas, um amante de insetos e outro com uma paixão aparentemente doentia por xadrez. Perguntou-se se não poderia desaparecer em Paris.